Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2565/18.1T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CASO JULGADO
SIMULAÇÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Não se verifica a exceção de caso julgado, se o objeto da ação se reporta ao preenchimento dos pressupostos da aquisição por usucapião, enquanto a decisão anterior, proferida numa ação de impugnação de escritura de justificação notarial, já transitada em julgado, expressamente excluiu, na sua fundamentação, a aquisição por usucapião, tratando apenas da questão de saber se os réus adquiriram o direito de propriedade sobre o bem, por via testamentária, fundamento apresentado no ato de justificação notarial.
Decisão Texto Integral:

I - Relatório


1. AA e mulher, BB, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra Imobiliária Construtora Grão-Pará, S.A., pedindo se reconheça que são proprietários do prédio urbano que identificam.

Alegam, para o efeito, que a posse do prédio urbano correspondente ao lote … da Urbanização …., sito na freguesia de …., concelho de …., descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo …..10º, atual ….71º, lhes foi transmitida por CC pelo menos em 1974, sendo por esta detida desde pelo menos 1966, tendo-a adquirido de DD, cuja posse se iniciou pelo menos em 1964; acrescentam que, em 10-04-1964, a ré outorgou contrato de compromisso de compra e venda do aludido lote … com a citada DD, tendo permitido que esta fizesse as benfeitorias que entendesse e recebido o preço acordado, dando quitação; posteriormente, foi outorgado novo contrato-promessa entre DD e CC, através do qual aquela declarou prometer vender e esta declarou prometer comprar o aludido lote, tendo sido paga a totalidade do preço acordado; sustentam que o referido lote esteve na posse dos autores, por si e seus antecessores, durante mais de 50 anos, de forma ininterrupta, sem qualquer oposição por parte da ré ou de quem quer que seja, à vista de todos, de forma pública, pacífica e de boa fé, na convicção de que o mesmo lhes pertencia, designadamente, nele aparcando viaturas automóveis, procedendo à respetiva limpeza, suportando todos os encargos que gera, incluindo o pagamento de SISA, cuja liquidação a ré ordenou, e da contribuição autárquica, requerendo a avaliação do lote, sendo inclusivamente reconhecido junto da Fazenda Pública, através da inserção do respetivo nome como proprietário na caderneta predial, concluindo que, se por outro título não foi adquirido, sempre o adquiriram por usucapião, que expressamente invocam.

Mais alegam que os referidos factos foram reconhecidos por sentença, transitada em julgado, proferida no processo que correu termos sob o n.º 3687/10…. no …..º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca …., que declarou ineficaz e de nenhum efeito a escritura de justificação notarial efetivada a favor de EE e mulher, FF, e ordenou o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos mesmos; acrescentam que consta da aludida sentença o seguinte: “Não sendo a sociedade imobiliária Grão Pará parte nesta acção terá de improceder o pedido dos autores, de reconhecimento de propriedade do imóvel. Contudo, o mesmo não se dirá ao reconhecimento da legítima posse, uma vez que no contrato promessa de compra e venda outorgado em 1964 e indicado em 4 dos factos provados, houve tradição da coisa. Assim, entendendo o Tribunal, que os autores assumem na qualidade de promitentes-compradores a posição contratual de DD, têm direito ao reconhecimento da posse que em 1964 foi transmitida a esta por via contratual pela sociedade imobiliária Grão Pará, preferindo a posse material e actual dos réus, porque titulada e mais antiga – artigo 1278.º, n.º 3, do Código Civil”.

Citada, a ré contestou, defendendo-se por exceção – arguindo o caso julgado, sustentando que os factos alegados e o pedido deduzido pelos autores já foram julgados e decididos no âmbito do processo n.º 3687/10….. que correu termos no …..º Juízo Cível de …… e do processo n.º 2622/15….. do Juízo Central Cível de ….. – e por impugnação, e invoca a litigância de má fé por parte dos autores.

Os autores apresentaram articulado, no qual se pronunciam no sentido da não verificação da exceção arguida na contestação e da invocada litigância de má fé.

Foi realizada audiência prévia.


2. Foi proferida decisão, na qual se julgou procedente a exceção de caso julgado, tendo a ré sido absolvida da instância e os autores condenados nas custas.

3. Inconformados, os autores interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por decisão que considere improcedente a exceção de caso julgado e determine o prosseguimento dos autos.

