Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01011/02.7BTLRS 01443/16
Data do Acordão:02/05/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:DUPLICAÇÃO DE COLECTA
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
REVISÃO DO ACTO TRIBUTÁRIO
Sumário:I - Sempre que um sujeito passivo declare o mesmo rendimento em dois períodos de tributação diferentes e pague, em ambos, o imposto que vier a ser liquidado, estaremos ante um caso de duplicação parcial de colecta.
II - Se o sujeito passivo apresentar posteriormente, no prazo dos quatro anos de que a Administração Tributária dispõe para rever os actos tributários (artigo 94.º do CPT, hoje artigo 78.º da Lei Geral Tributária), uma declaração de substituição respeitante ao período em que o rendimento havia sido incorrectamente imputado, resultando dessa declaração o apuramento de um montante de imposto devido inferior ao que foi por ele pago anteriormente, deve a Administração Fiscal emitir espontaneamente a correspondente nota de crédito;
III - A recusa, pela Administração Tributária, em apurar o montante de imposto pago a mais constitui um acto confiscatório.
Nº Convencional:JSTA000P25533
Nº do Documento:SA22020020501011/02
Data de Entrada:12/21/2016
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – O Representante da Fazenda Pública interpôs recurso da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, em 26 de Abril de 2016, que julgou procedente a impugnação judicial, deduzida A…………, do acto de indeferimento da reclamação graciosa relativo ao pedido de revisão da liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do exercício de 1993, no montante global de 16.556.107$00, tendo apresentado, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:
1.º A douta decisão de que se recorre não traduz uma correcta interpretação e aplicação da lei e do direito, em prejuízo da apelante. Na verdade,
2.º Situamo-nos no âmbito do IRS e como tal, cumpre referir que não há aqui qualquer autoliquidação, pois tais situações apenas são enquadráveis em sede de IRC e IVA, como tal aqui, nesta sede apenas se pode falar em autolançamento.
3.º Como tal, se há autolançamento e este foi feito de forma errada, apenas pode ser imputável ao comportamento do impugnante, pois não há qualquer erro imputável aos serviços, nem sequer chamando à colação a equiparação do erro na autoliquidação a erro dos serviços, pois conforme se explanou supra, não há autoliquidação.
4.º Os requisitos para a existência de duplicação de coleta encontra-se no artigo 205.º do CPPT (anteriormente no art. 287.º do CPT), e são cumulativamente três:
- unicidade dos factos tributários;
- identidade da natureza entre a contribuição ou o imposto e o novo que se exige;
- coincidência temporal do imposto pago e o que de novo se pretende cobrar.
5.º Ora, estando perante declarações respeitantes a anos diferentes (1992 e 1993), verifica-se desde logo a falta do 3.º requisito, porquanto não existe coincidência temporal entre o imposto pago e o que se pretende cobrar.
6.º A realidade fática subjacente às liquidações não é a mesma, pelo que não pode prevalecer a argumentação expendida pelo tribunal a quo. Veja-se até o volte face que deu na sentença, quando refere que "Com acerto foi refutado na decisão diretamente impugnada que a situação retratada se constituísse numa duplicação de coleta, porque esta tem ínsita, nos impostos periódicos, uma incidência temporal reiterada em sucessivos atos que intendem uma mesma tributação", para a seguir dar o dito pelo não dito, entrando assim em clara contradição na argumentação e fundamentação.
7.º Cumpre dizer que a situação dos autos apenas poderia ser enquadrada como inexistência de facto tributário e não como duplicação à coleta, mas isso não poderia ser feito no âmbito de revisão do acto tributário, pois não há, como se expôs, qualquer erro imputável aos serviços, mas sim ao próprio contribuinte, pelo que, funciona em pleno o princípio do auto responsabilização das partes.
8.º Por conseguinte, salvo o devido respeito, que muito é, o Tribunal a quo, lavrou em erro de interpretação e aplicação do direito e dos factos, nos termos supra explanados, assim como não considerou nem valorizou como se impunha a prova documental que faz parte dos autos em apreço.
TERMOS EM QUE,
Deve ser admitido o presente recurso e revogada a douta decisão da primeira instância, julgando improcedente a impugnação judicial, com todas as consequências legais.
Em decidindo, Vossas Excelências farão a costumada Justiça!».

