Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1445/08.3TBLGS.E2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
QUESTÃO PREJUDICIAL
FUNDAMENTOS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDAS AS REVISTAS
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Do despacho que o tribunal de 1ª instância proferir para fundamentação da decisão sobre algum facto essencial, em obediência ao disposto no art. 662º, nº 2, al. d) do CPC, não cabe recurso autónomo de apelação, uma vez que tal despacho, que não tem conteúdo decisório mas apenas fundamentador, não se insere em qualquer das hipóteses do art. 644º do CPC;

II. Estando decidido por decisão proferida em acção de reivindicação, entre os mesmos sujeitos, do ponto de vista da sua qualidade jurídica, que o prédio dos RR. confronta a poente com caminho, a autoridade do caso julgado daí decorrente impede que se conclua, na segunda acção, que o prédio dos AA. confronta a nascente com (o prédio dos) RR, em local situado a nascente do dito caminho.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório

AA e Mulher, BB, residentes no ..., ..., apartado ..., ... ..., intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, casado, residente em ... ..., e DD, residente na ... ..., pedindo a condenação dos Réus a:

a) no reconhecimento dos Autores como donos e legítimos possuidores do prédio registado na conservatória do Registo Predial ... sob o nº 00127/07..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...7 da secção AA rústico e matriz predial urbana sob o artigo ...89, por justo título e por usucapião;

b) no reconhecimento de que o prédio identificado tem área a de 1.028 m2, nele se encontrando implantada a casa com 72 m2 e uma pequena arrecadação, e que este prédio que confronta do Norte com caminho público de ..., sul Herdeiros de EE e FF, poente com GG e nascente com HH e Herdeiros de EE;

c) no reconhecimento de que sobre o prédio foi desanexada, a ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal ..., uma parcela de 77 m2 para a constituição de um caminho público, dividindo o prédio dos Autores em dois, dando origem a duas parcelas distintas, separadas por esse mesmo caminho público, caminho que confronta do Norte com o caminho público da ..., de sul com FF e de nascente e poente com os Autores;

d) a absterem-se de invadir a sua propriedade ou causar-lhes qualquer dano.

Mais pediram que viesse a ser ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos anteriores ou posteriores que hajam sido feitos e que se mostram incompatíveis com estes direitos.

Alegaram, em síntese, que são donos do referido prédio desde 1986, por partilha, tendo mantido a posse que já vinha dos anteriores donos - situação que se encontra registada. Entretanto, a configuração e a área do prédio mudaram, pois, por volta de 1993/1995, foi construído um caminho público, em toda a extensão da extrema Norte do prédio, a qual retirou cerca de 55 m2 de terreno à parcela ao prédio rústico dos Autores.

Os Réus contestaram, invocando a sua ilegitimidade e o caso julgado, e pediram a condenação dos Autores como litigantes de má-fé.

Na réplica, os Autores responderam à exceção e subsidiariamente pediram a intervenção provocada dos restantes donos do prédio, os quais foram admitidos a intervir (fls. 567), a saber:

- II, casada no regime de comunhão geral de bens com o Réu CC, residente no sítio da ..., ...;

- JJ, divorciada, residente na Rua ..., ...;

- KK e Marido, LL, residentes na Rua ..., ... ..., ...;

- MM, NN, casados no regime de comunhão geral de bens, residentes na Rua ..., ..., ..., ...;

- OO e Mulher, PP, casados no regime de comunhão geral de bens, residentes em ..., ....

Foi proferido despacho de aperfeiçoamento – fls. 388 –, a que os Autores AA e Mulher, BB, responderam a fls. 405.

A ação foi registada – fls. 806/818.

Foi apreciada a excepção de caso julgado, tendo a mesma sido julgada improcedente – fls. 567.

Após a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, cujo dispositivo se transcreve:

“a) Condenar os réus CC e mulher, II, DD, JJ, KK, e marido LL, MM, mulher NN, OO e mulher PP, a reconhecer os autores AA e mulher, BB, como donos e legítimos possuidores do prédio descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...27, da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...7 da secção AA rústico e matriz predial urbana sob o artigo ...89, por usucapião, com a área de 1 028 m2, onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação, a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com HH e réus, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG;

b) Reconhecer que, no dia ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal de ..., foram desanexados 77 m2 cedidos ao domínio público para criação do caminho norte/sul, dividindo assim o prédio mencionado, em duas parcelas: uma onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação que passou a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com o caminho público norte/sul, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG; e a outra, a nascente do caminho público norte/sul, a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com os réus e HH, do sul com os réus Herdeiros de EE e FF e de poente com o caminho público norte/sul;

c) condenar os réus a absterem-se de invadir o prédio dos AA ou causar-lhe qualquer dano;

d) Absolver os autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé”.

Os Réus II e CC interpuseram recurso de apelação.

Os Autores/Recorridos AA e Mulher, BB, contra-alegaram, sustentando a manutenção da sentença recorrida.

Os recursos foram admitidos como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24 de outubro de 2019, foi rejeitado o recurso interposto pela Ré DD, indeferida a nulidade da sentença invocada pelo Recorrente CC, e determinada a remessa dos autos ao Tribunal de 1.ª Instância para suprir a fundamentação da decisão sobre os pontos provados da matéria de facto n.os 30, 32, 33, 34 e 35, sendo apreciados apenas os recursos interpostos pelos Réus/Recorrentes CC e II.

Por despacho de 14 de Fevereiro de 2020, a Senhora Juíza deu cumprimento ao ordenado no Acórdão, concretizando os meios de prova decisivos para a sua convicção quanto aos mencionados pontos da matéria de facto (n.os 30, 32, 33, 34 e 35) e respectiva fundamentação.

Notificados deste despacho, o Réu/Recorrente CC interpôs recurso de apelação, pedindo a sua revogação.

Também desse despacho recorreram as Rés II e DD, pedindo a sua absolvição das condenações constantes das alíneas a), b), e c) do dispositivo da sentença do Tribunal a quo.

Os Autores/Recorridos AA e Mulher, BB, responderam, pugnando pelo indeferimento dos recursos e pedindo a condenação dos Réus em taxa excepcional.

Estes recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

Por acórdão de 8 de outubro de 2020, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:

a) rejeitar os recursos interpostos do despacho proferido, relativo à fundamentação da matéria de facto impugnada, pelos recorrentes CC, II e DD.

Custas do incidente pelos recorrentes, fixando em 2 UC a taxa de justiça devida por cada um deles;

b) julgar improcedentes as apelações interpostas pelos Réus CC e II, mantendo a sentença recorrida.

Custas das apelações pelos apelantes”.

Não conformada, a Ré DD interpôs recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:

“I - Da admissibilidade do recurso do despacho proferido pelo Tribunal de 1ª instância em 14 de Fevereiro de 2020

1ª Salvo sempre o devido respeito por melhor opinião, não esteve bem o tribunal a quo ao decidir como decidiu em não admitir os recursos em apreço, limitando-se a referir que o despacho de alteração da fundamentação da sentença pela Mtª Juiz da 1ª instância, “proferida na sequência de decisão do Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto na alínea d) do nº 2 do artº 662º do C. P. Civil, não tem conteúdo decisório autónomo e integra-se na fundamentação da matéria de facto da sentença, isto é faz parte integrante da sentença, pelo que é irrecorrível ”da matéria de facto não é susceptível de recurso.”

2ª Com todo o respeito, a ser assim – e, a nosso ver, não é – tal não tem apoio na lei processual aplicável e atentaria contra as garantias constitucionais relativas à realização da justiça e a um processo equitativo e justo.

3ª A irrecorribilidade a que se refere o artº 662º nº 4, do C. P. Civil, é a que o mesmo dispositivo legal se reporta é a da decisão do Tribunal da Relação proferida ao abrigo do disposto nºs 1 e 2 do mesmo dispositivo legal (artº 662º do C. P. Civil), e não ao subsequente despacho/sentença sobre a fundamentação da matéria de facto proferido no processo pela Mtª Juiz do processo em 1ª instância.

4ª O despacho recorrido configura - formal e materialmente - uma nova efectiva decisão judicial que produz significativos efeitos e consequências jurídicas no processo e para as partes. Não se pode conceber que seja de outro modo, isto é, que pudessem ser proferidos despachos judiciais inúteis por não produzirem qualquer efeito ou não terem qualquer consequência jurídica no processo.

5ª A este respeito, salvo melhor opinião, a destrinça a fazer a este respeito – recorribilidade - é se se trata de um despacho de mero expediente ou não., e por isso, trata-se de uma decisão que é recorrível por qualquer das partes no processo que nisso tenha interesse e o pretenda fazer.

6ª De outro modo, essa alteração da decisão de fundamentação da matéria de facto provada ou não provada transitaria em julgado sem que as partes sobre ela se poderem pronunciar e a serem submetidos a uma decisão surpresa (artº 3º nº 3 e 615 nº 1 al. d), do C. P. Civil), pois as partes não foram chamadas, em momento algum, a pronunciarem-se sobre tais alterações.

7ª A vencer a tese do douto acórdão recorrido, sem poderem exercer o direito de verem essa nova decisão sobre a fundamentação da matéria de facto reapreciada por, pelo menos, um tribunal superior, o que, além de ser contrário à lei do processo, seria, por esse motivo, desconforme às garantias constitucionais (artº 20º da C. R. Portuguesa) do direito à Justiça, nomeadamente, sob a forma do direito a, pelo menos, um grau de recurso atento o valor da acção.

8ª Ou seja, o douto despacho da 1ª instância objecto dos recursos dos recursos da rejeitados no douto acórdão ora recorrido é, nesta parte, uma nova decisão judicial sujeita aos mesmos requisitos e fundamentos do que a sentença inicialmente proferida, sendo, dentro dos seus limites materiais e formais, uma nova sentença, ou uma renovação da decisão equiparada a uma sentença.

9ª A qual, caso não fosse escrutinada em sede recurso, acabaria por transitar em julgado com faltas, erros e vícios que determinam a sua nulidade por falta de fundamentação que lhe são apontados nos recursos em causa, situação que, aliás, se mantém, pois continua a não constar na douta sentença da 1ª instância os factos e razões integradores do procedimento e raciocínio jurídico e lógico-dedutivo que evidenciem a razão de tais factos deverem ser considerados provados. Isto é, quais os concretos elementos que validam o “juízo crítico da prova”. Ou, por outras palavras, que permitam que os destinatários – o auditório universal e segundo o padrão do bonus pater familiae – as efectivas e reais razões que justificam que se tenha decidido, de modo compreensível e adequado, que tais factos se provaram.

10ª A decisão em apreço (despacho de 14 de Fevereiro de 2020) não integra o elenco das decisões irrecorríveis previstas no artº 662º, nº 4, do C. P. Civil, que é claro em dizer a que decisões refere serem irrecorríveis e limita o seu elenco, as decisões do próprio Tribunal da Relação.

11ª Por consequência, a não admissão e apreciação do recurso aqui em apreço torna, também nulo o douto acórdão recorrido.

II - Da nulidade da sentença de 1ª instância e do douto acórdão recorrido

12ª A recorrente dá aqui como reproduzidas as conclusões 6ª a 11ª.

13ª O douto despacho da Mtª Juiz de 1ª instância, não suprime e repara as omissões e erros que lhe são apontados e determinados no douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora que apontavam para a sua nulidade por falta de fundamentação em razão da não evidenciação do juízo crítico da prova.

14ª Consequentemente, como o douto acórdão recorrido se satisfaz, nesta parte, com a modificação da decisão da matéria de facto da 1ª instância feita no despacho de 14 de Fevereiro de 2020, padece o mesmo igualmente de nulidade por falta de fundamentação.

15ª Com efeito, como é jurisprudência firmada que as causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão) enumeradas no art. 615º, nº 1, als. b) e d), do CPC, visam o erro na construção do silogismo judiciário, isto é, do processo Intelectual e lógico-jurídico que enforma e torna compreensível a decisão pelas partes e pelas pessoas em geral (bonus pater familiae), também conceptualizado como “auditório universal”.