4. O Tribunal da Relação decidiu julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.

3. Imobiliária Construtora GrãoPará, inconformada com o acórdão que revogou a sentença do tribunal de 1.ª instância, veio interpor recurso de revista fundado em violação de caso julgado constituído pela decisão proferida no processo n.º 2622/15….. do Juízo Central Cível de …, no qual formulou as seguintes conclusões:


4. Os recorridos apresentaram contra-alegações nas quais pugnaram pela manutenção do decidido.

5. O recurso é admissível, não obstante o acórdão recorrido ter natureza interlocutória, por se integrar numa das hipóteses em que a lei determina que o recurso de revista é sempre admissível, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC.

6. Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões, a única questão a decidir é a de saber se está ou não verificada a exceção de caso julgado.

Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

A – Os Factos

O Tribunal da Relação considerou assente a seguinte matéria de facto:

«2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:

a) Nos Autos que correram termos no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de …., …..º Juízo Cível, sob o n.º 3687/10…., declarou-se ineficaz e de nenhum efeito a escritura de justificação notarial, efetivada a favor de EE e mulher, FF e ordenou-se o cancelamento da inscrição de aquisição a favor dos mesmos, sendo que nessa sentença pode ler-se “Não sendo a sociedade imobiliária Grão Pará parte nesta acção terá de improceder o pedido dos autores, de reconhecimento de propriedade do imóvel. Contudo, o mesmo não se dirá ao reconhecimento da legítima posse, uma vez que no contrato promessa de compra e venda outorgado em 1964 e indicado em 4 dos factos provados, houve tradição da coisa. Assim, entendendo o Tribunal, que os autores assumem na qualidade de promitentes compradores a posição contratual de DD, têm direito ao reconhecimento da posse que em 1964 foi transmitida a esta por via contratual pela sociedade imobiliária Grão Pará, preferindo a posse material e actual dos réus, porque titulada e mais antiga – artigo 1278.º, n.º 3, do Código Civil”.

b) A ora R. Grão Pará moveu aos AA. o Processo que veio a ter o nº 2622/15….., do Juízo Central Cível de … - Juiz …., em que, como referido, foi autora a aqui R. Imobiliária Construtora Grão Pará, SA e RR. AA e mulher, AA. nos presentes autos, processo que respeitava à impugnação de uma escritura de justificação notarial, celebrada em 21 de janeiro de 2015, na qual os AA. se apresentaram como adquirentes do imóvel.

c) Ali foram, entre outros, formulados os pedidos de que:

- se viessem a considerar impugnados os factos justificativos da escritura de 21 de janeiro de 2015, referentes às invocadas aquisições por DD, CC e marido GG, por estes não terem celebrado qualquer escritura pública com a autora e, posteriormente entre eles;

- se considerasse que os réus não adquiriram por testamento o prédio ajuizado, porquanto o mesmo nunca fora propriedade dos testadores, se viesse a declarar de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial e se viesse a ordenar o cancelamento dos registos operados com base no documento impugnado.

d) O objeto da impugnação era a escritura de 21 de janeiro de 2015, na qual os réus declararam perante o Notário serem "donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem" do lote .....  e que foram realizadas escrituras públicas de transmissão da propriedade do lote .....  do Loteamento …, entre a aqui autora e a promitente compradora DD e após a escritura de compra e venda entre esta e CC, "que procuraram essas escrituras, mas que não as encontraram nos Notários de … e concelhos limítrofes". Mais declararam que "CC deixou como único herdeiro o seu marido, GG e este fez testamento outorgado a vinte de janeiro de mil novecentos e noventa e dois (...) pelo qual legou o mesmo imóvel aos aqui justificantes”.

e) Nessa ação (em que, repete-se a aqui R. era autora e os aqui AA. eram réus) foi dado como provado, além do mais, o seguinte:

[…]

14. Há vários anos, o réu contactou a autora, solicitando-lhe a celebração da escritura de compra e venda inerente ao contrato-promessa de compra e venda celebrado com a promitente compradora do Lote ..... , DD, alegando que esta o teria cedido a uma sua tia CC, casada com GG, ambos falecidos, e por esta lhe ter deixado em testamento o identificado Lote…, da Urbanização … (art. 18.º da petição inicial)

15. Exibiu então outro contrato promessa, sem data, que a promitente compradora DD terá celebrado com CC, onde DD, intitulando-se dona do lote ..... , declarara prometer vender, tendo recebido a totalidade do preço acordado, e CC declarara prometer comprar o lote ..... ; e o testamento desta a seu favor, caso o marido, GG não lhe sobrevivesse - fls. 40 (139-141) e 42 (142) (art. 19.º da petição inicial)

16. A autora desconhecia, não foi ouvida e não consentiu na cedência de posição contratual em que consiste o acordo de fls. 40 (art. 20.º da petição inicial).