2 – A Recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído do seguinte modo:
A. «O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou totalmente procedente a impugnação judicial apresentada pelo ora Recorrido, a qual tinha por objeto a apreciação jurisdicional da liquidação de Imposto sobre os Rendimentos das Pessoas Singulares ("IRS") referente ao exercício de 1993.
B. Na ótica do Tribunal a quo, e em sintonia com a posição defendida nos autos pela ora Recorrida, impunha-se à Administração Tributária a revisão oficiosa da liquidação de IRS relativa ao ano de 1993 por a mesma sujeitar a tributação rendimentos já sujeitos a imposto no ano de 1992.
C. Da prova junta aos autos, resulta claramente que a Administração Tributária teve conhecimento, em diversas fases do processo, de que o Recorrido havia pago duas vezes imposto sobre o mesmo rendimento.
D. Conforme confirmado pelo Douto Tribunal a quo, "tal como numa duplicação de colecta se verifica aqui a identidade substantiva da tributação de um facto que o novo ato retoma, em relação àquele da tributação já exaurida, embora no caso os atos em confronto surjam temporalmente invertidos em relação aos casos comuns, apenas porque é a liquidação adicional - ato sucessivo - aquela que se reporta ao ano anterior (1992) e o ato - originário e mais antigo - de que é pedida revisão, o referente ao ano posterior (1993). Mas o essencial do que aqui releva confirma-se: como na duplicação de colecta, cada um dos atos procede, parcialmente embora, a uma mesma tributação, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, de um mesmo rendimento".
E. Na origem do presente processo encontra-se o facto, indubitável, de o Recorrido ter pago por duas vezes imposto sobre uma mesma e única realidade tributável (rendimentos legalmente percebidos em 1992).
F. Termos em que o pedido de revisão oficiosa deveria ter sido aceite e dado como procedente.
G. Contudo, em lugar de ter procedido à revisão oficiosa da liquidação referente ao ano de 1993, a Administração Tributária, reconhecendo o erro na liquidação de 1993, aconselhou o Recorrido a apresentar reclamação graciosa da referida liquidação, meio processual que sequer era o adequado.
H. Por diversas vezes foi também criada no Recorrido a expectativa de que a Administração Tributária iria proceder à regularização da situação tributária em análise.
I. Porém, a Administração Tributária optou sempre por não tomar qualquer atitude, retendo para si o imposto indevidamente pago pelo Recorrido com relação ao ano 1993.
J. No entender do Recorrido, é evidente que no caso sub judice há lugar a um erro (grosseiro) nos pressupostos de facto e de direito pela parte dos serviços da Administração Tributária, que optaram por manter a liquidação de imposto referente ao ano de 1993 não obstante terem pleno conhecimento de que este imposto havia também sido pago com relação à liquidação de 1992.
K. De onde se conclui que a Administração Tributária incorreu em erro imputável aos serviços o que motivaria a revisão oficiosa da liquidação de 1993.
L. Com efeito, é jurisprudência firmada do Supremo Tribunal Administrativo que: "O dever de a Administração efetuar a revisão de atos tributários, quando detectar uma situação de cobrança ilegal de tributos, existe em relação a todos os tributos, pois os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a administração tributária tem de observar na globalidade da sua actividade (art. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT), impõem que sejam oficiosamente corrigidos, dentro dos limites temporais fixados no art. 78.º da LGT, os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de quantias de tributos que não são devidas à face da lei".
M. A revisão oficiosa surge, nesta medida, como um poder-dever da Administração Tributária que não poderá ser ignorado.
N. Nem a situação exposta se dá por resolvida ao abrigo de um alegado princípio de "autorresponsabilização das partes"
O. Há quase 20 anos que o recorrido levou ao conhecimento da Administração Tributária o facto de haver pago duas vezes imposto.
P. Não só a Administração Tributária nada fez quanto a este tema como aconselhou ainda o Recorrido a seguir uma via processual que sequer era a mais adequada.
Q. É inerente aos mais básicos princípios do Estado de Direito que a "responsabilização" da Administração Tributária signifique, pelo menos, a não arrecadação do imposto indevidamente cobrado.
R. Termos em que a tese 'apresentada pela Fazenda Pública nas suas alegações não pode proceder.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que doutamente serão supridos, deve o recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente no que respeita às questões materiais controvertidas, requerendo-se a confirmação da decisão proferida pelo tribunal a quo no sentido de anulação do ato tributário ora sindicado, com base nos fundamentos acima melhor expostos, tudo com as devidas consequências legais, mormente o reconhecimento do direito ao Recorrido ao reembolso do imposto indevidamente pago».


