Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0335/21.9BEPNF
Data do Acordão:07/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:DEFICIENTE
QUOTA
EMPREGO
DOENÇA
Sumário:I - O Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, estabelece o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade funcional igual ou superior a 60%, em todos os serviços e organismos da administração central, regional autónoma e local.
II - Para efeitos desse diploma e considerando a remissão que opera para a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, serão consideradas “pessoas com deficiência”: todas aquelas que, detendo um grau de incapacidade igual ou superior a 60% (art. 1.º, n.º 1), por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresentem dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os fatores do meio, lhe limitar ou dificultar a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas (art. 2.º).
III - A densificação normativa do conceito de “pessoa com deficiência” para efeitos do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, corresponde ao conceito de “pessoa com deficiência” no contexto da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional, será preenchido sempre que ocorra uma limitação da capacidade, que resulta, designadamente, de incapacidades físicas, mentais ou psíquicas prolongadas, cuja interação com várias barreiras pode impedir a participação plena e efetiva da pessoa em questão na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores.
IV - E está em linha com a definição inserta na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 13.12.2006 (ratificada pelo governo português a 23.10.2009), cujo objeto, consagrado no seu art. 1.º é: “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. As pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interacção com várias barreiras podem impedir a sua plena e efectiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros”.
V - Assim o preenchimento valorativo do conceito de “pessoa com deficiência”, para efeitos do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, remete para a definição de “pessoa com deficiência” que tem sido recortada no direito supranacional e que exige, para além de uma atestada incapacidade superior a 60%, que essa limitação da capacidade, em interação com várias barreiras, seja susceptível de impedir a participação plena e efetiva da pessoa em questão na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores.
VI - A doença oncológica de que padeceu a Contrainteressada e lhe causou uma incapacidade de 76% [em concurso com outros fatores: Oncologia, tumores malignos sem metástases e permitindo uma vida de relação, com uma desvalorização de 60%, (ii) Disformias (alterações morfológicas tegumentares ou outras com repercussão funcional e/ou estética), ablação da glândula mamária unilateral, com uma desvalorização de 6%, e (iii) Psiquiatria, perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, com uma desvalorização de 10%], não deve ser havida como “deficiência incapacitante” para efeitos de preenchimento da quota aqui em causa destinada a “pessoas com deficiência”, contrariamente ao entendimento da Administração, confirmado pelas instâncias.
VII - Na procedência do recurso, com a anulação, por vício de violação de lei, do despacho de homologação da lista unitária de ordenação final dos candidatos aprovados no âmbito do procedimento concursal em causa, estando verificados todos os pressupostos exigidos para o efeito, tem a Entidade Demandada que ser condenada a graduar a Autora, portadora de deficiência visual que lhe conferiu o grau de incapacidade de 95%, na vaga reservada para pessoas com deficiência ao abrigo do Decreto-lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro.
Nº Convencional:JSTA000P32494
Nº do Documento:SA1202407040335/21
Recorrente:AA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE MARCO DE CANAVESES
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recursos de Revista de Acórdãos dos TCA
Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. Do objecto do recurso

1. AA, devidamente identificada nos autos, veio interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos termos do artigo 150.º do CPTA, do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo (TCA) Norte que negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida.

2. A Autora intentou a presente ação administrativa de contencioso dos procedimentos de massa contra o MUNICÍPIO DO MARCO DE CANAVESES, na qual impugna o despacho do Presidente da Câmara, de 10.02.2021, de homologação da lista unitária de ordenação final dos candidatos aprovados no âmbito do procedimento concursal aberto pelo Aviso (extrato) n.º 12342/2019, publicado no Diário da República, 2.ª Série – n.º 146, de 1 de agosto, referência 03/2019, para recrutamento de três técnicos superiores, na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, Licenciatura em Direito, para a Divisão de Assuntos Jurídicos e Fiscalização da CMMC. Peticionou a anulação do referido despacho e a sua substituição por outro que gradue a Autora na vaga reservada para pessoas com deficiência (dado deter uma deficiência visual com grau de incapacidade de 95%), ao abrigo do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, com a consequente exclusão da Contrainteressada BB do procedimento concursal e, bem assim, a anulação do respetivo vínculo de emprego público constituído em virtude do indevido enquadramento no citado regime legal.

3. Por sentença de 22.11.2023, o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Penafiel julgou a ação parcialmente procedente e anulou o despacho de homologação da lista unitária de ordenação final dos candidatos aprovados no âmbito do procedimento concursal, por procedência do vício de alegado de falta de fundamentação, absolvendo a Entidade Demandada do pedido de condenação à prolação de ato administrativo de exclusão da Contrainteressada BB do referido procedimento.

4. Inconformada, a Autora recorreu para o TCA Norte, o qual, por acórdão de 15.03.2024, negou provimento ao recurso e manteve a sentença recorrida.


5. É deste acórdão do TCA Norte que vem interposto o presente recurso de revista, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:

1ª - A questão central a apurar nos presentes autos é a de saber se a contrainteressada BB foi, ou não, devidamente enquadrada ao abrigo do Decreto-Lei 29/2001, de 03 de Fevereiro, sendo que esse enquadramento pressupõe e exige que a mesma possua deficiência enquadrável nesse diploma e, bem assim, no artº 2 da Lei 38/2004, de 18 de agosto;
2ª – Quanto a essa questão, o TCAN entendeu que “(…) não se pode considerar existir erro, menos ainda grosseiro, na consideração, constante do “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” apresentado pela Contrainteressada em sede administrativa de que esta tem uma incapacidade permanente global de 76% (…);
3ª - A aqui Recorrente nunca colocou em causa a incapacidade constante do atestado médico de incapacidade multiuso (AMIM) da Contrainteressada BB, como parece ter sido o entendimento do Venerando TCAN.
4ª – A análise do Decreto-Lei 29/2001, de 03 de fevereiro (com destaque para o seu preâmbulo e para os artigos 1º, 2º e 6º) e do Artº 2º da Lei 38/2004, de 18 de agosto parece tornar evidente que não foi intenção do legislador enquadrar neste especial regime (quotas reservadas a pessoas com deficiência) alguém que possua um AMIM com uma incapacidade igual ou superior a 60%, independentemente da origem dessa incapacidade (designadamente doença oncológica);
5ª – Do artº 2º da Lei 38/2004, de 18 de agosto, resulta que “Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas.”;
6ª - De acordo com o conceito supracitado, resulta claro que a pessoa com deficiência é aquela que vê a sua atividade e participação na vida ativa dificultada e/ou limitada por força da interação de uma perda ou anomalia, congénita ou adquirida, com os fatores do meio.
7ª - Esta conclusão resulta inequívoca quer da Lei nº 38/2004, de 18 de agosto, que contém o conceito de deficiência adotado pelo nosso ordenamento jurídico, quer da própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (diretamente aplicável por força do disposto no art. 8º da CRP) e entre nós aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 56/2009, de 30 de julho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/200926;
8ª - Esta Convenção, na al. e) do seu preâmbulo estabelece que “(…) a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interacção entre pessoas com incapacidades e barreiras comportamentais e ambientais que impedem a sua participação plena e efectiva na sociedade em condições de igualdade com as outras pessoas”;
9ª – O nº 1 dessa Convenção prescreve que “As pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interacção com várias barreiras podem impedir a sua plena e efectiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros”.
10ª – Assim, o preenchimento do conceito de deficiência não se basta com uma incapacidade decorrente de limitações físicas, intelectuais e/ou sensoriais, sendo necessário que essas limitações a coloquem numa situação de desigualdade na sua relação/interação com os fatores do meio, ou seja, o conceito não pode focar-se apenas na pessoa, mas sim, na sua relação com o meio e na repercussão que a sua perda/anomalia tem nessa interação.
11ª – O Artº 1º do DL 29/2001, de 03-02 exige, e pressupõe, que as pessoas que beneficiam deste especial enquadramento sejam portadoras de deficiência com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%.
12ª - Se fosse suficiente uma incapacidade, independentemente da sua origem (designadamente decorrente de uma doença oncológica), o texto teria que conter uma redação diferente da que tem e referiria apenas que: “O presente diploma estabelece o sistema de quotas emprego para pessoas com um grau de incapacidade igual ou superior a 60% (…)”;
13ª – Impõe-se concluir que “não basta a mera incapacidade decorrente de uma doença, nem a deficiência à qual não é atribuída incapacidade igual ou superior a 60%”;
14ª – Daqui decorre que o devido enquadramento ao abrigo daquele DL 29/2001 obriga a que estejamos perante uma deficiência daquelas que se encontram tipificadas no nº 2 do art. 2º do DL 29/2001 e que dessa deficiência decorra uma incapacidade igual ou superior a 60%; ou seja, Não basta a deficiência (se for inferior a 60%) nem é suficiente a incapacidade superior a 60% (sem ser decorrente de uma deficiência);
15ª - O art. 6º do DL 29/2001, de 03-02, exige que os candidatos declarem, sob compromisso de honra, qual o tipo de deficiência e o grau de incapacidade, Não bastando a junção de um atestado médico de incapacidade multiuso para dar cumprimento a esse artigo, sendo necessário, repita-se, que se declare, sob compromisso de honra, o tipo de deficiência e o grau de incapacidade.
16ª – Esta exigência do artº 6º vem tornar ainda mais claro que não basta ter incapacidade para se ter enquadramento ao abrigo da quota pois, se assim fosse, o legislador apenas exigiria a indicação de incapacidade superior a 60%;
17ª - Da conjugação dos artigos 1º, 2º e 6º do DL 29/2001, de 03-02, resulta que é condição sine qua non o preenchimento de 3 requisitos: Que a pessoa indique no formulário qual o tipo de deficiência e o grau de incapacidade; que essa deficiência seja uma das previstas no art. 2º nº 2; e que seja essa concreta(s) deficiência(s) a provocar um grau de incapacidade igual ou superior a 60%.
18ª – Tendo em conta a al. F) da matéria dada como assente em 1ª instância, e confirmada pelo TCAN, resulta demonstrado que a contrainteressada não deu cumprimento ao disposto no artº 6º do DL 29/2001, de 03-02 e, bem assim, ao ponto 20 do aviso de abertura do procedimento concursal, uma vez que não indicou no formulário o tipo de deficiência que possuía (ao contrário da Recorrente que, como se encontra provado, cumpriu esse requisito);
20ª - Não indicou no formulário de candidatura, não indicou na reclamação em sede de audiência prévia (cfr. fls. 2393 a 2394 do P.A.), não indicou na contestação (nem a contrainteressada nem o Réu Município) e não indicou em momento algum ao longo de todo o processo.
21ª - Os vários elementos do Júri ouvidos como testemunhas em audiência de discussão e julgamento também demonstraram total desconhecimento quanto ao tipo de deficiência de que padecia a Contrainteressada. Não deixa de ser, no mínimo, “caricato” que se tenha admitido a concurso alguém como pessoa com deficiência, desconhecendo-se de que tipo de deficiência padecia;
22ª – Relativamente ao incumprimento do disposto no artº 6ª do DL 29/2001 por parte da contrainteressada, o TCAN entendeu o seguinte: “Quanto à falta de indicação do tipo de deficiência de que a Contrainteressada padecia, como se refere no despacho de sustentação, a Autora apresentou articulado superveniente no qual este vício, articulado que não foi admitido por extemporaneidade – cfr. fls. 731/732 dos autos.
Despacho que transitou em julgado.
Motivo pelo qual tal factualidade e tal vício não foram apreciados nem tinham de ser porque não fazia parte do objecto da acção”;
23ª – Entendemos que o TCAN andou mal, uma vez que, apesar de a Autora ter apresentado, à cautela, o articulado superveniente, a verdade é que tal facto (falta de indicação do tipo de deficiência no formulário de candidatura – violação do artº 6º do DL 29/2001) consubstancia facto instrumental que resultou da instrução da causa e que deveria ser considerado pelo TCAN;
24ª - Nos termos do art. 5º, nº1, Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 1º do CPTA, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas;
25ª - A Recorrente na sua petição inicial alegou designadamente que à Contrainteressada não lhe era conhecida nenhuma deficiência - cfr. art. 17º da pi. -, pelo que era absolutamente fulcral que se confirmasse qual era a deficiência de que padecia a Contrainteressada e se esta tinha sido indicada no seu formulário de candidatura;
26ª - Os factos não alegados pelas partes podem, de qualquer das formas, ser considerados pelo juiz, desde que sejam factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (nº2 al. a) do art.5º), e os que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
27ª - O Tribunal está vinculado à lei e resulta dos factos provados que a Contrainteressada não cumpriu com o disposto no citado art. 6º;
28ª - O Tribunal deveria ter conhecido tal matéria, pois a mesma vai ao encontro da alegação da autora e só chegou ao conhecimento da mesma após a instrução da causa. Não o tendo feito, o TCAN violou o princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 2º do CPTA) e, bem assim, o disposto no art. 5º e 611º do CPC – o que consubstancia nulidade que desde já se invoca.
29ª - Está provado que a Contrainteressada instruiu o seu formulário de candidatura com o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso”, que o mesmo era temporário (validade de 5 anos) e que do seu conteúdo consta que padecia de incapacidade de 76%, conforme tabela constante do facto provado sob a alínea G);
30ª - Assim, resulta inequivocamente demonstrado que a Contrainteressada teve a infelicidade de ter uma doença oncológica (da qual, felizmente, recuperou com êxito), mais especificamente cancro da mama, que levou a que efetuasse uma mastectomia integral da mama esquerda. Foi, em resumo, este o problema que a Contrainteressada teve e que lhe veio a conferir o direito a ter um AMIM (provisório);
31ª - Infelizmente as doenças oncológicas são cada vez mais comuns e, todos nós, temos alguém próximo, amigo ou familiar, que tem ou teve uma doença deste tipo;
32ª - Também é do conhecimento de todos que na grande maioria dos casos, mesmo daqueles em que os prognósticos são muito favoráveis e com tratamentos com poucos efeitos secundários, os doentes têm acesso a um AMIM através do qual lhes é atribuído uma incapacidade mínima de 60%;
33ª - Infelizmente, também, todos lemos artigos científicos, ouvimos especialistas na matéria e sabemos que as doenças oncológicas vão continuar a aumentar e com elas aumentará certamente o número de pessoas a possuir um AMIM com grau de incapacidade igual ou superior a 60%;
34ª - Todavia, é importante fazer a distinção entre doença oncológica e deficiência, pois ainda que, em certos casos, por força de uma doença oncológica o doente possa vir a ter uma deficiência, é necessário que seja dessa concreta deficiência (ainda que adquirida por força da doença oncológica), que decorra uma incapacidade igual ou superior a 60% (o que não é o caso da contrainteressada) - não é por acaso que os AMIM atribuem uma incapacidade global, mas depois efetuam o competente desdobramento das incapacidades;
35ª - Existem inúmeros doentes oncológicos que, felizmente, continuam a fazer a sua vida normal, sem terem de se confrontar com qualquer tipo de “barreiras” – sejam elas materiais ou imateriais – sendo errado, na nossa modesta opinião, afirmar que tais pessoas sejam consideradas pessoas com deficiência pelo facto de terem um AMIM (provisório), com 60% ou mais de incapacidade.
36ª - Consta dos autos um parecer emitido pela DGAEP, que refere o seguinte: “A doença oncológica não é entendida como um tipo de deficiência pelo que não terá comprovação pelo atestado multiusos, o que sucede nestes casos é a atribuição aos recém-diagnosticados de um grau mínimo de incapacidade de 60 % no período de cinco anos após o diagnóstico, que fundamenta o acesso a certos benefícios sociais, económicos e fiscais. Assim sendo, a doença oncológica só por si não é compreendida como um tipo de deficiência, não impedindo, no entanto, que um doente oncológico não possa vir a ser portador de um qualquer tipo de deficiência em razão da evolução da doença e assim ser abrangido pelo âmbito pessoal de aplicação do n. 1 do artigo 2.º Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de Fevereiro – vide Parecer da DGAEP, que se encontra junto aos autos (cfr. ref. sitaf nº 005036530 [nº documento], junto em 24.03.2022).
37ª - A doença oncológica não é considerada um tipo de deficiência e, assim, os 60% atribuídos a esse título (doença oncológica) não podem ser considerados para efeito da aplicação do nº 1 do artº 2º do DL nº 29/2001, de 03 de fevereiro, uma vez que deste artigo resulta que os 60% de incapacidade a ter em conta para este efeito têm que decorrer, necessariamente, de uma das deficiências elencadas no nº 2 daquele artigo.
38ª - Mesmo que se aceitasse, o que não se concede, que a Contrainteressada poderia ser considerada pessoa com deficiência, ainda assim, não preenche os dois requisitos cumulativos de, da(s) deficiência(s) com incapacidade superior a 60%; [carregado e sublinhado no original]
39ª - Isto porque, à suposta deficiência orgânica (perda da mama) é lhe atribuída uma incapacidade de 6% e da suposta deficiência mental (psiquiatria) decorre uma incapacidade de 10%. Ou seja, das duas supostas deficiências que a Contrainteressada possui, em conjunto, decorre uma incapacidade somada de apenas 16%; [carregados e sublinhados no original]
40ª - A DGAEP é uma das entidades a quem compete o acompanhamento da aplicação do DL 229/2001 (vide preâmbulo do DL 29/2001); todavia, e não obstante a relevância dessa entidade para o que aqui importa, O TCAN, relativamente ao parecer da DGAEP, apenas disse que não existe qualquer norma que imponha como meio de prova imperativo o parecer da DGAEP, mas quanto ao conteúdo desse documento/parecer nada disse.
41ª - Não se trata do parecer de uma qualquer entidade, mas sim de uma das entidades a quem compete acompanhar a aplicação do Decreto-Lei que está na base dos presentes autos, pelo que não é aceitável essa omissão de pronúncia do Tribunal a quo relativamente a um elemento de prova de tamanha relevância – nulidade que desde já se invoca.
42ª – Tendo em consideração a análise feita ao conceito de deficiência supra, e atendendo ao que ficou demonstrado nos autos, consideramos que, no caso concreto, houve errada aplicação do DL nº 29/01, de 03-02.
43ª - Entendeu o legislador que para que uma pessoa seja considerada como pessoa com deficiência é necessário que a mesma tenha uma perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estruturas ou funções do corpo, incluindo as funções psicológicas.
44ª – Mas é necessário que, como consequência dessa perda ou anomalia, a pessoa apresente dificuldades específicas, mas não se trata de uma qualquer dificuldade/limitação específica, como é o caso de uma dor, um incómodo, um desconforto ou alteração de humor;
45ª – Essas dificuldades são aquelas que são suscetíveis de, em conjugação com os fatores do meio, limitarem ou dificultarem a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas [carregado no original].
46ª - Somos da opinião que é precisamente esta conjugação das dificuldades/limitações específicas (da pessoa) com os fatores do meio que permite distinguir doença de deficiência e, por conseguinte, deveria ter permitido ao Tribunal a quo perceber que a contrainteressada não preenche os requisitos do DL nº 29/2001, de 03 de fevereiro.
47ª – Encontra-se junto aos autos um Parecer do Professor Doutor Óscar Gomes (ref. sitaf 005125789), cuja transcrição parcial se encontra supra e para a qual ora se remete, que, devidamente conjugado com o Parecer da DGAEP, se revelaria essencial para esclarecer a questão aqui em apreço e para conduzir a decisão diversa da que foi proferida;
48ª - O TCAN não considerou nem o parecer do Professor Doutor Óscar Gomes, nem o da DGAEP, por referir que não existe qualquer obrigação legal de os mesmos serem pedidos;
49ª - Todavia, entendemos que os mesmos são fundamentais e demonstram que a Contrainteressada foi indevidamente enquadrada ao abrigo da quota reservada para as pessoas com deficiência.
50ª - O artigo 71º da CRP atribui ao Estado a obrigação de realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos com deficiência e o encargo da efetiva realização dos seus direitos;
51ª - O fundamento da existência de tais quotas de emprego, de acordo com o disposto no preâmbulo do DL n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, é garantir o direito constitucionalmente consagrado de escolha da profissão e do acesso ao emprego, em condições de igualdade, uma vez que a deficiência tem diversas barreiras tanto materiais como imateriais, impedindo o pleno exercício da cidadania;
52ª - A existência de tais quotas dá aplicabilidade prática ao disposto no art. 71.º da CRP, sendo atribuição do Estado a realização de uma política de prevenção, tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos com deficiência, mas também ao princípio da igualdade formal e material vertido no art. 13.º deste diploma, sendo que as quotas de emprego são também expressão de um Estado de Direito Democrático (art. 1.º da CRP).
53ª - No caso concreto, a Recorrente tem uma deficiência visual com uma incapacidade de 95%, com todas as barreiras materiais e imateriais que estão associadas a este tipo de deficiência e, do outro lado, temos a sua concorrente direta – a contrainteressada BB – que acedeu à quota em virtude de ter tido uma doença oncológica e, por força disso ter um AMIM (temporário) com incapacidade de 76%.
54ª - Não queremos, de todo, desvalorizar o problema da contrainteressada, mas, salvo o devido respeito por diferente opinião, mesmo aceitando que as suas capacidades tenham ficado diminuídas em virtude da doença (no que toca ao humor e à afetividade), não conseguimos encontrar as ditas barreiras materiais ou imateriais de que nos fala o preâmbulo do DL nº 29/2001.
55ª - Entendemos não ser justo e equitativo enquadrar a contrainteressada ao abrigo de quotas para pessoas com deficiência, uma vez que não se vislumbra que esta seja confrontada com qualquer tipo de barreira (material ou imaterial) beneficiando, por isso, de uma discriminação positiva que, parece-nos, não está abrangida pela ratio legis do DL nº 29/2001.
56ª - Somos da opinião que é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13º, 47º e 71º da CRP, a interpretação que entenda que é correto o enquadramento de qualquer pessoa com um AMIM temporário, com incapacidade superior a 60% decorrente de doença oncológica, no âmbito pessoal de aplicação do DL nº 29/2001 de 03-02 (quota reservada para pessoas com deficiência) mais especificamente nos seus art. 1º e 2º – inconstitucionalidade que desde já se invoca.
57ª - Quanto ao alegado pela Autora no que diz respeito ao parecer do INR, o TCAN vem confirmar a existência de uma sequência de duas decisões transitadas em julgado: a primeira, o despacho de 14.10.202, a deferir o pedido da Autora de produção de parecer do INR quanto às condições em que realizou a prova, notificando-a para apresentar quesitos o que a Autora fez; a segunda, o despacho de fls. 472, confirmado pelo despacho prolatado na audiência final, a dispensar este meio de prova;
58ª- O TCAN, com base no disposto no artº 625º do CPC (aplicável por força do disposto no artº 1º do CPTA) reconheceu que deveria ter prevalecido a decisão primeiramente transitada em julgado (deferimento do pedido de parecer ao INR), mas decidiu o seguinte:
“Sucede que este Tribunal de recurso entende que tal prova não deveria ter sido ordenada pelo que não faria sentido, em qualquer caso, anular todo o processado e mandar baixar os autos para a produção desta prova.”;
59ª - O facto de a Autora ter reunido com o informático da Câmara Municipal nada tem que ver com a adequação ou inadequação da prova escrita à sua concreta deficiência, desde logo, porque a Autora/Recorrente, aquando dessa reunião, desconhecia a extensão da prova, a forma como esta ia ser elaborada, o contexto da sua realização, entre outros fatores;
60ª - Aquilo que a Recorrente pretendia, e que o Tribunal deferiu, era que o INR viesse esclarecer se a prova foi ou não adequada à sua concreta deficiência e, uma vez transitada em julgado tal decisão, o Tribunal tinha a obrigação de ordenar tal prova sob pena de, mais uma vez, se violar o princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 2 do CPTA.

