Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 012/24.9BCLSB |
Data do Acordão: | 07/04/2024 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | MARIA DO CÉU NEVES |
Descritores: | DISCIPLINA DESPORTIVA AMNISTIA REINCIDÊNCIA |
Sumário: | |
Nº Convencional: | JSTA000P32493 |
Nº do Documento: | SA120240704012/24 |
Recorrente: | AA |
Recorrido 1: | FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO 1. RELATÓRIO AA, devidamente identificado nos autos, recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), do Acórdão do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que o condenou numa sanção de 50 (cinquenta) dias de suspensão e uma multa no valor de 80 UC no âmbito do Processo Disciplinar nº ...3, pedindo que aquele tribunal reconhecesse que o mesmo não incorreu em qualquer responsabilidade disciplinar. * Por acórdão do TAD, proferido em 27 de Novembro de 2023, foi decidido, por maioria, julgar totalmente improcedente o processo arbitral e, consequentemente, confirmar a decisão condenatória recorrida, que condenou o demandante na sanção de suspensão de 50 (cinquenta) dias e, acessoriamente, uma sanção de multa no valor de 80 UC, correspondente ao valor de 8.160,00€ (oito mil cento e sessenta euros), atendendo ao factor de ponderação de 1 (um), aplicável nos termos do disposto no artigo 36º, nº 2 do RD, conjugado com a tabela elaborada pela LPFP.* O requerente apelou para o TCA Sul e este, por acórdão datado de 29 de Fevereiro de 2024 negou provimento ao recurso confirmando o acórdão arbitral.* De novo, o demandante, inconformado, veio interpor o presente recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:«i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 29.02.2024 proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, no qual se decidiu não ser de aplicar a uma infracção disciplinar a amnistia prevista na Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, ii. Mantendo, assim, a decisão condenatória proferida no processo disciplinar nº ...3 que aplicou a AA uma pena de suspensão de 50 dias e uma sanção de multa no valor de 8.160,00€ pela prática de uma infracção disciplinar, p. e p. pelo art.º 136.º, n.º 1, tendo por referência o disposto no art.º 112.º, n.º 1 do RDLPFP. iii. Entendeu o Tribunal a quo que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, os autores de condutas que consubstanciam infracções disciplinares quando reincidentes. iv. Não obstante a excepcionalidade dos recursos de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, entende o recorrente que estão preenchidos, in casu, os requisitos para a apreciação e decisão por instância superior impostos pelo art. 150.º-1 do CPTA, como a decisão proferida que se quer ver reapreciada viola lei substantiva e processual (150.º-2 CPTA). v. Porquanto, a questão decidenda tem uma elevada relevância jurídica e social, que se reveste de importância fundamental: a aplicação de um perdão, consagrado em lei, aos cidadãos pela prática de determinadas infracções. vi. E tendo o legislador consagrado uma “graça” como consequência jurídica para a prática de determinados factos, a sua não aplicação aos casos por ela abrangidos, comporta uma violação da lei com crucial relevância social e jurídica, originando aplicações de sanções pela prática de actos que a lei pretendeu amnistiar. vii. A manter-se a decisão do Tribunal a quo, cristaliza-se na ordem jurídica um acórdão que um acórdão que impede a aplicação de um perdão legalmente previsto e impõe sanções aos cidadãos de forma indevida, sendo necessário a apreciação da questão para uma melhor aplicação do direito. viii. A questão que se pretende ver apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo pode ser sintetizada da seguinte forma: qual a interpretação que deve ser dada ao art.º 7.º, n.º 1, al j) da referida Lei n.º 38.º-A/2023, designadamente se a reincidência ali prevista como motivo de exclusão de aplicação se reporta aos ilícitos criminais ou a todas as infracções abrangidas pela amnistia. ix. São muitas as decisões do Tribunal Arbitral do Desporto que têm decidido pela aplicação da Lei n.º 38.º-A/2023 a reincidentes de infracções disciplinares, não relevando para o efeito o facto de o agente ter ou não cometido idêntica infracção nos últimos 3 anos. x. Idêntico número de decisões têm entendido não ser de aplicar a graça prevista na Lei 38.º-A/2023, quando o agente tiver praticado idêntica infracção nos últimos três anos. xi. Estando assim o agente dependente do entendimento que predominar no Colégio Arbitral que venha a ser constituído. xii. Igualmente pelo Tribunal Central Administrativo Sul têm sido proferidos acórdãos em sentido divergente, designadamente recusando a aplicação do perdão em caso de reincidência como no caso dos autos, ou aplicando o perdão não considerando o registo de infracções do agente nos últimos 3 anos, como no acórdão proferido pelo mesmo tribunal em 26/10/2023 no processo que correu seus termos sob o número 74/23.6BCLSB. xiii. Verifica-se assim alguma instabilidade na resolução jurídica deste tipo de litígios, que ainda abundam nos tribunais da jurisdição e que reveste uma relevância social e jurídica de importância fundamental. xiv. Está em causa uma questão passível de se repetir num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 1 do art.º 285.º, do CPPT xv. Esta questão tem sido objecto de tratamento diferenciado entre diversas instâncias judiciais e mesmo dentro das mesmas instâncias judiciais, designadamente no TAD e no TCAS. xvi. Sendo inequívoco a repercussão social que a imposição de sanções disciplinares de forma indevida tem nos cidadãos e no próprio ordenamento jurídico, sobretudo se se considerar que cidadãos na mesma situação jurídica poderão ser objecto de tratamento sancionatório distinto. xvii. A utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. xviii. A solução aqui encontrada servirá de fonte e orientação para a apreciação de casos de idêntica natureza. xix. É imperioso garantir uma solução homogénea nos inúmeros casos idênticos futuros, dada a enorme possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros, sendo a Revista necessária para a melhor aplicação e uniformização do direito. xx. É por demais evidente que esta questão - com as questões satélites que a gravitam - assume uma