Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0590/16.6BEBRG
Data do Acordão:07/03/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
QUESTÃO DE FACTO
Sumário:I – Das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando respeitem a matéria exclusivamente de Direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
II – A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina a incompetência absoluta do tribunal ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.
III – Existe discordância com a fundamentação de facto da decisão recorrida por erro, insuficiência ou excesso, nos seguintes termos (i) foram julgados provados factos não verificados; (ii) não foram inscritos no probatório factos verificados; (iii) divergência com as ilações de facto extraídas dos factos provados ou não provados.
Nº Convencional:JSTA000P32462
Nº do Documento:SA2202407030590/16
Recorrente:AA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
AA com os demais sinais dos autos, vem recorrer da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a qual julgou totalmente improcedente a presente impugnação judicial por ele deduzida visando os actos de liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios, referentes aos exercícios de 2013 e 2014, no montante global de € 20.270,32.
Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões a fls. 389 a 416 do SITAF:
1) A factualidade articulada e provada nos autos não permite que a impugnação controvertida possa ser julgada totalmente improcedente.
2) Entende o recorrente que a douta sentença recorrida enferma do vício erro de julgamento.
3) Uma vez que ficou demonstrado nos autos [Cfr Doc nº 27] que foi dado cumprimento ao disposto no nº 8 do artº 29º do CIVA, na justa medida em que os adquirentes de pescado declaram perante o impugnante vendedor qual o destino efectivo dado aos bens adquiridos, deveria o Tribunal recorrido ter julgado a impugnação procedente relativamente a esta questão.
4) O que deve relevar para o benefício da isenção prevista no artº 14º, nº 1 – alínea f) do CIVA, de acordo com a mens legis, é assegurar que os bens isentos tenham efectivamente o destino que justifica essa isenção.
5) A questão decidenda controvertida nos autos consistia em apurar se o impugnante, ora recorrente, tinha direito à isenção do IVA, ao abrigo do disposto no artº 14º, nº 1 – alínea f) do CIVA, relativamente às transmissões identificadas no Doc. nº 27 junto à PI.
6) O Tribunal a quo entendeu que não, com base numa interpretação essencialmente literal, invocando os seguintes argumentos:
• “[a] norma legal concedente da isenção condiciona essa isenção à obrigação de o sujeito passivo comprovar o destino que aos bens “irá ser dado” (verbo ir no futuro, o que pressupõe a declaração prévia sobre o destino dos bens.
• “[O] artigo 8.º do CIVA estabelece que o imposto devido deve ser liquidado com a emissão da factura, o que afasta a declaração posterior sobre o destino dos bens.
• “[o] escopo da norma que exige a declaração sobre o destino dos bens visa o combate à fraude e evasão fiscal, o que impõe a declaração prévia do destino dos bens.
7) Salvo o devido respeito por opinião contrária, o recorrente entende que o Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação da lei e do Direito. Com efeito, o legislador utiliza, na redacção do nº 8 do artigo 29.º do CIVA, o verbo ir no futuro para o caso de a declaração controvertida ser emitida antes da emissão da factura. Resta saber se esse elemento literal é confirmado pelos demais elementos da hermenêutica jurídica. Ao recorrente parece que não.
8) Socorrendo-nos do elemento teleológico da interpretação, constata-se que, o que está aqui em causa, é uma isenção às transmissões de bens de abastecimento postos a bordo de embarcações de pesca costeira referidas na alínea e) do nº 1 do artigo 14.º do CIVA.
9) Trata-se de uma isenção objectiva concedida a uma actividade assimilada a exportação, em que, por natureza, o IVA não é devido no território da Comunidade Europeia. Assim, provado que seja que os bens de abastecimento foram postos a bordo de embarcações de pesca costeira estará verificado o pressuposto para a isenção do IVA que seria devido sobre os referidos bens que é o desiderato prosseguido pela norma de isenção.
10) A declaração a que se refere o nº 8 do artigo 29.º do CIVA serve apenas como prova daquele pressuposto, não contribuindo em nada para o fim visado pela isenção em causa.
11) Logo, parece irrelevante o momento em que essa prova seja feita – o que é preciso é que seja feita. E, no caso que aqui nos trás, o impugnante fez essa prova, apresentado as declarações exigíveis emitidas, embora, após a emissão das facturas.
12) Por outro lado, o nº 9 do mesmo artigo 29.º estabelece que o imposto em causa será devido na falta da referida declaração. Ora, como se constata, no caso vertido nos autos, não há falta da declaração, mas apenas a sua apresentação em momento que a AT e o Tribunal recorrido consideram extemporâneo.
13) Acresce que, o Tribunal a quo também não está a fazer uma interpretação e aplicação correcta do artigo 8.º do CIVA. Na verdade, como se constata, este normativo legal estabelece diferentes momentos para a exigibilidade do imposto e nem sempre essa exigibilidade coincide com a emissão da factura, como se sustenta na douta sentença recorrida.
