Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:011/16.4BELRS
Data do Acordão:07/03/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32479
Nº do Documento:SA220240703011/16
Recorrente:A... LIMITED
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A... LIMITED, Recorrente nos autos à margem referenciados, tendo sido notificada do douto acórdão de 29 de fevereiro de 2024, que julgou improcedente o recurso por si apresentado, vem, nos termos do disposto no artigo 285.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), interpor recurso de revista daquele acórdão, apresentando as suas alegações.

Concluiu nos seguintes termos:
1.º Considera a Recorrente ter o Tribunal recorrido incorrido em erro de julgamento na interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços”, previsto no n.º 2, do artigo 53.º, da LGT;
2.º Em concreto, no âmbito do presente recurso, coloca-se a seguinte questão: 1) A notificação do ato de liquidação após o término do prazo de caducidade do direito à liquidação, atendendo a que a própria emissão do ato se verificou extemporânea e a que se encontra demonstrada a existência efetiva de prejuízos para o contribuinte, é considerada um erro imputável aos serviços para efeitos do n.º 2, do artigo 53.º, da LGT?
3.º Entende a Recorrente que resulta evidente a necessidade de intervenção do Supremo Tribunal Administrativo no caso sub judice, impondo-se a revista para uma melhor aplicação do Direito e por se tratar de uma questão de importância jurídica e social fundamental;
4.º A questão efetuada reporta-se à interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços” para efeitos da atribuição da indemnização por prestação indevida de garantia, prevista no n.º 2, do artigo 53.º, da LGT;
5.º Verificam-se dissensões acerca da interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços” no seio da doutrina e também no âmbito da jurisprudência;
6.º No que à doutrina diz respeito, JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, GONÇALO BULCÃO, JOSÉ RAMOS e MARIA JOÃO MENEZES, por exemplo, insurgem-se contra a distinção entre os conceitos de “erro” e “vício”, propugnando, ao invés, que tais conceitos se devem tomar por equiparáveis, atendendo ao princípio da legalidade e à função reparadora que visa o artigo 53.º desempenhar e, assim, que a indemnização pela prestação indevida de garantia deverá ser atribuída independentemente da ilegalidade cometida pelos serviços da administração tributária;
7.º Também ao nível da jurisprudência se verificam distintas posições no tocante à interpretação do conceito em causa, tendo o Ilustre Conselheiro JORGE LOPES DE SOUSA, em decisão arbitral por si proferida no processo n.º 239/2016-T, de 24.02.2017, referido que, visando o artigo 53.º da LGT facilitar aos contribuintes a reparação a que constitucionalmente têm direito, o princípio da igualdade impõe que esse direito seja reconhecido a todos os contribuintes que tenham suportado encargos por via da prestação de garantia por ter sido praticado um ato ilegal;
8.º Indica, ainda, o Ilustre Conselheiro dever esta indemnização ser concedida nos casos em que se verifica a caducidade do direito de liquidar;
9.º Também o Supremo Tribunal Administrativo já neste sentido se pronunciou, tendo no seu acórdão de 02.11.2011 entendido que o direito à indemnização prevista no artigo 53.º se verifica igualmente nos casos em que a ilegalidade do ato tributário surge após a liquidação (cf. acórdão do STA, de 02.11.2011, proferido no processo n.º 0208/11);
10.º As dissensões verificáveis no seio ora da doutrina ora da jurisprudência bem retratam a complexidade do conceito de “erro imputável aos serviços”, decorrendo esta, na verdade, do facto de a interpretação a efetuar do conceito em causa se pautar por um exercício hermenêutico exigente, que implica a conjugação do elemento literal da norma do n.º 2, do artigo 53.º, com o seu elemento teleológico, isto é, com a função reparadora que se lhe associa, e, ainda, com outros importantes preceitos, tais como o artigo 100.º da LGT e o artigo 22.º da CRP.