importância jurídica fundamental no âmbito da aplicação do direito sancionatório. xxi. Tudo gerando a necessidade de afastar a incerteza e a instabilidade daí decorrentes, numa teleologia de clarificação. xxii. A solução aplicável ao caso em sindicância não se afigura pacífica, dado que, por um lado, existe um conjunto de divergências jurisprudenciais que impedem uma uniformização interpretativa nos termos de aplicabilidade prática e imediata do direito; xxiii. Motivos pelos quais a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, que ora se requer, se reveste de uma importância fundamental. xxiv. Sufragámos o critério hermenêutico recorrentemente afirmado pelo STJ, de que “a amnistia bem como o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições; e na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa” – in Acórdão nº 3/94, in recurso nº 45890, Diário da República, 1ª série-A, de 4 de Novembro de 199 – mas, entendemos que face ao teor do diploma, se impõe uma interpretação declarativa. xxv. Sendo insusceptível de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo”. xxvi. Para interpretação das normas, temos imperativamente de recorrer ao artigo 9.º do Código Civil, e do exame literal do texto da alínea j), do nº 1 do art.º 7 da Lei n.º 38-A/2023, não resulta a solução para os problemas de interpretação, desde logo porque, não raras vezes o elemento literal pode ser, como neste caso é, ambíguo ou gerador de diferentes interpretações, conforme as múltiplas decisões judiciais do TAD e do TCAS em dissonância. xxvii. Ensina-nos ENNECCERUS in Tratado de Direito Civil, que a interpretação tem de partir do teor verbal da lei “tendo em conta as regras da gramática e designadamente o uso (corrente) da linguagem”, tomando em consideração os “modos de expressão técnico-jurídicos”. Ressalvando, porém, que além do teor verbal hão-de ser considerados “a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos” (interpretação lógico-sistemática), assim como “a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica”, “a história da génese do preceito” que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios e finalmente o “fim particular da lei ou do preceito em singular” (interpretação teleológica). xxviii. A Lei nº 38-A/2023, entrada em vigor no dia 01.09.2023, “estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” (art. 1.º). xxix. De acordo com o art. 2.º, n.º 2, al. a), dessa Lei n.º 38A/2023, são por ela abrangidas: a) “Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”, o qual, por seu turno, determina o seguinte, em sede de “amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares”: b) “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”. xxx. O legislador aplica uma amnistia a todas as infracções disciplinares cuja sanção não seja superior a suspensão, não efectuando, quanto a este tipo de infracção, qualquer delimitação do âmbito subjectivo. xxxi. Relativamente aos ilícitos penais, o legislador opta por elencar toda uma panóplia de crimes, fazendo delimitações objectivas (relativamente ao tipo-de ilícito e à conduta) e delimitações subjectivas (relativamente ao agente) do âmbito de aplicação da lei, designadamente relativos à idade e à reincidência. xxxii. A delimitação da aplicação da lei a não reincidentes só releva, nos termos do diploma legal em análise, quanto a infracções de natureza penal e não às disciplinares e disciplinares militares, às quais o legislador manteve um carácter puramente objectivo. xxxiii. A favor deste entendimento está a inserção sistemática da excepção em causa, que é inserida logo após ao elenco dos crimes não amnistiáveis, fazendo-se aqui uma descrição de todos os tipos-de-ilícito não abrangidos pela amnistia, para seguidamente entrar na parte subjectiva, aqui se fazendo referência aos reincidentes, ainda na parte a que se refere a ilícitos de natureza penal. xxxiv. Mais, a amnistia de infracções disciplinares e infracções disciplinares militares é objecto de tratamento autónomo o qual contêm já um regime de excepção próprio à sua aplicação, designadamente no art.º 6.º da Lei n.º 38-A/2023. xxxv. No qual o legislador não só estatui a amnistia das infracções disciplinares e infracções disciplinares militares como previu, logo ali, os casos em que a mesma não se aplicaria, ou seja, no caso de as mesmas constituírem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados e nos casos em que a sanção aplicável fosse superior a suspensão ou prisão disciplinar. xxxvi. Não fazendo ali, quando trata das infracções disciplinares e militares, e define o âmbito de aplicação da lei àquelas infracções, num artigo e regime especial autónomo, qualquer delimitação subjectiva ou qualquer referência à reincidência. xxxvii, Não faria qualquer sentido que o legislador criasse um regime de aplicação da amnistia a infracções disciplinares e infracções disciplinares militares com um regime específico (regime especial) de excepção da sua aplicação e ainda tivesse querido sujeitá-lo a uma cláusula adicional de exclusão inserta noutra norma, de carácter geral, onde essencialmente apenas trata de questões criminais e contraordenacionais, onde não faz qualquer referência às infracções disciplinares. xxxviii. A interpretação no Acórdão recorrido, é claramente desconforme à ratio legis, e à intenção e pensamento do legislador, quando pretendeu individualizar as infracções e os regimes aplicáveis a cada uma delas. xxxix. A alínea j) do nº 1 do art.º 7 da Lei da Amnistia apenas pretendeu excluir deste perdão determinados crimes que face aos bens jurídicos violados, o legislador entendeu não serem merecedores do “perdão”. xl. Veja-se o voto de vencido que acompanha a decisão arbitral que originou o recurso para o TCAS: “Nos termos do disposto no artigo 9º do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas procurar o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada (a ratio legis), tendo, no entanto, esse pensamento legislativo que ter um mínimo de correspondência verbal na letra da lei.” xli. Mais referindo, aquele voto de vencido, cuja posição aqui sufragámos: “(…) Restringir a exceção à aplicação da lei da amnistia pelo facto de o beneficiário ser reincidente aos casos criminais, se afigura a interpretação que melhor respeita os objectivos que a lei pretendeu alcançar, assegurando o carácter puramente objectivo da amnistia de infracções disciplinares, e encontra apoio no texto da lei (…)” xlii. Concluindo que: “de acordo com a sua inserção sistemática, e levando em contra que a norma que amnistia as infracções disciplinares (artigo 6.