6. O MUNICÍPIO DO MARCO DE CANAVESES, ora RECORRIDO, apresentou contra-alegações, que encerrou com as seguintes conclusões:

1 - O presente recurso de Revista é apresentado pela Recorrente ao alegado abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 150º do CPTA.
2 - A verdade é que nada daquilo que é alegado pela Recorrente permite sustentar, desde logo, a admissibilidade da pretendida Revista, no quadro do disposto no artigo 150º do CPTA.
3 - A respeito desses requisitos exigidos pelo n.º 1 do artigo 150º do CPTA a Recorrente é estritamente conclusiva não densificando minimamente o fundamento da sua pretensão.
4 – Em bom rigor, a argumentação da Recorrente levaria a que toda e qualquer decisão de um TCA seria suscetível de recurso de Revista para o STA, no quadro do artigo 150º do CPTA, recurso esse que, verdadeiramente, deixaria assim de se revestir de qualquer excecionalidade, a qual constitui requisito material do recurso previsto no artigo 150º do CPTA.
5 - Razão pela qual, salvo melhor entendimento, o presente recurso deverá ser rejeitado em sede da apreciação preliminar legalmente definida (no n.º 6 do mesmo artigo 150º do CPTA).
6 – Sem prescindir disso, verifica-se que a decisão aqui e agora recorrida se mostra fundamentada, de forma irrepreensível.
7 – Sendo ainda certo que nenhuma das razões invocadas pela Recorrente se mostra determinante, ou sequer justificadora, de decisão diversa da proferida pelo TCA Norte.
8 – A decisão recorrida deverá ser integralmente mantida, o que se espera ver doutamente reconhecido por este Supremo Tribunal.
9 – Deverão, pois, improceder todas a cada uma das conclusões formuladas pela Recorrente.


7. O recurso de revista interposto pela RECORRENTE foi admitido por acórdão proferido pela Secção de Contencioso Administrativo deste STA, em formação de apreciação preliminar, de 16.05.2024, do qual consta:

“(...) cremos que a presente pretensão de revista deverá ser admitida. Na verdade, a «questão central» desta pretensão de revista é a de saber se a contrainteressada BB foi ou não devidamente enquadrada como «deficiente», ao abrigo do DL nº 29/2001, de 03.02, o que significa apreciar, e decidir, se a «doença oncológica» de que padeceu e lhe causou uma incapacidade de 76% pode e deve ser havida como «deficiência incapacitante» para efeitos de preenchimento da quota aqui em causa.
Como ficou dito, os tribunais de instância decidiram de forma consonante. No entanto, a referida questão, relativa à interpretação do preenchimento da quota reservada aos candidatos portadores de deficiência no âmbito do concurso lançado pelo MMC para a contratação de 3 juristas, reveste inegável relevância jurídica e social, não sendo isenta de dúvidas a solução mantida pelo acórdão recorrido, sendo, além disso, uma questão provavelmente repetível, o que aconselha a admissão da revista visando esclarecer e solidificar a solução a dar-lhe.”.

8. O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 146.º e do n.º 2 do artigo 147.º do CPTA, não emitiu pronúncia.