14) O que separa a interpretação efectuada pelo Tribunal recorrido da interpretação efectuada pelo impugnante reside apenas no entendimento a seguir quanto ao momento em que deve ser apresentada a declaração a que se refere o nº 8 do artº 29.º do CIVA, sendo esta uma questão que incumbe ao Tribunal ad quem resolver.
15) Finalmente, o argumento de que a apresentação da declaração controvertida depois de emissão da factura põe em causa o combate à fraude e evasão fiscal também não colhe, porquanto, substantivamente, o que a AT precisa de saber para reconhecer o direito à isenção do IVA no caso trazido aos autos é se os bens a isentar foram ou não postos a bordo de uma embarcação de pesca costeira. E, neste caso, foram-no efectivamente, inexistindo qualquer risco de fraude.
16) Caso a questão anterior venha a ser julgada improcedente – no que se não concede – então haverá que apurar a que taxa de IVA devem ser sujeitos os bens em causa.
17) Como decorre da prova produzida nos autos, os bens transmitidos pelo impugnante consistem em peixe fresco (morto) que os adquirentes destinam a “isca” para ser utilizado em embarcações de pesca costeira.
18) Embora os adquirentes deste peixe o destinem a fins não alimentares, isso não invalida que se trate de um produto alimentar que pode ser utilizado na alimentação humana, ou não, conforme a vontade do adquirente, tal como acontece com qualquer produto alimentar que poderá ser utilizado fora do processo alimentar humano.
19) E deste modo, este peixe deve ser tributado à taxa de 6% constante da Verba 1.3.1 da Lista I anexa ao CIVA, que reza assim:
1.- Produtos alimentares:
[…]
1.3.1 – Peixe fresco (vivo ou morto), refrigerado, congelado, seco, salgado ou em salmonela (…)
20) Do ponto de vista da literalidade da norma, “produtos alimentares” não é o mesmo que “produtos utilizados na alimentação”.
21) O Tribunal a quo assim não entendeu e sufragando-se na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) considerou que as normas que prevêem taxas reduzidas de IVA devem ser objecto de “interpretação estrita ou literal”. (Sic)
22) Este segmento da douta sentença recorrida deixa antever que no silogismo judiciário se iria recorrer à interpretação meramente literal da verba 1.3.1 da Lista I do CIVA. Mas não foi isso que aconteceu. Vejamos.
23) Como decorre da douta sentença recorrida, o peixe fresco (vivo ou morto) referido na verba 1.3.1 da Lista I do CIVA é aquele que se destina a ser introduzido no processo alimentar. Pois bem. Não é isso que resulta da estrita literalidade da norma!
24) O que se passa é que o Tribunal a quo está a acrescentar à norma um segmento que ela não contém – a efectiva utilização no processo alimentar.
25) A ser assim entendido, ficaria precludido o princípio da neutralidade do IVA consagrado no considerando (7) da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28.11.2006, porquanto originaria distorções de concorrência, na justa medida em que o mesmo produto seria sujeito a taxas diferentes consoante as escolhas dos compradores.
26) Reza assim o referido considerando (7):
“O sistema comum do IVA deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado-Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição.”
27) Como nota a Advogada Geral BB nas suas conclusões apresentadas no caso TNT (Ac. de 23.04.2009, Proc.º C-357/07, Colect., p.I-5189) o princípio da neutralidade fiscal opõe-se a que mercadorias ou prestações de serviços semelhantes, que estão, portanto, em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do imposto sobre o valor acrescentado (nº 43) Neste contexto (…) Nele se inclui o princípio da eliminação das distorções da concorrência resultes de um tratamento diferente do ponto de vista do imposto sobre o valor acrescentado (…) (nº 59). Ou seja. Existirá neutralidade relativa ao consumo quando o imposto não influi nas escolhas dos diversos bens ou serviços por parte dos consumidores.
28) Indo no mesmo sentido a jurisprudência do TJUE como se poderá constatar através, por exemplo, do Proc.º nº C-89/8118-ponto (6) (caso Hong-Kong Trade Development Council)
29) Na verdade, se um proprietário de uma embarcação de pesca costeira adquirir peixe, normalmente de fraca qualidade) num determinado mercado de peixe pagará IVA à taxa de 6%, mesmo que esse peixe não seja destinado a consumo humano, mas sim a isca. Mas, se o mesmo proprietário adquirir o mesmo tipo de peixe a um comercializador com a indicação de que tal peixe se destina a isca, já pagará IVA à taxa de 23%, facto que, obviamente, induzirá o comprador a escolher a modalidade onde a taxa do IVA seja menor.
30) Deste modo, a interpretação efectuada pelo Tribunal recorrido tem impacto nas decisões dos agentes económicos, violando, desse modo, o princípio da neutralidade do IVA como corolário do princípio da não discriminação (princípio estruturante do ordenamento jurídico comunitário). Portanto, entende o impugnante que, a haver lugar à sujeição em IVA no caso controvertido nos autos, a taxa aplicável deverá ser a de 6%.