º) estabelece já as situações em que a mesma não se aplica, definindo, portanto, as exceções à amnistia deste tipo de infrações, pelo que o seu regime não está abrangido pelo disposto no artigo 7.º”. xliii. E conforme supra se referiu, tem sido este o entendimento de muitas das decisões proferidas por aquele Tribunal Arbitral, ficando o agente dependente da “sorte” do composição do colégio arbitral para ver a sua conduta amnistia ou condenada. xliv. Sendo que, igualmente o TCAS tem vindo a aplicar a amnistia a processos em curso, independentemente do registo disciplinar do arguido, ignorando-o, ou simplesmente não indagando sobre o cadastro disciplinar do sujeito objecto da amnistia. xlv. Privilegiando o entendimento de que o legislador, na lei da amnistia se norteou por uma ideia de restringir a sua aplicação apenas a reincidentes de condutas penalmente típicas, não fazendo qualquer delimitação subjectiva quanto às infracções disciplinares. xlvi. De forma que se sufraga a ideia, conforme a uma interpretação meramente declarativa, de que a expressão reincidentes na alínea l), do nº1, do art.º 7, da Lei nº 38ºA/2023, apenas se dirige aos ilícitos criminais a que a sua aplicação se reporta. xlvii. Impondo-se a este Supremo Tribunal uma interpretação declarativa nesse sentido. xlviii. Decidindo como decidiu, o Acórdão recorrido violou o disposto no art.º 2.º, nº 1, 6.º e art.º 7, nº 1 j) todos da Lei nº 38º-A/2023 e art.º 9 do Código Civil.» * A “FPF” veio apresentar contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:«1. O recurso interposto pelo Recorrente AA, tem por objeto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 29 de Fevereiro de 2024, que confirmou a decisão proferida pelo TAD de manter a decisão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que havia sancionado o Recorrente em suspensão de 50 (cinquenta) dias de suspensão e acessoriamente na sanção de multa de € 8.160,00; 2. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo andou mal, porquanto o Acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 2.º, nº1, 6.º e art.º 7, nº 1, al. j), da Lei nº 38º-A/2023, por entender o Recorrente que é o que resulta de uma interpretação meramente declarativa, de que a expressão reincidentes na alínea l) do nº 1, do art.º 7, da Lei nº 38.ºA/2023, apenas se dirige aos ilícitos criminais a que a sua aplicação se reporta; 3. As decisões do TAD e do TCAS são coincidentes, sendo que, a jurisprudência do TCAS relativamente a esta matéria, ao contrário do que o Recorrente afirma, mas não demonstra, é unânime, pelo que, salvo melhor entendimento, deve decidir-se pela não admissibilidade do Recurso de Revista interposto pelo Recorrente, por manifesta falta de verificação dos pressupostos previstos no artigo 150º do CPTA. Vejamos, 4. O Recorrente foi sancionado pela factualidade dada como provada e que não está aqui em crise, sendo que, à data de tais factos tinha os antecedentes disciplinares de fls. 15 do processo disciplinar .../-22/23, pelo que, atento o facto provado no ponto 6.º dos factos dados como provados, o Recorrente foi condenado como reincidente, verificando-se que, nas três épocas desportivas anteriores àquela em que se verificaram os factos supra, foi condenado várias vezes pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo art. 136.º, n.º 1, do RD, mediante decisões transitadas em julgado; 5. Nos termos do disposto no artigo 7º, nº 1, al. l), não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os reincidentes; 6. O mencionado diploma – Lei da Amnistia – abrange quer os ilícitos penais, quer as sanções acessórias relativas a contraordenações e as sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares; 7. No que toca às infrações disciplinares, para poderem estar abrangidas pela amnistia, não podem constituir, em simultâneo, ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável seja superior a suspensão ou prisão disciplinar – cfr. alínea a) do nº 2 do artigo 2.º e artigo 6.º, ambos da Lei nº 38-A/2023, e bem assim, não podem estar em causa reincidentes- cfr. artigo 7º, nº 1, al. j); 8. Não existe qualquer remissão legal que nos permita concluir que a exclusão da amnistia em virtude da reincidência, apenas opera quanto ilícitos criminais, mas já não quanto a infrações disciplinares; 9. Desde que se verifique provada a reincidência, não se aplicará a amnistia e o perdão a que alude a Lei da Amnistia, independentemente de estarmos perante ilícitos criminais, disciplinares ou militares; 10. A verdadeira intenção do legislador foi de não amnistiar reincidentes, reiterando-se que, se quisesse que assim fosse, teria clarificado no artigo 6.º e/ou 7.º, que a exclusão de aplicação de perdão e da amnistia só se aplicaria a reincidentes de ilícitos criminais; 11. O legislador refere “apenas” que “não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei (…) os reincidentes” – cfr. artigo 7.º, nº 1, al. l) da Lei da Amnistia; 12. Conforme jurisprudência do STA a que supra aludimos, sendo a Lei da Amnistia uma providência de exceção deve interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliação nem restrição que nela não venham expressas, não passível de interpretação extensiva, restritiva ou analógica; 13. Com efeito, as normas constantes em tais diplomas, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, contendo-se no texto da respetiva lei adotando-se uma interpretação declarativa; 14. O perdão e a amnistia de penas devem ser sempre vistos e aplicados com um enquadramento de exceção, ademais quando determinada por razões de clemência religiosa, sob pena de se violar o próprio Estado de Direito, razão pela qual, refira-se aliás, se tem vindo a entender que mesmo em matéria disciplinar sancionatória não pode ser aplicada a Lei da Amnistia a reincidentes; 15. O artigo 7º alínea J) da Lei da Amnistia exceciona expressamente do benefício da amnistia prevista nesta lei os reincidentes; 16. Percorrendo as várias alíneas do nº 1 do artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sempre que o legislador pretendeu restringir o respetivo âmbito de aplicação às Infrações penais, fê-lo igualmente de forma expressa, sendo que, na alínea j) do n.