III - Da autoridade e efeito do caso julgado e da usucapião

16ª O conflito entre os réus e os aqui autores começou há cerca de 20 anos, depois destes terem implantado o novo caminho e começarem a impedir o réu CC de limpar e tratar do terreno em frente da velha casa de família, semi-arruinada com o terramoto de 1969, mas com uso continuado, desde há mais de 100 anos (vide despacho saneador e sentença proferida na acção 755/04.3...)

17ª Trata-se, pois, de uma realidade que não resulta de presunção registral, mas sim da sua conformidade com as mencionadas decisões transitadas em julgado, proferidas nos referidos processos judiciais nºs 755/04.3... e 62/09.5TBLGS, de que resultou provado que os autores e os seus familiares e antepossuidores desde há mais de 100 anos, são comproprietários e compossuidores do prédio sito em ..., freguesia ... no artº 390º [ hoje 2023º] e descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66, o qual, actualmente, “confronta  a norte com caminho com caminho, a nascente com HH e a poente com caminho”. O que os aqui autores foram obrigados reconhecer nas decisões transitadas em julgado nos aludidos processos.

18ª Donde decorre que, salvo melhor opinião, nenhuma nova decisão, incluindo o douto despacho de que se recorre que alterou a motivação e enumeração dos meios de prova que fundamentaram a decisão da matéria de facto já antes sentença antes proferida pelo Tribunal a quo, pode alterar e dar por matéria de facto que colida com a mesma matéria de facto dada por apreciada na provada nova provada e coberta pelo efeito de caso julgado produzido nos processos nºs 755/04.3... e 69/09,5TBLGS, conforme sentença e acórdão proferidos, que transitaram em julgado.

19ª Sendo evidente, que os pontos 31, 32, 33, 34 e 35 da matéria de facto provada na sentença proferida na 1ª instância, como a douta decisão recorrida o demonstra, atentam frontalmente contra a integridade e estabilidade das duas decisões judiciais transitadas em julgado nos processos nº 755/04.3... e 62/09.5... por alterarem a delimitação e as confrontações do prédio dos aí autores e aqui réus, violando a decisão de que resulta que os prédios os autores e réus não têm confrontações comuns, nem existe qualquer contiguidade entre eles.

20ª Alterando, por isso, as confrontações do prédio dos aqui réus já firmadas nessas decisões e que os aqui autores foram condenados a reconhecer, resultando a decisão de considerar provados tais factos na presente acção totalmente incongruente, oposta e incompatível com as decisões judiciais já transitadas em julgado.

21ª Tal como é incongruente com a realidade existente no local, como se não estivesse provado e reconhecido que os aqui réus, desde há mais de 100 anos fazem uso de todo o seu prédio e passassem pelo ar para nele entrarem e chegarem à sua casa e logradouro do seu prédio, tornando-o numa ilha ou enclave encravado, por não ter acesso à via pública por qualquer dos seus lados, com se pode ver em algumas das figuras contidas em requerimentos dos autores, mormente a figura 11, onde o prédio dos réus é implantado como um enclave a amarelo e com um canal de azul no local do novo caminho.

22ª Não pode deixar de referir-se, que uma decisão desta natureza não pode assentar na leitura e análise de uma planta cadastral rústica nº 17 da Secção AA, que nas suas anotações referem a existência de alterações aos levantamentos originais, eles próprios não desprovidos de erros técnicos e humanos, que o senhor perito reconheceu existirem, não sendo documento probatório autêntico, nem título válido para firmar a posse e o direito de propriedade.

23ª Na realidade, essas decisões transitadas em julgado determinam a inexistência de qualquer contiguidade entre o prédio urbano dos réus. e ora recorrentes com qualquer prédio que os autores tenham no mesmo local, mormente, o correspondente ao descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...27, da freguesia ..., concelho ....

24ª Não é assim, o prédio urbano dos réus. e ora recorrentes, conforme resulta da das decisões condenatórias dos autores., acima e identificadas, cujas decisões foram parcialmente transcritas, é um prédio totalmente desencravado, não confronta com os autores. ora recorridos por nenhum dos seus lados, mas sim, “a Norte, com caminho; a Sul, com caminho; a Nascente, com HH; a Poente, com caminho”.

25ª Devendo esta decisão e alterada na resposta que dá a todos os pontos da matéria de facto acima referidos, que contrariam esta realidade, e, também, a que decorre directamente das decisões transitadas em julgado no âmbito dos processos nº 755/04.3... e nº 62/09.5..., cujas decisões se encontram juntas nos autos, e não foram, como deveriam, tidas em conta, nem na motivação da matéria de facto constante da sentença proferida, nem na decisão ora recorrida que a ela é aditada e nela introduz alterações na enumeração dos meios de provas considerados e das razões lógico dedutivas que fundamentaram a decisão de – a nosso ver, e salvo sempre o muito e merecido respeito, erradamente - de considerar provada a factualidade constantes dos referidos pontos 30, 32, 33, 34 e 35 da matéria dada por provada.

26ª E, consequentemente, deve ser revogado o douto acórdão recorrido e proferida nova decisão que não considere provados os factos constantes desses pontos 30, 32, 33, 34 e 35, em conformidade com as razões acima alegadas, na parte em que respeitem a qualquer parcela de terreno que se situe a nascente do caminho com sentido Norte/Sul, cujo leito foi cedido pelos autores, ora recorridos, ao Município ... em substituição do antigo “Caminho Público de ...” - que abusivamente destruíram e ocuparam - e seja, também, delimitado pelo caminho situado a norte, pelo caminho situado a sul, pelo prédio de HH ou HH situado a nascente do prédio dos réus.

27ª Ou seja, deve ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que leve em consideração a factualidade confessada e toda a factualidade provada e as consequências das decisões proferidas nos Procºs nºs 555/04.... e 62/09.5...e proferida uma nova decisão de que resulte, não se considerarem provados esses factos (pontos 30, 32, 33, 34 e 35) e reconheça, apenas, que os autores são donos do situado em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...27, com a área de 812,45 m2, que confronta: do norte com caminho, do sul com FF e herdeiros de EE, do nascente com caminho e do poente com GG.

28º E, por consequência, serem os réus absolvidos das condenações constantes das alíneas a), b), e c) do dispositivo da sentença do Tribunal a quo mesmo, com todas as consequências legais e tudo como é de

29º Na verdade, na acção nº 555/04…, cujas peças processuais se encontram juntas nos autos, foi confessada pelos autores e provada testemunhalmente a seguinte factualidade:

“A)

O direito de propriedade relativo ao prédio urbano sito em ..., freguesia ..., concelho ... composto de casas térreas com um vão e 4 divisões inscrito na matriz predial sob o artº ...90º e descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66 mostra-se inscrito a favor dos autores e de outros por meio das inscrições G1, G2, G3 e G4.

B)

O prédio referido em A) confronta, actualmente, de Norte, Sul e Poente com caminho e de nascente com HH.

C)

Confrontando com o caminho do lado Poente em relação ao prédio dos AA, os RR são proprietários do prédio do prédio inscrito na Matriz no artº ...89 da mesma freguesia ....

D)

O caminho público que, actualmente, divide o prédio dos AA do prédio dos RR foi aberto pelos RR em substituição de um outro também carreteiro que tinha curso pelo lado Sul de ambos os prédios e que fazia ligação com a estrada de ... que passa a norte.

(...)”

Da base instrutória

F) O prédio referido em A) pertence à família dos AA. há mais de 100 anos.

30ª Conforme se alegou acima a parcela de terreno em disputa nesta acção (“parcela 2”) entre os autores ora recorridos e os réus é exactamente a mesma que foi objecto e discutida nos Procºs nºs 555/04.... e 62/09.5... .

31ª Razão porque, não deveria ser respeitados os factos, realidades e decisões cobertas pelo efeito e autoridade do caso julgado e não serem considerados provados que com eles sejam frontal e absolutamente incompatíveis, nomeadamente os enumerados nos pontos 30, 32, 33, 34, e 35 dos factos provados.

32ª Conforme resulta da generalidade da jurisprudência e do que são exemplos os acórdãos acima citados, para se produzir a autoridade ou efeito do caso julgado não é necessários a existência de duas causas coincidentes nos respectivos sujeitos pedido e causa de pedir.

33º O objectivo do princípio do caso julgado é muito mais abrangente, visando garantir a unidade, racionalidade e segurança jurídica com vista a evitar que os Tribunais produzam decisões diferentes sobre os mesmos factos e realidades da vida.

34ª Além disso, tanto o tribunal de primeira instância como o douto acórdão ora recorrido, não respeitam o princípio da irretratabilidade da confissão feita pelos Autores, aí Réus, na Contestação, apresentada na acção nº 545/04…, de que resultaram assentes, os factos enumerados nas alíneas A), B), C) e D), da matéria de facto provada, constante do despacho saneador e na sentença proferida nesses autos.

35º Por isso, não se verificam os pressupostos de qualquer posse de boa-fé, dos Autores ora Recorridos, sobre a dita parcela dois, a qual confessadamente integra o prédio dos aqui Réus.

36º Assim se julgando e contando com o douto suprimento deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça deverá ser revogado, in totum, o douto acórdão recorrido. Tudo com é de Justiça!”

O Réu CC interpôs também recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

“1º - Por acórdão proferido em 08/10/2020, a douto tribunal a quo decidiu indeferir todos os recursos interpostos pelos recorrentes, mantendo na integra a decisão proferida pela primeira instância.

2º - Do douto tribunal a quo considerou que “A autoridade de caso julgado e o caso julgado espelham uma mesma realidade jurídica, ou seja, ambas consubstanciam uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (arts 577. Al. i) e 578º do C. P. Civil), a qual obsta ao conhecimento do mérito da acção e implica a absolvição da instância (art. 576º/1 e 2)” e que “Para que se verifique a repetição de uma causa (artº 581º do C.P. Civil) é necessário que ocorra identidade quanto aos sujeitos, quanto ao pedido e à causa de pedir – artº 581º do C. P. Civil.”.

3º - Salvo o devido respeito, o douto tribunal a quo não apreciou correctamente a questão relativa ao caso julgado, impugnada por todos os recorrentes, ao considerar não se verificar caso julgado.4º - N

o decorrer da não verificação do caso julgado - na vertente da autoridade do caso julgado – o douto tribunal a quo não apreciou correctamente o direito, contrariando jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra que adiante se cita, constituindo uma questão de elevada relevância jurídica para a segurança jurídica e solidez de um estado de direito democrático.

5º - A douta decisão proferida viola a autoridade do caso julgado que decorre da decisão transitada em julgado nos autos do processo nº. 755/04.3....

6º - A douta decisão proferida contradiz o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 11 de Junho de 2019, com o seguinte sumário:

“1.- O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.

2. Quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão).

3.- O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão).

4.- Ao contrário do que acontece com a excepção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir.

5.- O que está em causa na litigância de má-fé não é o facto de a parte ter ou não razão ou o facto de conseguir (ou não) fazer prova dos factos que alegou; o que está em causa é um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa-fé processual, a que as partes estão submetidas– deveres que se encontravam previstos nos arts. 7º e 8º CPC-, é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.

7º - A autoridade do caso julgado que decorre do douto acórdão proferido nos autos do processo nº. 755/04.3... foi menosprezada pela douta decisão de que ora se recorre.

8º - No processo nº. 755/04.3... os ora Réus pretenderam obter dos ora Autores o reconhecimento do seu direito de propriedade relativamente ao prédio de que são proprietários e nestes autos os ora Autores pretenderam que fosse reconhecido pelos ora Réus o seu direito de propriedade relativamente ao prédio de que são proprietários.

9º - Em suma, ambos pretenderam ver reconhecido o seu direito de propriedade, relativamente a prédios cujo litígio já dura há longos anos.0º

 - A decisão proferida nos autos do processo nº. 755/04.3... transitou em julgado e reconheceu que o prédio dos Réus não confina com o prédio do Autores – confinando a poente caminho.