9. Com dispensa de vistos (processo de natureza urgente), cumpre apreciar e decidir.

II. Questões a apreciar e decidir:

10. As questões suscitadas pela RECORRENTE, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar o seguinte:

i) Se o acórdão é nulo, por omissão de pronúncia, ao não considerar os factos instrumentais de conhecimento oficioso e o parecer da DGAEP junto aos autos, violando os artigos 615.º n.º 1 alínea d), 5.º e 611.º do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA, bem como o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 2.º do CPTA, 13.º, 47.º e 71.º da CRP.
ii) Se o acórdão errou ao julgar válido o entendimento de que, apesar de o TAF de Penafiel ter previamente decidido nesse sentido, não ter depois aquele tribunal notificado o INR para que viesse esclarecer se a prova foi ou não adequada à concreta deficiência da Autora, dado que, uma vez transitada em julgado tal decisão, o tribunal tinha a obrigação de ordenar tal prova sob pena de se violar o princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 2.º do CPTA e de desrespeitar o art. 625.º do CPC.
iii) Se o acórdão recorrido errou ao julgar que a doença oncológica de que padeceu a Contrainteressada BB, a qual lhe causou, em concurso com outros fatores, uma incapacidade de 76%, permite enquadrá-la no conceito de “pessoa com deficiência” para efeitos de provimento de lugar reservado para candidato com deficiência, fazendo errada interpretação e aplicação dos artigos 1.º, 2.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro.
III. Fundamentação

III.i. De facto

11. O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos, constantes da sentença proferida pela 1.ª instância, que transcreveu nos seguintes termos:

A) A Entidade Demandada abriu um procedimento comum para a contratação de 3 (três) técnicos superiores, para exercerem a função de jurista na Divisão de Assuntos Jurídicos e Fiscalização, da Câmara Municipal de Marco de Canaveses – facto admitido por acordo e cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, cujo teor, por brevidade, se dá integralmente por reproduzido.
B) No aviso de abertura do referido procedimento consta, nomeadamente, o seguinte:
“12. Métodos de seleção:
12.1 Prova de conhecimentos (PC), Avaliação Psicológica (AP) e Entrevista Profissional de Seleção.
(...).
12.5.1 – Forma, natureza e duração da Prova de Conhecimentos: a prova de conhecimentos será escrita, de natureza teórica, com consulta, efetuada em suporte de papel, podendo ser constituída por um conjunto de questões de resposta de escolha múltipla e/ou de resposta livre, tendo a duração de uma hora e trinta minutos, (...).”
(...).
12.7 – Avaliação Psicológica (AP): visa avaliar aptidões, caraterísticas de personalidade e competências comportamentais dos candidatos, tendo como referência o perfil de competências previamente definido. O perfil de competências definido compreende o planeamento e organização, análise da informação e sentido crítico, iniciativa e autonomia e inovação e qualidade. A avaliação psicológica é valorada através de níveis classificativos de Elevado, Bom, Suficiente, Reduzido e Insuficiente, aos quais correspondem, respetivamente, as classificações de 20, 16, 12, 8 e 4 valores.”.
(...).
14 – A lista dos resultados obtidos em cada método de seleção será afixada no átrio desta Câmara Municipal, sito no Largo Sacadura Cabral, Marco de Canaveses e divulgada na página eletrónica em www.cm-marco-canaveses.pt
(...).
19 – A lista unitária da ordenação final, após homologada, é afixada no átrio desta Câmara Municipal, sito no Largo Sacadura Cabral, Marco de Canaveses e divulgada na página eletrónica em www.cm-marco-canaveses.pt, sendo ainda publicado um aviso na 2.ª série do Diário da República com informação sobre a sua publicitação.
20 – Nos termos do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, e para efeitos de admissão a concurso os candidatos com deficiência devem declarar, no requerimento de admissão, sob compromisso de honra, o respetivo grau de incapacidade, o tipo de deficiência e os meios de comunicação/expressão a utilizar no processo de seleção. Em conformidade com o disposto no artigo 3.º do mesmo Decreto-Lei é garantida a reserva de um lugar para candidatos com deficiência igual ou superior a 60%.”
C) A Autora e as Contrainteressadas apresentaram candidatura e foram admitidas ao concurso – facto admitido por acordo e cfr. fls. 1378 a 1382 do procedimento administrativo.
D) A Autora apresentou o formulário de candidatura que consta a fls. 232 a 235 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:
“11 – NECESSIDADES ESPECIAIS
Caso lhe tenha sido reconhecido, legalmente, algum grau de incapacidade indique o respetivo grau e se necessita de meios/condições especiais para a realização de métodos de seleção Deficiência visual com grau de incapacidade de 95%, reconhecido por Atestado de Incapacidade Multiusos Prova de conhecimentos em suporte digital e realização da mesma em computador com software de leitura de ecrã Tempo suplementar, não inferior a 30 minutos, para realização da prova de conhecimentos Adaptação da forma de realização dos testes de Avaliação Psicológica (AP), por não me ser possível ler em suporte de papel.”
E) A Autora instruiu o formulário de candidatura com “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” que consta a fls. 277 do procedimento administrativo e cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, que a Autora é portadora de deficiência visual que lhe conferiu o grau de incapacidade de 95%.
F) A Contrainteressada BB apresentou o formulário de candidatura que consta a fls. 2987 a 2989 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido e do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:
“11 – NECESSIDADES ESPECIAIS
Caso lhe tenha sido reconhecido, legalmente, algum grau de incapacidade indique o respetivo grau e se necessita de meios/condições especiais para a realização de métodos de seleção
Possuo atestado médico de incapacidade multiuso, de 76%, mas não necessito de meios ou condições especiais para a realização de métodos de seleção.”
G) A Contrainteressada BB instruiu o formulário de candidatura com “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” que consta a fls. 2996 do procedimento administrativo e cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:
[IMAGEM]
H) Em momento prévio à realização da prova de conhecimentos, a Autora reuniu com a jurista da Câmara Municipal de Marco de Canaveses, Dra. CC, e com o técnico de informática, DD, no sentido de aferir qual a melhor forma de atender às necessidades especiais da Autora, elencadas na alínea D) – cfr. prova testemunhal.
I) A Autora realizou a prova de conhecimentos que consta a fls. 2466 a 2480 do procedimento administrativo e, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido.
J) Aquando da realização da prova de conhecimentos foi permitido à Autora utilizar o seu equipamento pessoal, tendo os serviços informáticos da câmara municipal disponibilizado a documentação de apoio e consulta pela criação de uma pasta no ambiente de trabalho no seu equipamento, e foi-lhe proporcionado o tempo suplementar de 30 minutos para a realização da referida prova – cfr. fls. 2384 do procedimento administrativo e prova testemunhal.
K) Durante a realização da prova de conhecimentos esteve presente o técnico de informático referido na alínea H) – cfr. prova testemunhal.
L) O júri do procedimento concursal concedeu a todos os candidatos que realizaram a prova de conhecimentos, incluindo a Autora, mais 30 minutos do que o tempo que estava estabelecido no aviso de abertura – facto admitido por acordo.
M) A prova de conhecimentos realizou-se no refeitório da escola E.B. 2/3 de Marco de Canaveses e, por vezes, ouvia-se barulho proveniente do exterior, nomeadamente com o toque da campainha – cfr. prova testemunhal.
N) A Autora usou auriculares durante a realização da prova de conhecimentos – cfr. prova testemunhal.
O) A 06/03/2020, o júri do concurso reuniu para avaliação da prova de conhecimentos realizada pelos candidatos nos termos que constam da ata n.º 4 junta ao procedimento administrativo a fls. 2384 a 2387, e na qual se pode ler o seguinte:
“Os candidatos terão conhecimento dos resultados obtidos em cada método de seleção intercalar, por consulta da lista, ordenada alfabeticamente, afixada no átrio do edifício dos Paços do Concelho e disponibilizada na página eletrónica deste Município (...), conforme o disposto do n.9 1 do artigo 25.9 da portaria n.9 125A/2019, de 3 de abril.”
P) A 04/06/2020, a Entidade Demandada afixou no átrio dos Paços do Concelho uma cópia da “Lista dos Resultados Obtidos na Prova de Conhecimentos”, da qual consta que apenas a Autora estava abrangida pelo ponto 20 do Aviso de Abertura – cfr. fls. 2402 do procedimento administrativo.
Q) A Contrainteressada BB apresentou pronúncia em sede de audiência prévia na qual alegou ser portadora de uma incapacidade de 76% e não ter sido enquadrada na condição prevista no ponto 20 do anúncio de abertura do procedimento – cfr fls. 2393 a 2394 do procedimento administrativo.
R) A 30/06/2020, o júri do concurso reuniu para apreciação da exposição da candidata BB e deliberou proceder à rectificação da lista de resultados obtida na prova de conhecimentos constante da acta n.º 4 – cfr. fls. 2384 do procedimento administrativo.
S) A 15/07/2020, a Entidade Demandada afixou no átrio dos Paços do Concelho uma cópia da “Lista dos Resultados Obtidos na Prova de Conhecimentos (retificação)”, da qual consta que a Contrainteressada BB estava abrangida pelo ponto 20 do Aviso de Abertura – cfr. fls. 2379 do procedimento administrativo.
T) A 09/10/2020, a Autora remeteu à Entidade Demandada a comunicação escrita de fls. 2303/2304 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e no qual requereu a realização do exame de avaliação psicológica de modo oral, com gravação da prova.
U) Em resposta à comunicação antecedente, a Entidade Demandada dirigiu à Autora a comunicação escrita de fls. 2299 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, o seguinte:
“(...).
Mais se informa que os psicólogos responsáveis por este processo já dispõem de toda a informação necessária para aplicação adaptada das provas psicológicas selecionadas, que inclui a majoração do tempo, de acordo com as normas científicas aprovadas pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.
(...). Esta sugestão tem por base a possibilidade, que lhe é concedida, de utilizar o seu computador pessoal para a realização da prova de competências, por considerarmos que a sua utilização poderá colmatar as dificuldades apresentadas por V. Exa na carta enviada.
Relativamente à gravação da prova a mesma não está prevista, uma vez que tal solução implica o consentimento expresso de todos os intervenientes no processo.”
V) A prova psicológica foi efectuada por dois psicólogos, funcionários da Câmara Municipal, e foi constituída por um conjunto de exercícios realizados em computador e um por um conjunto de perguntas que foram efetuadas oralmente e a que a Autora respondeu, também de modo oral, sendo a sua resposta assinalada por um dos psicólogos no enunciado da prova – facto admitido por acordo.
W) A Autora realizou a prova de avaliação psicológica que consta a fls. 3382 a 3395 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, que a Autora obteve uma pontuação de 4,0 no item “compreensão verbal” e de 20,00 no item “fluência verbal” numa escala de 0 a 20, tendo obtido o resultado final de suficiente - 12 valores – cfr. documento n.º 14 junto com a petição inicial, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido.
X) A Autora realizou a prova de entrevista profissional de seleção cujos resultados constam do documento n.º 19 junto com a petição inicial, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, que a Autora obteve uma pontuação de 20,00 no item “capacidade de expressão e compreensão verbal” numa escala de 0 a 20.
Y) O júri do concurso deliberou aprovar o projeto da lista unitária de ordenação final dos candidatos aprovados ao procedimento concursal e notificada para, querendo, se pronunciar em sede de audiência prévia, a Autora apresentou o instrumento que consta a fls. 3396 a 3406 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido.
Z) O júri do concurso reuniu para apreciar a pronúncia da Autora, tendo deliberado improceder todas as questões suscitadas e manter a lista unitária de ordenação final dos candidatos – cfr. fls. 2963 a 2966 e fls. 3216 a 3217 verso do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido.
AA) Da deliberação referida na alínea anterior consta, nomeadamente, o seguinte:
“3. Falta de notificação da retificação da lista
A outra candidata apresentou formulário de candidatura em 13-08-2019, conforme consta do respetivo processo, tendo-o preenchido, tal como a Reclamante, em termos adequados. Instruiu a sua candidatura, tendo junto designadamente o competente atestado médico de incapacidade.
Submetida, da mesma forma, aos métodos de seleção, foi a prova escrita avaliada de acordo com os critérios previamente fixados e de forma absolutamente igual à avaliação dos demais.
A “Lista dos Resultados obtidos na prova de conhecimentos” foi tornada pública nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 25.º da Portaria n.º 125-A/2019, de 30 de abril.
A candidata soube, aí, nos termos legais, quais os candidatos excluídos e os que passavam à fase seguinte, e respetivas notas. Com base nelas e na comparação que lhe foi transparentemente possível realizar logo então, conhecendo a sua e todas as notas dos candidatos, poderia ter solicitado a reapreciação da prova, tal como os outros candidatos, o que resulta dos termos gerais e não do especial Decreto-Lei n.º 29/2001, que nenhuma regra "extravagante” estipula quanto a esta matéria específica.
Improcede, pois, a razão invocada.”
BB) Por despacho da Presidente da Câmara Municipal do Marco de Canaveses de 10/02/2021, foi homologada a lista unitária de ordenação final dos candidatos aprovados no procedimento concursal aprovada pelo júri do procedimento – cfr. fls. 2963 a 2967 do procedimento administrativo.
CC) A Autora dirigiu à Presidente da Câmara Municipal de Marco de Canaveses exposição escrita que denominou de recurso hierárquico, o qual não obteve procedência, com exceção de permitir à Autora o acesso ao atestado médico de incapacidade multiuso nos termos aí referidos – cfr. fls. 2692 a 2699 e fls. 2730 a 2738 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido.
DD) A Entidade Demandada não pediu apoio ao Instituto Nacional para a Reabilitação (INR) para a elaboração das provas a efectuar pela Autora – facto admitido por acordo.