º 1 do artigo 7° refere-se, genericamente, aos “reincidentes”, não havendo, fundamento para não incluir os reincidentes de infrações disciplinares nesta previsão normativa; 17. Sempre que o legislador quis restringir o respetivo âmbito de aplicação às infrações penais (cfr. artigo 11º, nº 1, no que à recusa de amnistia diz respeito), fê-lo expressamente, o que manifestamente não sucede no caso do nº 1 do artigo 7º e, em concreto, da alínea j) reportada aos reincidentes; 18. A ratio legis do artigo 7°, n,° 1, alínea J) da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto vai no sentido de considerar que os reincidentes (quaisquer reincidentes, seja de infrações penais, infrações disciplinares ou de infrações disciplinares militares) não beneficiam do ato de graça, traduzido na possibilidade de beneficiarem da possibilidade verem extinta a sua responsabilidade criminal ou disciplinar, pelo que tal regime será inaplicável aos presentes autos, uma vez que o Recorrente é reincidente disciplinar; 19. O nº 1 do artigo 7°da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto enuncia, taxativa e expressamente, os casos que não beneficiam do perdão e da amnistia, sem qualquer delimitação negativa no que às infrações disciplinares diz respeito; 20. O elemento histórico permite idêntica conclusão, na medida em que, a Lei nº 29/99, de 12 de maio que previa no artigo 2.º, nº 1, al. a), que “Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei (…) Os reincidentes”, e bem assim, no artigo 3º, que “Relativamente às infrações praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, a pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos a delinquentes com menos de 21 anos, à data da prática do crime, ou com 70 ou mais anos, em 25 de Março de 1999, será sempre substituída por multa na parte não perdoada, salvo se forem reincidentes ou se se encontrarem em alguma das situações previstas no artigo seguinte”; 21. No caso dos autos, atento o facto provado no ponto 6.º dos factos dados como provados, o Recorrente foi condenado como reincidente, verificando-se que, nas três épocas desportivas anteriores àquela em que se verificaram os factos supra, foi condenado várias vezes pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo art. 136º, nº 1, do RD, mediante decisões transitadas em julgado; 22. O entendimento que se vem perfilhando tem merecido acolhimento unânime por parte do TCAS; 23. Em suma, o Recorrente, por ter sido qualificado como reincidente, não beneficia do perdão e da amnistia previstos na Lei da Amnistia; 24. Neste conspecto, não se verificando qualquer violação do disposto nos arts. 2.º, nº 1, 6.º e art.º 7, nº 1, al. j), da Lei nº 38º-A/2023, andou bem o Tribunal a quo ao considerar não ser de aplicar a Lei da Amnistia no caso dos autos, devendo manter-se na íntegra.» * O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 6 do artº 150º do CPTA], proferido em 16 de Maio de 2024.* O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 146º, nº 1 e 147º do CPTA, não emitiu pronúncia.* Sem vistos, por não serem devidos.2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. MATÉRIA DE FACTO A matéria de facto assente nos autos, é a seguinte: «i) No dia 14.05.2023, realizou-se o jogo nº ...04, disputado entre a A... SAD e a B..., Ldª, no âmbito da 32.ª jornada da Liga ..., em que interveio equipa de arbitragem com a seguinte composição: a. Árbitro: BB; b. Assistente 1 (AA1): CC; c. Assistente 2: DD; d. 4º Árbitro: EE; e. VAR: FF; f. AVAR: GG; g. Observador: HH - cfr. fls. 5 e ss. do PD nº ...23; ii) O Arguido, AA, é Delegado da A... SAD e, nessa qualidade, interveio no sobredito jogo - cfr. fis. 5 e ss. do PD nº ...23; iii) No mesmo jogo ocorreram os factos descritos no seguinte trecho do respetivo Relatório de Árbitro: “AA - Após ter sido expulso, confrontou o árbitro assistente número 1, gritando-lhe de forma agressiva "Estás feito comigo, caralho! És um mentiroso!", investindo contra o referido elemento da equipa de arbitragem com uma atitude ameaçadora e intimidatória de forma repetida e tendo de ser agarrado por elementos da sua equipa para o apaziguar." - cfr. fls. 14 do PD nº ...23 iv) Tais factos foram presenciados por vários espectadores e agentes desportivos, para além de ter sido objecto de transmissão televisiva e, portanto, observado por vários telespectadores. - cfr. ficheiro vídeo de fls. 33 do PD nº ...23, desde cerca das 2h23m31s; v) O Arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento era desrespeitoso e injurioso para com o AA1, para além de lesivo da imagem da competição referida anteriormente: vi) À data dos factos o Arguido tinha os antecedentes disciplinares reproduzidos em fls. 31 do PD, verificando-se que, nas três épocas desportivas anteriores àquela em que se verificaram os factos supra, foi condenado várias vezes pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo art. 136º, nº 1, do RD, mediante decisões transitadas em julgado». * 2.2. O DIREITOO presente recurso intentado por AA tem por objecto sindicar o acórdão proferido pelo TCA Sul em 29 de Fevereiro de 2024, que confirmou o acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 27.11.2023, que, por sua vez, julgou improcedente o recurso interposto pelo mesmo recorrente, da decisão do Conselho de Disciplina da FPF - Secção Profissional que o sancionou com 50 dias de suspensão e acessoriamente em multa no valor de 80 UC, correspondente ao montante de 8.160,00€, no âmbito do processo disciplinar n° ...3, pela prática da infracção disciplinar prevista e punida pelas disposições conjugadas dos arts. 136°, n°s 1 e 3 [lesão da honra e da reputação e denúncia caluniosa], com referência aos arts. 112°, n° 1, 54°, n° 1 e 4°, n° 1, alínea b) todos do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), sustentando que a aplicação da amnistia aprovada pela Lei 38-A/2023 de 02/08 tem de ser excluída apesar dos factos terem ocorrido em 14.05.2023, uma vez que o ora recorrente é reincidente e como tal, nos termos do disposto na al. a) do nº 1, do artº 7º da citada Lei, dela não poder beneficiar. Defende o recorrente, em síntese, nos termos vertidos nas conclusões de recurso apresentadas na presente revista que pretende ver reapreciado por este Supremo Tribunal Administrativo, a interpretação que foi dada ao art.