11º - Por sua vez, a douta decisão proferida nos presentes autos, refere que o prédio dos autores confina a nascente com os Réus.

12º - Na primeira decisão os prédios dos Autores e Réus não se confinavam na douta decisão recorrida passaram a se confinar.13º - A segunda decisão põe em causa claramente o caso julgado – a douta decisão proferida 755/04.3....

14º -A douta decisão recorrida viola o princípio do caso julgado, afectando os direitos que os ora Réus virão reconhecidos nos autos do processo nº. 755/04.3..., mais precisamente o reconhecimento da propriedade do seu prédio.

15º - A douta decisão proferida nos presentes autos deveria ter respeitado a autoridade do caso julgado que resulta dos autos do processo nº. 755/04.3..., mais precisamente, ter respeitado as suas confrontações.

16º - Os réus de forma ardilosa conseguiram que o tribunal a quo se pronunciasse sobre a mesma questão, apesar de um prisma diferente, isto é, através do prédio que são proprietários.

17º - Não se pode ignoraras confrontações consideradas em ambas as decisões sob pena das decisões perderem o seu efeito útil e encontrarem em contradição.

18º - Estamos perante duas decisões que se contradizem, tendo o douto tribunal a quo desconsiderado a autoridade do caso julgado.

19º - A autoridade do caso julgado não exige que a cause de pedir e o pedido sejam coincidentes em ambas as acções.

20º - Caso assim não fosse, o princípio da segurança jurídica seria uma ilusão, podendo uma nova decisão judicial de forma indirecta coartar os efeitos de uma decisão transitada em julgado.

21º - Pondo-se assim em causa o princípio constitucional do estado de direito democrático – art. 2º da CRP.

Nestes termos e nos mais doutos que Vª. Exªs. suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de revista excepcional, revogando-se a douta decisão recorrida nos termos supra referidos e, por sua vez, devendo os embargos procederem e ordenar-se a extinção da execução. PEDE DEFERIMENTO”

Os Autores AA e Mulher, BB, apresentaram contra-alegações com as seguintes Conclusões:

“1 - Os recursos interpostos pelos RR II e de CC, deverão ser rejeitados, por não ser admissível recurso de revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, a não ser que seja caso de admissibilidade da revista excecional (art. 671º, nº 3CPC).

2 - Não cabe ao tribunal de revista sindicar o erro na livre apreciação das provas, salvo quando, nos termos do artigo 674.°, nº 3, do CPC, a utilização deste critério de valoração ofenda uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade. No âmbito da reapreciação da decisão de facto, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.°, nº 5, ex vi do artigo 663.°, nº 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

3 - Não existe caso julgado, pois apesar de haver identidade de alguns sujeitos processuais, diferente é a causa de pedir e o pedido. Tratam-se de prédios distintos, sendo distintos os pedidos e as causas de pedir, pelo que, tal como decidido na 1ª Instancia e no Venerando tribunal da relação, não existe caso julgado.

3 - Tendo A Ré DD, constituído nos autos dois mandatários , o impedimento de um deles não constitui fundamento para alegação do justo impedimento na pratica de um acto processual, designadamente o de recorrer, nem para prorrogação do prazo para a prática de tal acto, ou justificação da sua prática fora do prazo estabelecido, já que, por força do mandato outorgado, o mesmo poderia e deveria ter sido praticado pelo outro advogado constituído, ainda que apenas um deles, se encarregue do processo. Esta é uma questão meramente interna e que apenas diz respeito à organização do escritório e ao qual se confina. Não há, pois, justo impedimento.

4 - A recorrente DD, notificada do Douto despacho de 02.07.2019, não concordando com o mesmo, deveria a recorrente ter reagido no momento lançando mão do meio processual adequado. Porém, nada fez, pelo que transitou em julgado.

5 - A recorrente DD, notificada do acórdão de 24.10.2020, não concordando com o mesmo, deveria ter reagido no momento lançando mão do meio processual adequado. Nada fez, pelo que transitou em julgado.

6 - A recorrente, novamente notificada do Douto despacho de 04.09.2020, não concordando com o mesmo, deveria a recorrente ter reagido no momento lançando mão do meio processual adequado. Novamente nada fez, pelo que transitou em julgado.

7 - Tendo sido o recurso rejeitado, e não tendo reagido a tal decisão, não poderá a recorrente recorrer da decisão do Tribunal da Relação de Évora, que nem sequer se pronunciou sobre o seu recurso, que foi rejeitado.

8 - Por fim, o mesmo se diria em relação a esta ré do que se concluiu em 1 das conclusões. Que, havendo dupla conforme o recurso seria inadmissível.

9 - Por fim, despacho de 14 de fevereiro de 2020, em que a Mtª Juiz da 1ª instância, dá cumprimento ao ordenado pelo Tribunal da Relação no Acórdão proferido em 24/10/2019, (e que não anulou a decisão da 1ª instância), não é passível de novo recurso autónomo.

10 - O despacho em causa não tem qualquer conteúdo decisório autónomo e pela sua própria natureza não ofende direitos processuais das partes ou de terceiros, nem decide sobre qualquer questão concreta suscitada pelas partes - cf Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, vol. V,240.

11 - Tal despacho/decisão carece de autonomia e integra-se na fundamentação da matéria de facto da sentença, isto é, faz parte integrante da sentença.

12 - Daí não ser passível de recurso autónomo, competindo à Relação sindicar essa fundamentação, em sede de impugnação da matéria de facto, no âmbito dos recursos interpostos da sentença, podendo conduzir à anulação da sentença nos termos da alínea c) do n.02 do art.° 662.° do C. P. Civil, verificados os respetivos pressupostos.

13 - Não pode, pois, a recorrente DD, que viu o recurso ser rejeitado pela Relação, recorrer de novo, agora do mencionado despacho, pretendendo obter o que já lhe fora recusado.

Termos em que, deve ser negado provimento aos recursos, mantendo-se o Douto Acórdão recorrido no decidido como é de, JUSTIÇA!”

Por despacho do Senhor Desembargador Relator de 11 de janeiro de 2021, foi decidido o seguinte:

“Em consequência, por legalmente inadmissível, não admito o recurso de revista normal interposto pela Ré DD.

Custas do incidente pela recorrente, fixando em 3 UC a taxa de justiça. Notifique.

2. A recorrente II veio igualmente interpor recurso de revista normal do acórdão proferido em 8 de outubro de 2020, que julgou improcedente o recurso de apelação interposto e confirmou a sentença recorrida.

Pelas razões acima mencionadas, que se dão reproduzidas, no que tange à dupla conforme, é inadmissível o recurso interposto, o qual não se admite.

Custas do incidente pela recorrente, fixando em 3 UC a taxa de justiça. Notifique.

3. O recorrente CC veio interpor recurso de revista excepcional, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a c) do nº 1 do artº 672º do C. P. Civil, pelo que compete ao Supremo Tribunal de Justiça a verificação dos respetivos pressupostos de admissibilidade, nos termos do seu nº3, visto que por força do disposto no nº 3 do artº 671º é inadmissível a revista normal do acórdão proferido.

Assim, cumpridas as legais formalidades, remeta os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça”.

A Ré/Recorrente DD, notificada do despacho de fls (refª 7077257) do Tribunal da Relação de Évora e com ele não concordando, reclamou dele nos termos do disposto no art. 643º do CPC.

Os Autores AA e Mulher, BB, responderam, pugnando pela manutenção do despacho reclamado.

Por despacho de 10 de novembro de 2021, a Relatora decidiu o seguinte:

“Nos termos expostos, defere-se parcialmente a reclamação apresentada pela Ré/Recorrente DD, admitindo-se o recurso de revista por si interposto limitado à questão da rejeição pelo acórdão recorrido do recurso interposto pela mesma reclamante do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância a 14 de fevereiro de 2020, relativo à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, no mais, limitado à apreciação da alegada ofensa do caso julgado.

Assim, nos termos do art. 643º, nº 6, do CPC, requisita-se o processo principal ao Tribunal recorrido”.

II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

1)no recurso de revista interposto pela Ré DD, como decorre do despacho que deferiu a reclamação por si deduzida pela Recorrente, a revista foi admitida quanto:

a) à rejeição pelo acórdão recorrido do recurso interposto pela Recorrente do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância a 14 de fevereiro de 2020, relativo à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto;

b) à apreciação da alegada ofensa do caso julgado formado pelas decisões proferidas nos processos judiciais nºs 755/04.3... e 62/09.5TBLGS.

2) no recurso de revista interposto pelo Réu CC, considerando as conclusões da respetiva alegação, o seu objecto assenta apenas na apreciação da invocada violação pelo acórdão recorrido da autoridade do caso julgado formada pela decisão proferida no processo nº 755/04.3....

III – Fundamentação

A) De Facto

Foram considerandos como provados os seguintes factos:

“1. Encontra-se registado na conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...27, da freguesia ..., concelho ..., um prédio misto sito em ..., composto de cultura arvense, matos e casas térreas, com 40 m2 – 1160 m2- norte caminho - sul, herdeiros de EE e QQ- nascente – RR e herdeiros de EE – Poente GG - RC- 261$00- artigo ... da secção AA rústico e ... Urbano.

Em 1998, passou a constar o valor patrimonial de 3 220$00 para o prédio rústico e 2 886$00 para o prédio urbano – fls. 22 (art. 1º da petição inicial)

2. O prédio foi adquirido pelos AA por sucessão e partilha por óbito de SS, avô do A. marido, falecido a .../.../1949 e mulher, TT, falecida a .../.../1964, anteriores donos e legítimos possuidores dos prédios. A partilha foi realizada por escritura pública de ... de 1988, exarada de fls. 47 a fls. 53 V do Livro ...5... do Cartório Notarial de ..., constando como verba única prédio misto, composto de cultura arvense, matos e casas térreas com quarenta metros quadrados, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., com a área total de mil cento e sessenta metros quadrados, inscrito na matriz urbana sob o artigo trezentos oitenta e nove (…) e na matriz predial rústica sob o artigo ..., secção AA (…) descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...27, ... – fls. 34 v. e correspondia à figura 6 de fls. 408 – fls. 1378 (arts. 2º a 4º da petição inicial)

3. O registo da aquisição a favor dos herdeiros de SS e TT data de ... de 1986 (G-1) e o registo da aquisição a favor dos AA encontra-se registada pela inscrição G-2, de ... de 1988 – fls. 23 (arts. 5º e 6º da petição inicial).

4. O prédio rústico, com o urbano nele inserido, encontra-se devidamente assinalado no Instituto Geográfico Português e encontra-se demarcado com a colocação de alguns marcos, os quais estão assinalados nos mapas e plantas cadastrais – fls. 42 a 45 (arts. 8º e 9º da petição inicial)

5. O Instituto Geográfico Português certificou em 10 de novembro de 2008 que “a parcela de terreno assinalada a amarelo no mapa em anexo, faz parte integrante desta certidão, pertence ao prédio número dezassete, da secção AA, da freguesia ..., concelho ...” – fls. 44 (art. 10º da petição inicial)

6. Da caderneta predial urbana relativa ao prédio inscrito sob o art....89º consta casas térreas com 1 vão e 3 divisões. Confronta do Norte, sul e poente com caminho e nascente com UU … 40 m2 – fls. 31/33

7. Segundo a planta de fls. 48, o prédio rústico tem duas parcelas, 1/17 CA (cultura arvense) assinalado a cor de laranja na planta, e 2/17 Mt (matos) assinalado a cor verde na mesma planta de fls. 48 (art. 13º da petição inicial).

8. Dentro do mesmo, encontra-se assinalado o prédio urbano em ruínas (a pontilhado), assinalado, a cor de laranja, no mapa de fls. 49 (art. 14º da petição inicial).

9. Encontram-se ainda assinalados na planta 7 marcos, alguns existentes no local – fls. 45 e inspeção ao local (art. 15º da petição inicial).

