Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 013/23.4BCPRT |
Data do Acordão: | 07/11/2024 |
Tribunal: | 1 SECÇÃO |
Relator: | SUZANA TAVARES DA SILVA |
Descritores: | ARBITRAGEM ANULAÇÃO |
Sumário: | I - As funções do tribunal arbitral, à semelhança do que sucede com as funções de um tribunal judicial, cessam com o encerramento do processo (artigo 44.º, n.º 3 da LAV e 613.º do CPC). II - O poder de rectificar a decisão, corrigindo lapsos manifestos, não pode modificar o que ficou decidido, e isto significa que a rectificação tem de corresponder a um resultado evidente perante a leitura da decisão rectificada. |
Nº Convencional: | JSTA000P32535 |
Nº do Documento: | SA120240711013/23 |
Recorrente: | B... S.A. E OUTROS |
Recorrido 1: | MUNICÍPIO DO PORTO |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo RELATÓRIO 1. O MUNICÍPIO DO PORTO intentou no TCA-Norte, ao abrigo do artigo 46.°, n.ºs 3, alínea a), subalíneas iv), v) e vi) e n.º 7 da Lei de Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.° 63/2011, de 14 de Dezembro (doravante LAV), contra a A..., S.A. e a B... S.A, melhor identificados nos autos, acção de anulação de decisão arbitral, na qual formulou o seguinte pedido: “[…]deve ser parcialmente anulada, ao abrigo do disposto nas subalíneas iv), v) e vii) da alínea a) do n.º 3 e do n.º 7 do artigo 46.º da Lei de Arbitragem Voluntária, a Sentença Arbitral de 22.12.2022 na redação que lhe foi dada pelo despacho do Tribunal Arbitral de 03.02.2023, sendo consequentemente expurgada das alterações de redacção introduzidas por esse despacho e devolvida à sua redacção original com as retificações introduzidas pelo despacho de 23.01.2023, porquanto esse despacho de 03.02.2023 foi proferido em violação do princípio da extinção do poder jurisdicional do Tribunal […]”. 2. O TCA-Norte, por acórdão datado de 20.10.2023, reformado quanto a custas em 17.11.2023, decidiu o seguinte: “[…] acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção Administrativa, Subsecção de Contratos Públicos, em conceder provimento ao recurso interposto pela apelante e, em consequência, anulam o despacho impugnado proferido pelo Tribunal Arbitral, em 03 de fevereiro de 2023, com fundamento na violação do artigo 46.º, n.º3, alínea a), subalíneas iv), v, vi e n.º7 da LAV […]”. 3. Inconformadas, a “A...” e a “B...” interpuseram recurso do acórdão do TCA Norte para este STA, o qual foi admitido como recurso de revista, por acórdão de 18.04.2024. 4. A A..., S.A. e a B... S.A. formularam alegações, que remataram com as seguintes conclusões: O Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em primeira instância – que considerou procedente a ação de anulação parcial de sentença arbitral proposta pelo Recorrido e, em consequência, anulou o despacho proferido pelo Tribunal Arbitral em 03.02.2023, com fundamento na violação do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalíneas iv), v, vi e n.º 7, da LAV –, assenta numa errada interpretação e aplicação da lei de arbitragem voluntária e da lei processual civil, devendo ser revogado. O Tribunal a quo considerou ter ocorrido um erro de julgamento, que apenas seria passível de ser corrigido em sede de recurso, e, nessa medida, o Tribunal Arbitral não poderia ter retificado tal erro através do despacho de 03.02.2023, pelo que violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional. No entanto, por via do Despacho de 03.02.2023, o Tribunal Arbitral limitou-se a corrigir um erro material da Sentença Arbitral, proferida em 22.10.2022, à luz do artigo 40.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem, e do artigo 45.º da LAV, não padecendo tal despacho de qualquer ilegalidade. Questão prévia: Da falta de fundamento para a anulação (parcial) da Sentença Arbitral As subalíneas iv, v, vi, do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), da LAV, com base nas quais o Tribunal a quo anulou parcialmente a Sentença Arbitral, não têm qualquer aplicabilidade ao presente caso. Relativamente à subalínea iv, não está em causa nos presentes autos qualquer desconformidade da composição do tribunal arbitral ou do processo arbitral com a convenção das partes. A subalínea v, que trata do princípio do dispositivo, também não está em causa nos presentes autos, na medida em que o Tribunal Arbitral, na Sentença Arbitral, não condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, não conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar. Por sua vez, a subalínea vi, que remete para o artigo 42.º, n.ºs 1 e 3, da LAV, também não tem aplicabilidade nos presentes autos, não estando em causa a falta de assinatura dos árbitros na sentença ou a falta de fundamento da mesma. Não estando em causa qualquer dos fundamentos previstos no artigo 46.º da LAV, a anulação parcial da Sentença Arbitral é destituída de qualquer fundamento. Do erro material do Tribunal Arbitral Para chegar ao valor da condenação do Recorrido no ponto b) da Sentença Arbitral proferida em 22.12.2022, o Tribunal Arbitral recorreu ao documento enviado pelo Colégio Pericial em resposta aos esclarecimentos solicitados, concretamente à tabela «Q4B.C» desse documento – cf. pontos 199 e 276 da Sentença Arbitral e ponto 6 da matéria assente. No entanto, baseou-se numa versão incorreta desse documento: o Tribunal Arbitral utilizou o documento enviado pelos Senhores Peritos às 17:58 do dia 18.11.2022, por e-mail, que foi alterado e retificado pelos Senhores Peritos através de novo e-mail, enviado poucos minutos depois, às 18:17, em virtude de terem detetado um lapso (cf. ponto 11 da matéria assente). Tratou-se de uma mera distração do Tribunal Arbitral, que não atendeu à correção enviada pelos Senhores Peritos por e-mail 19 minutos após o e-mail inicialmente enviado. A indevida utilização pelo Tribunal Arbitral da tabela inicial, não corrigida, teve uma consequência no valor da compensação financeira a ser paga pelo Recorrido, na medida em que a Sentença Arbitral partiu de um pressuposto incorreto, uma tabela que os próprios Peritos vieram a alterar. Este lapso do Tribunal Arbitral decorre, por sua vez, de um lapso do próprio Colégio Pericial, claramente assumido no texto do e-mail das 18:17: “[u]ma vez enviado o email abaixo [das 17:58], o Colégio de Peritos verificou que os dados enviado continham um lapso na transcrição dos valores constantes do quadro Q4B.C no que diz respeito ao período "Jan a Dez de 2019” e “Jan e Dez de 2021”. A