III.ii. De direito

12. Tendo presente as questões colocadas no recurso e que identificámos em 10. supra, cumpre começar por apreciar se o acórdão do TCA Norte é nulo, por omissão de pronúncia, ao não considerar os factos instrumentais de conhecimento oficioso e o parecer da DGAEP junto aos autos, violando os artigos 615.º n.º 1 alínea d), 5.º e 611.º do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA, bem como o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 2.º do CPTA, 13.º, 47.º e 71.º da CRP.

13. Neste capítulo, o acórdão recorrido refere o seguinte:

Quanto à falta de referência aos pareceres da Direção-Geral da Administração Pública e do Prof. Dr. Óscar Gomes na fundamentação da sentença, não produz esta omissão uma nulidade.
Determina a alínea d) do n.º 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, que a sentença é nula quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Este preceito deve ser compaginado com a primeira parte do n.º 2, do artigo 608º, do mesmo diploma: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Conforme é entendimento pacífico na nossa jurisprudência e na doutrina, só se verifica nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a que aludem os citados preceitos, quando o juiz se absteve de conhecer de questão suscitada pelas partes e de que devesse conhecer (cfr. Alberto Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra 1984 (reimpressão), p.140; e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 11.9.2007, recurso 059/07, de 10.09.2008, recurso 0812/07, de 28.01.2009, recurso 0667/08, e de 28.10.2009, recurso 098/09).
A nulidade só ocorre quando a sentença ou acórdão não aprecie questões suscitadas e não argumentos apresentados no âmbito de cada questão, face ao disposto nos artigos 697º e 608º do Código de Processo.
Efectivamente, o tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, mas apenas fundamentar suficientemente em termos de facto e de direito a solução do litígio.
(…)
Os referidos pareceres não são fundamentos do recurso, são argumentos apresentados pela Autora a propósito do vício de violação do disposto nos artigos1º e 2º do DL 29/2001, de 03.02, por a incapacidade da Contra-Interessada BB ter sido integrada no procedimento administrativo e no acto impugnado nesta previsão legal, ao contrário do que entende a Autora.
Improcedem, pois, estas arguições de nulidade da sentença recorrida.

14. A nulidade invocada, atinente à omissão de pronúncia, ocorre quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”. Esta nulidade decisória por omissão de pronúncia está diretamente relacionada com o comando inserto na primeira parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, de acordo com o qual o tribunal “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada para a solução dada a outras”.

15. Por outro lado, constitui jurisprudência pacífica e reiterada que a omissão de pronúncia existe quando o tribunal deixa, em absoluto, de apreciar e decidir as questões que lhe são colocadas, e não quando deixa de apreciar argumentos, considerações, raciocínios, ou razões invocados pela parte em sustentação do seu ponto de vista quanto à apreciação e decisão dessas questões. Sendo que, como ensina o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143: “[q]uando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que eles se apoiam para sustentar a sua pretensão”. A doutrina e a jurisprudência distinguem, pois, as “questões” dos “argumentos” ou “razões”, para concluir que só a falta de pronúncia sobre questões de que o tribunal deva conhecer integra a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC (na jurisprudência, por todos, o Acórdão deste STA de 21.05.2008, proc. n.º 437/07).

16. Decorre desta interpretação que a sentença (ou o acórdão) não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.

17. E é também jurisprudência pacífica que só ocorre a nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e que não se encontrem prejudicadas pela solução dada a outras (cf. art.º 608.º, nº 2, do CPC).

18. Ora, no caso em apreço o acórdão recorrido não deixou de conhecer das questões em litígio, resolvendo a concreta questão tida por omitida no recurso admitido.

19. Com efeito, no mesmo é consignado, na motivação da decisão quanto à integração da Contrainteressada BB na quota reservada para pessoas com deficiência nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, o seguinte:

Neste contexto os pareceres juntos à acção de impugnação apenas podem ser considerados como prova dosa eventual erro grosseiro na consideração de que o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” apresentado pela Contra-Interessada em sede administrativa vale como prova de que tem uma incapacidade permanente global de 76%, desdobrado nos seguintes itens: (I) Oncologia, tumores malignos sem metástases e permitindo uma vida de relação, com uma desvalorização de 60%, (II) Disformias (alterações morfológicas tegumentares ou outras com repercussão funcional e/ou estética), ablação da glândula mamária unilateral, com uma desvalorização de 6%, e (III) Psiquiatria, perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, com uma desvalorização de 10% - cfr. Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23/10.
Isto sendo certo que não existe qualquer norma que imponha como meio de prova imperativo dessa incapacidade o parecer da DGAEP ou de um perito de medicina legal, perito de dano corporal e perito da segurança social, como é o caso do Professor Doutor Óscar Gomes.
Ao não se pode considerar existir erro, menos ainda grosseiro, na consideração, constante do “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” apresentado pela Contra-Interessada em sede administrativa de que esta tem uma incapacidade permanente global de 76%.

20. Ou seja, na valoração dos meios de prova carreados para os autos, o TCA Norte entendeu relevar uns e desconsiderar outros, justificando o porquê dessa desconsideração em razão da discricionariedade técnica entendida como existente na apreciação da situação clínica da Contrainteressada e na irrelevância do parecer da DGAEP nesse âmbito. E no contexto probatório que foi valorado, resolveu a concreta questão colocada.

21. Em suma, a ausência de valoração de eventuais factos instrumentais de conhecimento oficioso, a par da tida irrelevância do parecer da DGAEP, consubstancia uma situação de não apreciação de determinados fundamentos fácticos – que, eventualmente, podem prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões – o que não conduz à existência do vício de omissão de pronúncia a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por estar em causa, quando muito, um erro de julgamento e, não, uma falta de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar.