10. O cadastro iniciou os trabalhos de campo em 1967 no concelho ..., tendo em 1972 efetuado a distribuição parcelar (art. 16º da petição inicial)

11. Entre junho e agosto de 1983 decorreu o prazo das reclamações, entrando em vigor o cadastro, em 16.09.1984, por publicação no Diário da República nº 163 da 2ª série (art. 17º da petição inicial), não tendo os RR efetuado qualquer reclamação (art. 18º da petição inicial)

12. Os trabalhos de campo e distribuição parcelar encontravam-se efetuados desde 1972 (art. 19º da petição inicial).

13. A configuração e áreas dos prédios dos AA, mudou desde que foram efetuados o cadastro e o levantamento constante de fls. 45 (art. 24º da petição inicial).

Do prédio urbano (ruínas)

14. O prédio urbano dos AA encontrava-se junto da estrema a nascente do prédio, num estado de completa ruína, e como tal assinalado no mapa – fls. 45 (art. 26º da petição inicial)

15. A construção em ruína encontrava-se assinalada na planta cadastral a pontilhado, cor laranja na planta de fls. 49 (art. 27º da petição inicial)

16. Os AA mantiveram uma pequena construção em ruína existente junto à extrema norte, assinalada com a letra D na planta topográfica de fls. 50 (arts. 28º e 29º da petição inicial)

17. Por volta de 1994/1995, os AA deram início à construção de uma moradia, deslocando a sua implantação mais para poente, dentro da parcela 1 do prédio rústico, onde atualmente se encontra (art. 30º da petição inicial).

18. A atual construção, tem de área coberta 72,63 m2 e encontra-se averbada nas Finanças com a área de 70 m2 - prova pericial de fls. 1188 e fls. 27/1310 (art. 31º da petição inicial).

Do caminho público a norte do prédio

19. Por volta de 1993/1995, foi construído um caminho público, [designado por caminho público de ...], em toda a extensão da extrema norte do prédio, a qual retirou 278 m2 de terreno à parcela do prédio dos AA.

Antes era já um caminho de pé posto que foi sendo alargado – fls. 1188 (arts. 34º da petição inicial e 19º e 20º da contestação).

20. Por volta do ano 2000, o caminho referido foi asfaltado (art. 35º da petição inicial).

21. O referido caminho tem a configuração do levantamento, encontrando-se assinalado a laranja a fls. 51 e a fls. 1378 (art. 36º da petição inicial).

22. O prédio dos AA passou a confrontar do Norte com o caminho municipal de ... (art. 37º da petição inicial).

Do caminho que corta a propriedade

23. Existia um caminho que cortava a propriedade dos AA no sentido norte/sudeste, assinalado a amarelo nas plantas cadastrais e levantamento de fls. 49 que foi em parte deslocado, porque os AA edificaram a casa e quiseram manter alguma privacidade dessa moradia (arts. 33º da petição inicial e 64º da réplica).

24. O caminho até então existente, e que cortava a propriedade dos AA na diagonal, no sentido norte/sudeste, como foi dito, foi deslocado pelos autores por volta de 1996/1997, sendo substituído por outro no sentido norte/sul da propriedade, assinalado com a letra C no levantamento topográfico de fls. 50 e a verde a fls. 51 e a fls. 1378, num total de cerca de 77 m2 da área do seu terreno (arts. 40º e 41º da petição inicial)

25. Os AA construíram um muro de suporte de terras junto à margem poente do caminho, sendo que o mesmo tem hoje a área de 73,55 m2 – fls. 1378 (art. 42º da petição inicial)

26. Esse caminho deu origem à constituição da servidão de passagem, a qual foi constituída escritura pública em 1998 – fls. 46 v. (art. 43º da petição inicial). Tratou-se de uma servidão de passagem a pé e de carro a exercer na direção norte/sul, por uma faixa de terreno com 3 m de largura e 24 m de comprimento, assinalada a cor vermelha numa planta topográfica que foi apresentada (…) e servirá para fazer a ligação do prédio dominante à via pública (Caminho da ...) a favor do prédio descrito sob o nº ...8, inscrito na matriz sob o artigo ...8º, da freguesia ..., constituída por escritura pública de ... de 1998, exarada a fls. 94v a 95 V do Livro ...2- E do Cartório Notarial ..., em que intervieram os autores e FF. Tal ato foi objeto de registo com a inscrição F-1, de 17 de fevereiro de 1998 – fls. 24 e 46 v. (arts. 10º e 11º da petição inicial)

27. Posteriormente, por escritura pública de ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal de ..., os AA cederam gratuitamente a referida parcela de terreno que constituía a servidão de passagem suprarreferida, “parcela de 77 metros quadrados, que confronta do Norte com o caminho público de ..., de sul com FF e de Nascente e Poente com os cedentes, a desanexar do prédio anteriormente identificado (…). Que a referida Parcela de terreno se destina a integrar o domínio público municipal, como parte integrante do Caminho Publico de ..., ..., e que está identificado em planta anexa.” – fls. 54 (art. 44º da petição inicial)

28. O dito caminho faz ligação entre o caminho público de ... (hoje estrada asfaltada) que existe a norte do prédio dos autores com caminho que existe a sul – cf. inspeção ao local (art. 10º da contestação)

29. O caminho público de ..., a norte, retirou 278 m2 de área ao prédio dos autores que tem, segundo o cadastro, 1 160 m2. A área do caminho norte/sul foi retirada ao prédio dos autores em cerca de 77m2, pelo que, segundo o cadastro, atualmente o prédio teria 1 083 m2 (art. 46º da petição inicial)

30. O novo caminho cortou a propriedade em duas parcelas distintas, estando a casa com cerca de 72 m2 implantada na primeira parcela, a poente do caminho, e a segunda parcela a nascente do caminho (art. 47º da petição inicial).

31. Antes de ser aberto o caminho, o prédio sob o artigo 389º dos AA, confrontava do poente, em parte, com o prédio inscrito sob o artigo ...90º dos RR, hoje 2023º (art. 14º da contestação).

32. A parcela 1 do prédio dos autores encontra-se assinalada na planta de fls. 50 de cor amarela, com a casa assinalada com a letra B, a parcela 2 a cor rosa, com uma pequena arrecadação existente no terreno assinalado com a letra D (art. 48º da petição inicial)

33. Assim, o prédio dos AA atualmente tem a área de 1 083 m2, nele se encontrando implantada a casa com 72,63 m2 e uma pequena arrecadação, que confronta do Norte com caminho público de ..., do Sul com os réus Herdeiros de EE e FF, do poente com GG e de nascente com HH e com os réus (art. 49º da petição inicial).

Do uso do prédio pelos autores e antecessores

34. Os prédios rústico e urbano dos AA já eram ocupados e utilizados pelos ante possuidores e ascendentes do A marido (art. 20º da petição inicial), que lá viveram, posse que se manteve de facto até 1949 e, depois, com algumas interrupções, e alterando-se o uso, visto que a parte urbana ficou em ruínas (arts. 21º e 53º da petição inicial) – referimo-nos à zona mais a este do prédio identificado a fls. 1378. Nos anos 80, a família reunia-se no local para fazer piqueniques. Aí estacionavam os veículos, montavam tendas e se instalavam, todos pensando tratar-se de terreno pertencente ao mesmo prédio. Nos anos 90, os autores cultivaram a zona a sul da ruína, com favas, ervilhas e outros produtos agrícolas, com o conhecimento de toda a gente e sem a oposição de ninguém até 2003/2004 (arts. 55º e 56º da petição inicial) na convicção e certeza de estarem a exercer um direito próprio ao exercício do direito de propriedade (art. 61º da petição inicial).

35. Os AA por si, e anteriormente os seus ascendentes, há mais de 20 anos que utilizam e se servem quer da casa entretanto construída, quer do terreno identificados como prédio misto, tendo construído uma casa de habitação que habitam, assinalada com a letra B a fls. 50, e usado uma pequena arrecadação, existente na área a noroeste do prédio, assinalada com a letra D, no mesmo documento (arts. 51º e 52º da petição inicial).

36. Desde 2003/2004 que se arrasta conflito entre autores e réus sobre a concreta delimitação dos prédios de cada um, descritos sob os nºs ...27 e ...66 (art. 76º da petição inicial).

Do prédio dos réus

37. Os réus são proprietários e possuidores do prédio urbano, sito em ..., descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66, freguesia ..., e que está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...23º (antigo art. ...90º). Esta aquisição por partilha em inventário e permuta, assim como a própria descrição datam de 2002 – fls. 133/131 (arts. 5º e 13º da contestação).

38. O prédio inscrito sob o artigo ...90º consta como urbano e 45,5 m2 como casas térreas com 1 vão e 4 divisões com 45,5 m2. Confronta do norte e sul com caminho, nascente com RR e poente com UU - fls. 107 e está em ruínas – inspeção ao local.

Do processo nº 755/04.3…

39. Correu termos no processo nº 755/04.3…, do então 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., no qual figuraram como réus os aqui AA, VV e BB - fls. 88 (art. 4º da contestação).

40. Aí, foram os aí réus (AA e BB) – aqui autores, condenados: “a) a reconhecerem os autores [CC e WW, aqui corréus] são comproprietários e compossuidores do prédio sito em ..., inscrito na matriz predial da freguesia ... no artigo ...90º e registado na ... nº 01566/08... relativa à mesma freguesia na conservatória do Registo Predial ...; b) a reconhecerem que o prédio dos autores confronta a norte com caminho, a sul com caminho, a nascente com HH e a poente com caminho” – fls. 136 v. e ss. (art. 6º da contestação). E absolvidos do restante pedido que compreendia o de condenação dos réus a reconhecerem que a área total do terreno dos autores era de 330,2500 m2, área de implantação do prédio de 70,7000 m2, área bruta dependente 25,2000 m2, área bruta de construção de 70,7000 m2 e área bruta privativa de 45,5000 m2 (parte da al. b); a desocupar o prédio, restituindo aos autores a respetiva posse (al. c); a retirarem do prédio todos os marcos e tabuletas que lá puseram (al. d); a reconstruirem todos os muros e paredes que demoliram ou alteraram (al. e); e a reporem o prédio como estava antes, retirando dele tudo quanto nele colocaram (al. f) – fls. 136 v. (arts. 40º e 43º da réplica)

41. A sentença transitou em julgado em 05/11/07 – fls. 136 (art. 7º da contestação).

Do processo nº 62/09.5...

42. Correu termos neste Tribunal, Juízo Central Cível, Juiz(a) 2, o processo com o nº 62/09.5…, no qual os aqui réus pediam que os aqui autores viessem a ser condenados, além do mais, a restituir-lhes o prédio descrito sob o nº ...66, ação que veio a ser julgada improcedente - fls. 1063. Tal sentença veio a ser objeto de recursos, tendo o Tribunal da Relação de Évora julgado parcialmente procedente, na parte em que condenou os aí réus a não perturbarem a composse do aí autores do prédio descrito sob o nº ...66 – fevereiro de 2017; e o Supremo Tribunal de Justiça, negado a revista – fls. 1146 e 1146.

Das diligências administrativas

43. No dia 30 de março de 2004, o réu CC apresentou nas Finanças formulário com vista à atualização do prédio urbano descrito na Conservatória sob o nº ...66. Fazendo constar as seguintes áreas: 1 piso, 4 divisões, área total do terreno 330,25, área de implantação do prédio ...0, ...0, área bruta dependente 25,20, área bruta privativa 45,50, conforme fls. 114; e as seguintes confrontações: do Norte, sul e poente com caminho e de nascente com HH - fls. 112. Tais dados ficaram a constar da caderneta relativamente ao prédio inscrito atualmente sob o art. ...23º - fls. 302.