tabela em anexo a este email já apresenta os valores corretos” (negrito nosso) – cf. Doc. 4 da contestação. Estamos perante dois sucessivos lapsos, primeiro do Colégio Pericial, depois do Tribunal Arbitral, que acabaram por ser corrigidos por ambos, em nome da verdade material. Face ao referido lapso manifesto, as Recorrentes apresentaram um pedido de retificação da Sentença, com o propósito de alertar para o facto de o Tribunal estar a utilizar uma tabela que não correspondia à tabela final dos Senhores Peritos, uma vez que estes já a tinham rejeitado e substituído por outra (no seu e-mail das 18:17) – cf. pontos 8 e 10 da matéria assente. No seguimento do pedido de retificação das Recorrentes, este lapso foi objeto de devida retificação através do Despacho de 03.02.2023, o qual já teve por base o documento corrigido, que tinha sido enviado no e-mail das 18:17 – cf. pontos 8, 9, 10 e 11 da matéria assente. Em consequência, o Tribunal Arbitral retificou a condenação do Recorrido, condenando-o no pagamento de uma compensação financeira no valor de € 826.330,20, acrescido de juros legais – cf. ponto 11 da matéria assente. Nesse Despacho, o Tribunal Arbitral mantém como fundamento os esclarecimentos dos Senhores Peritos, agora já levando em linha o documento final enviado pelos Senhores Peritos, constante do e-mail das 18:17 em detrimento do documento enviado no e-mail das 17:58. O Recorrido não questionou quando notificado pelo Colégio Pericial dos esclarecimentos finais (constantes do e-mail das 18:17), aceitando tais esclarecimentos e a retificação que os próprios Senhores Peritos fizeram em relação aos esclarecimentos que constavam do e-mail das 17:58. O lapso do Tribunal Arbitral deu origem a um erro material da sentença e não a um erro de julgamento, suscetível de correção nos termos do artigo 40.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem e do artigo 45.º da LAV, como resulta da doutrina e jurisprudência referidas supra. O erro material ocorre quando o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, ou, por outras palavras, quando a vontade declarada diverge da vontade real. Ainda, o erro material é revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, nos termos do artigo 249.º do CC. As circunstâncias em que a declaração é feita, no caso de sentença, incluem os elementos do processo. No presente caso foi precisamente isso que sucedeu: o Tribunal Arbitral tinha em mente transcrever o documento enviado pelos Senhores Peritos e, com base nisso, formular a condenação do Recorrido, mas utilizou uma versão incorreta da tabela «Q4B.C» constante do documento remetido pelo Colégio Pericial no seguimento dos esclarecimentos prestados, por mero lapso. Como tal, o teor da sentença não coincidiu com a vontade real do Tribunal Arbitral e tal lapso é revelado de modo flagrante e sem necessidade de elaboradas demonstrações através da verificação dos elementos do processo (sucessão de e-mails de 18.11.2022). Como resulta da jurisprudência acima transcrita, tem de presumir-se que a vontade real dos Senhores Árbitros não seria a de utilizar dados periciais rejeitados e corrigidos pelos Senhores Peritos ou de ir contra o conteúdo genuíno do Relatório Pericial, sem qualquer motivação e com evidente prejuízo das ora Recorrentes. Tal seria contrário aos deveres a que os árbitros estão adstritos, nomeadamente aos deveres de agir com imparcialidade e independência, o que as Recorrentes não colocam em causa. É o próprio Tribunal Arbitral que afirma que se equivocou, dizendo algo que não queria dizer – cf. pontos 57 e seguintes do despacho do Tribunal Arbitral de 03.02.2023 transcrito no ponto 11 da matéria assente. Através do Despacho de 03.02.2023, não houve qualquer alteração ao nível da matéria de facto apurada ou da fundamentação da Sentença Arbitral, existindo apenas uma mera retificação dos dados utilizados. Não existiu qualquer mudança de opinião dos Senhores Árbitros: o Tribunal Arbitral recorre à mesma fundamentação e ao mesmo elemento probatório (o Relatório Pericial, de que faz parte o documento enviado no dia 18.11.2022 às 18:17 horas), passando apenas a utilizar a versão correta do documento enviado pelo Colégio Pericial. Erro de julgamento existiria sim, se por exemplo, o Tribunal Arbitral viesse a proferir uma nova sentença arbitral, utilizando outras normas jurídicas ou se viesse a desconsiderar a prova pericial, mas nada disso se verificou. Acresce que a decisão proferida pelo Tribunal a quo viola extensivamente os princípios orientadores do processo arbitral, que deve ser simples, direto à sua finalidade e o menos formal possível. Isto mesmo é reconhecido pelo Tribunal a quo, o que se traduz no reconhecimento da autonomia da arbitragem e das suas peculiares caraterísticas (cf. p. 19 e ss. do acórdão recorrido). Uma das principais vantagens dos processos arbitrais é o seu foco na verdade material e na substância das posições das partes, em detrimento formalismos processuais: quem quer decidir litígios por via arbitral, quer uma solução expedita e materialmente fundada, e não decisões obtidas à custa de sofismas e expedientes tribunícios, sem correspondência na realidade substantiva das coisas. Torna-se incompreensível que num caso em que o próprio Tribunal Arbitral admite um manifesto lapso, corrigindo-o, afirmando que a sua vontade real não foi respeitada no momento em que proferiu a decisão arbitral, sejam os Tribunais Comuns a interferir (num litígio que as partes aceitaram expressamente que fosse resolvido por via arbitral), anulando a decisão arbitral e desconsiderando o entendimento dos Senhores Árbitros no sentido de que existiu uma contradição entre a vontade real e a vontade declarada. Ao anular parcialmente uma Sentença Arbitral devido a uma mera distração do Tribunal Arbitral, o Tribunal a quo não teve em consideração os princípios orientadores da arbitragem nem os propósitos específicos da ação de anulação da sentença arbitral aquando da apreciação do caso concreto, que tem o propósito de aferir dos vícios graves de natureza processual que tenham influência decisiva na resolução do litígio. A decisão do Tribunal a quo reflete ademais um formalismo exacerbado ao dar sem efeito uma decisão de mérito que foi atingida mediante um processo justo e equitativo, pautado pelo respeito dos princípios orientadores do processo arbitral. Como tal, o acórdão recorrido ofende os mais básicos princípios não só da arbitragem, mas do sistema judicial como um todo. Pelo exposto, o Tribunal a quo fez uma interpretação e aplicação errada das normas jurídicas aplicáveis ao presente caso, concretamente do artigo 40.