11.º Além de se caracterizar pela sua importância fundamental, a questão que ora surge é suscetível de se erguer em outros tantos casos, pois que, não raras vezes, os contenciosos encetados pelos contribuintes, após a prestação de garantia destinada à suspensão do processo de execução fiscal, desembocam na verificação de ilegalidades, as quais se podem reputar de materiais ou procedimentais;
12.º É, assim, inequívoca a capacidade de expansão da controvérsia em apreço e de repetição em inúmeros casos futuros, vislumbram-se a admissão do presente recurso de revista, por isso, necessária para uma melhor aplicação do Direito;
13.º Nos autos da oposição judicial que, adiante, viria a originar a ação de execução de julgados que desembocou no presente recurso de revista, decidiu o Tribunal a quo pela procedência da oposição, atendendo a que as liquidações em crise se apresentavam ineficazes dada a falta da sua notificação antes da instauração da execução fiscal;
14.º Com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa não se conformou a Fazenda Pública, dela tendo interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo, no seio do qual decidiu este douto Tribunal que a sentença proferida em primeira instância era de manter, pois a falta de notificação das liquidações, atendendo, no mais, a que a oponente, aqui Recorrente, não houvera sido delas notificada antes da instauração do processo de execução fiscal, constituía fundamento de oposição à execução, determinante da extinção da execução;
15.º Atento o teor do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, o seu trânsito em julgado sem que tenha tido lugar a sua execução e, ainda, o facto de a Recorrente ter incorrido em custos para efeitos da prestação e manutenção de garantia bancária destinada a suspender o processo de execução fiscal, desencadeou esta a competente ação de execução de julgados na origem do presente recurso de revista, nela peticionando que lhe fosse reconhecido o direito a receber a indemnização por prestação indevida de garantia, prevista no artigo 53.º da LGT;
16.º O Tribunal Tributário de Lisboa, socorrendo-se do entendimento jurisprudencial que, mobilizando uma interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 53.º da LGT, determina apenas ter lugar o pagamento desta indemnização quando o vício de que enferma a liquidação se traduza num erro sobre os pressupostos de facto ou de direito, negou procedência à ação, decidindo que, pelo facto de o vício em causa ser um tal procedimental, a Exequente, aqui Recorrente, não mantinha o direito a ser ressarcida;
17.º A Recorrente interpôs recurso de tal sentença para o Tribunal Central Administrativo, tendo este douto Tribunal, em sede de duplo grau de jurisdição, aderido à fundamentação esgrimida pelo Tribunal de primeira instância, assim negando o reconhecimento da pretensão indemnizatória da Recorrente por não estar em causa um erro sobre os pressupostos de facto ou de direito e, bem assim, um “erro imputável aos serviços”;
18.º Com efeito, concluiu o Tribunal Central Administrativo Sul que “(…) o conceito de “erro imputável aos serviços”, quer para efeitos do artigo 43.º, n.º 1, quer para efeitos do artigo 53.º, n.º 2, ambos da LGT, é entendido como o “erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Tributária””, de seguida reiterando que “(…) nenhuma censura merece a decisão recorrida, na medida em que, encontrando-se assente que a garantia não foi prestada por período superior a três anos, e que o vício que fundou a procedência e determinou a inexigibilidade da dívida se coadunou com a falta de notificação dentro do prazo de caducidade, o mesmo não é passível de qualificação como erro imputável aos serviços, não legitimando, assim, qualquer direito a indemnização por prestação indevida ao abrigo do artigo 53.º da LGT.” (cf. p. 24 do acórdão recorrido).