44. Usando de expediente administrativo de retificação à descrição, no dia 1 de abril de 2004, o réu requereu que o prédio ficasse a constar como tendo 330,25 m2 de área, o que foi recusado – fls. 252/253. Usando o processo de retificação de áreas e confrontações, no dia 14 de fevereiro de 2008, o réu requereu junto da Conservatório do Registo Predial ... a retificação de áreas e de confrontações para que ficasse a constar: área total do terreno 330,2500 m2, área de implantação do edifício 70,700 m2, área bruta de construção 70,700 m2, área bruta dependente 25,200 m2, área bruta privativa 45,500 m2; confrontações, norte, sul e poente, com caminho; nascente, HH. Juntou certidão da sentença proferida no processo nº 755/04.3... e caderneta predial passada em 11/2/2008 – fls. 248 - o que veio a ser recusado – fls. 250. Depois, voltou a ser formulado requerimento semelhante, objeto de indeferimento liminar – fls. 261 e ss. (fls. 410 – aperfeiçoamento - e arts. 92º, 94º e 95º da réplica). Após novo requerimento, a senhora Conservadora do Registo Predial ..., no dia 6 de outubro de 2008, determinou a retificação da descrição nº ...66 no sentido de passar a constar “edifício de um piso com 4 divisões com a área total de 330,25 m2 e a área de implantação de 70,70 m2“e que corresponde à área assinalada na fig. 11, a fls. 410 do aperfeiçoamento – fls. 306.”

Está, ainda, provado documentalmente:

45. Na acção nº 755/04 mostram-se provados os seguintes factos:

“A) O direito de propriedade relativo ao prédio urbano sito em ..., freguesia ..., concelho ... composto de casas térreas com um vão e 4 divisões inscrito na matriz predial sob o artº ...90º e descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...66 mostra-se inscrito a favor dos autores e de outros por meio das inscrições G1, G2,G3 e G4.

B) O prédio referido em A) confronta, actualmente, de Norte, Sul e Poente com caminho e de nascente com HH.

C)Confrontando com o caminho do lado Poente em relação ao prédio dos AA, os RR são proprietários do prédio do prédio inscrito na Matriz no artº ...89 da mesma freguesia ....

D) O caminho público que, actualmente, divide o prédio dos AA do prédio dos RR foi aberto pelos RR em substituição de um outro também carreteiro que tinha curso pelo lado Sul de ambos os prédios e que fazia ligação com a estrada de ... que passa a norte.

(...)”

Da base instrutória

F) O prédio referido em A) pertence à família dos AA. há mais de 100 anos. (…)

L) os AA fizeram constar no modelo 1 (IMI-comprovativo da declaração para inscrição ou actualização de prédios urbanos matriz) que o seu prêdio tem uma área total de 330, 25 m², sendo 70,70 m² de área de implantação, 25,20 m² de área bruta dependente, 70, 70 m² de área de construção e 45, 50 m² de área bruta privativa.

46. Da fundamentação da sentença proferida na acção nº 755/04 consta o seguinte:

“A primeira questão que importa abordar respeita, obviamente, ao primeiro pedido que os autores formularam.

Como facilmente se extrai da análise da da certidão de fls 172 a 174, os autores beneficiam da presunção da titularidade dos direitos de propriedade sobre os imóveis referidos na alínea A) dos factos assentes dada a existência de inscrição registral referentes à titularidade desses direitos.

Donde se conclui no sentido do que deve proceder o primeiro pedido formulado para os autores devendo os mesmos ser reconhecidos como donos do imóvel a referido na alínea A).

Do pedido formulado em 2º lugar, ou seja, serem os réus condenados a reconhecer que o prédio dos autores e restantes comproprietários confronta a norte com com o caminho, a sul com caminho a nascente com herdeira de RR e a poente com o caminho, com uma área total do terreno de 330, 2500 metros quadrados, área de implantação do prédio de 70,700 m2, área bruta dependente 25,2000 m2, área bruta de construção de 70,700 m 2 e e área bruta privativa de 45, 5500 m2, apenas se provou que prédio dos autores confronta atualmente do norte sul e poente com o caminho e da nascente conjure a marreiro os HH  (B)  dos factos assentes), no entanto no que respeita as áreas apenas se provou o que consta da alínea L), ou seja, que os AA fizeram constar no modelo 1( comprovativo da declaração para inscrição ou actualização de prédios urbanos matriz ) que o seu prédio uma área total de 330,25 m², sendo 70,70 m² de área de implantação, 25,20 m² de área bruta dependente, 70, 70 m² de área de construção e 45, 50 m² de área bruta privativa.

Assim sendo, procede pois a primeira parte do pedido no que respeita a delimitação do prédio mas soçobra a segunda parte que respeita à área declarada de tal prédio.

No que respeita ao 3º, 4º, 5º e 6º pedido, não se provaram as respostas aos quesitos (….), ou seja, não se porvaram os factos que estavam na base dos pedidos formulados.

Tanto basta para que nessa parte os pedidos em consideração tenham de improceder.(…)”

B) De Direito

Tipo e objecto de recurso

O Tribunal de 1.ª Instância julgou a acção totalmente procedente, decidindo:

“Condenar os réus CC e mulher, II, DD, JJ, KK, e marido LL, MM, mulher NN, OO e mulher PP, a reconhecer os autores AA e mulher, BB, como donos e legítimos possuidores do prédio descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...27, da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...7 da secção AA rústico e matriz predial urbana sob o artigo ...89, por usucapião, com a área de 1 028 m2, onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação, a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com HH e réus, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG;

Reconhecer que, no dia ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal de ..., foram desanexados 77 m2 cedidos ao domínio público para criação do caminho norte/sul, dividindo assim o prédio mencionado, em duas parcelas: uma onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação que passou a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com o caminho público norte/sul, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG; e a outra, a nascente do caminho público norte/sul, a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com os réus e HH, do sul com os réus Herdeiros de EE e FF e de poente com o caminho público norte/sul;

Condenar os réus a absterem-se de invadir o prédio dos autores ou causar-lhe qualquer dano;

Absolver os autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé”.

Desta sentença apelaram separadamente os Réus CC, II e DD.

O Tribunal da Relação de Évora, por decisão singular, não admitiu o recurso interposto pela Ré DD, admitindo os restantes, tendo aquela Ré reclamado para a conferência dessa decisão. Por acórdão proferido de outubro de 2019, o Tribunal da Relação de Évora confirmou a decisão do Relator de rejeitar a referida apelação interposta pela Ré DD e determinou a baixa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância para que esta fundamentasse a decisão proferida sobre os pontos 30, 32, 33, 34 e 35 da matéria de facto provada, após o que seriam apreciados os recursos interpostos pelos Réus CC e II.

O Tribunal de 1.ª Instância, a 14 de fevereiro de 2020, proferiu despacho nos termos determinados pelo Tribunal da Relação de Évora, procedendo à fundamentação da decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto provada. Tanto o Réu CC, como as Rés II e DD recorreram dessa decisão.

O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 8 de outubro de 2020, rejeitou os recursos interpostos pelos Réus CC, II e DD do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância a 14 de fevereiro de 2020, e julgou improcedentes as apelações interpostas pelos Réus CC e II, mantendo integralmente a sentença recorrida.

A Ré II interpôs recurso de revista desse acórdão, o qual não foi admitido pelo Tribunal da Relação de Évora, não tendo a Ré reclamado dessa decisão que se tornou, assim, definitiva.

O Réu CC interpôs também recurso de revista excecional com fundamento na ofensa de caso julgado, o qual foi admitido pelo Tribunal da Relação de Évora.

Por último, a Ré DD interpôs recurso de revista que foi rejeitado pelo Tribunal da Relação de Évora, tendo a Ré reclamado desse despacho. Por decisão singular de 10 de novembro de 2021, a reclamação foi deferida parcialmente, admitindo-se o recurso de revista interposto por essa Ré limitado à questão da rejeição pelo acórdão recorrido do recurso interposto pela mesma Reclamante do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância a 14 de fevereiro de 2020, relativo à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e, no mais, limitado à apreciação da alegada ofensa do caso julgado.

(In)admissibilidade dos recursos

O recurso de revista interposto pela Ré DD, conforme mencionado supra, por decisão de 10 de novembro de 2021, foi parcialmente admitida quanto à apreciação da alegada ofensa do caso julgado e quanto à questão da rejeição pelo acórdão recorrido do recurso interposto pela Recorrente do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância a 14 de fevereiro de 2020, relativo à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.

Por seu turno, no seu recurso de revista excecional, o Réu CC invoca as normas dos arts. 629º, nº 2, al. d), 671º, nos 1 e 3, in fine, 672º, nº 1, als. a) a c), do CPC. Porém, atendendo ao teor desse recurso e às respetivas conclusões, verifica-se que o Recorrente o fundamenta exclusivamente na alegada violação pelo acórdão recorrido da autoridade do caso julgado formada pela decisão proferida no processo nº. 755/04.3... (art. 629º, nº 2, al. a), do CPC). Estando em causa este fundamento, basta a possibilidade de a ofensa ocorrer para que o recurso seja admissível (ainda que circunscrito à apreciação dessa questão). Tal como decorre do art. 671º, nº 3, do CPC, a admissibilidade da revista, não é, neste caso, afectada pela existência de dupla conforme entre as decisões das Instâncias (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2018 proc. nº 679/14.6TBALQ.L1.S1).

Deste modo, o recurso de revista interposto pelo Réu CC é admissível com base no art. 629º, nº 2, al. a), do CPC, não sendo necessário analisar se se verificam ou não os pressupostos da revista excecional.

Também a Ré/Recorrente DD invoca, como se disse, a ofensa do caso julgado.

Da rejeição do recurso interposto pela Ré DD do despacho do Tribunal de 1.ª Instância proferido a 14 de Fevereiro de 2020

Conforme mencionado supra, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24 de outubro de 2019, além de ter sido confirmada a rejeição do recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente DD, foi determinada a baixa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância para que este fundamentasse a decisão proferida sobre os pontos 30, 32, 33, 34 e 35 da matéria de facto provada.

O Tribunal de 1.ª Instância proferiu despacho a 14 de fevereiro de 2020, nos termos determinados pelo Tribunal da Relação de Évora, procedendo à fundamentação da decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto dada como provada. Tanto o Réu CC, como as Rés II e DD recorreram dessa decisão, tendo o Tribunal da Relação de Évora rejeitado apreciar esses recursos, por considerar que o despacho em causa proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância “não tem qualquer conteúdo decisório autónomo e pela sua própria natureza não ofende direitos processuais das partes ou de terceiros, nem decide sobre qualquer questão concreta suscitada pelas partes”.

Por se considerar que tal decisão carece de autonomia e se integra na fundamentação da matéria de facto da sentença, ou seja, é parte integrante da sentença, concluiu-se que, por esse motivo, não é “passível de recurso autónomo, competindo à Relação sindicar essa fundamentação, em sede de impugnação da matéria de facto, no âmbito dos recursos interpostos da sentença, podendo conduzir à anulação da sentença nos termos da alínea c) do nº 2 do artº 662º do C. P. Civil, verificados os respetivos pressupostos”. Referiu-se igualmente “não poder a recorrente DD, que viu o recurso ser rejeitado pela Relação, recorrer de novo, agora do mencionado despacho, pretendendo obter o que já lhe foi recusado.”

Insurge-se a recorrente DD contra essa rejeição, argumentando que o despacho da 1ª instância “configura - formal e materialmente - uma nova efectiva decisão judicial que produz significativos efeitos e consequências jurídicas no processo” e “é para as partes. uma nova decisão judicial sujeita aos mesmos requisitos e fundamentos do que a sentença inicialmente proferida, sendo, dentro dos seus limites materiais e formais, uma nova sentença, ou uma renovação da decisão equiparada a uma sentença.”

Mas sem razão, a nosso ver.

De tal despacho não cabe recurso autónomo de apelação, ao abrigo do art. 644º do CPC.

