Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02630/23.3BELSB
Data do Acordão:07/11/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
INTIMAÇÃO
AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA
Sumário:Apesar da decisão jurídica coincidente dos tribunais de instância, justifica-se a admissão de recurso de revista em que a questão fulcral tem a ver com a utilização do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, visando a obtenção célere da nacionalidade portuguesa.
Nº Convencional:JSTA000P32551
Nº do Documento:SA12024071102630/23
Recorrente:INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO - IRN, IP
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. O INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO I.P. [IRN] - demandado nesta «intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias» [artigos 109º a 111º do CPTA] - vem, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor «recurso de revista» do acórdão do TCAS - de 23.05.2024 - que decidiu negar provimento à «apelação» que interpôs do saneador-sentença do TAC de Lisboa - de 17.10.2023 - através do qual, após ter sido julgado idóneo o meio processual de que o autor - AA - lançou mão, foi julgada procedente a pretensão de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias e, nessa conformidade, foi «intimado a iniciar a tramitação do processo do requerente, diligenciando pela sua decisão, nos termos do artigo 41º do RNP - Regulamento da Nacionalidade Portuguesa - com prioridade sobre os demais processos».

Alega que o «recurso de revista» deve ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância jurídica e social da questão» - artigo 150º, nº1, do CPTA.

O recorrido - AA - apresentou contra-alegações nas quais defende, e para além do mais, a não admissão do recurso de revista por falta de verificação dos indispensáveis pressupostos substantivos - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. O autor desta intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias - AA [de nacionalidade brasileira] - demandou o IRN - mediante a utilização do processo urgente de «intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias» [artigos 109º a 111º do CPTA] - pedindo ao tribunal que o condenasse a proferir decisão final, com a máxima brevidade possível, sobre o seu «requerimento para atribuição da nacionalidade portuguesa». Articula, em substância, que apresentou o seu requerimento na Conservatória dos Registos Centrais em 11.05.2023 - ao abrigo do artigo 1º, nº1, alínea d), da Lei da Nacionalidade - e que até hoje não obteve decisão. A sua pretensão assenta na urgência na obtenção de uma «decisão de mérito» pois se encontra num estado de saúde frágil, devido a doença oncológica, e, sendo neto de portugueses, pretende obter e transmitir a respectiva nacionalidade aos seus três filhos antes que seja impossível fazê-lo, a fim de poderem aceder aos direitos associados à cidadania portuguesa e europeia - como o de livre circulação, deslocação, estadia, residência e livre reunião familiar.

O tribunal de 1ª instância julgou improcedente a excepção da impropriedade do meio processual - suscitada pelo IRN - e julgou procedente o pedido de condenação à prática do acto devido que fora formulado pelo autor, condenando a entidade demandada nos termos que deixamos ditos no anterior ponto 1 do presente acórdão.

O tribunal de 2ª instância negou provimento à apelação do IRN, que havia impugnado a decisão da excepção, e, à cautela, também a decisão de mérito. Relativamente ao julgamento de improcedência da matéria de excepção diz-se no acórdão do tribunal de apelação, além do mais, o seguinte: «Reconhecemos pertinência aos argumentos alegados pelo recorrente de que o recorrido não beneficia do princípio da equiparação, previsto no artigo 15º da CRP, porque reside no Brasil e não é apátrida, sendo natural e nacional deste país, e que tem apenas uma expectativa jurídica, legítima, de que lhe seja concedida nacionalidade portuguesa, sendo que a acção de intimação, aqui em causa, não se compadece com estratégias ou planos de vida projectados que podem não vir a acontecer. Contudo, os mesmos não são suficientes para infirmar o entendimento do tribunal recorrido, e nosso, de que a demonstração da exigida urgência e indispensabilidade do uso desta acção resulta do provado receio do requerente de que, a não ser que obtenha decisão judicial definitiva e célere que intime o requerido a decidir com urgência o seu pedido de aquisição de nacionalidade portuguesa, poderá não conseguir que a mesma lhe seja atribuída atempadamente, isto é, enquanto está vivo [o que o recorrente em momento algum procura refutar], o que obstará de forma permanente e irreversível, ao exercício, por si, enquanto estrangeiro, do direito à aquisição da nacionalidade portuguesa [à cidadania portuguesa, ver o nº1 do artigo 26º da CRP] e dos demais direitos dela decorrentes, e, consequentemente, que os seus filhos possam adquirir a nacionalidade portuguesa e europeia, por não poderem mais formular pedido para o efeito com o fundamento de que são filhos de nacional português. Em face do que não procede este fundamento do recurso. E relativamente ao julgamento de procedência nele se diz, além do mais, que «O recorrente pode e deve ao abrigo das suas atribuições e competências e em observância dos princípios gerais que regem a sua actuação administrativa estabelecer os critérios que entenda imparciais, proporcionais e adequados à boa administração, para analisar, tramitar e decidir o elevado número de processos que são despoletados por pedidos dos particulares, com os escassos meios humanos e materiais de que dispõe. Tal não significa que cada particular interessado tenha que se conformar com as implicações que a aplicação desses critérios possa ter no andamento e decisão do procedimento administrativo que directamente lhe respeita, mormente no que concerne à demora na sua decisão. Com efeito, decorridos os prazos legais previstos, no caso, no artigo 41º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo DL nº237-A/2006, de 14 de Dezembro, pode o interessado assumir que a Administração incumpriu o seu dever de decisão, e optar por accionar os meios de tutela administrativa e jurisdicional existentes e adequados – artigo 129º do CPA - ou limitar-se a esperar a decisão final que venha a ser proferida no seu processo. A reacção contenciosa pode efectivar-se através da instauração de acção urgente, como no caso, ou não urgente, associada a providência cautelar, se necessário e para garantir a utilidade da sentença de procedência que venha a ser proferida na acção, atenta a espectável demora até à sua prolação. Instaurada acção de intimação, ou de condenação da Administração, está o tribunal obrigado a decidir, apreciando da pretensão material do interessado e condenando à prática do acto devido, ou à tramitação e decisão do procedimento se ainda dependerem de valorações, análises próprias do exercício da função administrativa que não permita ao juiz identificar uma única solução como legalmente possível. Do exposto resulta, designadamente, que não pode haver violação do princípio da igualdade no tratamento dos requerentes de aquisição de nacionalidade portuguesa se não houver igualdade na actuação destes. […] O Recorrente não põe em causa que no caso do recorrido se encontram ultrapassados os prazos legais previstos para tramitar e decidir o seu pedido de aquisição de nacionalidade portuguesa, nem que este, no exercício do seu direito à tutela jurisdicional efectiva, possa reagir contenciosamente contra a demora ocorrida, mas apenas refere motivos de ordem interna para justificar porque ainda não proferiu o acto que o recorrido considera devido. As razões que invoca de justiça, igualdade e de imparcialidade na análise e decisão dos pedidos de nacionalidade que tem pendentes, têm de ceder face à legalidade da actuação do recorrido, no procedimento administrativo e na presente acção, e do tribunal a quo que actuou no âmbito dos seus poderes jurisdicionais, dentro dos limites que lhe são impostos, designadamente pelos princípios da separação de poderes e da livre margem de actuação da Administração. […] Em face do que o presente recurso não pode proceder.