º 7º, nº 1, al j) da Lei nº 38º-A/2023, designadamente, se a reincidência ali prevista como motivo de exclusão da aplicação da amnistia se reporta aos ilícitos criminais ou a todas as infracções abrangidas pela amnistia. Vejamos, sendo que, esta questão, em concreto, já se mostra decidida por este Supremo Tribunal, em acórdão proferido em 26.06.2024, no âmbito do proc. nº 24/21.4BCLSB, no sentido da exclusão da amnistia no âmbito destes processos de infracções disciplinares de natureza desportiva. E, por concordarmos com a fundamentação dele constante, bem como, com a decisão proferida, procederemos à sua transcrição, na parte que releva e importa aos presentes autos: «8. A amnistia, perspetivada como pressuposto negativo da punição (e não como modo de extinção da infração), pode respeitar tanto a crimes, como a infracções disciplinares, encontrando-se, em ambas as situações sujeita a princípios comuns. Nesse sentido, v. o Ac. TC nº 30/97, n° 6: “(Constituindo um obstáculo à efetivação da punição, as amnistias são da competência reservada da Assembleia da República (cfr. o artigo 164°, alínea g), da Constituição) e revestem forma de lei. Nessa medida, quaisquer limitações estabelecidas na lei quanto às condições ou aos efeitos da amnistia - como as do n°4 do artigo 11° do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local ou as do artigo 126° do Código Penal de 1982 - valerão apenas na medida em que, por força da lei da amnistia, não sejam afastadas. E que, sendo esta posterior — e especial —, as normas que a compõem sempre prevalecerão sobre as antes estabelecidas em normas de igual hierarquia (cfr. J. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 695, que considerava o referido artigo 126° do Código Penal de 1982 ‘legislação subsidiária”). Neste contexto, poderá perguntar-se: é constitucionalmente admissível à Assembleia da República amnistiar infrações disciplinares sem destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena — como o determina aquele normativo e, por omissão de expressa previsão noutro sentido, se tem de entender que foi querido pelo legislador da Lei n°23/91, de 4 de Julho? 7. Tendo em conta a liberdade de conformação reconhecida neste domínio ao legislador (cfr., neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal n°s.152/93 e 153/93 [...]), não poderá deixar de responder-se afirmativamente àquele quesito, desde que seja salvaguardada a legitimidade material da amnistia, a qual, segundo Eduardo Correia/Taipa de Carvalho (cfr. ob. cit., p. 17), “deve afirmar-se sempre e apenas quando ocorrerem situações em que a defesa da comunidade sócio-política seja melhor realizada através da demência que não da punição” ou, corno refere 1. de Sousa e Brito, sempre que a amnistia se reconduzir à “totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de Direito”, e não apenas “aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infração visado pela norma amnistiante” (cfr. Sobre a amnistia, in Revista Jurídica da AAL, n° 6(1986), p. 43). Sob o ponto de vista constitucional, a legitimidade das leis de amnistia de infracções punidas por normas de direito público deve ser aferida à luz do princípio do Estado de Direito, donde resulta que os fins das leis de amnistia não podem ser incompatíveis com a realização de um tal princípio.» (itálicos acrescentados). Estes princípios, que de algum modo, concretizam um conceito constitucional de amnistia, foram corroborados pelo Ac. TC n° 116/2001, n°7: «O Tribunal Constitucional, no mencionado Acórdão n° 301/97, considerou expressamente ser constitucionalmente admissível à Assembleia da República amnistiar infrações disciplinares sem destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, desde que seja salvaguardada a legitimidade material da amnistia. [...] Ora, decorre da jurisprudência constitucional sumariamente citada que a definição de certas condições de concessão de uma amnistia integra o espaço de liberdade de conformação legislativa, podendo o legislador estabelecer limites aos efeitos da medida de graça, efeitos esses que não têm, desse modo, de significar a destruição de todas as consequências da infração amnistiada. Compreende-se, de resto, que assim seja, uma vez que a concessão da amnistia, consubstanciando uma medida excecional, repercute-se no funcionamento do sistema sancionatório público, impedindo a normal produção de efeitos das normas que o integram. Trata-se, pois, de uma intervenção singular, em ordem a valores específicos e necessariamente legítimos (cf., quanto à natureza e legitimidade de tais valores, os Acórdãos n° 444/97 e 510/98), cuja concreta extensão assim como as respetivas condições de aplicação não se encontram constitucionalmente pré-definidas. Os limites a tal medida referem-se então aos seus fins (como o Tribunal Constitucional apreciou nos Acórdãos n°s 444/97 e 510/98), de forma a que, com a concessão da amnistia, não se afetem princípios fundamentais do Estado de direito. O carácter mais ou menos restrito dos seus efeitos (uma vez assente, sublinhe-se, a legitimidade material e teleológica da medida de graça), ou seja, os efeitos concretos da infração amnistiada que são eliminados, assim como as repercussões processuais da medida também poderão ser livremente conformadas pelo legislador dentro dos assinalados limites. [...] Em resumo, pode afirmar-se que a amnistia se traduz num benefício concedido pelo Estado, com maior ou menor amplitude, e que, consubstanciando uma valoração excepcional e de algum modo acidental da infração, deixa intocados os direitos e as garantias fundamentais do agente, caso possa, por opção livre do potencial beneficiário, não ser aplicado.» (itálicos acrescentados)”. Nesta linha de entendimento, também se afirma na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo: «[a]mnistia própria ou imprópria, já não pode hoje conceber-se, o instituto, como no passado, como uma forma de esquecimento ou apagamento dos factos e da ilicitude, deles, mas simplesmente como um ato de renúncia do Estado ao seu direito de os punir [- amnistia própria -] a ou de prosseguir na execução da punição já decretada [- amnistia imprópria -1» (v. o Ac. STA, de 22.04.1997, P. 39538, publicado no Apêndice ao Diário da República, 2ª série, de 23.03.2001). 