É o que decorre, também, da conjugação da al. d) do nº 2 do art. 662º do CPC com a al. c) do mesmo número e com a al. a) do nº 3 do mesmo artigo;  o caso descrito na al. d) do nº 2 tem a ver não com a insuficiência da fundamentação de facto - como acontece, por exemplo, com a omissão da pronúncia da decisão de facto, a que se refere a al. c) do nº 2, que provoca a nulidade da decisão- mas com a insuficiente fundamentação da decisão de facto, ou seja, com a insuficiente motivação desta decisão (XX e YY, Primeiras Notas aos Novo Código de Processo Civil, 2014, volume II, pág. 105); do confronto das duas alíneas resulta, assim, que, no caso da al. d) (em que não há nulidade da decisão da 1ª instância), o juiz a quo “limitar-se-á a fundamentar devidamente a sua decisão pretérita – assim sanando o acto – não emitindo nova pronúncia ( decisão) sobre a questão de facto, nem prolatando uma nova sentença- embora possa, para tornar mais clara a peça processual, incluir a nova fundamentação numa transcrição da decisão anteriormente proferida. Assim se explica - isto é por não haver lugar anulação do acto, não sendo necessário ou admissível (art. 613º, nº 1) proferir nova decisão- que, no caso de não ser possível fundamentar melhor - única actividade exigida pela Relação e admitida ao juiz a quo -nada mais reste fazer na primeira instância do que remeter novamente os autos ao Tribunal da Relação… (ob. cit., págs 105 e 106). E acrescenta-se, na obra que se vem de citar: “O vício da motivação inconcludente não é um vício menor. No entanto, tal como a motivação é instrumental à decisão - embora possa desempenhar ainda papéis autónomos- também a relevância da viciação da primeira é instrumental relativamente ao mérito e a aceitação da segunda (…)”; e mais adiante: “ A inconcludência da motivação assume, assim, a natureza de argumento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Ora, é a esta última, isto é, à reapreciação da matéria de facto que se deve dirigir o julgamento do tribunal da Relação- é neste julgamento que se realiza o duplo grau de jurisdição. Sendo possível o aperfeiçoamento do acto impugnado, suprindo-se a irregularidade, assim isso procederá; caso contrário, a questão principal -o sentido da decisão de facto- faz valer a sua preponderância consumindo as que lhe são instrumentais. A consequência da detecção deste vício é, pois, apenas a prescrição da sua supressão, aperfeiçoando-se a motivação, como acto preparatório da pronúncia do tribunal ad quem sobre o objeto da impugnação - o sentido da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto” ( ob.cit., pág. 106).

Em resumo: determinada a fundamentação nos termos da al. d) do nº 2 do art. 662º do CPC, não se profere nova decisão, mas despacho complementar da fundamentação da decisão de facto que foi inicialmente dada, após o que os autos voltam para a Relação para aí se prosseguir a apreciação do objecto do recurso de impugnação da decisão inicial proferida sobre algum dos factos essenciais; se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade, sendo que, nesse caso, o recurso prossegue sem essa nova fundamentação; pelo contrário, se houver nova fundamentação, o recurso inicial prosseguirá tendo em conta a nova fundamentação, que concorrerá para uma melhor avaliação do acerto da decisão impugnada. Portanto, embora esclareça a decisão de facto, a nova fundamentação não é de molde a conferir quaisquer direitos novos ao recorrente, que, quando interpôs recurso, tinha já conhecimento da produção da prova, figurando-se, objectivamente, mais como um poder da Relação em ordem a que expediente parar a relação conhecer melhor da impugnação. Não existe, assim, qualquer nova decisão sobre os pontos de factos impugnados susceptível de recurso.

Pode argumentar-se que as partes deviam poder ampliar ou modificar o recurso da decisão de facto, que pode ter sido condicionado pela insuficiência da motivação. Mas não foi essa a opção da lei.

Como assim, não admite recurso de apelação o despacho do Tribunal de 1.ª Instância proferido a 14 de Fevereiro de 2020, que procedeu à fundamentação da matéria de facto provada relativa aos referidos pontos 30, 32, 33, 34 e 35, na sequência de acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido nos termos do disposto no art. 662º, nº 2, al. d), do CPC.

Autoridade do caso julgado:

Tanto o réu CC como a ré DD interpuseram recurso com fundamento na violação da autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida na acção nº 755/2004, tendo a última ré invocado, ainda, o caso julgado da sentença proferida na acção nº 62/2009.

Argumentam, no essencial, que, ao reconhecer-se que o prédio do VV confina com o prédio dos RR, a nascente, se está a pôr em causa a decisão anteriormente tomada no processo nº 755/04.3... já transitada em julgado, que decidiu que o prédio dos RR confina a poente não com os RR, mas com “caminho”.

Na Relação, a propósito da impugnação de facto, escreveu-se o seguinte:

“Acresce não se vislumbrar qualquer contradição com as confrontações do prédio nº. ...67 do recorrente, mencionado no processo nº. 755/04.3..., pois no facto 33 consta que o prédio dos autores confronta a norte com caminho de ..., do Sul com herdeiros de EE e FF, do poente com GG e de nascente com HH e com os Réus, ou seja, só confronta a nascente (e não também a poente, como refere o recorrente) com o prédio dos réus.

Aliás, como se diz na sentença recorrida “(…) tendo em consideração as confrontações do prédio nº ...66 não é possível concluir que o prédio nº ...27 do lado nascente tem confrontações inconciliáveis com aquelas. Explicando: se o prédio que é indiscutivelmente dos réus – o descrito sob o nº ...66 – confronta do Norte com caminho, do Sul com caminho, de nascente com HH e de poente com caminho (como ficou decidido na ação nº 755/04), tal não é compatível com as confrontações afirmadas pelos autores relativamente ao seu prédio, o descrito sob o nº ...27, e que aqui se deram como demonstradas. No entanto, quer nesta ação quer na ação nº 62/09 – neste caso, questão apreciada pelo Tribunal da Relação de Évora da perspetiva do caso julgado da ação nº 755 e da litispendência relativamente à presente ação nº 1445 – foi julgada improcedente qualquer das referidas exceções – fls. 567 e 1047 v.”

Ademais, como se exarou na sentença, que se acompanha, “(…) na verdade, a jurisprudência, desde logo deste STJ, há muito vem entendendo, de forma reiterada, que a força probatória do registo não se estende à definição das confrontações ou limites dos prédios cuja propriedade está inscrita- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Rel. Cons. Lopes do Rego), de 11 de fevereiro de 2016, disponível em www.dgsi.pt”. No mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Rel. Cons. Fernanda Isabel Pereira), de 14 de julho de 2016.

Não se vislumbra, pois, uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma efetiva e correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica que imponham entendimento diverso do acolhido.

Mantém-se, pois, inalterada essa factologia.”

No mesmo aresto, e já em sede de apreciação do caso julgado, escreveu-se também:

“Está provado que processo nº 755/04.3..., do então 2º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, no qual figuraram como réus os aqui AA, AA e BB, os quais foram condenados, por sentença transitado em julgado em 05/11/2007: “a) a reconhecerem os autores [CC e WW, aqui co-réus] são comproprietários e compossuidores do prédio sito em ..., inscrito na matriz predial da freguesia ... no artigo ...90º e registado na ... nº 01566/08... relativa à mesma freguesia na conservatória do Registo Predial ...; b) a reconhecerem que o prédio dos autores confronta a norte com caminho, a sul com caminho, a nascente com HH e a poente com caminho” – fls. 136 v. e ss.

E foram absolvidos do restante pedido, que compreendia o de condenação dos réus a reconhecerem que a área total do terreno dos autores era de 330,2500 m2, área de implantação do prédio de 70,7000 m2, área bruta dependente 25,2000 m2, área bruta de construção de 70,7000 m2 e área bruta privativa de 45,5000 m2 (parte da al. b); a desocupar o prédio, restituindo aos autores a respetiva posse (al. c); a retirarem do prédio todos os marcos e tabuletas que lá puseram (al. d); a reconstruirem todos os muros e paredes que demoliram ou alteraram (al. e); e a reporem o prédio como estava antes, retirando dele tudo quanto nele colocaram (al. f) – fls. 136 v.

(…) Ora, no caso concreto, partilhamos inteiramente o que se exarou na decisão da 1.ª instância quanto ao conhecimento desta questão, ao afirmar-se:

“A ação que correu termos sob o número 755/04.3... neste 2º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos foi instaurada pelos ora réus, CC e DD, contra os autores, AA e BB.

Há, pois, identidade de partes.

A verdade é, porém, que – ali - não foi deduzida qualquer reconvenção e os pedidos formulados pelos autores também não são idênticos aos pedidos formulados pelos ali réus no âmbito dos presentes autos.

Afinal, e se – no âmbito desses outros autos - o que os ora réus, CC e DD, pretendiam era o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo ...90º e descrito sob o número ...02, com determinadas confrontações e áreas, o que aqui os ali réus, AA e BB, pretendem é coisa distinta, a saber, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio distinto.

Assim sendo, e considerando que, de harmonia com o preceituado no artigo 498º do Código de Processo Civil, se exige uma tríplice identidade que – in casu – não se verifica, é forçoso concluir pela improcedência da arguida exceção no que tange a esses outros autos”.

Na verdade, quer a causa de pedir, quer o pedido formulado nestes autos pelos autores é totalmente distinto do formulado pelos aqui réus e autores nos processos nºs 755/04.3... e 62/09.5... .

Com efeito, no processo nº 755/04.3..., os ora autores AA e BB, aí réus, foram condenados: “a) a reconhecerem que os autores [CC e WW, aqui corréus] são comproprietários e compossuidores do prédio sito em ..., inscrito na matriz predial da freguesia ... no artigo ...90º e registado na ficha nº 01566/08... relativa à mesma freguesia na conservatória do Registo Predial ...; b) a reconhecerem que o prédio dos autores confronta a norte com caminho, a sul com caminho, a nascente com HH e a poente com caminho”, sendo absolvidos do restante pedido que compreendia o de condenação dos réus a reconhecerem que a área total do terreno dos autores era de 330,2500 m2, área de implantação do prédio de 70,7000 m2, área bruta dependente 25,2000 m2, área bruta de construção de 70,7000 m2 e área bruta privativa de 45,5000 m2 (parte da al. b); a desocupar o prédio, restituindo aos autores a respetiva posse (al. c); a retirarem do prédio todos os marcos e tabuletas que lá puseram (al. d); a reconstruirem todos os muros e paredes que demoliram ou alteraram (al. e); e a reporem o prédio como estava antes, retirando dele tudo quanto nele colocaram ( facto nº 40). (…)

No caso que nos ocupa, os autores peticionaram o reconhecimento da propriedade do prédio registado na conservatória do Registo Predial ... sob o número 00127/07..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...7 da secção AA rústico e matriz predial urbana sob o artigo ...89, por justo título e por usucapião e a condenação dos réus a reconhecerem que o prédio tem área de 1.028 m2, nele se encontrando implantada a casa com 72 m2 e um pequena arrecadação, e que este prédio que confronta do norte com caminho público de ..., sul Herdeiros de EE e FF, poente com GG e nascente com HH e Herdeiros de EE, bem como que sobre o prédio foi desanexada, em ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal de ..., uma parcela de 77 m2 para constituição de um caminho público, dividindo o prédio dos AA em dois, dando origem a duas parcelas distintas, separadas por esse mesmo caminho público, caminho que confronta do norte com o caminho público da ..., de sul com FF e de nascente e poente com os Autores.

Portanto, é manifesto que se trata de prédios distintos, sendo totalmente distintos os pedidos e a causa de pedir, verificando-se apenas identidade de sujeitos.

E assim sendo, inexiste qualquer autoridade de caso julgado.

Improcede, pois, o recurso da recorrente, assim como o fundamento do recorrente quanto este fundamento.

Concluindo, improcedem as apelações.”

Em primeiro lugar, convém recordar que o instituto do caso julgado pode ser analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. “A excepção do caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 2º, pág. 325).

Ou seja: o facto de “quer nesta acção quer na acção nº 62/09 – neste caso, questão apreciada pelo Tribunal da Relação de Évora da perspectiva do caso julgado da ação nº 755 e da litispendência relativamente à presente ação nº 1445 – foi julgada improcedente qualquer das referidas exceções – fls. 567 e 1047 v.” não impede a consideração de tal questão na perspectiva da autoridade do caso julgado.