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem, do artigo 45.º e do artigo 46.º, n.º 3, da alínea a), subalíneas iv), v, vi, da LAV. O lapso do Tribunal Arbitral qualifica-se como um erro material, devidamente corrigido através do Despacho de 03.02.2023, devendo ser revogada a decisão do Tribunal a quo que anulou tal Despacho. 5. O Município do Porto veio contra-alegar, concluindo nos termos que se seguem: O princípio da extinção do poder jurisdicional, espelhado no artigo 44.º da Lei da Arbitragem Voluntária – à semelhança do que sucede no artigo 613.º do CPC –, tem por significado que o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a sentença que proferiu, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível, sob pena de não se garantir a existência de um processo justo (cfr. entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2015, Proc. n.º 756/09.5TTMAI.P2.S1). Depois de proferida a sentença, mesmo nos processos de arbitragem voluntária, como o do caso dos autos, é apenas lícito ao juiz arbitral retificar um «erro de cálculo, erro material ou tipográfico ou qualquer erro de natureza idêntica», ou esclarecer «alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença ou dos seus fundamentos», conforme dispõe o artigo 45.º, n.os 1 e 2, da Lei da Arbitragem Voluntária. Está assim vedado ao juiz arbitral rever a decisão proferida; ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz arbitral se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível. A Sentença Arbitral de 22.12.2022 é ausente de qualquer menção de que a opinião dos Peritos tinha tido várias manifestações, nomeadamente várias versões escritas e vários esclarecimentos verbais e escritos. E é também ausente de qualquer menção de que a convicção dos Senhores Árbitros se formou com base numa certa posição dos Peritos, em detrimento de outra posição dos mesmos Peritos, que considerou ultrapassada. O Tribunal Arbitral reconheceu no despacho de 03.02.2023 que proferiu conscientemente a Sentença Arbitral com base no esclarecimento escrito dos Peritos prestado por email das 17h58 de 18.11.2023. No seu despacho de 03.02.2023, os Senhores Árbitros deixam claro que estabeleceram a matéria de facto dada como provada de acordo com os elementos que entenderam por bem, de entre todos os que estavam disponíveis no processo. Esse reconhecimento tem implícito que não existiu na prolação da Sentença Arbitral de 22.12.2022 qualquer divergência entre a vontade real do Tribunal e a vontade declarada na Sentença Arbitral, tendo o Tribunal Arbitral reconhecido que na Sentença de 22.12.2022 a decisão condenatória é concordante com os factos então dados como provados. Não há qualquer elemento no texto da Sentença Arbitral proferida em 22.12.2022 que permita inferir ou suspeitar que há um erro entre a vontade real e a vontade declarada dos Senhores Árbitros, dado que da sua leitura não se retira qualquer vestígio – alusão, referência, menção – de que os valores de prejuízo financeiro indicados no ponto 199. da Sentença Arbitral devessem ser diferentes, nem há qualquer elemento textual da Sentença Arbitral, direto ou de contexto, que permita ao seu intérprete concluir que a decisão condenatória está desfasada dos pressupostos que os Senhores Árbitros entenderam ser os corretos. O próprio Tribunal Arbitral indeferiu o primeiro requerimento de retificação apresentado pelas Rés em 27.12.2022, por não encontrar qualquer erro material na Sentença Arbitral. A convicção de que a matéria de facto dada como provada no ponto 199. da Sentença Arbitral deveria ter sido outra é apenas formada pelo Tribunal Arbitral a posteriori, numa segunda vaga argumentativa das Rés, por impulso do requerimento por estas apresentado em 25.01.2023, e com base não no elemento textual da própria Sentença Arbitral, mas sim nos elementos documentais juntados nesse requerimento. Conforme deixa patente precisamente o despacho de 03.02.2023, a convicção dos Árbitros de que teria havido um erro só se formou depois da prolação da Sentença, porque os Árbitros só tomaram consciência da presença desse esclarecimento no processo depois de proferirem a Sentença. Por outras palavras: os Árbitros mudaram de opinião depois de proferirem a Sentença. O Tribunal Arbitral reconheceu abertamente que a diferença da Sentença Arbitral entre a versão original de 22.12.2022 e a nova versão aprovada em 03.02.2023 reside numa alteração da matéria de facto dada como provada, em resultado de uma nova ponderação e apreciação de elementos de prova que sempre estiveram no processo, designadamente dando afinal maior valor a um esclarecimento escrito dos Peritos que não tinha sido tido em devida consideração na prolação da Sentença Arbitral a 22.12.2022. Em causa não está um erro material na redação da Sentença Arbitral, nem um erro entre a vontade real a vontade declarada; o que aqui está em causa é a perceção posterior dos Senhores Árbitros de que terão cometido um erro de julgamento na apreciação dos elementos de prova que sempre estiveram ao seu dispor e que os levou agora, em retrospetiva, a entender que deveriam ter considerado como provados factos diferentes daqueles que efetivamente consideraram. Por outras palavras, o que o despacho de 03.02.2023 materializa é uma mudança de opinião ex post dos Senhores Árbitros sobre a apreciação dos elementos de prova que sempre estiveram ao seu dispor, resultante de um erro que terão cometido na detetado já depois de proferida a Sentença. Os Senhores Árbitros reconhecem abertamente o seu entendimento de que a Sentença Arbitral de 22.12.2022 foi proferida enfermando de um erro; mas esse erro não consistiu na inexatidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, mais frequentemente traduzido em erros de escrita ou de cálculo; o erro detetado já depois de proferida a Sentença consistiu, sim, num erro de julgamento (ou erro judicial), traduzido numa divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão. O Acórdão recorrido entendeu – bem – que o despacho de 03.02.2023 não corrige um «erro material, de cálculo ou tipográfico» da Sentença Arbitral, porque a Sentença Arbitral, como os Senhores Árbitros reconhecem, não contém qualquer erro material, de cálculo ou tipográfico, e tão-pouco corrige uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada do Tribunal, apreensível por qualquer intérprete da Sentença Arbitral. O despacho de 03.02.2023 excede, pois, os limites da retificação da sentença arbitral fixados no artigo 45.