9. A Lei n° 38-A/2023 é muito parca na caracterização da amnistia de infracções disciplinares comuns, limitando-se a uma delimitação positiva e negativa daquelas que pretende abranger: - Infrações disciplinares: i) praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023 (artigo 2°, n° 2, alínea b); e ii) cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão (artigo 6.°); desde que, - Tais infrações não sejam praticadas por reincidentes (artigo 7°, n° 1, alínea j). É entendimento comum da jurisprudência dos tribunais superiores, que, enquanto providências de exceção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, e em via de princípio, interpretação extensiva, restritiva ou analógica (cfr. o Ac. TRL, de 24.01.2024, P. 778/23.3T8PDL-A.L1-4, com amplas referências jurisprudenciais). Significa isto que o legislador deixou um amplo espaço para a aplicação daquilo a que FIGUEIREDO DIAS designa de legislação subsidiária: preceitos da lei ordinária que prevêem consequências determinadas de uma amnistia, mas que, dado o valor legal da norma amnistiante, só são aplicáveis na medida em que não sejam expressamente afastadas pela lei da amnistia (v. Autor cit., Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 4ª reimpr., Coimbra Editora, Coimbra, p. 695; em sentido substancialmente idêntico, v. também MAIA GONÇALVES, Código Penal Português -Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 12.ª ed., Almedina Coimbra, 1998, anot. 4 ao art. 128°, p. 410). Ou seja, os citados preceitos da Lei n° 38-A/2023 limitam-se a estatuir uma amnistia de infrações disciplinares correspondente ao conceito constitucional de amnistia - «um obstáculo à efetivação da punição» (Ao. TC n° 301/97, n° 6); «impedir-se que o agente agraciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado» (Ac. TC nº 510/98, nº 3) -, o qual, como referido, ((descreve apenas o principal efeito jurídico da amnistia, deixando em aberto os efeitos jurídicos que podem separar a amnistia do perdão, como o da restituição dos direitos de que a condenação privou o criminoso ou de aproveitar aos reincidentes e criminosos por tendência, ou o do apagamento da sanção no registo, por exemplo. Mas mesmo que o regime destes últimos efeitos seja idêntico na amnistia e no perdão, tal não é uma necessidade conceptual, mas uma proposta de política legislativa que pode ser ou não seguida pelo legislador ordinário» (assim, v. ibidem, o Ac. TC n° 510/98). Em suma, no caso da amnistia prevista nos artigos 2°, n° 2, alínea b), e 6° da Lei n° 38-A-12023, não existem outros efeitos legalmente previstos para além da preclusão da punição a aplicar ou já aplicada a quem tenha cometido uma infração, nos termos da delimitação positiva e negativa operada pelos mesmos preceitos, razão por que as infrações disciplinares abrangidas por aquelas normas apenas são afetadas na medida em que o citado efeito se produza, ou seja, a neutralização da sanção aplicável ou já aplicada a uma infração anteriormente praticada, a qual, deste modo, deixa de poder ser ou continuar a ser punida. Na ausência de outras determinações, a conformação concreta de tal efeito decorre necessariamente das regras estatuídas no regime jurídico disciplinar aplicável, enquanto “legislação subsidiária ou complementar”. In casu, aquele regime consta do RDLPFP (cfr. o respetivo artigo 25.°). 10. Recorde-se que, nos termos do regime jurídico das federações desportivas constante do Decreto-Lei n° 248-B/2008, de 31 de dezembro (“RJFD”), a Federação Portuguesa de Futebol é uma pessoa coletiva de direito privado sem fins lucrativos, dotada de utilidade pública desportiva, com poderes públicos de autorregulação atribuídos diretamente pela lei e a exercer sob a fiscalização do Estado (cfr. os respectivos artigos 11º e 14°). Entre tais poderes incluem-se os de regulamentação das competições desportivas profissionais e de poderes disciplinares, a exercer no quadro das relações estabelecidas entre a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga de Futebol Profissional (cfr. os artigos 27° e 28°). Nesse sentido, estatui-se nos n°s 1 a 3 do artigo 29° (Regulamentação das competições desportivas profissionais) do RJFD: «1 - Compete à liga profissional elaborar e aprovar o respetivo regulamento das competições. 2 - A liga profissional elabora e aprova igualmente os respetivos regulamentos de arbitragem e disciplina, que submete a ratificação da assembleia geral da federação desportiva na qual se insere. 3 - O regulamento disciplinar da liga profissional obedece ao disposto no artigo 52.° e seguintes.». Estes artigos respeitam ao regime disciplinar, cumprindo salientar para a apreciação do presente recurso os seguintes aspetos: «Artigo 52.° - Regulamentos disciplinares - As federações desportivas devem dispor de regulamentos disciplinares com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva. 2 - Para efeitos da presente lei, são consideradas normas de defesa da ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo. Artigo 53.° — Princípios gerais O regime disciplinar deve prever, designadamente, as seguintes matérias: a) Sujeição dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta que tutelem, designadamente, os valores da ética desportiva e da transparência e verdade das competições desportivas, com o estabelecimento de sanções determinadas pela gravidade da sua violação; b) Observância dos princípios da igualdade, irretroatividade e proporcionalidade na aplicação de sanções; c) Exclusão das penas de irradiação ou de duração indeterminada; d) Enumeração das causas ou circunstâncias que eximam, atenuem ou agravem a responsabilidade do infrator, bem como os requisitos da extinção desta; e) Exigência de processo disciplinar para a aplicação de sanções quando estejam em causa as infrações mais graves e, em qualquer caso, quando a sanção a aplicar determine a suspensão de atividade por um período superior a um mês; 1) Consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; g) Garantia de recurso para o conselho de justiça, seja ou não obrigatória a instauração de processo disciplinar, quando estejam em causa decisões disciplinares relativas a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva. h) [...]