31) Como foi alegado pelo impugnante, a liquidação do IVA relativo ao 4º trimestre de 2013 é ilegal, como decorre da conjugação dos documentos 5 a 7 anexos à PI.
32) Essa ilegalidade resulta do facto de a liquidação do IVA para o referido período ser nula (valor=0), como se pode verificar através da análise dos documentos nºs 5 e 6, encontrandose em desacordo com a nota de cobrança emitida no valor de 5 186,16€ – Cf. Doc. nº 7. A nulidade (valor =0) da referida liquidação resulta do facto de ao imposto apurado pela Inspecção, no valor de 5 168,03€ ter de ser deduzido o valor do imposto a crédito do impugnante, no valor de 5 186,16€, como mandam os art. ºs 19º/nº 1, 22º/nº 1 do CIVA e art.ºs 7º e 8º do DL nº 229/95, daí resultando um saldo nulo (=0).
33) Razão pela qual a nota de cobrança em causa só pode ter sido emitida por lapso, devendo, por isso, ser anulada.
34) O Tribunal a quo assim não entendeu. Como decorre dos autos, está em causa uma actuação da AT em que, em face de irregularidades detectadas pela Inspecção Tributária emite as correcções que geram receita e omite as correcções que não geram receita – as correcções favoráveis aos contribuintes.
35) De acordo com o entendimento sufragado na douta sentença recorrida, a AT não tem que efectuar as correcções a favor dos contribuintes, cabendo a estes a faculdade de pedirem o respectivo reembolso. Uma tal actuação da AT não está prevista – que se saiba, em qualquer norma legal.
36) O que se sabe é que a AT está constitucionalmente vinculada na sua actuação aos princípios da justiça e da proporcionalidade – Cfr artº 266.º, nº 2 da CRP.
37) E, se a AT apura irregularidades em que, umas são a seu favor e outras a favor dos contribuintes deve, isso sim, levá-las todas em consideração, fazendo as necessárias compensações e cobrando apenas aquilo a que tem direito.
38) Ao actuar como actuou, a AT violou não só os princípios da justiça e da proporcionalidade como incorreu em enriquecimento sem causa ao locupletar-se à custa de uma parcela de imposto a que não tinha direito.
39) É toda esta forma de actuar da AT que a douta sentença recorrida acaba por validar com prejuízo dos direitos e legítimos interesses do impugnante, negando-lhe, desse modo, a necessária tutela jurisdicional efectiva que a Lei Fundamental consagra, mas que o Tribunal recorrido parece ignorar.
40) Como foi alegado pelo impugnante, as liquidações dos juros compensatórios são ilegais por violarem o disposto no artigo 35.º, nº 8 da LGT. Essa ilegalidade resulta do facto de as liquidações dos juros compensatórios terem sido efectuada separadamente das liquidações do IVA subjacentes.
41) Reza assim o nº 8 do citado artº 35º:
“8 – Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados.” (Sic) (negrito nosso)
42) Como ficou demonstrado, a AT emitiu liquidações de IVA e liquidações de juros separadamente, contrariando a lei que manda efectuar a liquidação dos juros conjuntamente com a liquidação do imposto, razão pela qual as liquidações de juros assim emitidas são ilegais porque não cumprem as formalidades legais aplicáveis às mesmas.
43) O Tribunal a quo assim não entendeu. Sobre esta questão escreve-se na douta sentença recorrida:
“No que resulta que a liquidação separada dos juros compensatórios com o imposto que lhe está na génese, não é de molde a consubstanciar o vício de forma invocado pelo impugnante, não afrontando a estatuição enunciada no nº 8 do artº 35.º do CPPT”. (Sic)
44) A menção do nº 8 do artº 35.º do CPPT está errada. Certamente o que se queria dizer era nº 8 do artº 35.º da LGT.
45) De facto, não se compreende como é que se pode dizer que a liquidação dos juros separadamente da liquidação do imposto subjacente não afronta o nº 8 do artigo 35.º da LGT. Ou seja. A lei diz textualmente que é “branco”. Vem a AT e diz que é “preto”, concluindo a sentença em recurso que a diferença de cor é irrelevante. Coisa impensável!
46) Para sufragar a sua douta opinião, o MMO Juiz a quo cita vária jurisprudência que se debruça sobre a natureza jurídica dos juros compensatórios. Porém, não estando em causa nos autos a natureza jurídica dos juros compensatórios, mas sim a violação de uma formalidade (o facto de os mesmos não terem sido liquidados conjuntamente com o imposto que está na sua génese), conclui-se que uma tal jurisprudência, no caso concreto, não ajuda na composição do litígio.
47) Acresce que, uma tal interpretação efectuada pelo Tribunal a quo viola grosseiramente o disposto no artº 9.º, nºs 2 e 3 do Código Civil que estabelece o seguinte:
“2 – Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3 – Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
48) Portanto, estamos perante uma interpretação contra legem aquela que o Tribunal a quo verteu para a douta sentença recorrida.