º, n.os 1 e 2, da Lei da Arbitragem Voluntária, e do artigo 40.º, n.º 2, do Regulamento Arbitral do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa. Essa conclusão, de resto, impõe-se no presente caso à luz da jurisprudência nacional sobre o conceito de retificação e de erro material constantes do artigo 614.º do CPC, mas com aplicação também ao artigo 45.º da Lei de Arbitragem Voluntária, que recorrem à mesma terminologia, expressa nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.02.2022 (Proc. n.º 529/17.1T8AVV-A.G1.S1), de 26.11.2015 (Proc. 706/05.6TBOER.L1.S1), de 13.07.2021 (Proc. 380/19.4T8OLH-D.E1.S1), 12.02.2009 (Proc. n.º 08A2680), de 22.11.2018 (Proc. n.º 56/18.0T8BRG.G1), de 11.05.2022 (Proc. n.º 6947/19.3T8LSB.L1.S1), de 01.07.2021 (Proc. n.º 704/12.5TVLSB.L3.S1), de 17.07.2021 (Proc. 380-19.4T8OLH-D.E1.S1) e de 12.03.2015 (Proc. n.º 756/09.5TTMAI.P2.S1). Ao abrigo do artigo 46.º/3/a)/v), da Lei de Arbitragem Voluntária, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte só podia anular a Sentença Arbitral de 22.12.2022 tal como foi modificada pelo despacho do Tribunal Arbitral de 03.02.2023, determinando consequentemente o expurgo das alterações de redação introduzidas por esse despacho e devolvê-la à sua redação original com as retificações introduzidas pelo despacho de 23.01.2023, devendo em seu resultado o A. ser condenado no pagamento à concessionária A... do montante de €474.761,40 e não de € 826.330,20. E, por esse motivo, deve ser mantido o Acórdão recorrido. Ainda que assim não se entendesse, o despacho seria então uma verdadeira segunda sentença, que substitui a anterior de 22.12.2022. Ora, o prazo para a prolação da Sentença Arbitral terminou no dia 22.12.2022, pelo que essa segunda sentença teria sido proferida em 03.02.2023, bem após o termo desse prazo, o que constitui fundamento para a sua anulação, nos termos do disposto nos artigos 43.º e 46.º/3/a)/vii), da Lei de Arbitragem Voluntária. Por fim, o fundamento para o despacho de 03.02.2023 corrigir a Sentença Arbitral reside, como se viu, num erro de julgamento no que toca à fixação da matéria de facto. Esse erro não pode ser corrigido mediante retificação, e apenas poderia ser reparado por via da interposição de recurso com impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Ora, a Sentença Arbitral é irrecorrível nos termos da Cláusula Primeira do Compromisso Arbitral, pelo que o despacho de 03.02.2023, ao decidir como decidiu, violou o Compromisso Arbitral, o que constitui fundamento para a sua anulação, nos termos do disposto no artigo 46.º/3/a)/iv), da Lei de Arbitragem Voluntária, o que desde já se invoca e requer, para todos os efeitos legais. 6. O Ministério Público não emitiu pronúncia. Cumpre apreciar e decidir. FUNDAMENTAÇÃO 1. De facto No acórdão recorrido foi dada como assente a seguinte matéria de facto: Entre o Município do Porto e a A..., S.A., e a B... S.A., foram celebrados três contratos de concessão: i. Contrato de Concessão dos ... / ... / ... e ...; ii. Contrato de Concessão do ...; e iii. Contrato de Concessão do .... Em consequência da pandemia COVID-19, o Município do Porto e as concessionárias acordaram na necessidade de reposição do equilíbrio financeiro dos referidos contratos, embora discordando quanto à metodologia a seguir para a fixação da correspondente compensação; Em 30/08/2021 as partes celebraram um compromisso arbitral, cujo teor consta do documento n.º2 junto com a p.i., e que aqui se dá por integralmente reproduzido; Consta da Cláusula Primeira do Compromisso Arbitral a que se alude no ponto que antecede, o seguinte: «1. As Partes comprometem-se a submeter o diferendo que no número seguinte se define à resolução, definitiva e sem possibilidade de recurso, por um Tribunal Arbitral, de acordo com o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa. […] 5. A decisão arbitral será proferida no prazo de cinco meses a contar da data que o Tribunal Arbitral se considere constituído.» Em 22 de dezembro de 2022, o Tribunal Arbitral constituído junto do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, proferiu sentença, na qual se lê, designadamente, o seguinte: «[…] 9. Em 30.08.2021, as Partes celebraram Compromisso Arbitral. 10. Em 03.06.2022, constituiu-se o Tribunal Arbitral, com a aceitação do Árbitro Presidente. 11. Em 07.06.2022, as Partes foram notificadas do “Despacho de Designação de Árbitro Presidente e de Constituição e Composição do Tribunal Arbitral”, proferido pela Senhora Vice-Presidente do Centro de Arbitragem Comercial. 12. Em 29.06.2022, teve lugar a Audiência Preparatória, no âmbito da qual foram ouvidos os Mandatários das Partes nos termos e para os efeitos do artigo 29.º do Regulamento, conforme Ata da referida Audiência. 13. No dia 13.07.2022, o Tribunal Arbitral proferiu a Ordem Processual n.º 1, nos termos da qual o Tribunal Arbitral definiu, entre o mais, depois de ter debatido com os Mandatários das Partes as questões a decidir, o calendário processual, os articulados a apresentar, os meios de prova e prazos para a sua produção. 14. Em 02.08.2022, por Comunicação RT-1, a Requerente apresentou a sua Petição Inicial e respetivo requerimento probatório, acompanhada dos respetivos anexos. 15. Em 22.08.2022, por Comunicação RD-1, a Requerida apresentou a sua Contestação, e respetivo requerimento probatório, juntamente com Estudo Económico e Financeiro do Contrato de Concessão do ... 16. Em 01.09.2022, nos termos do ponto n.º 2., iv., da Ordem Processual n.º 1, veio a Requerente apresentar requerimento, nos termos do qual requereu a realização de uma perícia colegial tendo em vista, em resumo, a escolha do método adequado para aferir a concreta medida de perdas incorridas relativamente aos contratos melhor identificados no ponto 8 supra. 17. No dia 09.09.2022, através do Despacho n.º 1, proferido pelo Tribunal Arbitral, foi o Requerido notificado de que dispunha de prazo até ao dia 12 de setembro de 2022 para se pronunciar sobre o requerimento apresentado pelas Requerentes, mais concretamente sobre a realização da uma perícia colegial por elas solicitado. 18. Em 12.09.2022, o Requerido veio pronunciar-se relativamente ao requerimento de realização de perícia colegial apresentado pelas Requerentes. 