3 – O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso (não obstante, por lapso manifesto que se infere com meridiana clareza, na conclusão do parecer escreveu o seguinte “Termos em que, salvo melhor opinião, deve dar-se provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida na ordem jurídica”) por considerar que a AT, em inúmeros momentos, teve conhecimento de que existia uma situação de dupla tributação do mesmo rendimento nos anos de 1992 e 1993.

4 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

II – Fundamentação

1. De facto
Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1. O Impugnante, A…………, Advogado, sócio de ………., Sociedade de Advogados, pelo menos nos anos de 1992-1993, entendeu que deveria declarar os rendimentos auferidos dessa sociedade profissional, sujeitos ao regime de «transparência fiscal» quando os percebesse ou fossem postos à sua disposição e não no exercício em que haviam sido contabilizados naquela.
2. Assim, quando com sua mulher procedeu à respetiva declaração conjunta de rendimentos para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do ano de 1992, em 16 de abril de 1993, relativamente àquele ano, o Impugnante não declarou como rendimento proveniente da sociedade profissional de que fazia parte, o que dela auferira, na quantia de 16.556.107$00.
3. Nesses termos lhes foi elaborada pela Administração Tributária a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 5608668822, em 21 de setembro de 1993.
4. Mas, naquela mesma linha de pensamento referida, o Impugnante, na declaração de rendimentos para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do ano de 1993, que com sua mulher apresentou em 2 de maio de 1994, declararia aqueles rendimentos referidos em 2 ..
5. E foi também nesses termos que lhes foi elaborada pela Administração Tributária a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 5112353545, em 31 de outubro de 1994.
6. O Impugnante e mulher procederiam oportunamente ao pagamento da dívida de impostos originada por esta liquidação.
7. Porém, o Impugnante e mulher foram notificados, em inícios de 1996, de que os rendimentos de 1992, referidos no ponto 2., lhes seriam imputados nesse mesmo ano, por terem sido oportunamente omitidos na declaração ali referida.
8. Assim, ser-lhes-ia elaborada em 23 de junho de 1997 a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 5322086888 relativa a 1992, que por fim incluiu aqueles rendimentos do ponto 2., da categoria B, do Impugnante, determinando inclusive reposição de reembolso que a liquidação do ponto 3, havia determinado, além de juros compensatórios.
9. A dívida de imposto e de juros compensatórios [estes na parte em que não foram depois anulados], determinada por tal liquidação adicional foram pagos pelo Impugnante e mulher.
10. Poucos meses depois, em ação inspetiva [ordens de serviço n.ºs 21628, 21629 e 21630, de 6 de agosto de 1997] a Administração Tributária, confirmando que o Impugnante cumpria irregularmente a sua parte no regime de «transparência fiscal», conforme inicialmente referido, notificou-o a 18 de setembro para que em 15 dias apresentasse declarações de substituição das originalmente apresentadas, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, e relativamente aos anos de 1993, 1994 e 1995, sob pena de lhe serem oficiosamente fixados os seus rendimentos.
11. A essa notificação correspondeu o Impugnante no dia 25 desse mês, incluindo agora nas declarações os rendimentos percebidos da sociedade profissional de acordo com o ano da respetiva imputação temporal.
12. No relatório da ação inspetiva, de 10 de outubro de 1997, caucionou-se o entendimento de que, relativamente ao ano de 1993, porque a correção a operar era, consequentemente - em face, nomeadamente, do consignado nos pontos e 8.- 9. em conjugação com o consignado no ponto 11, - favorável ao Impugnante e mulher, seria de remeter ao Serviço de Finanças da sua área de residência, o DC2 e respetivos anexos elaborados com as correções, pois que entretanto o Impugnante aí suscitara reclamação graciosa, nos termos dos «arts. 23º e 95º do Código de Processo Tributário», sobre a sua tributação em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do ano de 1993, referida no ponto 5., «conforme doutrina da Administração Tributária».
13. Tal entendimento foi aprovado, por despacho de 22 de outubro de 1997.
14. E de facto, a 26 de setembro de 1997 o Impugnante suscitara uma reclamação graciosa no Serviço de Finanças de Lisboa 2, a que coube o n.º 324797/5003598, em que expunha que apresentara declarações de substituição, tal como lhe fora determinado pela Administração Tributária, das originárias que tinha apresentado relativamente aos anos de 1993, 1994 e 1995 e que, por outra parte, o valor referido no ponto 2. constava já, corretamente, da declaração oficiosa corretiva e subsequente liquidação adicional, elaboradas pela Administração Tributária, relativamente ao ano de 1992, pelo que pedia que, para impedir que em 1993 aquele mesmo rendimento fosse mantido como objeto de tributação (em conjugação com a liquidação do ponto 8.), fosse revista a liquidação mencionada no ponto 5. - expurgando-a desse específico rendimento de 1992.
15. Justificava ainda esse seu proceder porque fora induzido em erro pela Administração Tributária, que o fizera crer que iria proceder à correção oficiosa da liquidação referente a 1993 (tal como providenciara em relação às outras), que por isso não impugnara oportunamente.
16. Tendo percorrido a devida tramitação, esse procedimento viria a ter decisão de indeferimento, de 30 de setembro de 2002, já como pedido de revisão oficiosa da liquidação do ponto 5., nos termos dos arts. 93º-95º do Código de Processo Tributário, com fundamento em que:
1. não se descortinava na atuação da Administração Tributária a assunção de que iria proceder à correção oficiosa da liquidação consignada sob o ponto 5., nem qual o ato por ela praticado que o determinasse;
2. por outra parte, para a revisão oficiosa necessário era ou que houvesse duplicação de coleta, a qual estava ausente porque a tributação indicia sobre dois períodos distintos, ou que não houvesse facto tributário, mas este não era idêntico em 1992 e 1993, pelo que o facto tributário se não repetia/não existia num ano e não existia no outro.
17. Notificado dessa decisão a 7 de outubro de 2002, no dia 22 seguinte o Impugnante apresentou contra ela a petição na origem dos presentes autos - apresentando ainda a 8 de novembro seguinte petição de recurso hierárquico a que, portanto, não foi dada sequência».
Na sentença afirma-se ainda não existirem factos não provados relevantes para a decisão.