17. A autora recusou a pretensão do réu AA de celebrar com ele a escritura de compra e venda do identificado lote, apesar de este a ter contactado diversas vezes com essa finalidade - fls. 207 (carta de 17 de março de 1995 e resposta de fls. 209) (art. 21.º da petição inicial).

18. Perante a insistência do réu AA feita por escrito e por contacto pessoal, a autora através do seu advogado, por carta de 30 de dezembro de 1998, recusou categoricamente a celebração de escritura com aquele para o ajuizado lote - fls. 45 (art. 22.º da petição inicial)

[…]

23. Em abril de 2010, os aqui réus requereram a "notificação judicial avulsa" da aqui autora para a sede de há já vários anos, na Rua da …., nºs … a …. - Escritório …, em ….. O objetivo era a outorga da escritura de compra e venda do lote .....  e foi concretizada no dia 3 de maio de 2010 - fls. 78-87/264 (art. 34.º da petição inicial e 54.º da contestação)

[…]

29. Os réus sabem que não existem as escrituras que invocaram (art. 46.º da petição inicial)

30. Apesar de no contrato-promessa celebrado entre a autora e a promitente compradora DD se prever que esta poderia fazer no lote as benfeitorias que entendesse, esta nada fez no lote (art. 50.º da petição inicial)

f) Quanto a matéria não provada foi referido na sentença que:

Ficou por demonstrar:

- Que DD, através do contrato reduzido a escrito tenha vendido o dito Lote .....  a CC e que esse facto seja do conhecimento da autora e por si aceite (arts. 15.º a 17.º da contestação)

- Que os réus sempre tivessem atuado com animus de donos (art. 41.º da contestação)

g) Assim, em sede de fundamentação de direito foi referido que:

Os réus assumiram perante o lote .....  uma posição ambivalente: ora se afirmando como donos perante as Finanças, tendo pago a sisa no momento em que previam ir realizar a escritura de compra e venda e os impostos subsequentes, ora limpando o terreno, ora opondo-se a quem se afirmava como dono, mas também, e perante a autora, reclamando a realização da escritura de compra e venda quer por carta (desde 1994) quer através de notificação judicial avulsa (em 2010), assumindo, portanto, perante a pessoa que figurava como dona no registo, que não eram ainda donos nem agiam como tal. De outra forma não se justificaria o pedido para outorga da escritura de compra e venda.

Assim, não se provou que os réus:

- Tenham adquirido o lote .....  por via testamentária;

- Tenham adquirido por outra via por oposição à situação registral evidenciada e da qual resulta que é a autora a dona do lote .....  por via a aplicação do art. 7.º do Código do Registo Predial.

A ação procederá.

h) A final foi proferida a seguinte decisão:

Pelo exposto, julgo procedente a ação proposta por IMOBILIÁRIA CONSTRUTORA GRÃO-PARÁ, S.A. contra AA e BB e, em consequência, decido:

Declarar ineficaz a escritura pública de justificação relativa ao lote ..... , imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … (…), freguesia de …, sob o n.º .., outorgada em 21 de janeiro de 2015 no Cartório Notarial de … pela Dra. HH, e lavrada de fls. 21 a 23 do Livro para Escrituras Diversas nº …, cuja certidão consta a fls. 72;

Determinar o cancelamento das inscrições de aquisição que a seguir se identificam e relativas ao identificado imóvel: Ap. 1964, Ap. 1965 e Ap. 1966, todas de 14 de abril de 2015.