19.º Por este motivo entende a Recorrente ter o Tribunal recorrido incorrido em erro de julgamento de direito na interpretação do conceito ora em causa;
20.º Não tendo colocado em causa o facto de a Recorrente ter prestado garantia bancária, nem o de que esta prestação lhe causou prejuízos, entendeu o Tribunal recorrido que não se encontrava demonstrada a existência de um qualquer erro suscetível de imputação aos serviços no âmbito da liquidação de IVA referente a julho de 2005, e correspondentes juros compensatórios;
21.º Mobilizou o Tribunal recorrido, para a formação da sua convicção e, assim, para a interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços”, jurisprudência que determina somente importar para efeitos de indemnização por prestação indevida de garantia o erro sobre os pressupostos de facto ou de direito da liquidação;
22.º Por conseguinte, entende o Tribunal recorrido que os vícios formais ou procedimentais de que o ato tributário possa padecer nada revelam sobre o seu carácter devido e, por isso, nada indicam sobre o eventual prejuízo que o contribuinte tenha sofrido;
23.º Nos termos da interpretação efetuada pelo Tribunal recorrido, não vislumbram os contribuintes o direito à indemnização prevista no artigo 53.º da LGT nas situações em que, pese embora a prestação da garantia lhes tenha provocado prejuízos, a notificação do ato tributário somente tenha ocorrido após o término do prazo de caducidade do direito de liquidar o tributo ou, mais rigorosamente e tal como sucedeu nos autos da execução de julgados que antecede o presente recurso, nos casos em que se tenha verificado a completa ausência de notificação antes da instauração do processo de execução fiscal;
24.º Isto é, de acordo com o entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido, não obstante a prestação de garantia envolva, em qualquer caso, um prejuízo para o contribuinte, que sempre incorrerá em custos para esse efeito, este somente terá direito ao ressarcimento das suas despesas na eventualidade de a ilegalidade cometida pela administração tributária se reputar por material e não formal;
25.º A interpretação assim efetuada pelo Tribunal recorrido, atento o seu carácter restritivo e eminentemente literal, não se coaduna com a teleologia subjacente ao instituto da indemnização por prestação indevida de garantia, nem tão pouco, com importantes preceitos, de cariz infraconstitucional e constitucional;
26.º Subjaz ao instituto da indemnização por prestação indevida de garantia uma importante função reparadora, pensada e consagrada pelo legislador com objetivo de que os contribuintes se encontrem, em qualquer caso, protegidos face à atuação ilegítima da administração tributária;
27.º O conceito de “erro imputável aos serviços” deverá compreender, para que a função reparadora associada ao artigo 53.º se desempenhe na íntegra, os conceitos de “ilegalidade” e de “inexigibilidade”, assim se permitindo que o sujeito passivo tenha, independentemente do momento em que se verifica a atuação em desconformidade à Lei por parte da administração tributária, direito a ser ressarcido pelos prejuízos causados por tal ilicitude;
28.º Assim deverá ser, desde logo, porque a administração tributária se encontra, tanto no plano substantivo, como no plano procedimental, sujeita ao princípio da legalidade, mantendo os contribuintes, por isso, o direito à legalidade material e formal dos atos tributários que a si dizem respeito;
29.º Tal direito, diga-se, decorre da própria CRP, em cujo artigo 103.º, n.º 3, se indica que “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”;
30.º Posto isto, deverá ter lugar a indemnização por prestação indevida de garantia sempre que, tendo o sujeito passivo prestado garantia para suspender a execução da dívida tributária, o ato tributário em crise venha a ser declarado ilegal pela existência de um qualquer vício que, não sendo da sua responsabilidade, é inteiramente imputável à administração tributária;
31.º Entendemos, portanto, que os conceitos de “erro” e de “vício” não deverão ser objeto de distinção, mas, ao invés, de equipação;
32.º A ação de liquidação deve ser entendida em sentido amplo, isto é, como não envolvendo apenas o cálculo aritmético que permite o apuramento do montante de imposto a ser pago, e, nesta senda, devem os vícios verificados ao nível da notificação dos atos tributários, e cujas consequências poderão ser diversas, igualmente fundamentar a atribuição de indemnização por prestação indevida de garantia;
33.º No mais, a interpretação restritiva preconizada pelo Tribunal recorrido, nos termos da qual somente parte dos contribuintes mantêm o direito à indemnização por prestação indevida de garantia, os destinatários de atos tributários que padeçam de vícios materiais e não formais, colide com o princípio da igualdade;