2. Questão a decidir
Saber se o Tribunal Tributário de Lisboa fez uma correcta interpretação do direito ao anular a decisão de indeferimento do pedido de revisão da liquidação de IRS relativa ao ano de 1993.

3 – Do direito

3.1. O recurso que vem interposto pelo Representante da Fazenda Pública relativamente à decisão de anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão da liquidação de IRS do Recorrido, respeitante ao exercício de 1993, consubstancia, como veremos, um caso em que o mesmo rendimento é, aparentemente, tributado duas vezes, factualidade que, a provar-se, e como se defende na sentença do Tribunal a quo, se há-de reconduzir ao regime jurídico da duplicação de colecta. Vejamos.

3.2. Os factos dados como provados na sentença do Tribunal Tributário de Lisboa podem resumir-se, no que importa para a solução do presente recurso, no seguinte:

i) o Recorrido obteve rendimentos tributáveis em IRS ao abrigo do regime de imputação especial do então artigo 19.º do CIRS (actualmente artigo 20.º do CIRS), rendimentos que foram obtidos em 1992 pela sociedade em regime de transparência fiscal, mas que apenas foram colocados à sua disposição em 1993 e, por essa razão, o Recorrido apenas os declarou em 1994, respeitantes ao exercício de 1993, e não, como deveria, em 1993, por referência ao exercício de 1992, por ter sido esse o ano da imputação temporal dos rendimentos;

ii) tal ilegalidade foi corrigida pela liquidação adicional respeitante ao ano de 1992, emitida em 23 de Junho de 1997, que contemplou, inclusive, os correspondentes juros compensatórios, ambos pagos pelo aqui Recorrido;