2.1.2. Outros factos provados:

i) Foi interposto recurso de apelação da sentença proferida no processo identificado na alínea b) de 2.1.1., o qual foi decidido por acórdão proferido por esta Relação a 09-11-2017, transitado em julgado, que julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida;

j) No acórdão a que alude a alínea i), foi considerada parcialmente procedente a impugnação, deduzida na apelação, da decisão sobre a matéria de facto, em consequência do que se determinou, além do mais, o seguinte:

Do exposto e relativamente à matéria de facto decide-se:

a) Modificar a redação dos pontos dados como provados sob os n.º 15. 17. 18. 21. 25. 27. 28 e 33, que passam a ter a seguinte redação:

15 - Exibiu então outro contrato promessa, sem data, que a promitente compradora DD terá celebrado com CC, onde DD, intitulando-se dona do lote ..... , declara “por este contrato vende ao segundo e este promete comprar o referido talhão (lote – …) pelo preço de cento e vinte mil escudos”, tendo recebido a totalidade do preço acordado; e o testamento desta a seu favor, caso o marido, GG não lhe sobrevivesse.

17. A autora recusou, em princípio a pretensão do réu AA de celebrar com ele a escritura de compra e venda do identificado lote, até porque em seu entendimento “os direitos que resultam do contrato que celebrámos com a Sra. D. DD já se encontrarem há muito prescritos” mas predispôs-se a tal celebração “de acordo com as regras da boa-fé” desde que o réu fizesse prova “da inexistência de qualquer herdeiro conhecido da D. DD e do consentimento do Sr. GG”.

18. Mas posteriormente, a autora através do seu advogado, por carta de 30 de dezembro de 1998, recusou a celebração de escritura com aquele para o ajuizado lote.

[…]

b) Aditar aos factos provados a seguinte matéria:

[…]

c) Eliminar o acervo factual dado como não provado, nas supra referidas als. a) e b).

l) Extrai-se da fundamentação do acórdão a que alude a alínea i), além do mais, o seguinte:

(…) estamos no âmbito de uma ação intentada com vista à impugnação da escritura de justificação notarial, por os factos nela feitos constar não descreverem a realidade, sendo a questão essencial em discussão saber se os réus adquiriram o direito de propriedade sobre o bem, por via testamentária, fundamento por si apresentado no ato de justificação notarial.

Na justificação notarial os réus não invocaram aquisição do lote por via da prescrição aquisitiva e muito embora o viessem fazer na reconvenção que apresentaram na presente ação, a mesma não foi admitida, pelo que esse fundamento de aquisição do direito de propriedade – usucapião – não está em apreciação no âmbito desta ação. Pois, só estaria se na escritura de justificação notarial tivessem os réus afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura. Donde não relevam quaisquer atos de posse, boa ou má, que os recorrentes se arroguem sobre o terreno para a sorte da presente ação.

(…)

Perante o circunstancialismo factual dado como provado (sendo certo que as modificações introduzidas nos factos provados pelo este tribunal superior não relevam para apreciação da questão nuclear) podemos concluir que:

- A autora nunca celebrou escritura de compra e venda o lote em causa nos autos;

- No registo predial surgem registo de compras e aquisições por sucessão;

- O réu contatou autora solicitando-lhe a celebração da escritura do lote em causa nos autos;

- Os réus em Abril de 2010 requereram “notificação judicial avulsa da autora para a sede de há vários anos, na Rua da …, n.ºs …. a … – escritório …., em …. O objetivo era a outorga da escritura de compra e venda do lote .....  e foi concretizada no dia 3 de Maio de 2010”;

- No dia 21 de Janeiro de 2015, os réus declararam perante o Notário serem “donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem” do lote .....  e que foram realizadas escrituras públicas de transmissão da propriedade do lote .....  do loteamento …. entre a autora e a promitente compradora DD e após a escritura de compra e venda, entre esta e CC, mas “que procuraram estas escrituras, mas que não as encontraram nos Notários de …. e concelhos limítrofes”.

De tal decorre que os réus procuraram junto da autora que esta outorgasse com eles a escritura a fim de sustentarem a transmissão para si da propriedade do lote em causa, prossupondo tal atitude que sabiam não existirem escrituras que alicerçassem a transmissão do direito de propriedade detido pela autora, para outrem, pelo que quando recorreram ao notário para realização da escritura de justificação notarial e afirmaram perante ele os factos que tal escritura retrata não podiam desconhecer que o que relataram não estava de acordo com a realidade.