34.º Da jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 176/2023, de 30.03.2023, decorre, em súmula, que o juízo de comparabilidade de comparabilidade a efetuar sobre as situações objeto de análise por forma a verificar se o diferente tratamento que lhes esteja a ser concedido torna, ou não, a que resulte frustrado o princípio da igualdade, se deve reportar à substância de tais situações, não se limitando aos seus contornos meramente formais;
35.º A situação de um contribuinte cuja dívida tributária não lhe é exigível porque padece de um vício formal é substancialmente igual à de um contribuinte cuja dívida não lhe pode ser cobrada atento o vício material de que enferma, pois, em ambas as situações o contribuinte suportou custos com a prestação e manutenção de garantia, tendo neles apenas incorrido por forma a suspender a execução de uma dívida que, de todo o modo, não lhe deveria ser cobrada atenta a sua ilegalidade;
36.º A não atribuição de indemnização por prestação indevida de garantia diante da violação do princípio fundamental de notificação, assume-se como uma restrição ilegítima de um direito do contribuinte tão ou mais gravosa do que idêntica restrição quando está em causa um erro sobre os pressupostos de facto ou de direito;
37.º Assim sendo, porque a notificação, enquanto um dos mais elementares princípios do procedimento, corresponde a um importante direito dos contribuintes porquanto lhes permite, ao possibilitar-lhes o seu conhecimento sobre os atos que contra si são praticados, escrutinar a sua legalidade e, assim, optar pela sua aceitação ou impugnação;
38.º Com efeito, o direito à válida notificação é igualmente um direito que visa a proteção dos contribuintes contra a atuação ilegal da administração tributária, sendo a exigência de que um ato não produza efeitos ablativos enquanto não for validamente notificado ao contribuinte uma consequência da função garantística do valor do Estado de Direito;
39.º O facto de os atos tributários em causa se reputarem, em sentido estrito, por ineficazes e não por inválidos, atendendo a que a notificação é, em rigor, condição de eficácia e não de validade, em nada prejudica a pretensão indemnizatória da Recorrente, devendo esta ser, ainda assim, reconhecida;
40.º Com efeito, reconheceu já o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 02.11.2011, proferido no processo n.º 0208/11, que não apenas os atos de liquidação errada justificam a indemnização, mas ainda os atos de execução ilegais;
41.º Negar a indemnização por prestação indevida de garantia nos casos em que é incumprido o dever de notificação, com o fundamento de que o contribuinte poderá não ter razão no que toca à “relação material tributária subjacente”, nada mais significa do que fazer recair sobre os contribuintes, aqueles que a lei visa proteger, as consequências atinentes ao desrespeito das normas jurídicas por quem a elas está vinculado;
42.º A interpretação que, assim, preconiza a Recorrente é uma tal que não assenta somente no elemento literal da norma elencada no n.º 2 do artigo 53.º, antes assentando também no seu elemento teleológico, possibilidade que decorre do facto de as normas fiscais se interpretarem nos mesmos termos que as demais normas de direito;
43.º O elemento teleológico, por nos evidenciar qual a intenção do legislador ao estatuir determinada norma, é deveras importante, devendo estabelecer-se qual a teleologia subjacente ao n.º 2 do artigo 53.º;
44.º Ao instituto da indemnização por prestação indevida de garantia está associada uma importante função reparadora, visando o mesmo, na prática, mitigar as consequências que da atuação ilícita da administração tributária resultam para o contribuinte;
45.º Os montantes em que incorre o sujeito passivo para efeitos da prestação de garantia tendente a suspender a execução fiscal traduzem-se em gastos tão somente efetuados porque a administração tributária não atuou em conformidade com o disposto na Lei, pelo que, necessariamente, se tem de estabelecer ser consequência dessa atuação contra legem, o ressarcimento dos custos em que incorreu o contribuinte;
46.º O cariz indemnizatório por que se pauta o instituto da prestação indevida de garantia é igualmente identificável no instituto dos juros indemnizatórios, sendo também ao nível deste último, e porque no artigo 43.º da LGT o legislador igualmente utiliza a expressão “erro imputável aos serviços”, efetuada a distinção entre “erro” e “vício”;