19. Em 20.09.2022, face ao requerimento apresentado pelas Requerentes e subsequente resposta do Requerido, veio o Tribunal Arbitral proferir o Despacho n.º 2, nos termos do qual foi determinada a realização da perícia colegial, fixando a matéria sobre a qual essa perícia versaria. 20. A 27.09.2022, realizou-se, através da plataforma eletrónica Zoom, uma reunião entre o Tribunal Arbitral e as Partes, com o objetivo de alcançar acordo sobre os quesitos da perícia e sobre a composição do Colégio de Peritos, bem como de recalendarizar o procedimento arbitral e, consequentemente, acordar sobre a eventual prorrogação do prazo da arbitragem . 21. Em 07.10.2022, veio o Tribunal Arbitral proferir o Despacho n.º 3, nos termos do qual solicitou às Requerentes que juntassem ao processo, até o dia 11.10.2022, os documentos necessários para que o Colégio de Peritos pudesse ter acesso à informação referida no artigo 98.º da Petição Inicial, que teria sido facultada à empresa C... e que esteve na base do Relatório que foi junto à Petição Inicial como Documento RT-14, assim como a toda a restante informação considerada necessária para apurar os gastos e rendimentos comuns imputados a cada um dos parques objeto do processo, incluindo os critérios de repartição e o valor total dos mesmos. 22. No dia 09.11.2022, teve lugar a audiência de produção de prova, tendo prestado depoimento as Testemunhas AA, BB, CC, DD e EE. 23. No dia 16.11.2022, também em sede de audiência de produção de prova, tiveram lugar os depoimentos dos Peritos, tendo em vista o esclarecimento das questões apresentadas. Compareceram, na referida qualidade de peritos, o Senhor FF e o Senhor GG. 24. No dia 25.11.2022, vieram as Partes apresentar as suas Alegações Finais. […] 276. Nestes termos, sem sede de resposta a Requerimento que lhe foi dirigido, em sede de Esclarecimentos, pelas Requerentes, o Colégio de Peritos considerou que a diferença no cash flow operacional antes de impostos verificada entre a média entre os anos de 2017 a 2019 e os anos de 2019 a 2020, empregando uma taxa de atualização de 5%, foi a seguinte: »Contrato de Concessão dos ... e ...: € 3.128.514,00; »Contrato de Concessão do ...: € 791.269,00; »Contrato de Concessão do ...: € 11.575,00” […] 308. Em suma, fica o Requerido condenado a: » Prorrogar o prazo de vigência do Contrato de Concessão dos ... e ... m 7 meses e 26 dias; » Prorrogar o prazo de vigência do Contrato de Concessão do ... em 1 mês e 10 dias; » Pagar uma compensação no valor de €474.761,40 à Primeira Requerente”. […] III.DECISÃO FINAL […] b) Condenar o Requerido no pagamento de uma compensação financeira à Primeira Requerente no valor de € 476.761,40 …. acrescido de juros legais”» Em 27/12/2022, as concessionárias requereram ao Tribunal a «reforma e retificação» dos pontos 199 e 276 da Sentença Arbitral, bem como do valor de compensação determinado pelo Tribunal, nos termos que constam do documento n.º4, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. Em 23/01/2023 o Tribunal Arbitral proferiu despacho de indeferimento do requerimento das concessionárias, nos termos que constam do documento n.º1 junto com a p.i., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; Em 25/01/2023 as concessionárias requereram novamente ao Tribunal Arbitral a «retificação» da Sentença Arbitral relativamente aos pontos 199 e 276 da Sentença Arbitral, bem como do valor de compensação determinado pelo Tribunal, nos termos que constam do documento n.º 5 que aqui dá por integralmente reproduzido. Por despacho de 03/02/2023, o Tribunal deferiu os requerimentos apresentados pelas concessionárias, nos termos que constam do documento n.º 1 junto com a p.i., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se escreveu, designadamente, que: «1. Na sessão de esclarecimentos dos Peritos que teve lugar no dia 16.11.2022, foram solicitadas algumas informações aos peritos, relativas ao cálculo da perda de receitas das Requerentes nos anos de 2017 a 2019. 2. No dia 18.11.2022, pelas 17:58, o Colégio de Peritos remeteu ao Tribunal Arbitral as informações solicitadas, num documento que se junta como ANEXO 1, que incluía quatro tabelas. 3. Pelas 18:17 do mesmo dia, após verificar a existência de um lapso numa das quatro tabelas (mais precisamente, a tabela Q4B.C), o Colégio de Peritos enviou um novo documento, com o referido lapso corrigido, que ora se junta como ANEXO 2. 4. Esta sequência de versões díspares dos esclarecimentos do Colégio de Peritos seguiu-se a uma já acidentada apresentação do Relatório do Colégio de Peritos, que também conheceu duas versões. 5. Esta experiência de sucessivas retificações (algumas com a diferença de horas, como é o caso que aqui nos traz) é inédita na experiência dos membros que compõem este Tribunal Arbitral. 6. Por lapso do Tribunal Arbitral, foi utilizada a tabela Q4B.C do documento irregular enviado pelo Colégio de Peritos às 17:58, e não a tabela Q4B.C correta, constante do documento enviado pelo Colégio Arbitral às 18:17 de 18.11.2022, como elemento de prova para a fundamentação do tema da prova ínsito no ponto 199 da Sentença Arbitral. 7. Este lapso inquinou as conclusões do Tribunal Arbitral, vertidas no ponto 276 da Sentença Arbitral, sobre o valor da diferença no cash flow operacional antes de impostos verificada entre a média entre os anos de 2017 a 2019 e os anos de 2019 e 2020, empregando uma taxa de atualização de 5% no Contrato de Concessão do ... 8. Assim, o valor de € 791.269,00 que consta do ponto 276 não tem fundamento nas conclusões do Colégio de Peritos. 9. O valor efetivamente alcançado pelo Colégio de Peritos para a diferença no cash flow operacional antes de impostos verificada entre a média entre os anos de 2017 a 2019 e os anos de 2019 e 2020, empregando uma taxa de atualização de 5%, para o Contrato de Concessão do ..., é de € 1.377.217, conforme consta da tabela Q4B.C do ANEXO 2. 10. Este lapso teve consequências ao nível do quantum da condenação da Sentença Arbitral. 11. Na alínea b) do dispositivo da Sentença Arbitral, o Tribunal Arbitral condenou o Requerido no pagamento de uma compensação financeira à Primeira Requerente no valor de € 474.761,40, acrescido de juros legais; valor que corresponde a 60% do montante de € 791.269,00 que constava da tabela Q4B.C errada, enviada às 17:58 do dia 18.11.2023 (ANEXO 1 eu se junta). 