Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
109/17.1T8ACB.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: TESTAMENTO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
TESTADOR
INCAPACIDADE
CONCEITO JURÍDICO
CONCEITO DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / FALTA DE VÍCIOS DA VONTADE / INCAPACIDADE ACIDENTAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Abel Simões Freire, Matéria de Facto-Matéria de Direito, CJ/STJ, Ano XI, Tomo III/2003, p. 5-7;
- Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, 1999, p. 147;
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 206-207;
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 268-269;
- Castanheira Neves, Matéria de Facto-Matéria de Direito, RLJ, Ano 129, p.162-165;
- Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 433;
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 637-638;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, p. 312;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 323 e 324;
- Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 312.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2199.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3 E 682.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-06-2012, PROCESSO N.º 3728/07.0TVLSB.L1.S1;
- DE 18-02-2016, PROCESSO N.º 1320/05.3TBCBR.C1.S1;
- DE 10-01-2017, PROCESSO N.º 761/13.7TVPRT.P1.S1;
- DE 28-09-2017, PROCESSO N.º 659/12.6TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo.
II - Reveste natureza jurídico-conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista valorativo da incapacidade da testadora, para efeitos de anulação do testamento, a afirmação de que esta não dispunha de capacidade para tomar decisões acerca da disposição do seu património, devendo ser havida como não escrita.
III - Mas já não será quando consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real.
IV - A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no art. 2199.º do CC, assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.
V - Não tem capacidade para entender o sentido e alcance da sua declaração, o testador que sofre de demência de corpos de Lewy, diagnosticada anos antes da outorga do testamento e que se encontrava totalmente dependente de terceiros.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

AA, residente na Rua ...., n.º ..., ......, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, residente na Rua....., A..., ......., pedindo que seja declarada a incapacidade da testadora na data da outorga do testamento e, consequentemente, seja o mesmo anulado, tudo com as legais consequências.

Para tanto, alegou, em resumo, que a testadora, sua mãe, de quem seria a única e universal herdeira caso não existisse testamento, quando o outorgou não detinha faculdades mentais de memória, inteligência e vontade necessárias à compreensão do acto, nem tal era possível em face da demência de que padecia, não sabendo o que estava a fazer, nomeadamente que estava a tirar uma parte do seu património à filha e a beneficiar uma pessoa que mal conhecia.

A ré contestou, impugnando a generalidade dos factos alegados e invocando que a testadora a instituiu sua herdeira testamentária por forma a compensá-la do não recebimento da totalidade das importâncias mensais que lhe eram devidas pela autora, relacionadas com os cuidados que prestou à sua mãe, em cumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado entre autora e ré. Concluiu pela validade do testamento e pela improcedência da acção.

Na audiência prévia realizada, foi proferido despacho saneador tabelar, foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, sem reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu julgar a acção improcedente e absolver a ré do pedido.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual foi apreciado e decidido por acórdão de 8/5/2019, tendo concluído com o seguinte dispositivo:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, revogando a sentença recorrida e na procedência da Apelação, julgar a acção procedente e, consequentemente, em anular, por incapacidade da testadora (artº 2199º do CC) o testamento outorgado em 27 de Julho de 2015 por CC, lavrado de fls. ....verso do Livro para testamentos e escrituras de revogação de testamentos n.º ....do Cartório Notarial de DD em.....”

Não conformada, desta feita, a ré interpôs recurso de revista e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

«1.Vem o presente recurso de revista do douto acórdão do Tribunal da Relação que revogou a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância e na procedência da apelação, julgou a acção procedente e, consequentemente, anulou, por incapacidade da testadora (art.º 2199º do Cód. Civil) o testamento outorgado em 27 de Julho de 2015 por CC, lavrado de fls. ....verso do Livro para testamentos e escrituras de revogação de testamentos n.º .... do Cartório Notarial de DD em .....