. Artigo 54.° - Âmbito do poder disciplinar 1 - No âmbito desportivo, o poder disciplinar das federações desportivas exerce-se sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam a atividade desportiva compreendida no seu objeto estatutário, nos termos do respetivo regime disciplinar. 2 - [...] Artigo 55.° - Responsabilidade disciplinar O regime da responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade civil ou penal. [.. ] Artigo 57.° — Reincidência e acumulação de infrações Para efeitos disciplinares, os conceitos de reincidência e de acumulação de infracções são idênticos aos constantes no Código Penal.». Verifica-se, por conseguinte, que os regulamentos disciplinares das federações e das ligas, como é o caso do RDLPFP aqui aplicável, além de não poderem incidir autonomamente sobre matérias abrangidas pela reserva de lei formal nem violar o princípio geral da preferência de lei, se encontram positiva e materialmente vinculados pelas regras e princípios constantes do artigo 52° e seguintes do RJFD (cfr. o artigo 2° do RDLPFP). Por outras palavras, e como tem sido salientado pela doutrina, tais regulamentos não concretizam uma autonomia normativa-regulamenta; expressão de uma administração autónoma; mas antes um poder regulamentar limitado e legalmente individualizado que é fruto da atribuição excecional de poderes de autoridade a entidades privadas, tendo em vista habilitar estas últimas a desempenharem funções correspondentes a certas atribuições do Estado (cfr. sobre este ponto, PEDRO COSTA GONÇALVES, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Almedina, Coimbra, 2005, p.857 e ss.; e pp. 1053-1055; e ANA RAQUEL MONIZ, “A Delegação Administrativa do Poder Regulamentar em Entidades Privadas” (2010), publicado em Estudos sobre os Regulamentos Administrativos, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 119 e ss., pp. 144-145). Neste quadro, o grau de dependência do poder regulamentar federativo face à lei que o legitima é variável, sendo certo que nunca poderá traduzir-se num poder genérico para a emissão de normas regulamentares. Cumpre, por isso, e atentas as conclusões B. e C. das alegações da recorrente, assim como as dimensões em que a recorrente analisa o erro de julgamento imputado ao acórdão recorrido (cfr. supra o nº 7), analisar tal relação no que se refere concretamente ao aspeto da reincidência. 11. Em relação aos conceitos utilizados na Lei n° 38-A/2023, a primeira ideia a reter é a de que, na ausência de qualquer outra pré-determinação legal, designadamente a própria Lei da Amnistia, os conceitos nela utilizados são assumidos e devem ser entendidos nos termos previstos nas regras do regime sancionatório no âmbito do qual a amnistia deverá operar (cfr. supra a parte final do n° 9). Essa é uma decorrência das características próprias da amnistia: uma medida de caráter excecional que se projeta nos sistemas sancionatórios por ela visados, precludindo a punição de infrações nos termos aí previstos. Como se refere no Ac. TC n° 116/2001, a «concreta extensão assim como as respetivas condições de aplicação não se encontram constitucionalmente pró-definidas» (cfr. a transcrição supra no n° 8); as mesmas decorrem necessariamente da acomodação das regras próprias do sistema sancionatório afetado ao efeito legalmente previsto da amnistia. Ou, como refere o Ministério Público a dado passo do seu parecer, «a exclusão do benefício da amnistia relativamente aos reincidentes, que se encontra prevista no referido artigo 7°, n° 1, alínea j), [da Lei 38-A/2023] deverá considerar-se reportada ao corpo normativo em que se encontre estabelecida a circunstância da reincidência» (cfr. supra o n° 5). A aplicação do conceito de “reincidência”, enquanto requisito negativo da amnistia decretada naquela Lei - a qual, recorde-se, abrange crimes, contraordenações e infracções disciplinares -, exige, deste modo, uma preexistente disciplina de tal matéria nos sistemas sancionatórios que integram o âmbito de aplicação material da mesma Lei. Em si mesmo, aquele conceito legal não tem um conteúdo material próprio e autónomo; toma os diferentes regimes existentes como “dados” que permitem depois operacionalizar a medida amnistiante. In casu, tal conceito é, por força do disposto no artigo 57° do RJFD, idêntico (no plano conceptual, sem contender com as diferenças decorrentes da natureza dos ilícitos em causa: infrações disciplinares, por um lado; e crimes, por outro) ao constante do Código Penal, porquanto «o regulamento disciplinar dada liga profissional» deve obedecer às regras e princípios estabelecidos no artigo 52° e seguintes do citado Regime Jurídico. Assim, reconduzindo-se o conceito regulamentar de reincidência ao conceito jurídico-penal legalmente imposto, não ocorre qualquer deslegalização ou remissão normativa por parte da Lei da Amnistia, no sentido de se estar perante uma lei que “confere a atos de outra natureza o poder de interpretar ou integrar qualquer dos seus preceitos”, tal como visado no artigo 112°, n° 5, da Constituição: não é a norma do legalmente pré-determinada do RDLPFP respeitante à reincidência que interpreta e integra o conceito de reincidência do artigo 7°, n° 1, alínea j), da Lei n° 38-A/2023; inversamente, é este último que, na ausência de outras pré-determinações legais, toma a primeira como condição para ser operativo num dado âmbito, aplicando-se aí nos termos pré-estabelecidos. Improcede, deste modo, a conclusão D. das alegações da recorrente, pois nada na decisão recorrida permite sustentar que a Lei da Amnistia tenha sido - ou sequer pudesse ser - interpretada por via de normas regulamentares. 12. Como mencionado, o autor do RDLPFP tem de observar certas vinculações em matéria de reincidência, pois entre as regras mencionadas no artigo 29°, n° 3, do RJFD consta a do artigo 57° do mesmo diploma legal: «Para efeitos disciplinares, os conceitos de reincidência e de acumulação de infracções são idênticos aos constantes no Código Penal.». Ou seja, sob pena de ilegalidade, o conceito de reincidência, para efeitos do RDLPFP, tem de corresponder substancialmente, isto é, mutatis mutandis, ao consagrado no Código Penal. Sobre a matéria, estabelece-se o seguinte no Código Penal: «Artigo 75.