Por outro lado, se é certo que, como se afirma também na sentença (em passagem que a Relação sufragou) “ que a força probatória do registo não se estende à definição das confrontações ou limites dos prédios cuja propriedade está inscrita- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Rel. Cons. Lopes do Rego), de 11 de fevereiro de 2016, disponível em www.dgsi.pt”. - isso não significa que, tendo-se discutido as confrontações de determinado imóvel descrito na CRP, não possam as mesmas ser objecto de decisão de facto (depois de livremente valoradas pelo julgador). Uma coisa é a força probatória do registo, que não se estende à definição das confrontações ou limites dos prédios cuja propriedade está inscrita; outra, diferente, é os limites e as confrontações, que figuram no registo (e que são livremente valoradas), serem dados como provados,  passarem a constarem da decisão da matéria de facto (cfr., precisamente, o citado Ac. STJ de 11.2.2016, proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, em www.dgsi,pt), e poderem fundamentar a decisão de direito de reconhecimento das confrontações de outro imóvel que com aquele confina (constituindo, dessa forma, caso julgado).

Identidade de sujeitos:

Como se afirma no Ac. STJ de 30.11.2021, proc. 697/10.3TBELV.E1.S1, em www.dgsi.pt “a autoridade de caso julgado, implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, numa relação de prejudicialidade, no objeto de uma acção posterior, impedindo que a relação ou situação jurídica antes definida venha a ser objecto de nova decisão e se potencie uma decisão, total ou parcialmente, contraditória sobre a mesma questão.”

Todavia, tem-se entendido que “a não ser nos casos legalmente previstos, a autoridade do caso julgado, que se pode estender a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, pressupõe a identidade dos sujeitos (cfr. Ac. STJ de 28.3.2019, proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1, em www.dgsi.pt; e o citado Ac. STJ de 4.5.2021, proc. 1051/18.4R8CHV.G1.S1).

Com efeito, se é verdade que se vem considerando que a autoridade de caso julgado dispensa a exigência da tríplice identidade (de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir) estabelecida no artigo 581º do CPC (cfr. Ac. STJ de 28.3.2019, proc. nº 6659/08.3TBCSC.L1.S1, Ac. STJ de 30.3.2017, proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, Ac. STJ de 04.06.2015, proc. nº 177/04.6TBRMZ.E1.S1, todos em www.dgsi.pt), também se vem entendendo que esta dispensa tem de ser entendida com limitações, designadamente aquela que resulta da inexistência de identidade de sujeitos, pois, se se entendesse de outro modo, estaria a desvirtuar-se a figura do caso julgado e a fazer repercutir numa acção que corre entre determinados sujeitos os efeitos decorrentes de sentença proferida noutro processo que correu entre outros sujeitos, o que representaria uma violação do princípio do contraditório (v. Ac. STJ de 18.06.2014, proc. nº 209/09.1TBPTL.G1.S1, em www.dgsi.pt): o efeito de caso julgado só vinculará quem tenha sido parte na respetiva acção ou quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos (assim, o citado ac. STJ  28.3.2019).  Assim, sem prejuízo dos casos em que possa ocorrer a extensão do caso julgado, o efeito de autoridade do caso julgado só se produzirá se se verificar a identidade de sujeitos entre as acções.

Ora, verifica-se que, no caso vertente, existe apenas identidade física parcial de sujeitos: a acção nº 755/04 (cfr. factos 39 a 41) foi proposta apenas por dois dos comproprietários (em litisconsórcio voluntário activo) que intervêm na presente acção como réus (em litisconsórcio necessário passivo, decidido nos autos, por intervenção provocada de outros comproprietários).

Todavia, esses dois comproprietários pediram na acção nº 755/04 a condenação dos aqui autores a reconhecerem que eram comproprietários de um prédio registado na C.R.Predial ..., que este tinha determinadas confrontações, sobretudo que a poente confrontava com caminho, pedindo, ainda, que fosse desocupado o prédio, restituindo aos autores a respectiva posse. A acção foi configurada, pois, como de reivindicação, nos termos do art. 1311º do CC, compreendendo dois pedidos cumulados: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 113). E como se entende que só através destas duas finalidades se preenche o esquema da acção de reivindicação, por isso se tem entendido, também, que, se o reivindicante se limita a pedir a restituir da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele (loc. cit.). Não é o caso, uma vez que os autores formularam na acção o pedido expresso de reconhecimento do direito de propriedade do prédio e ainda, um pedido expresso e autónomo de reconhecimento das confrontações e da área do prédio.

Ora, nos termos do art. 1405º, nº 2 do CC, cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro, o que significa que o tribunal conhece legalmente também dos direitos dos outros comproprietários embora eles não figurem como partes, nada obstando, portanto, a que o que seja decidido nessa acção, proposta apenas por dois comproprietários, possa servir como autoridade do caso julgado na outra, inscrevendo-se como objecto prejudicial (cfr. Ac. STJ de 27.6.1995, proc. 087096, em www.dgsi.pt).

A falta de identidade física completa entre os sujeitos de ambas as acções, não obsta, pois, à extensão subjectiva da eficácia do caso julgado formado pela sentença proferida ma primeira acção relativamente à segunda.

Da existência da prejudicialidade:

Porém, para que a autoridade do caso julgado possa operar, é de exigir que, além da identidade de sujeitos (que, no caso, se estende aos comproprietários que não intervieram na acção anterior), o objecto da acção anterior se inscreva, numa relação de prejudicialidade, no objecto de uma acção posterior, isto é, que a relação da segunda acção esteja para com a primeira “num nexo de dependência tal que seja logicamente inevitável a repercussão” (Alberto dos Reis, CPC anotado., págs. 246 e 247). Apenas é prejudicial se o objecto da acção anterior se inscrever, pois, como pressuposto indiscutível, no objecto da acção posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa (cfr. Ac. STJ de 19.10.2021, proc. 34666/15.2T8LSB.L2.S1, em www.dgsi.pt).       

Recordando, na presente acção, os réus foram condenados: a) “ a reconhecer os autores AA e mulher, BB, como donos e legítimos possuidores do prédio descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...27, da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...7 da secção AA rústico e matriz predial urbana sob o artigo ...89, por usucapião, com a área de 1 028 m2, onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação, a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com HH e réus, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG; ( sublinhado nosso); b) Reconhecer que, no dia ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal de ..., foram desanexados 77 m2 cedidos ao domínio público para criação do caminho norte/sul, dividindo assim o prédio mencionado, em duas parcelas: uma onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação que passou a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com o caminho público norte/sul, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG; e a outra, a nascente do caminho público norte/sul, a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com os réus e HH, do sul com os réus Herdeiros de EE e FF e de poente com o caminho público norte/sul;  c) condenar os réus a absterem-se de invadir o prédio dos AA ou causar-lhe qualquer dano (…).”

Por outro lado, e como decorre dos factos 39, 40 e 41, correu termos o processo nº 755/04.3..., do então 2º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, em que os aí réus, aqui autores, foram condenados: “a) a reconhecerem os autores [CC e WW, aqui co-réus] são comproprietários e compossuidores do prédio sito em ..., inscrito na matriz predial da freguesia ... no artigo ...90º e registado na ... nº 01566/08... relativa à mesma freguesia na conservatória do Registo Predial ...; b) a reconhecerem que o prédio dos autores confronta a norte com caminho, a sul com caminho, a nascente com HH e a poente com caminho” – fls. 136 v. e ss. (art. 6º da contestação). E absolvidos do restante pedido que compreendia o de condenação dos réus a reconhecerem que a área total do terreno dos autores era de 330,2500 m2, área de implantação do prédio de 70,7000 m2, área bruta dependente 25,2000 m2, área bruta de construção de 70,7000 m2 e área bruta privativa de 45,5000 m2 (parte da al. b); a desocupar o prédio, restituindo aos autores a respetiva posse (al. c); a retirarem do prédio todos os marcos e tabuletas que lá puseram (al. d); a reconstruirem todos os muros e paredes que demoliram ou alteraram (al. e); e a reporem o prédio como estava antes, retirando dele tudo quanto nele colocaram (al. f) – fls. 136 v. (arts. 40º e 43º da réplica)”.

Assim, como se verifica, enquanto na acção nº 755/04 se decidiu que   o prédio dos ali AA. (e ora RR.) confronta a poente com caminho, decidiu-se na presente acção que o prédio dos ora AA. (ali RR.) confronta do nascente com HH e réus.

Argumentou-se no acórdão (na esteira da sentença) que se o prédio dos réus – o descrito sob o nº ...66 – confronta do Norte com caminho, do Sul com caminho, de nascente com HH e de poente com caminho (como ficou decidido na acção nº 755/04), tal não se mostra incompatível, nem inconciliável, com as confrontações afirmadas pelos autores relativamente ao seu prédio do lado nascente. Argumentou-se, ainda, que as acções respeitam a prédios distintos, sento totalmente distintos os pedidos e a causa de pedir, verificando-se apenas identidade de sujeitos, pelo que inexiste qualquer autoridade do caso julgado.

Em primeiro lugar, e como acima se referiu, não releva, para a verificação da autoridade do caso julgado, que os pedidos e as causas de pedir sejam distintos. O que importa, isso sim, é que o objecto da primeira acção (apesar de respeitar a um pedido de reconhecimento do direito de propriedade de um prédio distinto) se possa inscrever como questão prejudicial dentro do objecto da segunda acção (apesar de respeitar a outro prédio) de forma a evitar contradições.

Em segundo lugar, a compatibilidade entre as confrontações dos prédios tem de ser aferida em concreto e não em abstracto.

Assim, dos factos assentes da acção nº 755/04 ficou a constar que o prédio referido em A) (ou seja o dos ora Réus) confronta de poente com caminho (B) , que com o caminho do lado poente ( do outro lado, portanto) confronta o prédio dos ali RR. ora AA., inscrito na matriz no art. ...89 e que “ o caminho público que, actualmente, divide o prédio dos autores do prédio dos réus foi aberto para os réus em substituição de um outro também carreteiro que tinha curso pelo lado sul de ambos os prédios e que fazia a ligação com estradas de ... que passa a Norte ( D)”

É certo que para decidir as confrnotações,  o juiz apenas se reportou à al. B), que menciona a existência de “caminho” como confrontação (actual) a poente do prédio dos ora Réus (art. 390); não se referiu à Al. D) que alude à existência de um “caminho público, que actualmente divide o prédio dos AA do prédio dos RR” e que “foi aberto pelos réus em substituição de um caminho carreteiro que atravessava o prédio dos AA de Sul para Norte”, razão por que este fundamento de facto, no que se refere à divisão do prédio, não tendo sido tratado na fundamentação de direito, não pode servir de caso julgado autónomo (cfr. Ac. STJ de 16.11.2011, proc. 899/20.7T8STB.E1.S1).

Porém, se é certo que a sentença da acção nº 755/04 (intentada em 2004) não abordou expressamente a questão da divisão entre os prédios, a verdade é que da mesma resulta (interpretando-a em conjunto com a decisão destes autos, que apenas se reporta ao caminho público, factos 26 e 27), que existe, “actualmenne” (cfr.  B) e D) um único caminho, que corresponde ao público.

O que significa que, tendo ficado decidido  na sentença nº 755/04 que o prédio dos ora RR confronta a ponte com o dito caminho ( e se estende até lá),  não se pode agora na acção presente decidir-se,  sob pena de contradição, que o prédio dos AA. confronta de nascente com o prédio dos RR., ultrapassando o dito caminho para nascente.

Mas essa exigência resulta também das decisões da Relação e, sobretudo, do Supremo proferidas na acção nº 62/09 (ali, a sentença proferida foi absolutória).

É verdade que, na parte dispositiva, nem a Relação nem o Supremo definiram expressamente as confrontações do prédio dos ora RR., ali AA.