2.         O douto acórdão recorrido alterou a decisão quanta à matéria de facto dada como provada na primeira instância, passando a dar como provados, além do mais, os seguintes factos:

“16) A falecida testadora, devido à referida doença mental, não dispunha de capacidade para tomar decisões acerca da disposição do seu património.

17) Quando outorgou o testamento, a falecida, devido à “Demência de Corpos de   Lewy”,   de   que   era   portadora,   não   detinha   faculdades   mentais, necessárias   à   compreensão   do   acto   que   praticava   e   a   manifestar conscientemente a sua vontade, não  podendo, designadamente, saber que assim estava a tirar uma parte do seu património à filha e a beneficiar a Ré.

18) A falecida tinha, por reporte à ocasião em que outorgou o testamento, desde  há  anos,  perturbações  da  memória  imediata  e  recente,  humor depressivo e “Demência de Corpos de Lewy”, o que com o decorrer dos anos se agravou.”.

3.         A aqui recorrente não se conforma com o douto acórdão recorrido, manifestando-se, ainda, inconformada com a alteração da matéria de facto, porquanto, no seu modesto entendimento, os supra descritos pontos dados como factos provados, encerram matéria de Direito e não matéria de facto.

4.A matéria dos pontos supra referidos conclui pela incapacidade da testadora quando, na verdade, não se vislumbra na demais matéria de facto dada como provada, factos claros e concretos que conduzam a tal conclusão. Ao contrário, na matéria de facto dada como não provada vêm revelados factos concretos que, a terem sido dados como provados, é que poderiam conduzir a situação de incapacidade da testadora.

5.Ao dar como provado que a testadora não dispunha de capacidade para tomar decisões acerca da disposição do seu património (ponto 16 matéria de facto dada como provada) ou dar como provado que a testadora não detinha faculdades mentais, necessárias à compreensão do acto que praticava (ponto 17 da matéria de facto provada) e, depois, concluir que “Resulta assim que a aludida CC, se encontrava incapacitada de entender o sentido da sua declaração e não possuía o livre exercício da sua vontade…” é, salvo o devido respeito, concluir duas vezes sem quadro fáctico suficiente para tais conclusões.

6.Ao dar como provado que a testadora não detinha capacidades mentais ou que não dispunha de capacidade para tomar decisões é integrar o próprio conceito de incapacidade utilizando expressões valorativas e conclusivas que não encontram suporte factual na matéria dada como provada. É que, não fora a inserção de tais expressões, a matéria de facto dada como provada mostra-se insuficiente para se poder concluir pela incapacidade de testar por parte da testadora.

7.         Sem a inserção de tais expressões, valorativas e conclusivas, a matéria de facto dada como provada mostra-se insuficiente para se poder concluir pela incapacidade de testar por parte da testadora.

8.         Excluindo a factualidade descrita supra, como sendo matéria de direito, nenhum facto concreto se deu por provado que permita concluir que no momento da outorga do testamento a testadora se mostrava incapaz de o fazer por não saber ou não alcançar o sentido do seu acto, o sentido da sua declaração de vontade.

9.         O douto acórdão recorrido errou ao incluir proposições de direito na pronúncia de facto.

10.       A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 342º, n.º 1, 349º e 2199º, todos do Cód. Civil e 607º, n.º 4, a contrario e 662º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil.

NESTES TERMOS e nos melhores de Direito, nos poderes conferidos a este Venerando Tribunal, deverá ser concedida a revista, o douto acórdão recorrido ser revogado e, em consequência, julgar-se a acção totalmente improcedente e válido e de plenos efeitos o testamento outorgado em 27 de Julho de 2015 por CC, lavrado de fls. 74 a 74 verso do Livro para testamentos e escrituras de revogação de testamentos n.º 4-A do Cartório Notarial de DD em.........., assim se fazendo JUSTIÇA.»

A autora contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator no despacho liminar.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
            Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber se:
1.  Os factos dados como provados sob os n.º s 16, 17 e 18 devem ser excluídos por conterem matéria conclusiva e de direito;
2. e se os factos provados não permitem anular o testamento por falta de prova da incapacidade acidental da testadora.