°- Pressupostos 1 - E punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. 2 - O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade. 4 - A prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência. Artigo 76º - Efeitos - Em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. 2- [...]» Já os artigos 53°, n° 2, e 56°, n° 3, do RDLPFP prevêem no tocante à reincidência (que é considerada uma «especial circunstância agravante» — artigo 53.°, n,° 1, alínea a): - 53°, n° 2: «É sancionado como reincidente quem, na mesma época desportiva, depois de ter sido sancionado, por decisão transitada em julgado, pela prática de uma infracção disciplinar vier a cometer, por si ou sob qualquer forma de coautoria, outra infracção disciplinar do mesmo tipo, infração disciplinar de igual ou maior gravidade ou duas ou mais infrações de menor gravidade.» — 56°, n° 3: «Sempre que houver lugar à aplicação de circunstância agravante, a sanção concretamente aplicada ao agente é agravada em um quarto». Para efeitos de decisão do presente recurso, mais do que apurar a coincidência formal, “ponto por ponto”, entre os teores literais dos conceitos legal e regulamentar em causa, importará apurar o modo como concretamente foi interpretado e aplicado in casu o conceito de reincidência consagrado no citado artigo 53°, n° 2, do RDLPFP que conduziu à exclusão da amnistia da infração imputada à arguida ora recorrente. Com efeito, é sabido - e decorre da própria letra do artigo 75°, n° 1, do Código Penal - que a verificação da reincidência no âmbito deste diploma não se basta com a verificação de pressupostos formais, exigindo igualmente uma apreciação casuística de ordem material: a de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação anterior ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. Acresce que nada impede - bem pelo contrário - que os preceitos regulamentares que executam em relação à Liga Portuguesa de Futebol Profissional o regime disciplinar próprio das federações desportivas - respetivamente, os artigos do RDLPFP e o artigo 52° e seguintes do RJFD - sejam interpretados e aplicados em conformidade com este último. De resto, e no que se refere em concreto à questão da reincidência, tal até se revela mais premente atenta a diferente natureza entre as infracções disciplinares desportivas e os crimes. Significa isto que o confronto entre preceitos isolados não se revela absolutamente conclusivo. Importa, isso sim, determinar se, sem violar o preceito regulamentar aplicável, a sua aplicação respeita o essencial das pré-determinações materiais constantes do RJFD. 13. Recorde-se que a decisão do CD-FPF puniu a arguida pela prática de infracção prevista no artigo 1 82°, n° 2, do RDLPFP (Agressões graves a espectadores e outros intervenientes), como reincidente, e que o TAD nem sequer considerou provada a prática de tal infração, razão por que anulou a decisão disciplinar sancionatória e determinou, em consequência, a absolvição da aqui recorrente da infração por que havia sido disciplinarmente sancionada. O tribunal a quo, pelo seu lado, depois de dar provimento ao recurso de apelação, retomou a decisão disciplinar sancionatória, nos seus precisos termos - a própria recorrente reconhece-o no ponto 34 das suas alegações -, e, por isso, não aplicou a Lei n° 38-A/2023 no caso vertente: «De acordo com o disposto no artigo 2°, nº 2, al. b), da Lei n° 38-A/2023, de 2 de agosto, consideram-se abrangidas pelo previsto neste diploma as “sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6°”. E nos termos do artigo 6° deste diploma legal, “[s]ão amnistiadas as infracções disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”. Contudo, nos termos do artigo 7°, nº 1, al. j), não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os reincidentes. A sanção aplicada pela prática da infração disciplinar prevista e punida no artigo 182 °, n° 2, do [RDLPFP], considerou uma agravação, por reincidência, em um quarto dos limites abstratos da sanção, nos termos do artigo 56°, n° 3, do RDLPFP. Tratando-se de reincidente, não será então aplicável a Lei da Amnistia ao caso dos autos.» (itálicos acrescentados). Segundo a recorrente, a agravação prevista no artigo 56°, n° 3, e fundada no artigo 53°, n° 2, ambos do RDLPFP foi interpretada e aplicada pelo CD-FPF e, bem assim, pelo tribunal a quo em termos incompatíveis com o artigo 75° do Código Penal, devido a ter omitido uma apreciação das circunstâncias concretas do caso: «[A] decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF condenou a Recorrente como reincidente sem observar os pressupostos exigidos pelo artigo 75° e 76.° do CP, bastando-se com a constatação do seu histórico disciplinar» (cfr. o ponto 13 das alegações; v. também ibidem os pontos 14,29 e 30,44 a 46 e 86 e 87 e as conclusões H. e N.). Porém, compulsada a decisão sancionatória de 4.09.2018 do CD-FPF - muito anterior à Lei da Amnistia -, verifica-se que tal não é exato, pois como resulta dos respetivos pontos 60, 62 e, muito em particular, dos pontos 71 e 78 - este último integrado já na ponderação referente à graduação da sanção - (acima transcritos no n°1), as sanções disciplinares por infrações dos espetadores averbadas no cadastro disciplinar foram valoradas no sentido de as condenações correspondentes não terem servido à arguida, aqui recorrente, de suficiente advertência. Por outro lado, ainda segundo a decisão do CD-FPF, esta apreciação concreta não é incompatível com um correto entendimento teleológico e sistemático do disposto no artigo 53.°, n° 2, do RDLPFP e, por isso mesmo, aplicou-o. O acórdão ora recorrido confirmou estes dois entendimentos e este Supremo Tribunal, pelas razões anteriormente expostas, também o considera legítimo. (…)» * Ora, tendo em consideração tudo quanto se deixa exposto, é manifesto que (aderindo à jurisprudência transcrita), sendo o recorrente qualificado como reincidente, não pode ver a sanção que lhe foi aplicada, beneficiar do perdão e da amnistia nos termos do disposto no artº 7º, nº 1, al. l) da Lei da Amnistia.* 3. DECISÃOFace ao exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso. Custas a cargo do recorrente. Lisboa, 4 de julho de 2024. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) - Cláudio Ramos Monteiro - Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho. |