Por isso, bem andou o Julgados a quo em salientar que “os réus assumiram perante o lote .....  uma posição ambivalente: ora se afirmando como donos perante as Finanças, tendo pago a sisa no momento em que previam ir realizar a escritura de compra e venda e os impostos subsequentes, ora limpando o terreno, ora opondo-se a quem se afirmava como dono, mas também, e perante a autora, reclamando a realização da escritura de compra e venda quer por carta (desde 1994) quer através de notificação judicial avulsa (em 2010), assumindo, portanto, perante a pessoa que figurava como dona no registo, que não eram ainda donos nem agiam como tal. De outra forma não se justificaria o pedido para outorga da escritura de compra e venda.” E, bem assim, em reconhecer não se ter provado que os réus tenham adquirido o lote ..... , designadamente por via testamentária, relevando por isso a situação registral decorrente da aplicação do art.º 7.º do Código do Registo Predial que atribui à autora o direito de propriedade sobre o imóvel.

Os factos constantes das alíneas i) a l) foram considerados provados com base no teor da certidão do acórdão neles mencionado, junta aos autos».


B – O Direito

1. Entendeu o tribunal de 1.ª instância que a questão que constitui o objeto da presente ação se encontra abrangida pela autoridade do caso julgado emergente da decisão transitada em julgado, proferida na ação declarativa que correu termos sob o n.º 2622/15…. no Juízo Central Cível de …., intentada pela ora ré, Imobiliária Grã Pará, contra os ora autores, e concluiu que tal impede a respetiva reapreciação, tendo decidido fazer valer o caso julgado a título de exceção.

A sentença considerou verificada a exceção de caso julgado com o seguinte fundamento:

(…)

Na presente causa, é agora pedido o reconhecimento da aquisição de propriedade por parte dos AA. por usucapião, com base em contrato promessa com tradição da coisa e pagamento do preço. Assim, essa tradição acompanhada do pagamento do preço, associada ao decurso do tempo, fazendo com que existisse posse, legitimava igualmente a invocação de existência de usucapião.

(…)

Ou seja, se entre as mesmas partes já improcedeu uma causa onde se deu como provado, e tal foi pressuposto obrigatório da decisão final, que os ora autores tinham praticado atos incompatíveis com existência de posse boa para usucapião pela sua parte, a não se considerar que existia caso julgado, iria o tribunal ver se na contingência de contradizer decisão anterior ou, na melhor das hipóteses, a repetir.

Ou se diria que efetivamente os autores praticaram os atos já referidos no processo anterior, o que necessariamente conduziria a decisão igual, ou poderia comprovar-se coisa diversa, o que é precisamente o que se visa evitar com o instituto do caso julgado.

Ou seja, tendo sido decidido que os autores praticaram atos incompatíveis com a existência de uma posse, e uma posse contínua, da sua parte, não pode na presente causa decidir-se coisa diversa.

Estamos assim, para além do efeito propriamente dito de caso julgado, perante a chamada “autoridade de caso julgado” (…)

A mesma implica que os efeitos do caso julgado abranjam, tanto os fundamentos da demanda como até os próprios fundamentos que foram ou deveriam ter sido aduzidos como defesa. 

2. Já o acórdão recorrido, entendeu não estar verificada a exceção de caso julgado, com o seguinte fundamento que consta do sumário do acórdão:

 «II - A procedência de ação de impugnação de escritura de justificação notarial, na qual estava em causa a veracidade de factos declarados pelos outorgantes como geradores da aquisição, por via testamentária, do direito de propriedade sobre determinado imóvel, não impede os outorgantes dessa escritura de intentarem ação visando obter o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel;

III – Não podendo considerar-se que o objeto da presente ação constituiu questão decidida no anterior processo, o trânsito em julgado da decisão nele proferida não tem o efeito negativo de impedir a prolação de decisão de mérito no âmbito dos presentes autos, assim não podendo o caso julgado ser feito valer como exceção».           

3. Baseia-se o recurso de revista na alegada ofensa do caso julgado formado pela decisão proferida no processo n.º 2622/15……. no Juízo Central Cível …., que correu termos entre as mesmas partes, embora em posições distintas, e incidiu sobre o imóvel agora em litígio. Tratou-se de uma ação de impugnação de escritura de justificação notarial, movida pela agora ré Imobiliária Construtora Grão Pará, contra os agora autores, em que foi declara ineficaz a escritura de justificação notarial, celebrada em 21-01-2015, na qual os autores se apresentavam como adquirentes do imóvel por via testamentária. Já no presente processo os réus da primeira ação, agora autores, peticionam a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, sobre o referido imóvel.           