II. Fundamentação


1. De facto

           No acórdão recorrido, após reapreciação da matéria de facto, foram dados como provados os seguintes factos:

 «1)CC faleceu no dia 06 de Abril de 2016, no estado de viúva de EE(certidão junta a fls. 101 e ss, extraída do procedimento simplificado de habilitação de herdeiros e registos n.º .......... da Conservatória do Registo Civil de..........).

2)CC deixou testamento público outorgado em 27 de Julho de 2015, numa casa sita na Rua Principal, n.º 8, lugar de Areeiro, freguesia de Évora de.........., concelho de.........., lavrado de fls. ..... verso do Livro para testamentos e escrituras de revogação de testamentos n.º ....do Cartório Notarial de DD em.........., pelo qual instituiu herdeira da sua quota disponível a ora ré, BB e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido (certidão a fls. 23 e ss).

3) A autora é a única filha dos falecidos CC e EE(acordo, conjugado com o teor dos documentos autênticos juntos a fls. 13 e ss – certidão da escritura pública de habilitação de herdeiros de EE- e a fls. 101 e ss - certidão do procedimento de habilitação de herdeiros de CC).

4) Por morte de seu pai, em 12 de Outubro de 2000, não foi feita qualquer partilha dos seus bens, tendo ficado registados em comum e sem determinação de parte ou direito a favor das suas únicas e universais herdeiras, a mulher e filha, ora autora (acordo, conjugado com o teor do documento autêntico junto a fls. 13 e ss – certidão da escritura pública de habilitação de herdeiros de EE).

5) A autora residiu com a sua mãe (testadora) até 26/02/2014.

6) A autora tomou conhecimento da existência de um local onde acolhem idosos como se de um lar se tratasse, explorado pela ré, tendo obtido boas informações sobre os cuidados que prestavam aos idosos que lá se encontravam.

7) Por a mãe da autora ter ficado completamente dependente da ajuda de terceiros e por o apoio do lar de dia se ter tornado insuficiente, a autora acordou com a ré em pôr a sua mãe nesse local, para que cuidassem dela, mediante o pagamento de uma prestação de €600,00 mensais, acrescida de despesas com medicamentos e fraldas.

8) A mãe da autora passou a estar aos cuidados da ré a partir de Março de 2014.

9) Nessa data a mãe da autora encontrava-se totalmente dependente de terceiros para as necessidades diárias.

10) Até 17/12/2013, a mãe da autora foi acompanhada por um neurologista, o Dr. FF, que lhe diagnosticou Demência de Corpos de Lewy, lesões vasculares isquémicas cerebrais múltiplas e síndrome depressivo major, reactivo à situação clínica (conforme relatório médico datado de 19/05/2016, junto a fls. 19-20).

11) Segundo documentos internos da ré, desde o início do período em que a testadora ficou aos cuidados da ré e até à sua morte, a autora nunca pagou à ré a totalidade das importâncias acordadas pela prestação de serviços.

12) Conhecedora desse facto, a testadora transmitiu à ré ser sua intenção instituí-la como sua herdeira testamentária, por forma a compensá-la do não recebimento da totalidade das importâncias mensais que lhe eram devidas pelos cuidados e assistência prestados.

13) A ideia de uma compensação em tais termos foi sugerida à testadora por uma sua irmã.

15) Já em 2012 a falecida, em resultado do seu estado psíquico, escrevia cartas ao falecido marido como se o mesmo estivesse vivo.

16) A falecida testadora, devido à referida doença mental, não dispunha de capacidade para tomar decisões acerca da disposição do seu património.

17) Quando outorgou o testamento, a falecida, devido à “Demência de Corpos de Lewy”, de que era portadora, não detinha faculdades mentais, necessárias à compreensão do acto que praticava e a manifestar conscientemente a sua vontade, não podendo, designadamente, saber que assim estava a tirar uma parte do seu património à filha e a beneficiar a Ré.