47.º Também quanto ao instituto dos juros indemnizatórios não colhe o entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido, devendo os conceitos de “erro” e de “vício”, também neste âmbito, ser objeto de equiparação, e não de distinção, dado que, independentemente da ilegalidade cometida pela administração tributária, os contribuintes sofrem prejuízos, sendo esse prejuízo, na verdade, idêntico seja o vício em causa um tal material, seja um vício de natureza procedimental;
48.º Resulta do artigo 100.º que a administração tributária, pela anulação de um ato tributário, deverá proceder à eliminação de todos os seus efeitos ex tunc, assim reconstituindo a situação que hipoteticamente existiria se tal ato ilegal não tivesse sido praticado;
49.º Num caso como aquele com que ora nos deparamos, em que o sujeito passivo prestou garantia bancária para que tivesse lugar a suspensão da execução fiscal, os custos por si incorridos para a prestação e manutenção dessa garantia devem ser perspetivados como despesas que, não apenas estão associadas à prática de um ato ilegal pela Administração, como, na realidade, foram tão somente motivadas por tal atuação;
50.º A obrigação de restituição imposta pelo artigo 100.º terá, necessariamente, que envolver o reembolso dos montantes despendidos pelo contribuinte para efeitos da prestação de garantia, pois que estes, ao fim ao cabo, se podem reputar de danos emergentes da ilicitude do ato (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13/04/2011, proferido no âmbito do processo n.º 1032/10);
51.º O não reconhecimento do direito à indemnização por prestação indevida de garantia quando a inexigibilidade da dívida tributária cuja execução se suspendeu resulta de uma ilegalidade que, praticada pela administração tributária, apresenta natureza formal, não só colide com a teleologia do artigo 53.º, como, em rigor, implica o despeito pelo dever de reconstituição elencado no artigo 100.º;
52.º Sucede que o artigo 100.º é, na prática, uma concretização no plano infraconstitucional do princípio da responsabilidade de civil ou patrimonial do Estado e das demais entidades públicas pelos danos causados aos cidadãos, consagrado no artigo 22.º da CRP, que indica que O Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”;
53.º Mantendo presente que é aplicável no âmbito da interpretação das normas fiscais o princípio da interpretação conforme à Constituição, sempre se terá de efetuar sobre o n.º 2 do artigo 53.º uma interpretação que se compatibilize com o disposto no artigo 22.º da CRP;
54.º Atendendo a que a prestação de garantia pressupõe sempre a ocorrência de um prejuízo para o contribuinte, uma vez que, independentemente da ilegalidade cometida, tal prestação sempre implica que o sujeito passivo incorra em despesas, e que, por outro lado, o artigo 22.º da CRP determina que a administração tributária é, em qualquer caso, responsável pelos prejuízos gerados pela sua atuação, somente uma interpretação se torna possível: a expressão “erro imputável aos serviços” utilizada pelo legislador no n.º 2 do artigo 53.º refere-se a qualquer ilegalidade cometida pela administração tributária, assim se garantindo que o contribuinte será ressarcido pelos custos em que incorreu independentemente da natureza do vício que enferma o ato;
55.º Esta é a interpretação que vai de encontro ao entendimento já perfilhado pelo Supremo Tribunal Administração, de acordo com o qual, sob pena de violação do princípio constitucional da responsabilidade da Administração, constante do artigo 22.º da CRP, o direito de indemnização pela prestação de garantia deve também existir quando a ilegalidade cometida pela administração tributária o tenha sido após a liquidação (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 02.11.2011, proferido no processo n.º 0208/11);
56.º Com base neste entendimento, invocou a Recorrente no recurso ordinário que interpôs que sempre seria materialmente inconstitucional, por violação do artigo 22.º da CRP, o n.º 2 do artigo 53.º da LGT quando interpretado no sentido de que a plena reconstituição da legalidade não compreende o pagamento da indemnização por prestação indevida de garantia no caso de a anulação do ato tributário ter por base um vício de forma ou procedimental;
57.º Entendeu o Tribunal recorrido que a interpretação restritiva que se encontra a ser mobilizada sobre o n.º 2 do artigo 53.º da LGT não prejudica o disposto nos artigos 100.º da LGT e 22.º da CRP, uma vez que o contribuinte, de todo modo, poderia ser ressarcido dos prejuízos que sofreu através do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas;
58.º Este não se vislumbra, porém, um argumento atendível, pois, desde logo, o facto de a interpretação indemnizatória do contribuinte, invocado no processo em que foi discutida a legalidade da dívida tributária e que desembocou na verificação da sua não exigibilidade, carecer para que seja conhecida que o sujeito passivo intente uma outra ação, frustra o objetivo de serem as pretensões deduzidas atendidas em prazo razoável;