49) Violou a douta sentença recorrida as seguintes normas legais: artigos 9.º, nºs 2 e 3 do CCivil; artigos 266.º, nº 2 e 268.º, nºs 4 e 5 da CRP; artigo 14.º, nº 1- al. f) do CIVA e artigo 35.º, nº 8 da LGT.

I.2 – A Fazenda Pública não veio apresentar contra alegações no âmbito da instância.

I.3 – Parecer do Ministério Público
O Ministério Público emitiu parecer com o seguinte conteúdo:
“I – OBJETO –
AA vem recorrer da douta sentença proferida em 06/09/2022 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra os actos de liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios, referentes aos exercícios de 2013 e 2014, no montante global de € 20.270,32.
Concretizando, julgou improcedente a impugnação relativamente às questões:
- da isenção de IVA estabelecida na alínea f), do n.º 1, do art.º 14º do CIVA (e do momento da emissão da declaração a que se alude no n.º 8 do art.º 29ª do CIVA), - da taxa de IVA aplicável aos bens transmitidos (peixe para consumo não humano, destinado a isca para exploração de embarcações de pesca costeira);
- dos efeitos de eventual crédito de IVA na legalidade do imposto em discussão nos autos, com especial enfoque na liquidação de imposto referente ao período de 1312T; - da (i)legalidade da liquidação separada dos juros compensatórios.
O Recorrente entende que a sentença enferma do vício erro de julgamento, por não fazer uma correcta interpretação da lei e do Direito.
Defende que a factualidade articulada e provada nos autos não permite que a impugnação controvertida possa ser julgada totalmente improcedente e que foram violados os arts. 9º, nºs 2 e 3 do CCivil, 266º, nº 2 e 268º, nºs 4 e 5 da CRP, 14º, nº 1- al. f) do CIVA e 35.º, nº 8 da LGT.
Retira-se das extensas conclusões, resumidamente, o seguinte:
“3) Uma vez que ficou demonstrado nos autos [Cfr Doc nº 27] que foi dado cumprimento ao disposto no nº 8 do artº 29º do CIVA, na justa medida em que os adquirentes de pescado declaram perante o impugnante vendedor qual o destino efectivo dado aos bens adquiridos, deveria o Tribunal recorrido ter julgado a impugnação procedente relativamente a esta questão.
4) O que deve relevar para o benefício da isenção prevista no artº 14º, nº 1 – alínea f) do CIVA, de acordo com a mens legis, é assegurar que os bens isentos tenham efectivamente o destino que justifica essa isenção.
7) …o recorrente entende que o Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação da lei e do Direito. Com efeito, o legislador utiliza, na redacção do nº 8 do artigo 29.º do CIVA, o verbo ir no futuro para o caso de a declaração controvertida ser emitida antes da emissão da factura. Resta saber se esse elemento literal é confirmado pelos demais elementos da hermenêutica jurídica. Ao recorrente parece que não.
10) A declaração a que se refere o nº 8 do artigo 29.º do CIVA serve apenas como prova daquele pressuposto, não contribuindo em nada para o fim visado pela isenção em causa.
12) Por outro lado, o nº 9 do mesmo artigo 29.º estabelece que o imposto em causa será devido na falta da referida declaração. Ora, como se constata, no caso vertido nos autos, não há falta da declaração, mas apenas a sua apresentação em momento que a AT e o Tribunal recorrido consideram extemporâneo.
14) O que separa a interpretação efectuada pelo Tribunal recorrido da interpretação efectuada pelo impugnante reside apenas no entendimento a seguir quanto ao momento em que deve ser apresentada a declaração a que se refere o nº 8 do artº 29.º do CIVA, sendo esta uma questão que incumbe ao Tribunal ad quem resolver.
16) Caso a questão anterior venha a ser julgada improcedente – no que se não concede – então haverá que apurar a que taxa de IVA devem ser sujeitos os bens em causa.
18) Embora os adquirentes deste peixe o destinem a fins não alimentares, isso não invalida que se trate de um produto alimentar que pode ser utilizado na alimentação humana, ou não, conforme a vontade do adquirente, tal como acontece com qualquer produto alimentar que poderá ser utilizado fora do processo alimentar humano.
19) … este peixe deve ser tributado à taxa de 6% constante da Verba 1.3.1 da Lista I anexa ao CIVA,…
31) Como foi alegado pelo impugnante, a liquidação do IVA relativo ao 4º trimestre de 2013 é ilegal, como decorre da conjugação dos documentos 5 a 7 anexos à PI.