4. O caso julgado vincula as partes da ação, não apenas no processo onde foi proferida a decisão, mas também no âmbito de outros processos, exercendo uma função negativa, ao impedir a repetição da causa decidida com trânsito em julgado, e uma função positiva, ao fazer valer a sua autoridade, impondo a decisão tomada relativamente a decisões a proferir em novas ações, visando evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica.

É sabido que, transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil. O alcance do caso julgado decorre dos próprios termos da decisão, dado determinar o artigo 621.º do CPC que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”. Daqui resulta que o caso julgado abrange apenas a parte decisória e não, em princípio, os fundamentos de facto e de direito em que se baseia, podendo os seus limites integrar a decisão de questões que constituam antecedente lógico que conduza à decisão final.

São requisitos do caso julgado a identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e causa de pedir.   

Importa, pois, apreciar os requisitos da exceção de caso julgado, discutindo-se a identidade de causa de pedir da presente ação e a causa de pedir da ação n.º 2622/15…. no Juízo Central Cível …..

A jurisprudência tem admitido «(…) como regra geral, que os fundamentos de facto da sentença não estarão cobertos pelo caso julgado, dito de outro modo, os fundamentos de facto da sentença, quando dela autonomizados, não adquirem valor de caso julgado» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2018, proc. n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1)

Nos termos da lei, existe identidade de causa de pedir (artigo 581.º, n.º 4, do CPC) «quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico». 

Os conceitos de “causa de pedir” e de “facto jurídico” são conceitos técnicos, cujo entendimento não é linear: carecem de ser densificados pela doutrina e pela jurisprudência, e têm, necessariamente uma componente casuística que pressupõe a análise da fundamentação da decisão que formou caso julgado.

A causa de pedir é o ato ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir). Na noção de facto jurídico, para este efeito, está implícita uma interação entre a situação da vida e as normas jurídicas invocadas, na medida em que os factos alegados têm de se subsumir nos conceitos ou requisitos da norma jurídica, em moldes tais que a norma jurídica invocada pela parte dará uma coloração específica a esses factos e exigirá a demonstração de outros que não seriam exigidos para a aplicação de norma ou instituto jurídico distinto.

Segundo Mariana França de Gouveia (A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Colecção Teses de Doutoramento, Almedina, Coimbra, 2019, p. 497, citada in Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 662), «para efeitos de exceção de caso julgado, a causa de pedir será definida "através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada", daqui derivando que um mesmo acontecimento histórico possa ser reapreciado com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma não tenha sido apreciado pelo juiz». (realce nosso)

O âmbito do caso julgado inclui não só a decisão, mas também os seus fundamentos. Contudo, a este propósito a doutrina divide os fundamentos consoante a relação lógica que mantêm com a decisão, restringindo a eficácia do caso julgado aos fundamentos que constituem um antecedente lógico ou um passo necessário para a decisão final.

Como afirma Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição,  Lex, Lisboa, 1997, pp. 578-579, «O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (…), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão» (sublinhado nosso). 

No mesmo sentido, Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, 3.°-253), entende que «A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado».

Por outro lado, se as normas e institutos jurídicos em que se fundamenta o pedido forem distintos, nos dois processos, entende-se que não há identidade de causa de pedir (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-10-2019, proc. n.º 454/14.8TBGDM.P1.S1). No mesmo sentido, no Acórdão de 14-12-2016 (proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1), este Supremo Tribunal afirmou que «Não ocorre a excepção de caso julgado quando as pretensões materiais formuladas nas duas acções em confronto, para além de representarem vias jurídicas alternativas e estruturalmente diferenciadas para alcançar a tutela jurídica de determinado interesse, assentes em pressupostos legais perfeitamente autónomos, implicaram a formulação de pedidos estruturalmente diferentes (…). Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-07-2020 (Processo n.º 1937/18.6T8PDL.L1.S1) «Não viola o caso julgado uma decisão que manda prosseguir o processo a fim de conhecer dos requisitos do enriquecimento sem causa (artigo 473.º do Código Civil), quando a decisão anterior, já transitada em julgado, expressamente excluiu, na sua fundamentação, o conhecimento dos factos alegados à luz das normas deste instituto, por não integrarem a causa de pedir».