Novamente a entidade demandada - IRN - discorda, e pede revista do assim decidido pelo tribunal de apelação apontando ao seu acórdão erro de julgamento de direito no tocante à questão de idoneidade do meio processual utilizado e no tocante à questão de mérito, ou seja, da sua condenação à prática do acto devido. Relativamente àquele julgamento alega que devia ser absolvido da instância, desde logo porque a utilização da intimação em causa não pode resultar da invocação, a título de direito fundamental, da «mera expectativa jurídica de vir a ser cidadão português», e alega que o acórdão recorrido, quanto a esta questão, violou os «artigos 89º, nºs 1, 2 e 4, do CPA, e 576º, nºs 1 e 2, 577º e 578º do CPC [ex vi artigos 1º e 35º do CPTA]. Relativamente ao julgamento de mérito entende que a situação dos autos não configura qualquer incumprimento do dever de decisão [artigos 128º e 129º do CPA] mas resulta antes da gestão dos muitos atrasos que se verificam no âmbito dos inúmeros procedimentos semelhantes que pendem nos respectivos serviços, gestão essa que, diz, se integra na sua reserva administrativa. E conclui que o acórdão recorrido ao entender de modo diferente violou os princípios da equiparação, da igualdade, da imparcialidade e da separação de poderes [artigos 12º, 13º, 15º, e 111º, da CRP; 6º, 8º e 9º, do CPA; e 3º, nº1, do CPTA].

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Feita uma tal apreciação, impõe-se-nos concluir pela admissão do presente recurso de revista. Efectivamente, desde logo, o enquadramento deste caso concreto na hipótese normativa do artigo 109º do CPTA, apesar de ter sido realizado pelos dois tribunais de instância, gera sérias dúvidas, atendendo a que estamos perante um meio processual cuja aplicação assume carácter restrito e subsidiário relativamente aos outros meios, e a que o circunstancialismo a ponderar se mostra nebuloso no tocante à concretização do direito, liberdade ou garantia cujo exercício se pretende assegurar. Também são de ponderar as razões adiantadas pelo ora recorrente contra o julgamento de procedência da questão de mérito, pois que contendem com a natureza dos prazos incumpridos, e com a integração, ou não, da gestão do grande volume dos procedimentos pendentes na esfera da reserva do poder administrativo.

Ademais, sobretudo a «questão da idoneidade do processo em causa» para acelerar as tramitações de procedimentos administrativos atrasados devido ao acervo exacerbado dos mesmos, tem um potencial altamente multiplicativo, sendo de toda a conveniência haver precedentes jurisprudenciais deste Supremo Tribunal para que a sua abordagem futura, em casos semelhantes, seja mais sólida e juridicamente convincente.

Assim, quer em nome da necessidade de uma melhor aplicação do direito - mormente em termos de clareza, solidez e convencimento - quer em nome da importância fundamental das questões trazidas à revista - em termos de relevância jurídica e social - deverá ser admitida a presente pretensão de revista.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 11 de Julho de 2024. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.