iii) em consequência, o agora Recorrido apresentou, em 1997, declarações de substituição respeitantes aos anos de 1993, 1994 e 1995;

iv) porém, a declaração de substituição respeitante ao ano de 1993 acabaria por dar um resultado favorável ao sujeito passivo, porquanto nela se havia imputado, anteriormente, o rendimento respeitante à sociedade de advogados do ano de 1992;

v) acresce ainda que, com o intuito de obter a devolução do imposto pago a mais em razão daquele erro (entretanto corrigido pela entrega da declaração de substituição referente ao exercício de 1992 e pelo pagamento do imposto em falta respectivo), o sujeito passivo havia apresentado (em 26 de Setembro de 1997) reclamação graciosa respeitante ao acto de liquidação do IRS de 1993;

vi) esta reclamação graciosa, entretanto convolada em pedido de revisão oficiosa (artigos 93.º e 94.º do Código de Processo Tributário), seria indeferida em 30 de Setembro de 2002, tendo a AT considerado que não havia duplicação de colecta, porque a tributação dizia respeito a dois períodos distintos, e a factualidade também se não reconduzia a um caso de duplicação de facto tributário.

Em suma, o Recorrente alega que tendo procedido à entrega da declaração de substituição relativamente aos rendimentos de 1992, onde imputou o rendimento auferido na sociedade de advogados respeitante a esse exercício, caberia depois, em sede de revisão do acto tributário relativo ao exercício de 1993, promover a correcção simétrica inversa a seu favor no que respeita aos rendimentos de 1992 e que inicialmente haviam sido inscritos na declaração de rendimentos de 1993.

3.3. E é essa, no essencial, a tese sufragada na sentença recorrida, que reconduz a factualidade a um caso de duplicação de colecta. Neste sentido pode ler-se a seguinte passagem da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa: “Em suma, o confronto da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares com o nº 5322086888, de 23 de junho de 1997, relativa ao ano de 1992, com a liquidação originária nº 5112353545, de 31 de outubro de 1994, relativa ao ano de 1993, exibe uma reiterada tributação de um rendimento, na quantia de 16.556.107$00, cuja consideração em ambos atos se gerou pela sua consideração, legal, naquela liquidação adicional e na simultânea ausência de revisão, ilegal, desta última, porque nela se continha já originariamente, o que impunha a sua revisão oficiosa, não só porque viola o que é exigível de entidades legalmente vinculadas que agem de acordo com a lei, como porque ofende um sentimento comum do que é justo e é de direito, bem como porque a tanto concitavam as normas de tributação aplicáveis citadas inicialmente como, e ainda, o disposto no art.95º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Tributário”.

3.4. Porém, o que resulta da matéria de facto dada como provada é que a declaração de substituição que foi entregue pelo Recorrido relativamente ao exercício de 1993 (para aí imputar a sua parte dos rendimentos auferidos pela sociedade de advogados e que, erradamente, havia imputado ao exercício de 1994 e incluído na declaração de rendimentos desse ano), na qual terá sido substituído o valor do rendimento auferido da sociedade de advogados em 1992 pelo rendimento auferido da mesma em 1993, resultou a imputação de um rendimento inferior ao de 1992 e, essa correcção não deu origem, como deveria, a uma “correcção do montante da colecta” a favor do sujeito passivo.

Neste sentido afirma-se na sentença do Tribunal a quo o seguinte “nesta segunda via [referindo-se à apresentação pelo sujeito passivo e aqui Recorrido de declarações de substituição respeitantes aos anos de 1993, 1994 e 1995], antes desse desiderato final, a Administração Tributária observou e concluiu, em face das declarações de substituição e demais elementos prestados/reunidos, que as correções a efetuar, relativamente ao ano de 1993, eram de sentido inverso àquele que previra ou supusera. É que não haveria lugar a liquidação adicional alguma quanto a esse ano, pelo contrário: é que os rendimentos daquela natureza que haviam sido declarados não só já entretanto tinham sido objeto de correcção e da devida tributação pela referida liquidação adicional... referente ao ano de 1992, a que pertenciam, como permaneciam na tributação da liquidação vigente de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares do Impugnante, do ano de 1993”