22. Deste modo improcede a suscitada nulidade do acórdão, incluindo-se o vício apontado pela Recorrente já no domínio do erro de julgamento (de que se conhecerá infra).

23. Continuando, vejamos agora se o acórdão recorrido errou, de acordo com a alegação da Recorrente, ao ter julgado válido o entendimento de que, apesar de o TAF de Penafiel ter previamente decidido nesse sentido, não ter depois aquele tribunal notificado o Instituto Nacional para a Reabilitação para que viesse esclarecer se a prova foi ou não adequada à concreta deficiência da Autora, dado que, uma vez transitada em julgado tal decisão, o tribunal tinha a obrigação de ordenar tal prova sob pena de se violar o princípio da tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 2.º do CPTA e de desrespeitar o art. 625.º do CPC.

24. Porém, salvo o devido respeito, a alegação recursória decorre de uma deficiente leitura dos actos processuais em causa. Vejamos:

25. De acordo com o disposto no art. 625.º do CPC, que versa sobre casos julgados contraditórios:

1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
2 - É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.

26. E assim é em função do próprio esgotamento do poder jurisdicional, uma vez que a decisão transitada em julgado só poderá ser afastada após impugnação, reforma ou declaração oficiosa ou judicial da sua nulidade. E, consequentemente, a verificar-se tal circunstância, o tribunal incorre em excesso de pronúncia por conhecer de questão de que (já) não lhe é lícito conhecer (art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

27. Porém, o que os autos demonstram não corresponde ao alegado.

Na verdade, o despacho judicial de 14.10.2021, a propósito da requerida emissão de parecer pelo Instituto Nacional para Reabilitação, determinou à Autora o cumprimento do disposto no art. 475.º do CPC, sob pena de rejeição. Tendo-a notificado para indicar os concretos factos a que a mesma pretendia produzir prova. E a Autora veio responder ao despacho por requerimento datado de 18.10.2021, indicando os quesitos a que o INR deveria responder.

28. Por despacho de 8.03.2021, o Tribunal de 1.ª instância determinou a realização de perícia ao Instituto Nacional de Medicina Legal sem nada referir quanto ao pedido de parecer ao INR.

29. Ora, a questão como se apresenta não é de excesso de pronúncia, pelo simples facto de o Tribunal, nesse momento, não ter sequer deferido a requerida emissão de parecer pelo INR. A questão será sim de nulidade processual, pela omissão de um acto relacionado com um acto de sequência processual.

30. No entanto, a Autora não deduziu qualquer arguição de nulidade, sendo que temos por seguro que, se não antes, da mesma teve conhecimento, pelo menos, na data da audiência. Significa isto que a mesma ficou oportunamente sanada, por ausência de tempestiva arguição (art.s 149.º, n.º 1, 196.º, 199.º, n.º 1, e 200.º, n.º 1, in fine, do CPC).

31. E mesmo se se entender que ocorreu uma posterior renovação do pedido de parecer ao INR quanto à adequação ou inadequação da prova escrita tal como alegado, certo é que o tribunal proferiu despacho no qual considerou que os autos já reuniam os elementos necessários para a boa decisão da causa referindo, pelo que indeferiu o requerido.

32. Deste modo, o TCA Norte decidiu acertadamente – embora aqui se siga distinta linha de fundamentação – ao ter julgado improcedente o recurso nessa parte.

33. Mas mais, no presente caso a questão torna-se manifestamente irrelevante, uma vez que ficou provado precisamente que a Entidade Demandada não pediu apoio ao INR para a elaboração das provas a efetuar pela Autora e aqui Recorrente (cfr. o provado em DD) supra).

34. Sendo que o acórdão recorrido expressamente afirmou que “o parecer do INR sobre as condições da prestação da prova da Autora não é formalidade imposta por lei”, o que não foi sujeito a especifica impugnação no recurso interposto para este STA.

35. Assim, sempre o recurso teria que improceder nesta parte, dado que o acórdão recorrido acolheu no probatório a matéria tida por relevante e decidiu que o dito parecer do INR não era formalidade obrigatória, desconsiderando, portanto, o mesmo. Decisão esta que, tal como o recurso vem configurado, não integra o seu objeto.

36. Por fim, entrando na questão essencial a decidir e identificada no acórdão que admitiu a revista, cumpre conhecer do invocado erro de julgamento em que incorreu o acórdão recorrido, ao ter julgado que a doença oncológica de que padeceu a Contrainteressada BB, a qual lhe causou uma incapacidade de 76%, permitia enquadrá-la no conceito de “pessoa com deficiência” para efeitos de provimento de lugar reservado para candidato com deficiência, fazendo, assim, errada interpretação e aplicação dos artigos 1.º, 2.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro.

37. Neste capítulo, afirmou-se no acórdão do TCA Norte recorrido:

3.1. A integração da Contra-Interessada BB na quota reservada para pessoas com deficiência nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1° e 2° do DL 29/2001, de 03.02 (conclusões 5ª, 14ª, 15ª, 16ª, 21ª, 23ª e 24ª).
Como acima se disse, o tribunal não é uma segunda instância administrativa, nem tem condições, designadamente de recursos humanos, para o ser, mas uma instância jurisdicional que averigua, dito em termos genéricos e a traço grosso, a legalidade da actuação administrativa, bem como avalia, em sede da discricionariedade técnica ou administrativa, a razoabilidade dos juízos emitidos com base nos elementos colhidos em sede administrativa, assim como a eventual omissão ou preterição de formalidades essenciais.
E no campo da “discricionariedade técnica” é entendimento pacífico o de que a conduta da Administração é insindicável, salvaguardados os casos de erro grosseiro, uso de critérios manifestamente desajustados ou desvio de poder.
Neste contexto os pareceres juntos à acção de impugnação apenas podem ser considerados como prova dosa eventual erro grosseiro na consideração de que o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” apresentado pela Contra-Interessada em sede administrativa vale como prova de que tem uma incapacidade permanente global de 76%, desdobrado nos seguintes itens: (I) Oncologia, tumores malignos sem metástases e permitindo uma vida de relação, com uma desvalorização de 60%, (II) Disformias (alterações morfológicas tegumentares ou outras com repercussão funcional e/ou estética), ablação da glândula mamária unilateral, com uma desvalorização de 6%, e (III) Psiquiatria, perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, com uma desvalorização de 10% - cfr. Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23/10.
Isto sendo certo que não existe qualquer norma que imponha como meio de prova imperativo dessa incapacidade o parecer da DGAEP ou de um perito de medicina legal, perito de dano corporal e perito da segurança social, como é o caso do Professor Doutor Óscar Gomes.
Ao não se pode considerar existir erro, menos ainda grosseiro, na consideração, constante do “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” apresentado pela Contra-Interessada em sede administrativa de que esta tem uma incapacidade permanente global de 76%.
Improcede, tal como decido na sentença recorrida, a arguição deste vício do acto impugnado.

38. Em síntese, entendeu o tribunal a quo que se está no domínio da discricionariedade técnica e que, assim sendo, “a conduta da Administração é insindicável, salvaguardados os casos de erro grosseiro, uso de critérios manifestamente desajustados ou desvio de poder”.

39. Desde já se diga que o juízo categórico tirado pelo TCA Norte quanto ao grau do controlo judicial da atividade da Administração em sede da comummente designada “discricionariedade técnica” se afigura redutor.

40. Com efeito, e sem entrar em desenvolvimentos dogmáticos que aqui se afiguram não ter cabimento, se é certo que este controlo jurisdicional tem que respeitar um espaço próprio do exercício de uma discricionariedade técnica, certo é também que, para além da deteção do erro grosseiro, o tribunal não está impedido de sindicar a decisão administrativa sempre que for confrontado com um quid jurídico determinado – uma área de vinculação legal -, designadamente conhecendo de desvio de poder, de erro de facto, de falta de fundamentação, e, em geral, de incompatibilidade do juízo decisório com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e princípios fundamentais que regem a atividade administrativa (neste sentido, i.a., o acórdão deste STA de 7.12.2022, proc. n.º 107/21.0BALSB). Como afirmam Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias (in Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 4.ª ed., 2016, p. 140): “o controlo desses momentos vinculados da atuação administrativa quando está em causa a prática de um ato discricionário não tem contornos especiais relativamente aos atos vinculados” [sobre o controlo judicial da atividade discricionária, a margem de livre apreciação e os casos de redução da discricionariedade a zero, v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª ed., 2021, p. 516 e s.; idem, acerca do acertamento judicial possível, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2.ª ed., 2016, pp. 97-101].

41. Na situação que nos ocupa, importa preliminarmente melhor delimitar a questão decidenda. Não está em causa – nem isso vem questionado – aferir do erro/validade da realidade clínica atestada pelos certificados de incapacidade emitidos, concretamente do grau de deficiência reconhecido à Contrainteressada. O que significa, portanto, que a discussão acerca da discricionariedade técnica, afinal, não se coloca aqui.

42. Com efeito, o tribunal não foi chamado – nem o é agora – a apreciar da definição primária efetuada pela Administração, no desenvolvimento próprio da função administrativa. Como vem provado, a Contrainteressada possui atestado médico de incapacidade multiuso, de 76%, desdobrado nos seguintes itens: (i) Oncologia, tumores malignos sem metástases e permitindo uma vida de relação, com uma desvalorização de 60%, (ii) Disformias (alterações morfológicas tegumentares ou outras com repercussão funcional e/ou estética), ablação da glândula mamária unilateral, com uma desvalorização de 6%, e (iii) Psiquiatria, perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, com uma desvalorização de 10% (cfr. Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro).