18) A falecida tinha, por reporte à ocasião em que outorgou o testamento, desde há anos, perturbações da memória imediata e recente, humor depressivo e “Demência de Corpos de Lewy”, o que com o decorrer dos anos se agravou.»


2. De direito


2.1. Da modificação da matéria de facto provada por efeito da sua qualificação

A recorrente pretende que se considerem excluídos os factos dados como provados sob os n.º s 16, 17 e 18 por conterem matéria conclusiva e de direito.

Antes de entrar na análise desta questão suscitada, importa deixar aqui bem claro o âmbito dos poderes do STJ na parte relativa à alteração da matéria de facto que consta dos art.ºs 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3, ambos do CPC.

Nos termos do primeiro normativo “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.

E, de acordo com este preceito, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Assim, o fundamento de revista previsto nesta norma visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Fora esta intervenção (excepcional), escapa, pois, aos poderes cognitivos do STJ apreciar a bondade da decisão de facto, cabendo essa missão ao Tribunal da Relação, que sobre a mesma decide em definitivo. Na verdade, é da competência das instâncias o julgamento respeitante à demonstração, ou não, da materialidade controvertida com base em prova sujeita à livre apreciação do tribunal.

A intervenção do STJ no domínio dos factos está reservada ao campo da designada prova tarifada ou vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige determinado tipo de prova para demonstração de certas circunstâncias factuais ou atribui específica força probatória a determinado meio probatório (citado art.º 674.º n.º 3).

Porém, saber se um facto concreto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida. Como se observou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Setembro de 2017, processo n.º 659/12.6TVLSB.L1.S1[3], citando o de 10/1/2017 (proc. 761/13.7TVPRT.P1.S1), “em tal caso este Tribunal não está a interferir na apreciação dos factos, não está a corrigir, indevidamente, um eventual erro na apreciação das instâncias, mas antes a proceder à sua qualificação como tal de acordo com as regras de direito aplicáveis”. No mesmo sentido também se pronunciaram, entre outros, segundo aquele aresto, os acórdãos do STJ de 18/2/2016 e de 28/6/2012 (processos n.º 1320/05.3TBCBR.C1.S1 e n.º 3728/07.0TVLSB.L1.S1, respectivamente).

Nesta perspectiva, não está em causa determinar se ocorreu ou não um concreto facto, ou seja, “sindicar a convicção formada pelo tribunal com base nas provas produzidas e de livre apreciação, mas avaliar se matéria considerada como um facto provado reflecte, indevidamente, uma apreciação de direito por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312)”[4].

Daí que, neste caso, o STJ tenha poderes cognitivos.

E, verificando-se esta situação, constando da selecção da matéria de facto questões de direito, devem as mesmas ser consideradas não escritas (à semelhança do que dispunha o anterior CPC no seu art.º 646.º, n.º 4, 1.ª parte, embora o NCPC não contenha norma correspondente, mas cuja conclusão se impõe por imperativo do disposto no seu art.º 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os “factos” que julga provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos).

A distinção entre matéria de facto e matéria de direito tem sido controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência.

O acórdão deste Tribunal e desta Secção, de 9/9/2014, proferido no processo n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1[5], faz um resumo dos entendimentos, até então, adoptados, que aqui reproduzimos deste modo:

“Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei»[6] .

Segundo Karl Larenz, a “questão de facto” reporta-se ao que efectivamente aconteceu, enquanto a “questão de direito” se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica[7].

Existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos[8].

Há que partir, portanto, da unidade do caso jurídico decidendo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito[9]. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objectivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos[10].

Contudo, a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos[11]. Continua o autor, afirmando que «tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória»[12].

Se na resposta a determinado quesito houver matéria de facto e matéria de direito, deve aproveitar-se a decisão na parte relativa à primeira e considerar-se não escrita na parte relativa à segunda.

Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados[13].

Para Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437)[14].

Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”[15]».

Este sentido tem sido seguido pela melhor doutrina e jurisprudência.

Assim, embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”[16]), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objecto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objecto de disputa das partes.