12. Se o Tribunal Arbitral tivesse recorrido à tabela Q4B.C correta, constante do documento enviado pelo Colégio de Peritos às 18:17 de 18.11.2022 (ANEXO 2 que se junta), teria condenado o Requerido no pagamento de uma compensação financeira à Primeira Requerente no valor de € 826.330,20, acrescido de juros legais; valor que corresponde a 60% do montante de € 1.377.217 que constava da referida tabela. […] 17. Por seu turno, no dia 27.12.2022, as Requerentes apresentaram um pedido de Reforma e Retificação da Sentença Arbitral. 18. No seu pedido, as Requerentes argumentaram, em suma, que o “cálculo do Tribunal Arbitral” constante do ponto 276 da Sentença Arbitral “é incorreto e não corresponde aos valores referidos pelo Colégio de Peritos”, no que respeita aos “... e do ...”; e que 19. No entender das Requerentes, “o valor correto” relativo à perda de receita para o ... seria de “€ 1.377.217,00 (e não € 791.269,00)”, e para o ... seria “€ 35.320,00 (e não € 11.575,00)”. 20. Este pedido de Reforma e Retificação da Sentença Arbitral apresentava-se breve e algo vago, fazendo referência à “versão final e retificada do Relatório Pericial” (que também conheceu duas versões), e não à existência de duas versões dos esclarecimentos dos peritos. 21. Notificado para responder, o Requerido veio dizer no dia 06.01.2023 que “Os pontos 199 e 276 da Sentença Arbitral não contêm qualquer erro material suscetível de retificação tal como previsto no artigo 614.º, n.º 1, do Código do Processo Civil”; e que “Também não existe qualquer inexatidão devida a «omissão» ou a «lapso manifesto» nos pontos 199 e 276 da Sentença Arbitral”, pelo que deveria ser indeferido o pedido das Requerentes. 22. O Requerido rematou a sua resposta alegando que a Sentença Arbitral deveria ser objeto de retificação, na parte relativa à alínea b) do capítulo III, “Decisão Final”, onde se determina a condenação ao pagamento de juros sobre a compensação de € 474.761,40, de modo a estabelecer “a data de vencimento dos mesmos e a taxa devida”. 23. Por despacho de 23.01.23, o Tribunal Arbitral declarou improcedentes todos os pedidos de retificação realizados pelas Partes. 24. O Tribunal Arbitral reiterou que os valores constantes da Sentença Arbitral eram “os valores apresentados pelos peritos em sede de resposta a Requerimento que lhes foi dirigido, em sede de Esclarecimentos, pelas Requerentes”, ou seja, “os valores constantes da tabela Q4B.C […] e que dizem respeito à diferença de cash flow operacional antes de impostos verificada entre a média de receitas entre os anos de 2017 a 2019 e as receitas dos anos de 2020 e 2021, empregando uma taxa de atualização de 5%”. 25. Em suma, o Tribunal Arbitral, perante o pedido de Reforma e Retificação da Sentença Arbitral das Requerentes, não tomou consciência de que o Colégio Pericial tinha enviado, às 18:17 do dia 18.11.2022, um segundo documento, que ora se junta como ANEXO 2, retificando a tabela Q4B.C. […] 28. No dia 25.01.2023, as Requerentes apresentaram novo Requerimento, no qual clarificam e densificam o teor do seu Requerimento de 27.12.2022, 29. Explicando em maior detalhe que a “tabela enviada pelos Senhores Peritos através de e-mail datado de 18 de novembro, enviado às 17:58 […] foi alterada e retificada pelos Senhores Peritos através de e-mail datado de 18 de novembro, enviado às 18:17”, 30. Anexando ao seu Requerimento as mensagens de correio eletrónico e os documentos enviados pelo Colégio de Peritos, no dia 18.11.2022 (que ora se juntam como ANEXO 1 e ANEXO 2), 31. E, por fim, reiterando o seu requerimento de retificação da Sentença Arbitral, “quer quantos aos Pontos 199 e 276, quer depois quanto ao valor de compensação determinado pelo Tribunal Arbitral, por se tratar de um manifesto erro material e de cálculo, com impacto na ordem das três centenas de milhares de Euros (mais concretamente € 351.568,80) face aos termos da condenação”. 32. No dia 26.01.2023, o Requerido apresentou resposta, na qual alegou, em suma, (i) que as Requerentes já não se encontravam em prazo para requerer a retificação da Sentença Arbitral quando o novo requerimento foi apresentado, em 25.01.2023; que (ii) mesmo que assim não fosse, esse requerimento deveria ser indeferido por ser exatamente igual ao requerimento apresentado pelas Requerentes em 27.12.2022; e (iii) que os pontos 199 e 276 da Sentença Arbitral não contêm qualquer “erro de cálculo”, ou qualquer “erro material ou tipográfico ou qualquer erro de natureza idêntica”, na aceção de “inexatidão devida a «omissão» ou a «lapso manifesto»”; ou seja, um “erro material cuja existência pressupõe uma divergência entre a vontade real do juiz e aquilo que escreveu na sentença” […] 57. Conforme melhor descrito no ponto 4 e ss, supra, o Tribunal Arbitral utilizou, por lapso, a tabela Q4B do documento irregular enviado pelo Colégio de Peritos às 17:58 do dia 18.11.2022 ( junta como ANEXO I) e não a tabela Q4B.C correta, constante do documento enviado pelo Colégio de Peritos às 18:17 do mesmo dia, como elemento de prova para a fundamentação do tema da prova ínsito no ponto 199 da Sentença Arbitral. 58. Este lapso configura um erro material na aceção do n.º2 do artigo 40.ºdo Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial (2021) e do n.º1 do artigo 45.º da Lei de Arbitragem Voluntária, uma vez que existe uma manifesta divergência entre aquela que foi a vontade real do Tribunal Arbitral- e que consistia em empregar na Sentença Arbitral os valores corretos alcançados pelo Colégio Pericial – e aquilo que ficou escrito na Sentença ( os valores constantes da tabela Q4B.C errada, enviada pelas 17:58 do dia 18.11.2022). 59. E este lapso teve consequências no quantum condenatório da Sentença Arbitral. […] 66. Pelo que recai sobre o Tribunal Arbitral o dever de retificar a Sentença Arbitral de modo a suprir os vícios causados pelo uso da tabela Q4B.C errada, enviada pelo Colégio de Peritos às 17:58 do dia 18.11.2022. 67. O que implica não só a retificação da redação dos pontos 199 e 278 da Sentença Arbitral, mas também do ponto 308 da mesma, que inclui uma referência a um valor (€474.761,40) calculado com base na tabela Q4B.C errada. 68. E, como conclusão lógica desse exercício, impõe-se a substituição da redação da alínea b) do dispositivo da Sentença Arbitral por outra que condene o Requerido no pagamento de €826.330,20 à Primeira Requerida IV. DA DECISÃO 69. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide revogar o ponto (ii) do dispositivo do Despacho Arbitral de 23.01.2023, pelo qual se declarava improcedente o Pedido de reforma e retificação da Sentença Arbitral apresentado pelas Requerentes em 27 de dezembro de 2022; e bem assim (i) Declarar procedente o Pedido de reforma e retificação da Sentença Arbitral apresentado pelas Requerentes em 27 de dezembro de 2022; e, nesse ensejo, (ii) determinar a substituição da tabela constante do ponto 199 da Sentença Arbitral pela seguinte tabela ( conforme ANEXO 2 que se junta): (…) (iii) Determinar a substituição da redação do ponto 276 da Sentença Arbitral pela seguinte redação: “Nestes termos, sem sede de resposta a Requerimento que lhe foi dirigido, em sede de Esclarecimentos, pelas Requerentes, o Colégio de Peritos considerou que a diferença no cash flow operacional antes de impostos verificada entre a média entre os anos de 2017 a 2019 e os anos de 2019 a 2020, empregando uma taxa de atualização de 5%, foi a seguinte: »Contrato de Concessão dos ... e ...: € 3.128.514,00; »Contrato de Concessão do ...: € 1.377.217,00; »Contrato de Concessão do ...: € 35.320,00” (iv) Determinar a substituição da redação do ponto 308 da Sentença Arbitral pela seguinte redação: “ Em suma, fica o Requerido condenado a: » Prorrogar o prazo de vigência do Contrato de Concessão dos ... e ... m 7 meses e 26 dias; » Prorrogar o prazo de vigência do Contrato de Concessão do ... em 1 mês e 10 dias; » Pagar uma compensação no valor de €826.330,20 à Primeira Requerente”. (v) Determinar a substituição da redação da alínea b) do dispositivo da Sentença Arbitral pela seguinte redação: “Condenar o Requerido no pagamento de uma compensação financeira à Primeira Requerente no valor de €826.330,20 (oitocentos e vinte e seis mil, trezentos e trinta euros e vinte cêntimos) acrescido de juros legais”» 2. De Direito A única questão que vem suscitada no âmbito do presente recurso é a de saber se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao conceder provimento ao recurso e anular o “despacho” (complemento rectificativo de decisão arbitral) proferido pelo Tribunal Arbitral, em 3 de Fevereiro de 2023, com fundamento na violação do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), subalíneas iv), v), vi) e n.º 7 da LAV. Segundo a fundamentação expendida na decisão do TCA aqui sob escrutínio, “(…) o que sucedeu é que ocorreu um erro de julgamento na apreciação que os Senhores Árbitros realizaram quanto aos elementos de prova que estavam no processo ao seu dispor, circunstância que os determinou, posteriormente, a entender que deveriam ter considerado como provados factos diferentes daqueles que efetivamente consideraram, erro esse que não era de todo percetível pela analise da Sentença Arbitral, não podemos senão concluir que não houve nenhum erro material, de cálculo ou tipográfico, mas um erro de julgamento, para cuja correção os senhores árbitros já não detinham poder jurisdicional”. E enquadrou juridicamente a questão da seguinte forma: “o despacho de 03/02/2023 excede os limites da retificação da sentença arbitral fixados no artigo 45.º, n.ºs 1 e 2 da LAV, e do artigo 40.º, n.º 2 do Regulamento Arbitral do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, tendo o Tribunal Arbitral tomado conhecimento de uma questão que não podia conhecer, o que constitui fundamento para a anulação”. O aqui Recorrente não se conforma com aquela decisão e considera que a mesma enferma de erro de julgamento, que caracteriza pelo facto de as normas da LAV invocadas como fundamento para a anulação parcial da decisão arbitral não terem correspondência com o circunstancialismo recortado, ou seja, considera que o complemento de decisão arbitral proferido em 03.02.2023 e que foi anulado pelo acórdão do TCA Norte aqui recorrido deve ser interpretação como o exercício legítimo do poder de rectificação da decisão arbitral previsto no artigo 45.º, n.ºs 1 e 4 da LAV e 40.º do Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa. A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem recortado o poder de rectificação de uma decisão judicial pelo Tribunal que a profere nos seguintes termos: “I. Os erros materiais da decisão, a que se alude no art.º 614.º/1 do CPC, têm lugar quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. II. Tal divergência deve ressaltar, de forma clara e ostensiva, do teor da própria decisão, só desta, do seu contexto ou estrutura, sendo possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão. III. Há que não confundir o erro material da decisão com o erro de julgamento: naquele, o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, não coincidindo o teor da sentença ou despacho com o que o juiz tinha em mente exarar (em suma, a vontade declarada diverge da vontade real); neste, o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. IV. O erro material da decisão é passível de rectificação, nos termos do art.º 614.º, n.º 1, CPC; já no erro de julgamento não pode o juiz socorrer-se deste preceito para o rectificar. Só em vias de recurso tal é possível” – ac. do STJ de 10.02.2022 (proc. 529/17.1T8AVV-A.G1.S1). “I- Existe erro material quando o juiz escreve coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou do despacho não coincide com o que juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. II- Erro material este que tem que emergir do próprio texto da decisão, ou seja, é o próprio texto da decisão que há de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão” – ac. do STJ de 13.07.2021 (proc. 380/19.4T8OLH-D.E1.S1) Conceito de “lapso manifesto” ou “erro” que tem igualmente sido acolhido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo v. acórdão de 05.07.2023 (proc. 0847/21.4BEPRT). O caso dos autos não se pode subsumir a um caso de lapso de escrita manifesto, nem a correcção que resulta da segunda decisão arbitral se pode considerar como uma mera rectificação. O que está em causa é a modificação da decisão na parte respeitante ao quantum da indemnização devida com fundamento em erro nos elementos de prova utilizados para a formação e fundamentação da decisão. Não se trata de um lapso de escrita na transcrição para a decisão do quantum da indemnização, mas sim de na primeira decisão arbitral ter sido utilizado um elemento de prova (um relatório do perito) numa formulação que não era a última e a correcta. Assim, o que a segunda decisão arbitral faz não é uma mera correcção de um lapso de escrita a respeito do valor da indemnização. Trata-se de uma nova decisão condenatória, que, mobilizando a versão que se alega ser a correcta ou a corrigida do relatório pericial, produz uma decisão condenatória em montante diverso daquele que constava da decisão inicial. Estamos perante a mobilização de um instrumento de prova diferente daquele que foi utilizado na produção da decisão arbitral de 22.12.2022 – o relatório dos peritos enviado no segundo email – e que por isso dá lugar a um resultado condenatório diferente, em montante diferente. Tem por isso razão a decisão recorrida ao considerar que esta factualidade não pode ser qualificada como um caso de rectificação para efeitos do disposto no artigo 45.