59.º Além disso, tal argumentação torna a que a indemnização por prestação indevida de garantia se mantenha dependente da verificação de pressupostos distintos, representando o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas um meio particularmente oneroso;
60.º Por esta ordem de razões, invoca a Recorrente igualmente nesta sede a inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 53.º da LGT, por violação do disposto no artigo 22.º da CRP, quando interpretado no sentido de que a plena reconstituição da legalidade não compreende o pagamento da indemnização por prestação indevida de garantia no caso de a anulação do ato tributário ter por base um vício de forma ou procedimental;
61.º Resulta claro que somente uma interpretação não restritiva do conceito de “erro imputável aos serviços” permitirá, não apenas cumprir a função reparadora que motivou, numa primeira linha, a consagração do instituto pelo legislador, mas, ainda, que seja respeitado o princípio da igualdade entre os sujeitos passivos, assim como o estipulado noutros igualmente importantes preceitos, tais como o artigo 100.º da LGT e o artigo 22.º da CRP;
62.º Contribuintes que, em rigor, estão em situações materialmente iguais, são tratados de forma diferente, assim resultando violado o princípio da igualdade que, na teoria, entre eles deve existir;
63.º Além disso, considerar que o contribuinte não tem direito à indemnização por prestação indevida de garantia pelo facto de o vício que enferma o ato tributário ser formal significa desonerar a administração tributária da obrigação de reconstituição que, de acordo com o artigo 100.º, mantém, assim resultando violado esse preceito;
64.º Simultaneamente, e tornando a que as consequências da ilegalidade praticada pela administração tributária somente recaiam sobre o sujeito passivo, tal solução implica o desresponsabilizar dos serviços, assim se desrespeitando o artigo 22.º da CRP;
65.º O disposto nos artigos 100.º da LGT e 22.º da CRP, atendendo a que o seu propósito é o de proteger os contribuintes face a atuações ilícitas da Administração, são aplicáveis em toda e qualquer situação, pelo que somente se coaduna com eles uma interpretação do n.º 2 do artigo 53.º que faça estabelecer que, independentemente da ilegalidade cometida pela administração tributária, o contribuinte tem direito à indemnização por prestação indevida de garantia;
66.º Em face de todo o supra exposto, conclui-se que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento de direito na interpretação do conceito de “erro imputável aos serviços”;
67.º Ainda que fosse de se perfilhar uma interpretação restritiva do n.º 2 do artigo 53.º, nos termos da qual somente releva o erro sobre os pressupostos de facto ou de direito, o que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se pondera, sempre deveria, ainda assim, ser reconhecida a pretensão indemnizatória do sujeito passivo;
68.º Notemos que, não apenas a notificação do ato somente ocorreu após o término do prazo de caducidade, como a própria emissão das liquidações também apenas aí teve lugar;
69.º Atendendo ao disposto no artigo 45.º da LGT, o prazo de caducidade da liquidação adicional de IVA, assim como da liquidação dos respetivos juros compensatórios, mantendo presente que a mesma é relativa ao período de julho de 2005, terminou a 1 de janeiro de 2010, pois que o seu termo inicial se verificou a 1 de janeiro de 2006;
70.º Sendo a notificação no prazo de caducidade um pressuposto de direito da liquidação, pois que a mesma se traduz numa condição legalmente exigida e de que depende a válida liquidação do tributo, podemos, com certeza, afirmar que, no âmbito das notificações das liquidações em crise, a administração tributária laborou em erro sobre os pressupostos de direito;
71.º Se for de admitir que a interpretação a efetuar do n.º 2, do artigo 53.º da LGT é aquela que somente atende aos erros sobre os pressupostos de facto e de direito da liquidação, a circunstância de a emissão dos atos tributários ter sido efetuada após o término do prazo de caducidade não poderá ser ignorada;
72.º Se, por um lado, a emissão extemporânea do ato de liquidação se traduz num erro sobre os pressupostos de direito do ato tributário, por outro lado, a mesma torna a que o não reconhecimento da pretensão indemnizatória do contribuinte seja notoriamente mais grave, pois que a administração não apenas errou no âmbito da notificação do ato, mas em rigor na sua própria emissão;
73.º Deve, pelo supra exposto, ser revogado o acórdão recorrido e, em conformidade, ser reconhecida a pretensão indemnizatória da Recorrente.
Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Venerando Tribunal suprirá, deve o presente recurso de revista ser admitido, devendo ser julgado procedente julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, nos termos peticionados. Sendo o valor do recurso superior a € 275.000,00, requer-se que, verificando-se os pressupostos, seja o Recorrente dispensado do pagamento da taxa de justiça remanescente, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

O presente recurso foi interposto como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.
Dispõe o artigo 285.º do CPPT, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:
1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
2 - A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.
3 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
4- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
5- Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.
6- A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.
E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.
Como claramente resulta do disposto no artigo 285º, n.º 3 do CPPT, neste recurso de revista, apenas é permitido ao Supremo Tribunal Administrativo aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não devendo o recurso servir para conhecer, em exclusivo, de nulidades da decisão recorrida ou de questões novas anteriormente não apreciadas pelas instâncias.
Igualmente não pode servir o recurso de revista para apreciar estritas questões de inconstitucionalidade normativa, que podem discutir-se em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.

No essencial pretende o recorrente que este Supremo Tribunal se pronuncie relativamente à seguinte questão:
A notificação do ato de liquidação após o término do prazo de caducidade do direito à liquidação, atendendo a que a própria emissão do ato se verificou extemporânea e que se encontra demonstrada a existência efetiva de prejuízos para o contribuinte, é considerada um erro imputável aos serviços para efeitos do n.º 2, do artigo 53.º, da LGT?

No essencial, o que a recorrente pretende é que este Supremo Tribunal redefina a noção de erro imputável aos serviços para efeitos de atribuição de indemnização por prestação de garantia período superior a 3 anos.
Como claramente se afirma no acórdão recorrido “…o conceito de “erro imputável aos serviços”, quer para efeitos do artigo 43.º, n.º 1, quer para efeitos do artigo 53.º, n.º 2, ambos da LGT, é entendido como o “erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Tributária”.
Sobre esta questão de saber o que se deve entender por erro imputável aos serviços, já por diversas vezes se pronunciou este Supremo Tribunal, cfr. por todos o acórdão datado de 13.12.2023, proferido no recurso n.º 0338/16.5BEAVR, bem o Tribunal Constitucional, cfr. por todos o Acórdão n.º 83/2014, sempre no sentido contrário ao propugnado pela recorrente e em sentido coincidente com o que veio a ser adoptado no acórdão recorrido.
Assim, quer porque não se vislumbra qualquer erro manifesto de julgamento, antes pelo contrário, verifica-se que a decisão é coincidente com a jurisprudência maioritária, quer porque não estamos perante uma questão que seja nova e de relevância jurídica e/ou social importante e sobre a qual os Tribunais Superiores não se tenham já pronunciado, o presente recurso não está em condições de ser admitido.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo, Secção do Contencioso Tributário, que compõem a formação a que alude o artigo 285º, n.º 6 do CPPT, em não admitir o presente recurso de revista.
Custas do incidente pela recorrente, com t.j. em 3 Ucs.
D.n.
Lisboa, 3 de Julho de 2024. – Aragão Seia (relator) – Isabel Marques da Silva – Francisco Rothes.