Deste modo, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”[17]. O que num caso pode ser facto ou juízo de facto, noutro pode ser juízo de direito[18].

De forma idêntica, adoptando o mesmo critério, tem decidido a jurisprudência, entendendo que são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam susceptíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial[19].

Assim, a natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso, o facto conclusivo deve ser havido como não escrito. “No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito”[20].

Dito isto, vejamos o caso dos autos.

Está em causa a matéria dos n.ºs 16, 17 e 18, dada como provada, acima transcrita.

Relativamente à matéria do n.º 16, cremos que ela é conclusiva, traduzindo uma antecipação do conceito normativo de incapacidade acidental, subjacente à anulação prevista no art.º 2199.º do Código Civil, cuja utilização não é neutra do ponto de vista da valoração da respectiva incapacidade da testadora, nem, consequentemente, quanto à solução do litígio.

Deste modo, importa declarar tal matéria não escrita.

Mas o mesmo já não sucede com a restante matéria, dos n.ºs 17 e 18.

Neles, não está inserida matéria de direito, nem os mesmos contêm matéria conclusiva, já que se reportam a factos e os termos nele utilizados são acessíveis ao cidadão comum, não antecipando qualquer solução da questão em litígio.

Tais factos resultaram da análise e valoração que a Relação fez da prova produzida, nomeadamente documental e testemunhal, a que acrescentou a presunção judicial, tudo no exercício da sua competência privativa, ao abrigo do disposto no art.º 662.º do CPC, na sequência da impugnação da decisão de facto que havia sido proferida pela 1.ª instância, pondo em causa a sua livre apreciação a que está sujeita tal prova.

Os factos dados como não provados em nada interferem com aqueles factos provados, aqui questionados, pois, como bem se referenciou no acórdão recorrido, a pretensa contradição é irrelevante ou inexiste, já que tudo se passa “como se os mesmos não existissem ou não tivessem sido alegados”[21].

Qualquer reapreciação dos mesmos sai do âmbito da revista, por não constituir fundamento previsto no art.º 674.º, n.º 3, do CPC, o qual, recorde-se, visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a exigência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Não sendo este o caso, por não estarem em causa erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, o Supremo não pode cassar a decisão sustentada em determinado facto cuja prova tenha sido feita através de um meio que respeite a exigência de prova legal que ao caso respeita.

Ademais, os juízos de facto da Relação, quanto à doença da testadora e à falta de capacidade para avaliar o acto que praticou têm de ser tidos por adquiridos.      
Não se vislumbra, assim, qualquer erro de apreciação da prova que este Tribunal possa corrigir, nem  os factos descritos sob os n.ºs 17 e 18 contêm matéria de direito ou conclusiva, pelo que devem ser mantidos.
 
2.2. Da incapacidade acidental da testadora

O art.º 2199.º do Código Civil dispõe:

É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.”

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, a primeira das regras específicas previstas nesta norma “refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.

A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.

É por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257.º considera em relação aos actos entre vivos em geral.

(...)

A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199.º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.” [22]

Como se referiu no acórdão recorrido, é afirmado no acórdão nele citado e é aceite pela recorrente, o estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.

A recorrente sustenta a inexistência de factos reveladores da incapacidade acidental da testadora no pressuposto de serem excluídos os factos dados como provados sob os n.º 16, 17 e 18.

Não logrando alcançar este seu desiderato, na totalidade, a sua pretensão tem que improceder.

O facto de ter sido eliminada a matéria do n.º 16 não basta para não concluir pela incapacidade da testadora no momento da outorga do testamento.

Tal incapacidade resulta da matéria de facto que foi dada e continua provada, tal como bem realça o acórdão recorrido. É o que resulta, designadamente, da factualidade que consta como provada nos n.ºs 10, 17 e 18.