º da LAV. Pois, como também se explica no acórdão recorrido, a formulação textual adoptada no artigo 45.º da LAV e no artigo 40.º do Regulamento do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa é semelhante à que se encontra vertida no artigo 614.º do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º do CPTA. Isto significa que se uma tal correcção não poderia ter lugar sob a aplicação do regime do artigo 614.º do CPC, a mesma também não pode qualificar-se como juridicamente válida ao abrigo das mencionadas disposições do regime jurídico da arbitragem. E a jurisprudência dos Tribunais Supremos há muito que explica a razão pela qual esta solução não pode considerar-se legítima. É que uma vez proferida a decisão, o poder jurisdicional (e arbitral) esgota-se e aqueles que exercem essa função perdem o poder de proceder à respectiva modificação. Trata-se de uma refracção do princípio da segurança jurídica relativo ao exercício do poder judicial. Refracção que é também expressamente imposta pelo legislado no domínio da decisão arbitral ex vi do disposto no artigo 44.º, n.º 3 da LAV [“As funções do tribunal arbitral cessam com o encerramento do processo arbitral, sem prejuízo do disposto no artigo 45.º e no n.º 8 do artigo 46.º”]. Neste particular, não há diferença entre o exercício do poder arbitral e o exercício do poder judicial, pelo que carece de sentido a argumentação do Recorrente a respeito das especificidades da decisão arbitral quanto à composição do litígio. E também não tem acolhimento a argumentação de que este caso pode qualificar-se como um erro de declaração da vontade, uma vez que não existe divergência entre a vontade real e a vontade declarada. Primeiro essa divergência existe, pois a vontade declarada na decisão arbitral corresponde à vontade real ali subjacente, uma vez que da fundamentação dessa decisão não se extrai, em nenhuma passagem, nem dos elementos que integram o processo, que havia um erro no primeiro relatório pericial enviado. Nada nos autos se refere a este elemento, o que sucedeu foi que os árbitros deram como “correcto” um documento e proferiram uma decisão condenatória em conformidade com ele. Só depois de proferida essa decisão – e, consequentemente, de esgotado o seu poder arbitral – é que terão verificado que o documento que validaram não era o correcto e, para o efeito, produziram nova decisão com base no novo documento. Mas isso não é uma correcção para efeitos jurídicos, isso corresponde à prática de uma nova e diferente decisão, cuja motivação para a respectiva produção as partes alegam ser um erro, lapso ou equívoco, na produção da primeira decisão, por erro na utilização dos elementos de prova. Mas este erro não é interno à decisão, não resulta patente dela e, nessa medida, materialmente não se pode dizer que se está a operar uma recomposição da decisão face a elementos internos e externalizados da mesma, como se exige no caso da rectificação. Como se afirma na jurisprudência do STJ antes transcrita, “a admissibilidade de requerer rectificações explica-se por se tratar de alterações materiais que não modificam o que ficou decidido”. Ora, neste caso, estamos perante uma alteração material que modifica o que ficou decidido, pois, para o que aqui importa, o que ficou decidido em 20.12.2022 foi “condenar o Requerido no pagamento de uma compensação financeira à Primeira Requerente no valor de € 476.761,40 …. acrescido de juros legais”, e o que se decidiu em 03.02.2023 foi “condenar o Requerido no pagamento de uma compensação financeira à Primeira Requerente no valor de € 826.330,20 (oitocentos e vinte e seis mil, trezentos e trinta euros e vinte cêntimos) acrescido de juros legais”. Decisão de modificação que tem um fundamento diferente, o de um outro relatório dos peritos, o relatório enviado às 18h17, que era diferente do relatório enviado às 17h58 e que esteve na base da decisão anterior. Não há dúvida de que estamos perante um equívoco motivado por elementos externos ao teor do que foi expresso na primeira decisão e que isso, em si, é suficiente para não permitir subsumir o caso ao exercício legalmente legítimo do poder de rectificação de uma decisão arbitral depois de esgotado o respectivo poder. É o facto de a modificação efectuada no teor da decisão não resultar inferível da leitura da decisão alegadamente rectificada que inviabiliza essa qualificação jurídica. Embora se reconheça que o caso pode assumir complexidade, há que concluir também que os ditames da segurança jurídica aqui em jogo, que impõem limites tão estritos ao poder de modificar o teor da decisão após se esgotar o poder arbitral ou jurisdicional, são, em si, suficientemente fortes para impedir que possamos alcançar in casu uma solução diversa. Uma última nota para sublinhar que não se afigura relevante, face ao teor claro da motivação expendida na decisão recorrida, a maior ou menor precisão na concreta identificação das subalíneas da alínea à do n.º 3 do artigo 46.º da LAV que ditam a anulação da decisão arbitral de 03.02.2023 aqui impugnada, uma vez que, tratando-se de uma decisão arbitral proferida depois de esgotado o poder arbitral e que não se cinge ao poder de rectificação, ela infringe, também, as regras sobre a produção da decisão arbitral (subalínea vi), sobre os limites do poder arbitral (subalínea v) e sobre o exercício em si do poder arbitral (subalínea iv). III – DECISÃO Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao recurso. Custas pelas Recorrentes com dispensa de 30% do remanescente da taxa de justiça (artigo 6.º, n.º 7 do RCP), atento o carácter relativamente remissivo da decisão. Lisboa, 11 de Julho de 2024. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Pedro José Marchão Marques - José Augusto Araújo Veloso. |