Porém, é jurisprudência corrente que a força de caso julgado, incluindo na vertente positiva da autoridade, se estende aos fundamentos da decisão que se apresentam como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado (cfr. Ac. STJ de 13.7.2010, proc. 464/05.6TBCBT-C.G1.S1, Ac. STJ de 17.11.2015, proc. 34/12.2TBLMG.C1.S1, Ac. STJ de 8.11.2018, proc. 478/08.4TBASL.E1.S1, Ac. STJ de 30.3.2017, proc.  1375/06.3TBSTR.E1.S1, Ac. STJ de 17.11.2015, proc. 34/12.2TBLMG.C1.S1, todos em www.dgsi.pt; Ac. STJ, de 23.10.86, BMJ 360º, pág. 609).

Ora, a propósito pode ler-se no acórdão do Supremo:

“Acresce que da sentença proferida em 15/10/2017 resulta que o referido prédio tem as confrontações que constam da matriz e do registo predial e sua composição e confrontações estão harmonizadas na matriz e no registo predial.

Ora, tendo a licença camarária para a instalação da rede ovina sido emitida nessa base e sendo impedida pelos RR [os ora AA] a instalação dessa rede em execução da referida licença tal constitui base suficiente para concluir que a atuação daqueles visou impedir que os AA. procedessem a essa nos limites das confrontações daquele prédio tal como se encontram definidas na sentença de 15/10/2017”.

 Ficou, assim, demonstrado nas acções referidas que o prédio dos RR. confronta a poente com “ caminho” e que esse caminho se situa a poente da estrema nascente do prédio dos AA. agora dada como provada.

 Existe, deste modo, um nexo lógico de prejudicialidade entre as decisões precedentes das duas acções e a da presente acção ou, dito de outro modo, um nexo de dependência tal que torna logicamnete inevitável a repercussão da confrontação do prédio dos RR. a poente sobre a confrontação do prédio dos AA. a nascente. Ou seja: pelas razões apontadas, se o prédio dos RR. confronta a poente com caminho, o prédio dos AA não pode confinar a nascente com os RR.

O acatamento do caso julgado formado prejudica, deste modo, a decisão dos presentes autos: como se disse, o prédio  dos AA não pode confinar a nascente com os RR, em lugar diferente do caminho; o prédio dos AA. não pode ter a área indicada de 1028 m2 ( que foi medida para além do caminho); não se pode dar como demonstrado que o prédio dos AA. se mostra dividido em duas parcelas e que os AA. são, para além da parcela 1, proprietários da parcela 2 (situada a nascente do caminho).

Síntese (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. Do despacho que o tribunal de 1ª instância proferir para fundamentação da decisão sobre algum facto essencial, em obediência ao disposto no art. 662º, nº 2, al. d) do CPC, não cabe recurso autónomo de apelação, uma vez que tal despacho, que não tem conteúdo decisório mas apenas fundamentador, não se insere em qualquer das hipóteses do art. 644º do CPC;

2. Estando decidido por decisão proferida em acção de reivindicação, entre os mesmos sujeitos, do ponto de vista da sua qualidade jurídica, que o prédio dos RR. confronta a poente com caminho, a autoridade do caso julgado daí decorrente impede que se conclua, na segunda acção, que o prédio dos AA. confronta a nascente com (o prédio dos) RR, em local situado a nascente do dito caminho.

Pelo exposto, concedem-se as revistas, revoga-se o acórdão recorrido e decide-se:

 “a) Condenar os réus CC e mulher, II, DD, JJ, KK, e marido LL, MM, mulher NN, OO e mulher PP, a reconhecer os autores AA e mulher, BB, como donos e legítimos possuidores do prédio descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o número ...27, da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...7 da secção AA rústico e matriz predial urbana sob o artigo ...89, onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação, a confrontar do norte com caminho de ..., do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG;

b) reconhecer que, no dia ... de 2008, no Cartório Privativo da Câmara Municipal de ..., foram desanexados 77 m2 cedidos ao domínio público para o caminho norte/sul, situando-se do lado poente uma parcela que integra o prédio pertencente aos AA, onde está implantada a moradia de 72,63 m2 e uma arrecadação, que passou a confrontar do norte com caminho de ..., do nascente com o caminho público norte/sul, do sul com Herdeiros de EE e FF e do poente com GG.”

Mantém-se a absolvição dos AA. do pedido de condenação como litigantes de má-fé.”

Custas das revistas pelos AA./recorridos.


*


Lisboa, 7 de Junho de 2022

António Magalhães (relator)

Jorge Dias

Maria João Vaz Tomé (com voto de vencida, que segue)


Declaração de voto de vencida

1. Salvo o devido respeito, teria julgado parcialmente procedente o recurso de revista interposto pela Ré DD (doravante FCPS) e, consequentemente, teria revogado o acórdão recorrido na parte em que decidiu não conhecer do recurso por si interposto do despacho de 14 de fevereiro de 2020 da 1.ª Instância, que procedeu à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto provada sob os n.os 30, 32, 33, 34 e 35. O processo baixaria ao TRE para apreciação desse recurso, devendo este Tribunal proceder, se fosse caso disso, às alterações necessárias à fundamentação de direito e à decisão final. Resultaria, assim, prejudicado o conhecimento do restante objecto do recurso interposto por FCPS, assim como do objeto do recurso interposto pelo Réu CC (doravante AJP) devendo primeiramente ficar estabilizada nos autos a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada para que, em momento subsequente, se pudesse aplicar o Direito aos factos.

2. Com efeito, no acórdão de 24 de outubro de 2019, o TRE, além de ter confirmado a rejeição do recurso de apelação interposto por FCPS, determinou a baixa do processo à 1.ª Instância para que esta fundamentasse a decisão proferida sobre os factos provados sob os n.os 30, 32, 33, 34 e 35.

3. Por despacho de 14 de fevereiro de 2020, a 1.ª Instância proferiu despacho nos termos determinados pelo TRE, procedendo à fundamentação da decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto dada como provada. Tanto o Réu AJP, como as Rés II (doravante FM) e FCPS recorreram dessa decisão, tendo a o TRE rejeitado apreciar esses recursos.

4. No que respeita ao argumento da impossibilidade de FCPS não poder interpor mais recursos depois da rejeição do seu recurso de apelação pelo TRE, importa referir que existe, no caso sub judice, uma situação de litisconsórcio necessário passivo prevista no art. 634º, nº 1, do CPC. Compulsadas as decisões proferidas nos autos, pode concluir-se que a FCPS e os demais Réus foram demandados na qualidade de comproprietários do prédio urbano sito em .... Pode igualmente retirar-se dos autos que o litígio assenta na demarcação do prédio dos Réus perante o prédio cuja propriedade é reivindicada pelos Autores, discutindo-se a área do último e se o mesmo inclui alguma parte atualmente situada a nascente do caminho público constituído no sentido norte/sul. De facto, se nesta ação está em causa saber qual a área, composição e confrontações do prédio reivindicado pelos Autores perante o prédio dos Réus, assim como a condenação destes no reconhecimento do direito de propriedade daqueles nos termos por eles alegados, assim como na abstenção da prática de qualquer ato de invasão do prédio em apreço ou de qualquer ato passível de lhe causar dano, é evidente que a eficácia da decisão a proferir seria posta em causa se um outro comproprietário do mesmo prédio, não demandado nestes autos, viesse noutra ação a debater a área, a composição e as confrontações do prédio dos Autores. A decisão final sobre o direito invocado pelos Autores só regulará, pois, de forma definitiva, a situação concreta das partes se todos os comproprietários do prédio em apreço estiverem na lide ao lado dos Réus. Verifica-se, pois, um caso de litisconsórcio necessário do lado passivo, uma vez que é necessária a intervenção de todos os comproprietários do prédio. Tal litisconsórcio necessário foi reconhecido nos autos, pois que, havendo sido invocada na contestação a exceção de ilegitimidade passiva, na réplica os Autores responderam à exceção e, subsidariamente, pediram a intervenção provocada dos restantes donos do prédio, os quais foram admitidos a intervir. Não restam, deste modo, dúvidas sobre a aplicação do disposto no art. 634º, nº 1, do CPC. Assim, ainda que o recurso de apelação interposto por FCPS tenha sido rejeitado pelo TRE, as apelações interpostas pelos restantes Réus aproveitaram àquela Ré, pelo que a sentença da 1.ª Instância não transitou em julgado relativamente à aqui Recorrente. Não tendo transitado em julgado a sua condenação contida na sentença da 1.ª Instância, FCPS não fica impedida de interpor recursos de outras decisões que sejam proferidas nos autos e que lhe sejam desfavoráveis.

5. Crê-se, por outro lado, que a decisão da 1.ª Instância, que alterou a fundamentação da matéria de facto provada, na sequência de acórdão do TRE proferido nos termos do art. 662º, nº 2, al. d), do CPC, constitui uma decisão formal e substancialmente nova que interfere no conteúdo do direito das partes. Este despacho integra a sentença proferida nos autos e, por conseguinte, tem evidente repercussão na definição dos direitos das partes. Se tal despacho se destina a fundamentar a decisão sobre parte da matéria de facto que é objecto dos autos, é claro que tem conteúdo decisório sobre factos essenciais que integram a causa de pedir. A decisão concreta sobre os referidos pontos de facto não pode ficar sem possibilidade de recurso: não vale aqui o argumento de que as partes deveriam ter recorrido da sentença originária, ficando precludido o direito ao recurso relativamente a complementos dessa mesma sentença. Só depois de terem conhecimento da fundamentação de uma certa decisão podem as partes reagir contra os argumentos utilizados no caso de os mesmos conduzirem a uma decisão para si desfavorável. Assim, relativamente à decisão sobre os factos vertidos nos pontos referidos da factualidade provada, como o próprio TRE decidiu no primeiro acórdão, de 24 de outubro de 2019, o dever de fundamentação não foi cumprido na sentença primeiramente proferida pela 1.ª Instância. Isto conduziu o TRE a exercer o poder-dever previsto no art. 662º, nº 2, al. d), do CPC. Consequentemente, só após a prolação da decisão de 14 de fevereiro de 2020, em que foi cumprida a decisão do TRE, as partes tiveram conhecimento da fundamentação da 1.ª Instância sobre aqueles pontos de facto e, por conseguinte, apenas a partir desse momento poderiam reagir contra a decisão adotada.

6. O despacho da 1ª Instância configura,  formal e materialmente, uma nova decisão judicial que produz efeitos significativos e consequências jurídicas no processo e é para as partes uma nova decisão judicial sujeita aos mesmos requisitos e fundamentos que a sentença inicialmente proferida. É, “dentro dos seus limites materiais e formais, uma nova sentença, ou uma renovação da decisão equiparada a uma sentença”.

7. Acresce que a decisão aprecianda não integra a previsão de qualquer dos números do art. 630º do CPC, não podendo equiparar-se a prolação de um despacho que contém a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto essencial para a resolução da causa a um “despacho de mero expediente”, ou a um “despacho proferido no uso legal de um poder discricionário”. A fundamentação da decisão sobre concretos pontos de facto essenciais afigura-se crucial para a composição do litígio e para a definição dos direitos das partes, de um lado e, de outro, o juiz fica vinculado à fundamentação que apresenta e à consequente decisão sobre a prova dos factos em causa, não podendo mais alterar essa decisão, esgotando-se o seu poder jurisdicional. Torna-se, assim, evidente a recorribilidade de tal decisão da 1.ª Instância. De resto, a irrecorribilidade a que se refere o art 662º, nº 4, do CPC, reporta-se à decisão do TR proferida ao abrigo dos n.os 1 e 2, e não às decisões subsequentemente proferidas pela 1.ª Instância em observância do determinado pelo TR.

8. A decisão da 1.ª Instância, que procedeu à fundamentação da matéria de facto provada relativa aos referidos pontos n.os 30, 32, 33, 34 e 35, na sequência de acórdão do TRE proferido nos termos do disposto no art. 662º, nº 2, al. d), do CPC, é, assim, recorrível, desde que preenchidos os requisitos gerais de recorribilidade legalmente previstos, limitando-se o recurso ao objecto da decisão em causa.