43. O que importa saber é se a Contrainteressada tem – ou não - que ser considerada uma pessoa com deficiência para os efeitos previstos no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro. Posto que, está assente que a mesma detém um grau de incapacidade funcional superior a 60%.

44. Tarefa que se conexiona com o preenchimento do grau de determinação da norma legal; a saber, o de “pessoa com deficiência” para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro. É esse tatbestand da norma – pressupostos de facto exigidos pela norma legal – que importa aqui determinar.

45. Como se afirmou no acórdão deste STA que admitiu o recurso de revista:
“(…) a «questão central» desta pretensão de revista é a de saber se a contrainteressada BB foi ou não devidamente enquadrada como «deficiente», ao abrigo do DL nº 29/2001, de 03.02, o que significa apreciar, e decidir, se a «doença oncológica» de que padeceu e lhe causou uma incapacidade de 76% pode e deve ser havida como «deficiência incapacitante» para efeitos de preenchimento da quota aqui em causa”.

46. O Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, que estabelece o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade funcional igual ou superior a 60%, em todos os serviços e organismos da administração central, regional autónoma e local, estabelece o seguinte:
Artigo 1.º
Objecto
1 - O presente diploma estabelece o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, nos serviços e organismos da administração central e local, bem como nos institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados do Estado ou de fundos públicos.
(…)

47. E no seu art. 2.º, sob a epígrafe “[â]mbito pessoal de aplicação”, prevê-se:

1 - Para efeitos do presente diploma, consideram-se pessoas com deficiência aquelas que, encontrando-se em qualquer uma das circunstâncias e situações descritas no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 9/89, de 2 de Maio, possam exercer, sem limitações funcionais, a actividade a que se candidatam ou, apresentando limitações funcionais, estas sejam superáveis através da adequação ou adaptação do posto de trabalho e ou de ajuda técnica.
2 - A deficiência prevista no n.º 1 abrange as áreas de paralisia cerebral, orgânica, motora, visual, auditiva e mental.

48. Por sua vez, dispunha o referido art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 9/89, de 2 de maio (diploma revogado pela Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto):

1 - Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica susceptível de provocar restrições de capacidade, pode estar considerada em situações de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais tendo em conta a idade, o sexo e os factores sócio-culturais dominantes.

49. A Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, que define as bases gerais do regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência, revogou a Lei n.º 9/89, de 2 de maio (cfr. o seu art. 51.º) e passou a dispor sobre o conceito de “pessoa com deficiência” o seguinte:
Artigo 2.º
Noção
Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas.

50. Pelo que, a remissão operada pelo Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, haverá que ser entendida como feita para a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto.

51. Assim, como expressamente consignado no Decreto-Lei n.º 29/2001, para efeitos desse diploma e considerando a remissão que opera, serão consideradas “pessoas com deficiência”: todas aquelas que, detendo um grau de incapacidade igual ou superior a 60% (art. 1.º, n.º 1), por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresentem dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os fatores do meio, lhe limitar ou dificultar a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas (art. 2.º).

52. Neste exercício de hermenêutica, importa ter também presente o art. 85.º do Código do Trabalho, que trata dos princípios gerais quanto ao emprego de trabalhador com deficiência, doença crónica ou doença oncológica, o qual estabelece, nos n.ºs 1 e 2, o seguinte:

1 - O trabalhador com deficiência, doença crónica ou doença oncológica é titular dos mesmos direitos e está adstrito aos mesmos deveres dos demais trabalhadores no acesso ao emprego, à formação, promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, sem prejuízo das especificidades inerentes à sua situação.
2 - O Estado deve estimular e apoiar a ação do empregador na contratação de trabalhador com deficiência, doença crónica ou doença oncológica e na sua readaptação profissional.

53. Ou seja, o legislador, no Código do Trabalho, consagra a regra de que o Estado deve estimular e apoiar a ação do empregador; isto é, tais medidas concretizam-se na prática pela formação profissional e pela criação de incentivos, designadamente de ordem fiscal e de segurança social, para que tais trabalhadores sejam contratados (cfr., a este propósito, Guilherme Dray, O Princípio da Igualdade no Direito do Trabalho, Sua Aplicabilidade no Domínio Específico de Formação de Contratos Individuais de Trabalho, 1999, p. 184, idem, Maria de Morais Saraiva, O acesso e exercício do trabalho pelas pessoas portadoras de deficiência – em especial, as quotas de emprego, 2020, p. 30).

54. Nessa medida, e só nessa, trata de igual modo “deficiência, doença crónica e “doença oncológica”.

55. Por outro lado, a verdade é que o legislador não procedeu a uma equiparação genérica ou global, preferindo, para certos efeitos, um regime de incentivos, designadamente de ordem fiscal e de prestações sociais (por exemplo: exclusão de tributação, deduções à coleta majoradas, isenção de ISV e IUC, créditos bonificados na aquisição de habitação, subsídios e financiamentos vários) em benefício do trabalhador deficiente ou com incapacidade superior a 60% e outros em benefício do empregador (comparticipações financeiras, etc.), enquanto para outros efeitos, concretamente ao nível do recrutamento de pessoal, optou pelo conceito de “pessoa com deficiência” tal como consagrado no Decreto-Lei nº 29/2001.

56. E se o legislador quisesse ter feito a equiparação que efetuou no Código Trabalho – em que tratou de modo igual “deficiência”, “doença crónica” e “doença oncológica” –, também, no Decreto-Lei nº 29/2001, bastaria, para tanto, que o tivesse dito, ao invés de remeter a definição de “pessoa com deficiência” para a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto. Bastaria dizer, simplesmente, que se considerava “pessoa com deficiência” o trabalhador integrado num desses grupos; o que não fez.

57. E se não o fez – podendo tê-lo feito – é porque, para efeitos desse diploma, não pretendeu equiparar “pessoa com deficiência” indistintamente a trabalhador com deficiência, com doença crónica ou doença oncológica.

58. Vejamos agora o regime legal do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso e a sua abrangência.
O Atestado Médico de Incapacidade Multiuso é um documento que comprova o grau de incapacidade física ou mental, permanente ou temporária, de um utente.

59. O Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 174/97, de 19 de julho, 291/2009, de 12 de outubro, pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 1/2022, de 3 de janeiro, e pele Decreto-Lei n.º 15/2024, de 17 de janeiro, estabelece o regime de avaliação de incapacidade das pessoas com deficiência para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei. A incapacidade, permanente ou temporária, é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro.

60. De acordo com o Capítulo XVI, IV - Tabela de Incapacidades, da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, distingue-se ainda:

1) Nos tumores benignos, avaliar os défices anatómicos e funcionais resultantes da terapêutica, das compressões ou deteriorações de estruturas adjacentes ao tumor. Para isso, conforme a localização das sequelas, recorrer ao respectivo capítulo da Tabela;
2) Na doença oncológica crónica (tumor maligno com estabilização clínica) …0,10–0,25
3) Nos tumores malignos sem metástases e permitindo uma vida de relação … 0,26-0,60
4) Nos tumores malignos com insucessos terapêuticos e com curta esperança de vida ... 0,80-0,95

61. No contexto dos autos, releva a Lei n.º 1/2024, de 4 de janeiro, que aprova o regime transitório de emissão de atestado médico de incapacidade multiúso para doentes oncológicos e pessoas com deficiência.

62. Neste diploma faz-se uma nítida distinção entre o atestado médico de incapacidade multiúso para doentes oncológicos (art. 2.º) e o atestado médico de incapacidade multiúso para pessoas com deficiência (art. 3.º).

63. Ou seja, o legislador, para o acesso e manutenção das medidas e benefícios sociais, económicos e fiscais legalmente previstos, distingue as situações relativas aos “doentes oncológicos” e aquelas atinentes às “pessoas com deficiência”. E dessa distinção normativa, terá o interprete-aplicador da lei que retirar – uma vez mais (cfr. o ponto 57 supra) - as devidas consequências.

64. Significa isto, tendo presente o quadro normativo que vimos de identificar, que não só o Decreto-Lei n.º 29/2001 não faz equivaler os doentes oncológicos a pessoas com deficiência, remetendo essa definição para a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto [“Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de funções ou de estruturas do corpo, incluindo as funções psicológicas, apresente dificuldades específicas susceptíveis de, em conjugação com os factores do meio, lhe limitar ou dificultar a actividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas. – art. 2.º], como em lugares paralelos procede expressa e inequivocamente a essa distinção conceptual e a que corresponde, naturalmente, uma realidade fáctica não necessariamente coincidente.

65. A densificação normativa do conceito de “pessoa com deficiência” para efeitos do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 29/2001 que ensaiamos, corresponde, de igual passo, ao conceito de “pessoa com deficiência” no contexto da Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional, será preenchido sempre que ocorra uma limitação da capacidade, que resulta, designadamente, de incapacidades físicas, mentais ou psíquicas prolongadas, cuja interação com várias barreiras pode impedir a participação plena e efetiva da pessoa em questão na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores.

66. E, também, com a definição inserta na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 13.12.2006 (ratificada pelo governo português a 23.10.2009), cujo objeto, consagrado no seu art. 1.º é: “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. As pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interacção com várias barreiras podem impedir a sua plena e efectiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros”.