32) Essa ilegalidade resulta do facto de a liquidação do IVA para o referido período ser nula (valor=0), como se pode verificar através da análise dos documentos nºs 5 e 6, encontrando-se em desacordo com a nota de cobrança emitida no valor de 5 186,16€ – Cf. Doc. nº 7. A nulidade (valor =0) da referida liquidação resulta do facto de ao imposto apurado pela Inspecção, no valor de 5 168,03€ ter de ser deduzido o valor do imposto a crédito do impugnante, no valor de 5 186,16€, como mandam os art.ºs 19º/nº 1, 22º/nº 1 do CIVA e art.ºs 7º e 8º do DL nº 229/95, daí resultando um saldo nulo (=0).
33) Razão pela qual a nota de cobrança em causa só pode ter sido emitida por lapso, devendo, por isso, ser anulada.
34) O Tribunal a quo assim não entendeu.
42) Como ficou demonstrado, a AT emitiu liquidações de IVA e liquidações de juros separadamente, contrariando a lei que manda efectuar a liquidação dos juros conjuntamente com a liquidação do imposto, razão pela qual as liquidações de juros assim emitidas são ilegais porque não cumprem as formalidades legais aplicáveis às mesmas.
II – QUESTÃO PRÉVIA –
Da incompetência do Supremo Tribunal Administrativo em razão da hierarquia. É jurisprudencialmente pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pela recorrente das respectivas alegações, salvo as questões que sejam do conhecimento oficioso e cujos elementos necessários à sua consideração se encontrem nos autos (cfr. artº 635º do CPC ex vi do artº 281º, do CPPT).
Da leitura sua leitura, de que se realçam as conclusões aqui reproduzidas, o Recorrente vem, não só, invocar erro de julgamento de direito, mas também, uma incorrecta apreciação e valoração da matéria factual.
Nomeadamente, no que diz respeito à questão da invocada nulidade, no nº 31 das conclusões, “…a liquidação do IVA relativo ao 4º trimestre de 2013 é ilegal, como decorre da conjugação dos documentos 5 a 7 anexos à PI.”, e até ao nº 39 das mesmas, resulta que o Recorrente pretende discutir matéria factual. Recordemos que já na própria sentença recorrida, a este respeito, consta: “No que concerne à nulidade/lapso atinente à liquidação do período de 1312T, o mesmo olvida a regularização do reembolso a que se alude no ponto 8) dos factos considerados provados, no preciso montante de 5.186,16 €, a que, aliás, e tal como o anota a Fazenda Pública, se reporta o estorno e acerto de contas referenciado no documento n.º 7 junto com a petição inicial.”
E que do facto provado nº 8 consta: “Em 24-03-2014, a Administração Fiscal emitiu, a favor do Impugnante, o reembolso de IVA com o n.º ...97, no montante de 5.186,16 €, reportado ao exercício de 2013, o qual se encontra na situação de “regularizado” – cfr. documento n.º 1 junto com a contestação e documento n.º 7 junto com a petição inicial;”.
Relativamente aos recursos das decisões do tribunais tributários de 1ª instância, há que atender ao disposto na al. b) do art. 26º e al. a) do art. 38º, ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), conjugados com o disposto no nº 1 do art. 280º do CPPT, ao determinar que a competência para conhecer dos mesmos pertence à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso tenha por exclusivo fundamento matéria de direito.
Salvo o devido respeito por diferente entendimento, afigura-se-nos que o presente recurso não se fundamenta exclusivamente em matéria de direito, uma vez que o Recorrente também manifesta discordância com a fundamentação de facto da decisão recorrida, divergência com as ilações de facto extraídas dos factos provados e com recurso a prova documental.
Cfr. neste sentido, os doutos Acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 26/10/2022, processo nº 0249/14.9BEVIS, de 01/07/2020, processo nº 0759/16.3BEBSNT.
Deste modo, invoca-se a excepção de incompetência absoluta deste Supremo Tribunal Administrativo, em razão da hierarquia, sendo que a competência para conhecer do presente recurso pertence, não a este Supremo Tribunal Administrativo, mas ao Tribunal Central Administrativo Norte, nos termos dos referidos normativos constantes da al. a) do art. 38º do ETAF e nº 1 do 280º do CPPT.
III – Conclusão –
Termos em que se emite parecer no sentido de ser julgada por verificada a exceção de incompetência do Supremo Tribunal Administrativo, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso jurisdicional, remetendo-se os autos ao Tribunal Central Administrativo Norte (cfr. art. 18.º do CPPT).”

I.4 – Notificadas as partes do teor do Parecer do Ministério Público, nada vieram dizer sobre o mesmo.