 5. Apesar de se verificar que a aquisição pelos autores do direito de propriedade sobre o mesmo bem imóvel integra o objeto de ambas as ações, igualmente se constata que está em causa em cada processo um diverso modo de aquisição da propriedade: nos presentes autos os autores invocam a aquisição por usucapião e na anterior ação os factos pelos mesmos declarados, na escritura de justificação impugnada, respeitam à aquisição por sucessão por morte.

No que respeita à aquisição originária, o artigo 1287.º do Código Civil define a usucapião como a faculdade que tem o possuidor do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, de, salvo disposição em contrário, adquirir o direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. Da definição legal constante do mencionado preceito resulta, desde logo, que a usucapião tem na sua base uma situação possessória, pelo que cumpre atender ao disposto no artigo 1251.º do citado Código, que define a posse como sendo “o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.

Constituindo a usucapião o fundamento jurídico invocado pelos autores para a aquisição do direito de propriedade sobre o lote ..... , cumpre atender à respetiva atuação relativamente a esse imóvel; ora, constata-se que tal atuação foi analisada, ainda que a título preliminar, no âmbito da ação anterior, com fundamento na factualidade aí tida como assente (cfr. al. e) de 2.1.1 e al. f) de 2.12, n.ºs 14 a 18, 23, 29 e 30).

No acórdão da Relação proferido no processo n.º 2622/15, declarou-se que os aí réus (aqui autores), tendo reclamado junto da aí autora (aqui ré) a realização de escritura de compra e venda do imóvel em causa – quer por carta (desde 1994) quer através de notificação judicial avulsa (em 2010) –, assumiram perante a pessoa que figurava como titular no registo que não eram ainda donos do bem.

No entanto, como entendeu o acórdão recorrido, apesar de tal constatação, não foi apreciada e decidida, ainda que a título preliminar, a questão do preenchimento pelos autores dos pressupostos da aquisição por usucapião do aludido bem, conforme claramente se extrai do seguinte excerto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no processo 2622/15…….:

(…) estamos no âmbito de uma ação intentada com vista à impugnação da escritura de justificação notarial, por os factos nela feitos constar não descreverem a realidade, sendo a questão essencial em discussão saber se os réus adquiriram o direito de propriedade sobre o bem, por via testamentária, fundamento por si apresentado no ato de justificação notarial.

Na justificação notarial os réus não invocaram aquisição do lote por via da prescrição aquisitiva e muito embora o viessem fazer na reconvenção que apresentaram na presente ação, a mesma não foi admitida, pelo que esse fundamento de aquisição do direito de propriedade – usucapião – não está em apreciação no âmbito desta ação. Pois, só estaria se na escritura de justificação notarial tivessem os réus afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura. Donde não relevam quaisquer atos de posse, boa ou má, que os recorrentes se arroguem sobre o terreno para a sorte da presente ação».

6. Em consequência, como também se entendeu no acórdão recorrido, não poderá considerar-se que o objeto da presente ação tenha constituído questão prejudicial decidida no anterior processo, pelo que o trânsito em julgado da decisão nele proferida não tem o efeito negativo de impedir a prolação de decisão de mérito no âmbito dos presentes autos, assim não podendo o caso julgado ser feito valer como exceção, conforme pretende a recorrente.

Deve prosseguir, pois, o processo, baixando ao tribunal de 1.ª instância, como decidiu o Tribunal da Relação.

Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Não se verifica a exceção de caso julgado, se o objeto da ação se reporta ao preenchimento dos pressupostos da aquisição por usucapião, enquanto a decisão anterior, proferida numa ação de impugnação de escritura de justificação notarial, já transitada em julgado, expressamente excluiu, na sua fundamentação, a aquisição por usucapião, tratando apenas da questão de saber se os réus adquiriram o direito de propriedade sobre o bem, por via testamentária, fundamento apresentado no ato de justificação notarial.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Supremo Tribunal da Justiça, 23 de março de 2021

Maria Clara Sottomayor – Relatora

Alexandre Reis – 1.º Adjunto

Pedro de Lima Gonçalves – 2.º Adjunto


Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).