67. De regresso ao caso dos autos, olhando para texto do acórdão recorrido, vemos que é aí sancionado positivamente o entendimento de que “a Contrainteressada tem que ser considerada uma pessoa com deficiência para os efeitos previstos no artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 03/02, já que sofreu a perda (adquirida) de uma função ou estrutura do corpo (a mama), acrescida de perturbações funcionais importantes a nível de psiquiatria, ou seja, foi afetada nas áreas orgânica e mental, e que são suscetíveis de lhe limitar ou dificultar a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas, daí lhe ter sido atribuído o “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” com incapacidade permanente global de 76%.

68. Entendimento que não podemos acompanhar.

69. Com efeito, de acordo com o exposto, o preenchimento valorativo do conceito de “pessoa com deficiência”, para efeitos do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, remete para a definição de “pessoa com deficiência” que tem sida recortada no direito supranacional e que exige, para além de uma atestada incapacidade superior a 60% - que efetivamente se verifica -, que essa limitação da capacidade, em interação com várias barreiras, seja susceptível de impedir a participação plena e efetiva da pessoa em questão na vida profissional em condições de igualdade com os outros trabalhadores.

70. Ora, esse conceito normativa de “pessoa com deficiência” não abrange as situações de incapacidade decorrentes, por si só, de doença oncológica e a isso acresce que da matéria de facto que vem provada não resulta minimamente que a Contrainteressada, em razão da sua incapacidade (comprovada), seja confrontada com uma qualquer barreira que gere uma distorção, em seu desfavor, nas condições de desenvolvimento profissional atinentes ao lugar de técnica superior jurista na Divisão de Assuntos Jurídicos e Fiscalização, da Câmara Municipal de Marco de Canaveses.

71. A leitura da norma feita pelo TAF de Penafiel e pelo TCA Norte faz equivaler, sem mais, o conceito de “pessoa com deficiência”, para efeitos do disposto no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, à detenção de incapacidade atestada de igual ou superior a 60%. Porém, não compatibiliza as normas dos artigos 1.º e 2.º do mesmo diploma, deixando a previsão normativa deste último artigo sem qualquer espaço de aplicação útil.

72. Como alegado pela Recorrente, para a consideração de “pessoa com deficiência” para estes efeitos, para além da perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estruturas ou funções do corpo, incluindo as funções psicológicas, é necessário que, como consequência dessa perda ou anomalia, a pessoa apresente dificuldades específicas, suscetíveis de, em conjugação com os fatores do meio, limitarem ou dificultarem a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas. O que não resulta ocorrer com a Contrainteressada.

73. Sendo que o legislador consagrou a previsão normativa condicionada a este elemento-tipo de situação, pelo que a norma primária de referência apenas deixou em aberto à Administração a constatação de um sentido normativo, pressuposto da decisão. Pressuposto que afinal se deve ter por não verificado, contrariamente ao que foi o entendimento das instâncias.

74. De salientar que o fundamento da existência das quotas de emprego, de acordo com o disposto no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, é o de garantir o direito constitucionalmente consagrado de escolha da profissão e do acesso ao emprego, em condições de igualdade, uma vez que a deficiência tem diversas barreiras tanto materiais como imateriais, impedindo o pleno exercício da cidadania, dando, assim, concretização ao disposto no art. 71.º do Texto Fundamental.

75. Mas essa diferenciação positiva, assente no princípio de igualdade (art. 13.º da CRP), só encontrará justificação enquanto justificada numa obrigação de diferenciação para atenuar um desequilíbrio de oportunidades. A medida de correção da desvantagem perante os restantes cidadãos só encontra justificação válida em razão das debilidades inerentes a determinadas pessoas ou grupos, de modo a prosseguir o objetivo de fomentar uma igualdade de oportunidades material e efetiva. A não ser assim, são elas próprias, ou os actos que a executam, geradoras da violação do princípio de igualdade.

76. Por um lado, a obrigação de diferenciação só se justifica para compensar uma desigualdade (de oportunidades); por outro, as medidas de diferenciação têm que ser “materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, 1993, p. 128).

77. Como ensina Jorge Miranda, o sentido positivo do princípio da igualdade – o tratamento desigual de situações desiguais – impõe-se quando as situações desiguais o são substancial e objetivamente (cfr. Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed. revista, p. 214).

78. Também sob esta perspetiva de análise não se deteta nos autos qualquer elemento relevante adicional que permita sustentar a posição substantiva da Contrainteressada para efeitos do preenchimento da quota de “pessoas com deficiência”.

79. E tanto assim será que a própria Contrainteressada declarou oportunamente, como provado em F) supra, que não necessitava de meios ou condições especiais para a realização de métodos de seleção. Embora a extrapolação não possa ser imediata, nem absoluta, não deixa de ser indiciária para demonstrar que a mesma não se vê confrontada com dificuldades específicas, suscetíveis de, em conjugação com os fatores do meio, limitarem ou dificultarem a atividade e a participação em condições de igualdade com as demais pessoas.

80. Pelo que, dando resposta à questão colocada no acórdão que admitiu a revista, teremos que concluir que a doença oncológica de que padeceu a Contrainteressada e lhe causou uma incapacidade de 76% [em concurso com outros fatores: Oncologia, tumores malignos sem metástases e permitindo uma vida de relação, com uma desvalorização de 60%, (ii) Disformias (alterações morfológicas tegumentares ou outras com repercussão funcional e/ou estética), ablação da glândula mamária unilateral, com uma desvalorização de 6%, e (iii) Psiquiatria, perturbações funcionais importantes, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, com uma desvalorização de 10%], não deve ser havida como “deficiência incapacitante” para efeitos de preenchimento da quota aqui em causa destinada a “pessoas com deficiência”.

81. Razões que determinam a procedência do recurso, com a revogação do acórdão recorrido e a anulação do acto impugnado com a presente fundamentação, o qual padece dos apontados vícios de violação de lei.

Continuando,

82. Pede a Recorrente, na procedência do recurso, a condenação da Entidade Demandada nos termos constantes da petição inicial. Ou seja, a graduação da Autora na vaga reservada para pessoas com deficiência ao abrigo do Decreto-lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro.

83. Perscrutada a matéria de facto, resulta da mesma que a ora Recorrente satisfaz os critérios para a ordenação por si pretendida na lista unitária de ordenação final. Isso retira-se de modo inequívoco do que ficou provado em W) e X).

84. “A Autora realizou a prova de avaliação psicológica que consta a fls. 3382 a 3395 do procedimento administrativo, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, que a Autora obteve uma pontuação de 4,0 no item “compreensão verbal” e de 20,00 no item “fluência verbal” numa escala de 0 a 20, tendo obtido o resultado final de suficiente - 12 valores (…) // A Autora realizou a prova de entrevista profissional de seleção cujos resultados constam do documento n.º 19 junto com a petição inicial, cujo teor, por brevidade, se dá por integralmente reproduzido, e do qual se extrai, nomeadamente, que a Autora obteve uma pontuação de 20,00 no item “capacidade de expressão e compreensão verbal” numa escala de 0 a 20.

85. A Autora e ora Recorrente instruiu o formulário de candidatura com “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso” e do qual se extrai, nomeadamente, que a mesma é portadora de deficiência visual que lhe conferiu o grau de incapacidade de 95% (cfr. o provado em E) dos factos assentes), o que, notoriamente, gera um assinalável obstáculo para o desenvolvimento profissional das funções que irá desempenhar, em condições de igualdade com os demais trabalhadores.

86. Aliás, a Entidade Demandada, como provado em P) supra, havia anteriormente publicitado a “Lista de Resultados Obtidos na Prova de Conhecimentos”, da qual constava apenas a Autora como abrangida pelo ponto 20 do Aviso de Abertura.
87. Pelo que, verificando-se o elemento da previsão normativa ideado pelo legislador, terá que condenar-se a Entidade Demandada à prática do ato devido, o qual, no caso, é a graduação da Autora na vaga reservada para pessoas com deficiência ao abrigo do Decreto-lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro.
88. Anexa-se sumário, elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo em:

i) Conceder provimento ao recurso de revista e revogar o acórdão do TCA Norte recorrido; e, em substituição,
ii) Anular, com os presentes fundamentos, o acto de homologação da lista unitária de ordenação final dos candidatos aprovados no âmbito do procedimento concursal com a referência 03/19 (Extrato nº 12342/2019 Diário da República, 2ª Série – nº 146 1 de agosto de 2019, referência 03/2019) para recrutamento de três técnicos superiores na modalidade de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, na parte impugnada; e
iii) Condenar a Entidade Demandada à prática de acto que gradue a Autora na vaga reservada para pessoas com deficiência ao abrigo do Decreto-lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro, a que se refere o ponto 20 do respetivo Aviso de abertura do procedimento.

São devidas custas em 1.ª instância pela Entidade Demandada, Município do Marco de Canaveses, e pela Contrainteressada, BB, e em partes iguais. Nas instâncias de recurso são devidas custas pelo Recorrido, Município do Marco de Canaveses, não sendo devido o pagamento da taxa de justiça nestas instâncias pela Recorrida BB, uma vez que não contra-alegou.
Notifique.

Lisboa, 4 de Julho de 2024. – Pedro José Marchão Marques (relator) - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva - Helena Maria Mesquita Ribeiro.