I.5 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – De facto
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto a fls. 360 a 377 do SITAF:
1. O Impugnante encontra-se registado, desde 08-10-2012, para o exercício da actividade de “Comércio a retalho em bancas, feiras e unidades móveis de venda, de outros produtos”, a que corresponde o CAE 47890, tendo sido enquadrado, para efeitos de IVA, no regime normal trimestral – facto não controvertido e conforme à informação de fls. 7 do relatório de inspecção, junto como documento n.º 26 da petição inicial, igualmente a fls. 40 e ss. do processo administrativo apenso;
2. A coberto das ordens de serviço n.ºs ...26, ...27 e ...28, emitidas na sequência de pedido de reembolso de IVA formulado pelo Impugnante para o período de 2014-12T, foi iniciado procedimento inspectivo externo ao Impugnante, de âmbito parcial (IVA), incidente quanto aos exercícios de 2012, 2013 e 2014 – cfr. fls. 2 a 7 do processo administrativo apenso e informação de fls. 6 do relatório de inspecção, junto como documento n.º 26 da petição inicial, igualmente a fls. 40 e ss. do processo administrativo apenso;
3. Em 02-06-2015, no âmbito do procedimento de inspecção aludido no ponto antecedente, a inspecção tributária notificou o Impugnante, na pessoa do mandatário judicial por si constituído, para que “(…) no prazo de 10 (dez) dias, exiba nesta DF os documentos a que se refere o n.º 8 do art.º 29º do CIVA (Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado), relativos a todas as transmissões efectuadas pelo SP inspecionado, nos anos de 2012, 2013 e 2014 e por este consideradas isentas nos termos da al. e) do art.º 14º do CIVA, sob pena de se proceder à liquidação do imposto que se mostrar devido, em conformidade com o que estipula o n.º 9 do art.º 29º do diploma a que nos vimos referindo. (…)” – facto não controvertido e conforme a fls. 19 do processo administrativo apenso;
4. Nessa sequência, em 15-06-2015, o Impugnante apresentou à inspecção tributária as declarações que integram o anexo II do relatório de inspecção, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
5. Em 09-09-2015, foi elaborado o relatório de inspecção tributária que consta de fls. 40 e ss. do processo administrativo apenso (igualmente junto como documento n.º 26 da petição inicial), cujo teor se considera integralmente reproduzido, e do qual consta, entre o mais, o seguinte: «(…)

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6. No seguimento das correcções efectuadas em sede de procedimento inspectivo, a Administração Tributária emitiu, nos estritos moldes constantes dos documentos n.ºs 1 a 25 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido, as liquidações adicionais de IVA e associados juros compensatórios, aqui objecto de impugnação judicial, referentes aos exercícios de 2013 e 2014, no montante global de 20.270,32 €, dali constando, enquanto datas limites de pagamento 07 e 08-01-2016 – facto não controvertido e conforme aos documentos n.ºs 2 a 7 juntos com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
7. A petição inicial dos presentes autos foi apresentada neste Tribunal, via electrónica, em 23-03-2016 – cfr. fls. 1 do suporte electrónico dos autos; Mais se provou que:
8. Em 24-03-2014, a Administração Fiscal emitiu, a favor do Impugnante, o reembolso de IVA com o n.º ...97, no montante de 5.186,16 €, reportado ao exercício de 2013, o qual se encontra na situação de “regularizado” – cfr. documento n.º 1 junto com a contestação e documento n.º 7 junto com a petição inicial;
9. Do extracto de conta corrente do cliente CC, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-07-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 2.010.60€, conforme à declaração por si emitida em 11-03-2015 – cfr. documentos de fls. 211-213 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
10. Do extracto de conta corrente do cliente DD, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 30-04-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 6.731.00€, conforme à declaração por si emitida em 11-03-2015 – cfr. documentos de fls. 214-218 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
11. Do extracto de conta corrente do cliente EE, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-10-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 4.111.00€, conforme à declaração por si emitida em 11-03-2015 – cfr. documentos de fls. 219-221 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
12. Do extracto de conta corrente do cliente FF, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-12-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 2.425.00€, conforme à declaração por si emitida em 11-03-2015 – cfr. documentos de fls. 222-223 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
13. Em 11-03-2015, o cliente do Impugnante GG emitiu a “requisição/declaração n.º ...06”, a afirmar o “consumo de isco Facturas n.º ...84, ...28, ...62, ...52, ...69, ...97, de Novembro e Dezembro de 2014, no valor de 547,50€” – cfr. documento de fls. 224 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
14. Do extracto de conta corrente do cliente HH, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-12-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 4.588.00€, conforme à declaração por si emitida em 11-03-2015 – cfr. documentos de fls. 225-227 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
15. Do extracto de conta corrente do cliente II, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 30-11-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 1.999.00€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 228-230 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
16. Do extracto de conta corrente da cliente JJ, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-07-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 3.947.00€, conforme à declaração por si emitida em 10-03-2015 – cfr. documentos de fls. 231-233 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
17. Do extracto de conta corrente do cliente KK, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-12-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 5.219.50€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 234-238 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
18. Do extracto de conta corrente do cliente LL, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 30-11-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 1.883.50€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 239-241 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
19. Do extracto de conta corrente do cliente MM, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-12-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 7.455.50€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 242-247 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
20. Do extracto de conta corrente do cliente NN, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 30-11-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 307.00€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 248-249 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
21. Do extracto de conta corrente do cliente A..., Lda., resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-03-2013 a 31-08-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 7.990.50€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 250-251 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
22. Do extracto de conta corrente do cliente B..., Unipessoal, Lda., resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-07-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 28.428.30€, conforme à declaração por si emitida em 12-03-2015 – cfr. documentos de fls. 252-254 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
23. Do extracto de conta corrente do cliente OO, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 31-12-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 2.421.50€, conforme à declaração por si emitida em 28-02-2015 – cfr. documentos de fls. 255-257 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
24. Do extracto de conta corrente do cliente PP, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 30-06-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 6.106.00€, conforme à declaração por si emitida em 04-03-2015 – cfr. documentos de fls. 258-259 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
25. Do extracto de conta corrente do cliente QQ, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 28-02-2013 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 15.983.03€, conforme à declaração por si emitida em 03-03-2015 – cfr. documentos de fls. 260-266 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
26. Do extracto de conta corrente do cliente RR, resulta a aquisição ao Impugnante, no período de 30-11-2012 a 31-12-2014, de peixe destinado a isco, no montante de 6.596.00€, conforme à declaração por si emitida em 11-03-2015 – cfr. documentos de fls. 267-272 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido.