Ali consta que a testadora sofria de “demência de corpos de Lewy”, que a tornava incapaz de entender o significado da declaração que prestou, aquando da outorga do testamento, em 27/7/2015. Padecia de tal doença desde antes de 17/12/2013, que se foi agravando ao longo do tempo, ficando “completamente dependente da ajuda de terceiros”, o que motivou a sua confiança aos cuidados da ré, em Março de 2014 (cfr. factos provados sob os n.ºs 7, 8 e 9). Já antes, em 2012, em resultado do seu estado psíquico, escrevia cartas ao seu falecido marido como se estivesse vivo (cfr. facto n.º 15). Por outro lado, é do conhecimento geral que aquela doença é progressiva e degenerativa do sistema nervoso central, limitando gravemente as faculdades de raciocínio e de vontade.

Tudo para dizer que, quando outorgou o testamento, em 27/7/2015, a testadora não estava nas suas faculdades intelectuais para poder dispor dos seus bens, como bem se concluiu no acórdão recorrido, ora em apreciação. Devido àquela demência, não detinha, nessa ocasião, faculdades mentais necessárias à compreensão do acto que praticava e para manifestar conscientemente a sua vontade, não podendo, designadamente, saber que assim estava a tirar uma parte do seu património à sua filha e a beneficiar a Ré.

Verificam-se, assim, factos concretos suficientes para integrar a incapacidade acidental determinante da anulação do testamento como foi decretada.

             Destarte, não obstante a eliminação da matéria dada como provada sob o n.º 16, o recurso improcede, devendo ser mantido, no mais, o acórdão recorrido.

 Sumariando:
1. Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo.
2. Reveste natureza jurídico-conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista valorativo da incapacidade da testadora, para efeitos de anulação do testamento, a afirmação de que esta não dispunha de capacidade para tomar decisões acerca da disposição do seu património, devendo ser havida como não escrita.
3. Mas já não será quando consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real.
4. A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199.º do Código Civil, assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.
5. Não tem capacidade para entender o sentido e alcance da sua declaração, o testador que sofre de demência de corpos de Lewy, diagnosticada anos antes da outorga do testamento e que se encontrava totalmente dependente de terceiros.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista improcedente e manter o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 1 de Outubro de 2019



Fernando Samões (Relator) *
Maria João Vaz Tomé
António Magalhães

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[3] Disponível em www.dgsi.pt.
[4] Citado acórdão de 28/9/2017.
[5] Disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pp. 206-207.
[7] Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 433.
[8] Cf. Castanheira Neves, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», RLJ, Ano 129, pp.162-165.
[9] Ibidem, p. 166.
[10] Ibidem, p. 167.
[11] Cf. Alberto dos Reis, ob. cit., p. 212.
[12] Ibidem, p. 212.
[13] Cf. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 637-638. Para uma resenha doutrina e jurisprudencial sobre o tema, vide Abel Simões Freire, «Matéria de Facto-Matéria de Direito», CJ/STJ, Ano XI, Tomo III/2003, pp. 5-7.
[14] Cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, p. 312.
[15] Cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 2.ª edição, 1999, p. 147.
[16] Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pp. 268-269.
[17] Anselmo de Castro, Ibidem.
[18] Cf. Abel Simões Freire, «Matéria de Facto – Matéria de Direito», 2003, ob. cit., p. 7.
[19] V.g. Acórdãos do STJ de 23/9/2009, processo n.º 238/06.7TTBGR.S1; de 9/12/2010, proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1; de 15/12/2011, proc. 342/09.0TTMTS.P1.S1; de 11/7/2012, proc. 3360/04.0TTLSB.L1.S1; de12/3/2014, proc. 590/12.5TTLRA.C1.S1 e de 7/5/2014, proc. 39/12.3T4AGD.C1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[20] Citado acórdão de 9/9/2014.
[21] Cfr. Acórdão do STJ, de 20/5/2010, proc. n.º 2655/04.8TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, com sumário consultável na página do STJ na “Internet”, na secção de “Sumários de Acórdãos”, no endereço“https://www.stj.pt/?page_id=4471, citado no acórdão recorrido.
[22] Cfr. Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998,  págs.  323 e 324.