Por outras palavras, o problema suscitado pela apresentação da declaração de substituição dos rendimentos de 1993 (mesmo depois de imputados os rendimentos auferidos por via da sociedade de advogados nesse ano) é que o valor da colecta correspondente à liquidação desses rendimentos era inferior ao valor que resultara da colecta da primeira liquidação, em que haviam sido indevidamente imputados os rendimentos provindos da sociedade de advogados respeitantes a 1992. Dúvidas não restam de que o sujeito passivo tem direito à devolução da diferença do valor que se venha a apurar em resultado do imposto calculado segundo a declaração de substituição. Uma diferença que deveria, de resto, ter sido espontaneamente calculada pela Administração Tributária e ter dado lugar à emissão da nota de crédito a favor do sujeito passivo, fosse no seguimento das diligências da acção inspectiva de 1997 (v. ponto 12 da matéria de facto), fosse depois no âmbito do pedido de revisão resultante da convolação da reclamação graciosa (v. ponto 16 de matéria de facto).

3.5. Nem outra solução se afigura admissível à luz do direito, quer porque existe uma duplicação parcial dos mesmos rendimentos tributados que consubstancia uma duplicação parcial de colecta, quer porque a recusa, pela Administração Tributária, de devolução do imposto a mais do que aquele que se apurou ser devido à luz das regras jurídico-tributárias (ou seja a não devolução ao sujeito passivo da diferença entre o valor por ele já pago a título de IRS de 1993 e o valor que foi apurado à luz da declaração de substituição entregue em 1997) constitui um acto confiscatório.

3.6. Por isso, a decisão do Tribunal Tributário de Lisboa de anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão da liquidação de IRS, relativa ao ano de 1993 é correcta, embora não esteja inteiramente correcto o pressuposto em que a mesma expressamente se baseia.

Em outras palavras, há que anular o acto administrativo de indeferimento do pedido de revisão e o acto de liquidação (“a liquidação n.º 5112353545, de 31 de outubro de 1994, relativa ao ano de 1993”), mas não para abranger, como se afirma na sentença “a parte em que tributa rendimento do Impugnante, da categoria B de então, na quantia de 16.556.107$00, proveniente de sociedade profissional a que pertence, mas respeitante ao ano de 1992 e já considerado na correspondente liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, relativa a este ano”, e sim para praticar novo acto de liquidação e apurar o montante de imposto a favor do sujeito passivo a título de diferença entre o valor da liquidação do IRS de 1993, apurado de acordo com a declaração originalmente entregue, e o valor apurado na liquidação de substituição do ano de 1993, entregue em 1997. Sendo o pedido de revisão o meio adequado para obter a tutela do direito, na medida em que na parte em que existe duplicação de tributação e imposto pago a mais pode funcionalmente dizer-se que a situação é reconduzível a um caso de duplicação parcial de colecta, como concluiu o Tribunal a quo.

A recusa da Administração Tributária praticar os actos necessários à regularização da situação tributária do sujeito passivo, designadamente o montante de imposto pago a mais relativo ao IRS de 1993 constitui um acto confiscatório.

Conclusões
Assim, podemos concluir, relativamente à questão em apreço, que:
- sempre que um sujeito passivo declare o mesmo rendimento em dois períodos de tributação diferentes e pague, em ambos, o imposto que vier a ser liquidado, estaremos ante um caso de duplicação parcial de colecta;
- se o sujeito passivo apresentar posteriormente, no prazo dos quatro anos de que a Administração Tributária dispõe para rever os actos tributários (artigo 94.º do CPT, hoje artigo 78.º da Lei Geral Tributária), uma declaração de substituição respeitante ao período em que o rendimento havia sido incorrectamente imputado, resultando dessa declaração o apuramento de um montante de imposto devido inferior ao que foi por ele pago anteriormente, deve a Administração Fiscal emitir espontaneamente a correspondente nota de crédito;
- a recusa, pela Administração Tributária, em apurar o montante de imposto pago a mais constitui um acto confiscatório.

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em confirmar a sentença recorrida com distinta fundamentação, assim negando provimento ao recurso.


Custas pela Recorrente [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário].

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2020. – Suzana Tavares da Silva (relatora) – Nuno Bastos – Francisco Rothes.