II.2 – De Direito
I. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo TAF de Braga, que julgou improcedente a presente impugnação judicial interposta pelo impugnante, ora Recorrente AA, visando a liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios, referentes aos exercícios de 2013 e 2014, no montante global de 20.270,32 €.
Ao decidir pela improcedência do recurso quanto à isenção de IVA estabelecida na alínea f) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA (e do momento da emissão da declaração a que se alude no n.º 8 do artigo 29.º do CIVA), considerou o tribunal à quo que o ora recorrente não se encontrava “…no momento próprio, da comprovação a que se alude no n.º 8 do art.º 29º do CIVA, nenhuma censura haverá a assacar à actuação da Administração Fiscal que, com fundamento no n.º 9 daquele art.º 29º, procedeu à liquidação do IVA correspondente.”
Alega ainda que, quanto à taxa aplicável aos bens transmitidos (peixe para consumo não humano destinado a isca para exploração de embarcações de pesca costeira) e ao contrário do que defende a impugnante, ora Recorrente, “… a tributação à taxa reduzida de IVA do peixe fresco (vivo ou morto) depende da sua introdução no processo alimentar.”; o que não acontece no presente caso em que o peixe é “…destinado a isca para exploração de embarcações de pesca costeira, não destinado ao processo alimentar de primeira necessidade, fundamento da sua tributação pela taxa reduzida, sendo, por decorrência, tributado à taxa normal de imposto, talqualmente efectuado no procedimento inspectivo.”

II. Inconformado com a decisão, veio o impugnante, ora Recorrente interpor recurso para esta Instância Superior, alegando que “…a douta sentença recorrida violou as seguintes normas legais: artigos 9.º, nºs 2 e 3 do CCivil; artigos 266.º, nº 2 e 268.º, nºs 4 e 5 da CRP; artigo 14.º, nº 1- al. f) do CIVA e artigo 35.º, nº 8 da LGT.”
Para isso, alega em resumo o Recorrente, tendo em conta as suas extensas conclusões recursivas, que “…1) A factualidade articulada e provada nos autos não permite que a impugnação controvertida possa ser julgada totalmente improcedente.” E que “3) Uma vez que ficou demonstrado nos autos [Cfr Doc nº 27] que foi dado cumprimento ao disposto no nº 8 do artº 29º do CIVA, na justa medida em que os adquirentes de pescado declaram perante o impugnante vendedor qual o destino efectivo dado aos bens adquiridos, deveria o Tribunal recorrido ter julgado a impugnação procedente relativamente a esta questão.” E, neste sentido, ainda considera o Recorrente que “18) Embora os adquirentes deste peixe o destinem a fins não alimentares, isso não invalida que se trate de um produto alimentar que pode ser utilizado na alimentação humana, ou não, conforme a vontade do adquirente, tal como acontece com qualquer produto alimentar que poderá ser utilizado fora do processo alimentar humano. 19) … este peixe deve ser tributado à taxa de 6% constante da Verba 1.3.1 da Lista I anexa ao CIVA,…” e que “31) Como foi alegado pelo impugnante, a liquidação do IVA relativo ao 4º trimestre de 2013 é ilegal, como decorre da conjugação dos documentos 5 a 7 anexos à PI.” 33) Razão pela qual a nota de cobrança em causa só pode ter sido emitida por lapso, devendo, por isso, ser anulada”.

III. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal, veio o Magistrado do Ministério Público emitir Parecer, a fls. 432 e ss. do SITAF, a sublinhar a existência de uma exceção de incompetência absoluta deste Supremo Tribunal Administrativo, em razão da hierarquia para conhecer o recurso, uma vez que este não se fundamenta exclusivamente em matéria de direito.
Há que começar, portanto, por conhecer desta alegada exceção de incompetência.

IV. Recordemos que, nos termos do artigo 280.º, n.º 1 do CPPT, das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando respeite a questão exclusivamente de Direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Ora, atentando a que, nos termos do artigo 26.º, alínea b) do ETAF, se atribui competência à Secção do Contencioso Tributário do STA para conhecer dos recursos interpostos das decisões que versem exclusivamente sobre questões de Direito dos Tribunais Tributários, e que, por sua vez, o artigo 38.º, alínea a) do mesmo diploma atribui competência à Secção de Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, ressalvando-se precisamente o disposto no citado artigo 26.º, alínea b), deve concluir-se que, para o conhecimento dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários de 1ª. Instância, a competência deste Supremo Tribunal está circunscrita a decisões exclusivamente sobre questões de Direito – cfr., entre muitos outros, os Acórdãos da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal proferidos no processo n.º 0762/16, de 1 de Julho de 2020, no processo n.º 054/16, de 17 de Junho de 2020, e processo n.º 02501/15, de 9 de Outubro de 2019 (disponíveis em www.dgsi.pt).

V. No que ao presente caso interessa, deve entender-se que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de Direito sempre que, nas conclusões das respectivas alegações – as quais fixam o objecto do recurso artigo 635.º, n.º 4 do CPC – o Recorrente retira distintas ilações da matéria fáctica fixada na decisão recorrida ou não invoca, como devia, factos que suportam a sua pretensão. Tal como foi, ainda recentemente, recordado por este Supremo Tribunal no acórdão lavrado em 13 de Julho de 2022, no Processo n.º 2955/16: “Os recursos não têm por fundamento exclusivo matéria de direito sempre que nas conclusões das alegações, que fixam o objecto do recurso (art.635º nº 4 CPC vigente), o recorrente manifesta discordância com a fundamentação de facto da decisão recorrida por erro, insuficiência ou excesso, nos seguintes termos (i) foram julgados provados factos não verificados; (ii) não foram inscritos no probatório factos verificados; (iii) divergência com as ilações de facto extraídas dos factos provados ou não provados.” - disponível em www.dgsi.pt.

VI. Ora, é precisamente o que sucede com as conclusões n.ºs 3 (“Uma vez que ficou demonstrado nos autos [Cfr Doc nº 27] que foi dado cumprimento ao disposto no nº 8 do artº 29º do CIVA, na justa medida em que os adquirentes de pescado declaram perante o impugnante vendedor qual o destino efectivo dado aos bens adquiridos, deveria o Tribunal recorrido ter julgado a impugnação procedente”), 10, 11 e 12 (“10) A declaração a que se refere o nº 8 do artigo 29.º do CIVA serve apenas como prova daquele pressuposto, não contribuindo em nada para o fim visado pela isenção em causa. 11) Logo, parece irrelevante o momento em que essa prova seja feita – o que é preciso é que seja feita. E, no caso que aqui nos trás, o impugnante fez essa prova, apresentado as declarações exigíveis emitidas, embora, após a emissão das facturas. 12) Por outro lado, o nº 9 do mesmo artigo 29.º estabelece que o imposto em causa será devido na falta da referida declaração. Ora, como se constata, no caso vertido nos autos, não há falta da declaração…”), 18 (“18) Embora os adquirentes deste peixe o destinem a fins não alimentares, isso não invalida que se trate de um produto alimentar que pode ser utilizado na alimentação humana, ou não, conforme a vontade do adquirente”), 31 (“31) Como foi alegado pelo impugnante, a liquidação do IVA relativo ao 4º trimestre de 2013 é ilegal, como decorre da conjugação dos documentos 5 a 7 anexos à PI.”), 33 e 34 (“33) Razão pela qual a nota de cobrança em causa só pode ter sido emitida por lapso, devendo, por isso, ser anulada. 34) O Tribunal a quo assim não entendeu.”): em todas elas são feitas considerações que pressupõem juízos que ultrapassam o exercício meramente exegético, demandando conclusões e indagações de natureza forçosamente factual que vão além dos dados consolidados no Probatório, antes pressupondo a sua alteração ou adaptação das ilações daí extraídas.

VII. Por todo o exposto, cabe declarar competente o Tribunal Central Administrativo Norte e mandar remeter os autos a esse Tribunal, conforme estabelece o artigo 18.º, n.º 1 do CPPT, podendo este Tribunal Central, assim, conhecer da comprovação factual (ou não) dos requisitos de que depende a verificação do disposto no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, assim como das demais questões que, logicamente, lhe sucedem.


III. Conclusões
I – Das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando respeitem a matéria exclusivamente de Direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
II – A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina a incompetência absoluta do tribunal ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.
III – Existe discordância com a fundamentação de facto da decisão recorrida por erro, insuficiência ou excesso, nos seguintes termos (i) foram julgados provados factos não verificados; (ii) não foram inscritos no probatório factos verificados; (iii) divergência com as ilações de facto extraídas dos factos provados ou não provados.

IV. Decisão
Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em julgar procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da hierarquia, sendo competente para tanto a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 3 de Julho de 2024. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva.