Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
262/18.7T8LSB-A.L1-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRANSPORTE AÉREO
CONTRATO DE TRANSPORTE
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
LUGAR DA PRESTAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CONVENÇÃO DE LUGANO
CONVENÇÃO DE MONTREAL
REGULAMENTO (CE) 44/2001
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ADMISSIBILIDADE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 10/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ESPÉCIES DE RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA.
Doutrina:
- Fausto Pocar, Relatório Pocar;
- J. C. Moitinho de Almeida, L’ interpretation par la Cour du droit européen de procédure civile, in Of Courts and Constitutions: Liber Amicorum Honour of Nial Fennelly, Hart Publishing, Oxford, 2014, p. 29-30;
- Luís de Lima Pinheiro, Breves notas sobre o direito aplicável ao contrato de transporte aéreo internacional, in Estudos de Direito Aéreo, coord. Dário Moura Vicente, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 253-256 ; Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I, Competência Internacional, 3ª ed., AAFDL, Lisboa, 2019, p. 77 e ss.;
- Nuno Calaim Lourenço, A limitação de responsabilidade do transportador aéreo internacional no transporte de pessoas, Varsóvia a Montreal, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, coord. Januário da Costa Gomes, Almedina, Coimbra, 2010, p. 506-512.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2, ALÍNEA A) E 671.º, N.ºS 2, ALÍNEA A) E 3.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO N.º 1215/2012, DE 12-12 (REGULAMENTO BRUXELAS IBIS): - ARTIGOS 6.º, N.º 1 E 63.º, N.º 1, ALÍNEA A).
REGULAMENTO N.º 44/2001: - ARTIGOS 4.º, N.º 1 E 71.º, N.º 1.
REGULAMENTO N.º 261/2004: - ARTIGO 7.º.
PROTOCOLO N.º 2: - ARTIGO 1.º, N.º 2.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DE LUGANO II: - ARTIGOS 5.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), 60.º, N.º 1 E 67.º, N.º 1
CONVENÇÃO DE MONTREAL: - ARTIGOS 29.º E 33.º.
Jurisprudência Internacional:
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- DE 09-07-2009, PROCESSO C-204/08, PETER REHDER CONTRA AIR BALTIC CORPORATION.
Sumário :
I. Ainda que esteja em causa acórdão da Relação que apreciou decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, o recurso é admissível ao abrigo do art. 671º, nº 2, alínea a), do CPC; com efeito, tendo como fundamento a violação das regras de competência internacional, trata-se de uma das situações em que o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da acção (cfr. art. 629º, nº 2, alínea a), do CPC), sendo afastado o obstáculo da dupla conforme (cfr. ressalva inicial do nº 3 do art. 671º do CPC).

II. Na resolução da questão da competência internacional, considera-se que o percurso metodológico adequado para o efeito implica: (i) determinar o instrumento normativo pertinente; (ii) identificar a norma ou normas aplicáveis; (iii) interpretar a norma ou normas identificadas.

III. Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04/01/2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento nº 1215/2012, de 12/12 (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30/10/2007, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II).

IV. Por interpretação a contrario do art. 6º, nº 1, do Regulamento nº 1215/2012, entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da UE. No caso dos autos, verifica-se ter a ré sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no art. 63º, nº 1, alínea a), do Regulamento nº 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da UE; deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

V. No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que tem como objectivo primacial estender às partes contratantes os princípios do Regulamento nº 44/2001 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012), nela se adopta (art. 4º, nº 1) uma regra equivalente à do art. 6º, nº 1 do Regulamento nº 1215/2012. Deste modo, sendo o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes e encontrando-se a ré domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II, confirma-se a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação.

VI. No presente recurso suscitam-se dúvidas sobre a inserção do caso sub judice no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II, pretendendo a recorrente que, ao abrigo da previsão do nº 1 do artigo 67º da mesma Convenção, seja antes aplicável a Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional que contém regras próprias de competência internacional (art. 33º), que conduzem a um resultado distinto do que resulta da aplicação das normas da Convenção de Lugano II.

VII. Ora, na actividade de interpretação e aplicação das normas da Convenção de Lugano II, encontra-se este Supremo Tribunal vinculado, ao abrigo do nº 2 do art. 1º do Protocolo nº 2 à mesma Convenção, a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, tal como realizada pelo TJUE.

VIII. No Acórdão de 09/07/2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), relativo a um caso idêntico ao caso dos autos, em que estava em causa uma acção para, numa situação de “cancelamento” de voo, exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, o TJUE resolveu a questão preliminar da delimitação entre o âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001 e o da Convenção de Montreal, no sentido do afastamento desta última.

IX. Assim, ainda que não se ignorem as objecções críticas feitas a esta orientação jurisprudencial do TJUE, sobretudo em razão do princípio da exclusividade ínsito no art. 29º da Convenção de Montreal, considera-se que a norma do nº 1 do art. 67º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais, sendo substancialmente idêntica à norma do nº 1 do artigo 71º do Regulamento nº 44/2001, deve ser interpretada de acordo com a orientação do acórdão do TJUE referido em VIII; em consonância, tendo o pedido do autor sido apresentado com base apenas no Regulamento n° 261/2004, deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II.

X. Estando em causa uma acção de responsabilidade por incumprimento de contrato de transporte aéreo, da aplicação conjugada das normas do art. 5º, nº 1, da Convenção de Lugano II, resulta a necessidade de determinar qual é o “lugar de cumprimento da obrigação do transportador” (alínea a)), sendo que – uma vez que o contrato de transporte se integra na categoria mais ampla do contrato de prestação de serviços – esse lugar será “o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados” (alínea b), segundo travessão).

XI. Também quanto às dúvidas interpretativas das normas indicadas em X – e em razão da previsão do nº 2, do art. 1º, do Protoloco nº 2 à Convenção de Lugano II –, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da UE, vinculado a respeitar a interpretação que o TJUE fez de normas do Regulamento nº 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas daquela Convenção.   

XII. Tais dúvidas foram apreciadas e decididas pelo TJUE a respeito das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, no referido Acórdão de 09/07/2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), em sentido que, nos termos do Protocolo nº 2 à Convenção, é aplicável à interpretação das normas da Convenção, a saber: o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n° 261/2004 é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoas colectivas, e de acordo com o art. 60º, nº 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social.

XIII. Deste modo, no caso dos autos, para exercer o direito de indemnização previsto no art. 7º do Regulamento nº 261/2004, o autor podia optar por demandar a ré: (i) na jurisdição do lugar de partida do voo cancelado, a jurisdição portuguesa; (ii) ou na jurisdição do lugar do destino do mesmo voo, a jurisdição suíça, que, simultaneamente, é a jurisdição do lugar do domicilio da demandada.

XIV. Conclui-se, assim, pela competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente acção.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, cidadão suíço, residente na …, intentou em 4 de Janeiro de 2018, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB - Air Lines, pessoa colectiva com sede em …, Suíça, e sucursal em Lisboa, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 400,00, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou que adquiriu, através da reserva …, bilhete para o voo n.º LX2085 operado pela R., a realizar no dia 27/06/2016, com partida do Aeroporto de Lisboa (LIS) às 14h30 e chegada prevista ao Aeroporto de Zurique (ZRH) às 18hl5 (horas locais). Efectuou o check-in para o referido voo, tendo emitido o respectivo título de embarque (boarding pass). O voo acima indicado foi cancelado pela R. pelo que o A. apenas embarcou no voo LX2085 para o destino final, Aeroporto de Zurique (ZRH), às 14h30 do dia 28/06/2016, tendo assim chegado com mais de três horas de atraso em relação à hora inicialmente prevista. Não foi informado pela R. do cancelamento do voo com um período de aviso prévio de duas semanas.

Nos termos do artigo 52º, nº 1, alínea c), do Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro, cada passageiro tem o direito a ser indemnizado pela R. nos termos do disposto no artigo 7º do mesmo Regulamento.

Por se tratar de um voo intracomunitário com mais de 1.500 kms, é aplicável a alínea b) do nº 1 do referido artigo 7º do Regulamento pelo que cada passageiro tem direito a uma indemnização no valor peticionado.

A R. contestou e, no que ora releva, invocou a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, alegando existir uma relação jurídica plurilocalizada: o autor é cidadão suíço e reside na Suíça; a R. tem sede na Suíça; o local de destino da viagem é um aeroporto suíço; e o embarque ocorreu em Portugal.

Estando em causa um contrato de transporte aéreo internacional, nos termos dos instrumentos internacionais que indica (Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro e Convenção de Montreal), por aplicação do artigo 59.º, n.º 1, 1ª parte, do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, o tribunal internacionalmente competente é o tribunal da sede da R., que é também o local de destino do voo e o local onde a obrigação foi ou deveria ter sido cumprida, ou seja, o tribunal suíço.

Em sede de contraditório à invocada excepção, o A. defendeu a sua improcedência, alegando que lhe cabe escolher o tribunal onde pretende ver o seu direito reconhecido, tendo optado pelo tribunal da partida do voo (Lisboa), que também corresponde ao local do incumprimento do contrato por aí ter sido cancelado o voo.

Por despacho saneador, datado de 27/05/2018, foi apreciada a invocada excepção de incompetência internacional, nos seguintes termos:

“Dispõe o artigo 62.°, al b), do CPC que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram.

Esta norma enuncia o critério da causalidade - um dos três critérios de atribuição de competência internacional com origem legal aos tribunais portugueses - e consiste em determinar a competência internacionais destes sempre que tenha sido praticado em território nacional o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir.

In casu, e ainda que o pedido se sustente no cumprimento de uma obrigação pecuniária, o facto que serve de causa de pedir é o cancelamento de um voo operado pela ora ré, com partida de Lisboa para o aeroporto de Zurique, no dia 27.06.2016. Ou seja, o facto que serve de causa de pedir foi praticado em território português.

Acresce que o artigo 7.° n.° 1 al. b) do Regulamento (CE) n.° 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Setembro de 2012 (salvaguardado pelo artigo 4.°, n.° 1, do mesmo Regulamento), que dispõe que «o lugar de cumprimento da obrigação será, no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues» tem sido entendido no sentido de que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo de pessoas é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou de chegada do avião.

Por fim, e no que respeita ao «local do estabelecimento em que tenha sido celebrado o contrato», dispõe o artigo 81.° n.° 2, parte final, do CPC que a acção contra pessoas colectivas ou sociedades estrangeiras que tenham sucursal, agência, filial, delegação ou representação em Portugal pode ser proposta no tribunal da sede destas, ainda que seja pedida a citação da administração principal.

Nestes termos, conclui-se pela competência dos tribunais portugueses, para prosseguir com a presente acção e, especificamente, por este Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, tendo em conta o supra citado artigo 81.° n.° 2, parte final, do CPC e o disposto no artigo 71.° n.° 1, 1.ª parte, do mesmo diploma legal.”


Inconformada com esta decisão, a R. interpôs recurso no Tribunal da Relação de Lisboa com fundamento em violação das regras de competência internacional.

Por acórdão de 19/02/2019, foi proferida a seguinte decisão:

“Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida, embora com fundamento jurídico diverso.”


2. Vem a R. interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, por via normal e, subsidiariamente, por via excepcional, formulando as seguintes conclusões:

“a. Na contestação apresentada no processo sub judice, a ora Recorrente alegou a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por preterição das regras de competência internacional vigentes no ordenamento português.

b. O Tribunal a quo julgou, em Despacho Saneador, os argumentos invocados pela ora Recorrente totalmente improcedentes.

c. A Recorrente interpôs recurso ordinário de apelação do Despacho Saneador, pugnando que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo internacional de pessoas é aquele, à escolha do passageiro, em cujo foro se situa a sede da transportadora ou o lugar de destino do passageiro.

d. Como nenhum desses locais corresponde a Portugal, a Recorrente concluiu pela incompetência internacional dos Tribunais Portugueses; a igual conclusão chegou a Recorrente ao aplicar os princípios de Direito Internacional Privado, nomeadamente o princípio da conexão mais estreita.

e. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o Acórdão ora Recorrido que julgou improcedente o recurso, mantendo, embora com fundamento jurídico diverso, a decisão recorrida.

f. Em particular, o Tribunal da Relação aderiu a uma interpretação da Convenção de Lugano II efetuada pelo Tribunal de Justiça nesta matéria, concluindo pela existência de um "direito de opção concedido ao autor, uma vez que podia optar entre o lugar de partida do voo cancelado (Lisboa) e o lugar de chegada do voo (Zurique), em conformidade com a interpretação do Tribunal de Justiça no processo C-2004-08".

g. Porém, e salvo melhor entendimento, existe uma norma especial relativamente à mesma matéria de competência judiciária aplicável a todas as ações por danos decorrentes de transporte aéreo internacional de passageiros, a qual é lei internacional especial face à lei geral invocada pelo douto Tribunal.

h. O recurso é admissível enquanto revista ordinária, uma vez que não há sobreposição de julgados, nomeadamente quanto à fundamentação das decisões das instâncias, e porque estamos perante uma das situações em que o recurso é sempre admissível (cfr. artigo 671.°, n.º 1, a) CPC).

i. Sendo o contrato de transporte aéreo internacional a base contratual que sustenta o direito que o Recorrido alega deter contra a Recorrente, impõe-se que se atendam às regras que regem este tipo de contrato para se aferir qual o Tribunal competente para apreciação do mesmo e da eventualidade da existência de um direito a uma compensação pelo seu cumprimento defeituoso.

j. Esclareça-se que, ainda que objetiva, a indemnização prevista no Regulamento (CE) n.° 261/2004 não deixa de ter em vista a compensação de um dano decorrente do incumprimento de um contrato de transporte aéreo internacional.

k. Não tendo sido convencionado qualquer pacto privativo de atribuição de jurisdição, então, por força do princípio do primado do direito internacional sobre o direito interno, a competência internacional para a apreciação do litígio das partes decorre, em primeira linha, das normas de competência internacional.

l. Verifica-se existir, a par do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 e da Convenção de Lugano II sobre todas as matérias civis em geral, uma Convenção que dispõe de normas especiais de competência judiciária relativamente a todas as ações por danos decorrentes de transporte aéreo internacional de passageiros.

m. Em particular, a situação em apreço será determinada, em exclusivo, pela Convenção de Montreal - Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, transposta para a ordem jurídica portuguesa através do Decreto-Lei n.° 39/2002 de 27 de novembro e que se aplica a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efetuadas a título oneroso.

n. Estas regras são de carácter e aplicação exclusiva, como resulta do texto da própria Convenção e da sua antecessora, ainda em vigor, a Convenção de Varsóvia.

o. Também em virtude do critério da especialidade, a lei especial (Convenção de Montreal) prevalece sobre a lei geral (Convenção de Lugano II), uma vez que a lei geral não revoga a lei especial, a menos que outra seja a intenção inequívoca do legislador.

p. No caso em concreto, verifica-se que a Convenção de Lugano II manda, expressamente, aplicar qualquer lei especial que exista - como a Convenção de Montreal (cfr. 67.°, n.° 1). q. Atendendo a que a Convenção de Montreal dispõe de regras específicas sobre a jurisdição competente para apreciar ações por danos com fundamento no transporte de passageiros, e não existindo qualquer disposição na Convenção de Lugano II que leve a concluir pela revogação das normas especiais de competência previstas na Convenção de Montreal (antes pelo contrário), deverá esta regra especial prevalecer sobre as regras gerais aplicáveis às demais matérias civis.

r. Dispõe a Convenção de Montreal, no seu artigo 33.°, que a ação por danos emergentes do contrato de transporte aéreo internacional "deve ser intentada, à escolha do autor, no território de um dos Estados Partes, seja perante o tribunal da sede da transportadora, do estabelecimento principal desta ou do estabelecimento em que tenha sido celebrado o contrato, seja perante o tribunal do local de destino".

s. Foi intenção do legislador subordinar a competência para as ações aí previstas ao local da sede da transportadora, ao local onde tenha sido celebrado o contrato, ou ao local de destino. t. Não se pode por isso concluir que uma norma genérica como a constante no Regulamento (UE) n.° 1215/2012 e/ou Convenção de Lugano II possa vir derrogar a especificidade ínsita no apontado artigo 33° da Convenção de Montreal.

u. No presente caso, verifica-se que tanto a "sede da transportadora" como o "local do destino" se situam na Suíça, sendo assim inequívoco que são os tribunais desse local os competentes para apreciar o presente litígio, até porque em momento algum se prova a intervenção da sucursal portuguesa da Recorrente na celebração do contrato.

v. Muito embora o fundamento do pedido do Recorrido seja a indemnização prevista no Regulamento (CE) n.° 261/2004, a Convenção de Montreal "… aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso" (cfr. artigo 1.°, n.° 1), em especial as matérias relativas ao contrato de transporte aéreo internacional que não se encontram previstas no referido regulamento, como a competência judiciária.

w. Neste sentido, também da regra constante no artigo 29.° da Convenção de Montreal resulta que "No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as ações por danos, qualquer que seja o seu fundamento. (...), só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção...".

x. Ora, o artigo 33.° da Convenção de Montreal estabelece uma regra de jurisdição aplicável a - nos termos da leitura conjunta do artigo 1.° e 29.° dessa Convenção - todas as ações por danos, qualquer que seja o seu fundamento (i.e. mesmo com fundamento no Regulamento (CE) n.° 261/2004), relacionadas com transporte internacional de passageiros, sendo que esta norma da Convenção é de aplicação exclusiva.

y. Inexistindo regra específica no Regulamento (CE) n.° 261/2004 sobre a competência judiciária, não se vê razão para que essa lacuna não seja preenchida com a norma constante no artigo 33.° da Convenção de Montreal, que, para além de ser o quadro normativo adotado por Portugal para reger o contrato de transporte aéreo internacional de pessoas e bens, também consagra no seu normativo o principio da exclusividade da aplicação dessas mesmas normas.

z. Nestes termos, apenas seriam competentes (i) os tribunais do local da sede da transportadora (…, Suíça) (ii) do local do estabelecimento da transportadora em que tenha sido celebrado o contrato (presumivelmente Suíça), ou (iii) o local do destino (Zurique, Suíça).

aa. Pelo que até pelo princípio de Direito Internacional Privado da conexão mais estreita seria forçoso concluir que são os Tribunais Suíços aqueles competentes para apreciar o presente caso.

[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade da revista por via excepcional, salvo aquelas que contêm considerações quanto ao objecto do recurso]

mm. Como se demonstrará infra, o Acórdão Recorrido, salvo o devido respeito, violou e fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 5.° da Convenção de Lugano II.

nn. O contrato em causa nos autos tem uma ligação originária, intrínseca e estreita com a jurisdição e legislação Suíça, uma vez que este é (i) o país da nacionalidade e residência do passageiro, (ii) o país da sede da transportadora aérea contratada e, presumivelmente, (iii) da sede da empresa com a qual o referido contrato foi celebrado, (iv) a legislação Suíça é a legislação no âmbito da qual foi celebrado o contrato de transporte em causa, (v) sendo na Suíça, ou mais especificamente, no aeroporto de Zurique, que se poderá verificar se existiu ou não o cumprimento defeituoso do presente contrato, pois é a partir do momento de chegada do passageiro ao aeroporto de destino que é possível aferir se existiu, ou não, atraso na chegada ao destino final.

oo. Não é no momento de um cancelamento de voo que se afere o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do contrato de transporte aéreo internacional, pois a transportadora aérea, perante um cancelamento de um voo, poderá conseguir reencaminhar o passageiro para o destino final contratado sem qualquer atraso ou atraso considerável, seja através de voos próprios alternativos, seja através de voos de outras transportadoras.

pp. Veja-se, neste sentido, a alínea c) do artigo 5.° do Regulamento (CE) n.° 261/2004, onde se enumera como causa de exclusão do direito a indemnização o facto de ao passageiro ter sido oferecido reencaminhamento que lhe permitisse partir até uma hora ou duas horas antes da hora programada, e chegar ao destino final até duas ou quatro horas depois da hora programada de chegada (conforme o caso).

qq. Se ao passageiro de um voo cancelado foi oferecido reencaminhamento que lhe permita chegar ao seu destino final com um atraso até quatro horas, o passageiro não terá direito à indemnização prevista no artigo 7.° do Regulamento, pelo que é forçoso concluir que apenas com a chegada do passageiro ao seu destino final, e verificação das horas a que aí chegou, é que se pode verificar a existência, ou não, do direito à compensação prevista no Regulamento.

rr. Apenas no momento em que o passageiro chega ao destino final (no presente caso, no aeroporto de Zurique) que se pode aferir se existiu atraso considerável (superior a quatro horas) na chegada ao destino final, facto necessário à atribuição da compensação prevista no artigo 7.° do Regulamento 261/2004.

ss. Ambos os Acórdãos decidiram pela aplicação da Convenção de Lugano II, que tem por objetivo alcançar um nível uniforme de circulação de decisões em matéria civil e comercial entre os Estados-Membros e a Suíça, a Noruega e a Islândia.

tt. A regra geral, estabelecida no artigo 3.° da Convenção acima referida, é a de que serão competentes os tribunais do Estado vinculado onde o réu tem o seu domicílio. Para efeitos de clarificação, o artigo 60.° da Convenção veio acrescentar que, no respeitante a sociedades ou outras pessoas coletivas, se tem por domicílio o lugar onde tenha (i) a sua sede social, (ii) a sua administração central ou (iii) o seu estabelecimento principal.

uu. As alíneas a) e b) do número 1 do artigo 5.° da mesma Convenção, que estabelece que, em matéria contratual, as pessoas domiciliadas num Estado vinculado podem ser demandadas perante o tribunal de um outro Estado vinculado, onde a obrigação foi ou deve ser cumprida.

vv. No caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

ww. Considerando que a alegada obrigação da Recorrente seria a de proceder ao transporte do Recorrido até Zurique, será esse, local do aeroporto de destino, o local onde a obrigação deveria ter sido cumprida, sendo igualmente em tal local onde se pode aferir o incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, pela verificação do atraso do passageiro à chegada ao destino final.

xx. Perante o cancelamento de um voo, a Transportadora poderá sempre, através de voos alternativos, conseguir colocar o passageiro no destino final sem qualquer atraso, ou com atraso não considerável (inferior a quatro horas), não tendo, por isso, qualquer relevância para efeitos de aferição do incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, e em consequência, para efeitos de determinação da competência internacional, o local de partida do voo ou o facto de, per se, ter havido um cancelamento.

yy. Qualquer Acórdão interpretativo do Regulamento (CE) n.° 44/2001 - e aplicável à Convenção de Lugano II através do Protocolo n.° 2 relativo à interpretação uniforme da convenção - deve ter-se por acessório na determinação da jurisdição competente.

zz. Esse Protocolo n.° 2 refere que "Na aplicação e na interpretação das disposições da presente convenção os tribunais terão em devida conta os princípios definidos em qualquer disposição pertinente proferida pelos tribunais dos Estados vinculados e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias''.

a. "Ter em devida conta" não pode ser interpretado como equivalendo a uma aplicação cega de tais decisões.

b. Pelo contrário, as decisões devem ser consideradas individualmente, conforme a sua relevância e acuidade para o caso que esteja a ser analisado; o facto de existir uma determinada decisão interpretativa da regra aplicável não alivia o Tribunal de proceder a uma apreciação casuística dos casos que lhe são apresentados, determinando, caso a caso e em conformidade com o princípio da conexão mais estreita, qual a jurisdição competente.

c. O Acórdão-Fundamento, tendo certamente tomado em devida conta os princípios da interpretação do Tribunal de Justiça no Processo C-2004/08, optou por não aderir a essa interpretação mas sim a outra, em sentido diverso mas também do Tribunal de Justiça da União Europeia, concluindo - em consonância com jurisprudência mais recente do que aquela invocada pelo Acórdão Recorrido - que o contrato de transporte é um contrato de resultado que só se considera concluído com a chegada do passageiro ao destino final.

d. Atentos os factos em apreço em ambas as situações do Acórdão Recorrido e Acórdão-Fundamento, verifica-se que todos os demais elementos de conexão estão intrinsecamente conectados ao local de destino, uma vez que tal local também corresponde (i) ao local da sede da Ré, (ii) ao local do estabelecimento da transportadora onde o contrato foi celebrado e ainda (iii) local da nacionalidade e residência do Recorrido.

e. A ideia de conexão mais estreita traduz a própria justiça da conexão no seu conjunto e, por conseguinte, deve abranger todos os elementos de valoração, designadamente os princípios e ideias orientadoras da escolha da conexão.

f. Razão pela qual necessariamente se conclui que a Convenção de Lugano II, interpretada através da mais recente jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, assim como em consonância com o princípio da conexão mais estreita, princípio fundamental de Direito Internacional Privado, não atribui competência aos Tribunais Portugueses, mas sim aos Tribunais Suíços - tribunais do local de destino.

g. A jurisdição Suíça apresenta uma óbvia e notória maior conexão com os autos por corresponder ao foro (i) do local da sede da Recorrente, (ii) do aeroporto do destino onde se afere se existiu ou não incumprimento do contrato de transporte em causa e (iii) local da nacionalidade e residência do Recorrido.

h. Tudo visto, seria contra todas as regras sobre a competência internacional existentes no ordenamento jurídico português e de direito internacional, que quaisquer direitos emergentes do cumprimento do contrato alegadamente celebrado entre a Recorrente e o Recorrido fossem apreciados pelos tribunais portugueses, nomeadamente pelo douto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

i. O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é, assim como são todos os tribunais do ordenamento jurídico português, nos termos do artigo 96.° do Código de Processo Civil, absolutamente incompetente para conhecer o caso em apreço.”


         O Recorrido não contra-alegou.


3. Ainda que, no presente recurso, esteja em causa acórdão da Relação que apreciou decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, o recurso é admissível ao abrigo do artigo 671º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil. Com efeito, tendo o mesmo recurso como fundamento a violação de regras de competência internacional, trata-se de uma das situações em que o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da acção (cfr. artigo 629º, nº 2, alínea a), do CPC). Do mesmo modo se afasta o obstáculo da dupla conforme (cfr. ressalva inicial do nº 3 do artigo 671º do CPC).

         A revista é, pois, admissível por via normal.


4. Como resulta das conclusões de recurso, conjugadas com o regime do referido artigo 629º, nº 2, alínea a), do CPC, a questão objecto do presente recurso é unicamente a seguinte:

- Violação das regras de competência internacional.


5. Com relevo para a questão a apreciar vem provado o que consta do relatório do presente acórdão, a saber:

- O A. é cidadão suíço e reside na Suíça;

- A R. é uma pessoa colectiva com sede na Suíça e sucursal em Portugal;

- O pedido consiste numa pretensão indemnizatória fundada no artigo 7º, n° 1, alínea b), do Regulamento nº 261/2004, de 11 de Fevereiro;

- Os factos que fundam tal pedido são: a aquisição, através da reserva …., de bilhete para o voo nº LX2085 operado pela R., a realizar no dia 27/06/2016, com partida do Aeroporto de Lisboa às 14h30 e chegada prevista ao Aeroporto de Zurique às 18hl5 (horas locais); o cancelamento do voo pela R. pelo que o A. apenas embarcou no voo LX2085 para o destino final às 14h30 do dia 28/06/2016, tendo chegado a esse destino com mais de três horas de atraso em relação à hora do voo inicialmente previsto.


6. Recorde-se que a decisão de 1ª instância considerou os tribunais portugueses competentes para o conhecimento da causa, por aplicação do regime do Código de Processo Civil (conjugando a norma do artigo 62º, alínea b), com a do artigo 81°, n° 2, parte final, e ainda com o previsto no artigo 71°, n° 1, 1ª parte), conclusão que, no entender da mesma decisão, seria compatível com a previsão do artigo 7°, n° 1, alínea b), do Regulamento n° 1215/2012, de 12 de Dezembro, que, nas palavras utilizadas, tem sido interpretado “no sentido de que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo de pessoas é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou de chegada do avião.”

      A Relação manteve a decisão de reconhecimento da competência dos tribunais portugueses, mas com diferente fundamentação, que aqui se sintetiza:

- Afastou a aplicação do regime do Código de Processo Civil;

- Considerou que, não sendo a Suíça um Estado membro da União Europeia, a competência internacional para conhecer da presente acção se encontra regulada pela Convenção de Lugano II, cujas regras são alinhadas pelas regras do Regulamento nº 44/2001, de 16 de Janeiro (antecessor do Regulamento nº 1215/2012);

- Entendeu ser aplicável a norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, da Convenção de Lugano II, norma que tem correspondência com a norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 44/2001 (assim com a do artigo 7º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 1215/2012);

- De acordo com o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-2004/08 (Peter Reher vs Air Batic Corporation), a referida norma do artigo 5º do Regulamento nº 44/2001 deve ser interpretada no sentido de o tribunal competente para apreciar uma acção indemnizatória por cancelamento de um voo internacional intracomunitário ser “aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato”;

- Tal interpretação é válida para o caso dos autos, em conformidade com as regras relativas à interpretação uniforme da Convenção de Lugano II, consagradas no respectivo Protocolo nº 2.


Insurge-se a Recorrente contra esta decisão, invocando essencialmente os seguintes argumentos:

(a) A fonte normativa que regula a competência para conhecer da presente acção não é nem a Convenção de Lugano II nem o Regulamento nº 1215/2012, mas antes a Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, de cujo artigo 33º resulta a incompetência dos tribunais portugueses [conclusões recursórias g) a z)];

(b) De qualquer forma, também a devida interpretação do artigo 5º da Convenção de Lugano II (e de acordo com o princípio da conexão mais estreita) levaria a atribuir a competência para conhecer da presente acção aos tribunais suíços e não aos tribunais portugueses [conclusões recursórias mm) a i)].


Ainda que, na resolução da questão jurídica da competência internacional, este Supremo Tribunal não se encontre sujeito às alegações da Recorrente (cfr. artigo 5º, nº 3, do CPC), considera-se que o percurso metodológico adequado para o efeito implica, efectivamente, os seguintes passos: (i) determinação do instrumento normativo pertinente; (ii) identificação da norma ou normas aplicáveis; (iii) interpretação da norma ou normas identificadas.


7. Importa, assim, começar por determinar a fonte normativa ao abrigo da qual a questão da competência internacional para conhecer da presente lide deve ser equacionada.

     De acordo com os princípios constitucionais relativos à integração, na ordem jurídica interna, quer das normas constantes de convenções internacionais ratificadas pelo Estado português quer das disposições emanadas das instituições da União Europeia (artigo 8º, nºs 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa), entende-se que, existindo fonte normativa internacional ou supranacional reguladora da competência internacional, é de afastar a aplicação das regras dos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, como aliás se encontra expressamente previsto no artigo 59º do mesmo Código.


7.1. Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04/01/2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento nº 1215/2012, de 12 de Dezembro (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II).

Está em causa a inserção da presente acção no âmbito temporal de aplicação de cada um dos indicados instrumentos normativos.

Tendo a acção sido proposta na referida data, encontra-se abrangida tanto pelo âmbito temporal de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 (o qual, nos termos do respectivo artigo 66º, nº 1, abrange as acções intentadas a partir de 10 de Janeiro de 2015) como pelo âmbito temporal de aplicação da Convenção de Lugano II (a qual, de acordo com as regras previstas nos respectivos artigos 63º, nº 1, e 69º, nºs 4 e 5, entrou em vigor entre a União Europeia e a Suíça em 1 de Janeiro de 2011, segundo informação publicada no JOUE L 138/1, de 26/05/2011).

Prosseguindo no iter de determinação da fonte normativa aplicável à resolução da questão do presente recurso, falta ainda verificar se o caso sub judice se insere no âmbito espacial de aplicação e no âmbito material de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 ou da Convenção de Lugano II.


7.2. Quanto ao âmbito espacial de aplicação do Regulamento nº 1215/2012, dispõe o nº 1 do respectivo artigo 6º:

Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”

Por interpretação a contrario desta norma (tal como anteriormente da norma do nº 1 do artigo 4º do Regulamento nº 44/2001), entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da União Europeia.

No caso dos autos, verifica-se ter a R. sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no artigo 63º, nº 1, alínea a), do Regulamento nº 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da União Europeia.

Deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que, como consta do Preâmbulo, tem como objectivo primacial estender às partes contratantes (União Europeia e certos Estados da EFTA) os princípios do Regulamento nº 44/2001 (antecessor do Regulamento nº 1215/2012), nela se adopta, no nº 1 do artigo 4º, uma regra equivalente à do supra transcrito artigo 6º, nº 1, do Regulamento nº 1215/2012, a saber:

Se o requerido não tiver domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção, a competência será regulada em cada Estado vinculado pela presente convenção pela lei desse Estado, sem prejuízo da aplicação do disposto nos artigos 22.º e 23.º”

Deste modo, o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II é também definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes.  

Na medida em que, de acordo com o artigo 60º, nº 1, alínea a) da Convenção de Lugano II, uma pessoa colectiva tem domicílio na sua sede social, a R. encontra-se domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II. Confirma-se assim a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação.


7.3. Por último, falta verificar a inserção do caso sub judice no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II, inserção que é rejeitada pela Recorrente (conclusões g) a z)), alegando que, ao abrigo da previsão do artigo 67º da mesma Convenção, é antes aplicável a Convenção de Montreal Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional.

     Vejamos aquela que se afigura constituir a questão nuclear do presente recurso.


7.3.1. A “Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional” foi celebrada em Montreal a 28 de Maio de 1999, no âmbito da Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO).

Foi assinada por Portugal, em 28/05/1999, aprovada e publicada pelo Decreto nº 39/2002, de 27 de Novembro, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 03/03/2003 (cfr. Aviso nº 142/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 07/05/2003).

Foi também assinada pela Comunidade Europeia, em 09/12/1999, e aprovada, em nome desta, pelo Conselho da União Europeia, em 05/04/2001. No que respeita à União Europeia, entrou em vigor em 28/06/2004.

No que releva para o presente recurso, o âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal é assim definido no respectivo artigo 1º:

“1 - A presente Convenção aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso. A presente Convenção aplica-se igualmente às operações gratuitas de transporte em aeronave efectuadas por uma empresa de transportes aéreos.

2 - Para efeitos da presente Convenção, entende-se por «transporte internacional» todas as operações de transporte em que, segundo as estipulações das Partes, o ponto de partida e o ponto de destino, independentemente de se verificar uma interrupção do transporte ou um transbordo, se situam no território dos dois Estados Partes ou no território de um único Estado Parte, caso tenha sido acordada uma escala no território de um terceiro Estado, mesmo que este não seja Parte na Convenção. O transporte entre dois pontos situados no território de um único Estado Parte, sem uma escala acordada no território de outro Estado, não é considerado transporte internacional para efeitos da presente Convenção.

(…)”

A Convenção de Montreal contém regras próprias de competência internacional (cfr. artigo 33º), que, a serem aplicáveis ao caso dos autos, conduzirão a um resultado distinto daquele que resulta da aplicação das normas da Convenção de Lugano II.

Está pois em causa saber qual o instrumento normativo pertinente. Se a Convenção de Lugano II, se a Convenção de Montreal relativa ao transporte aéreo internacional.

Com razão invoca a Recorrente, a este respeito, a previsão da própria Convenção de Lugano II, em cujo artigo 67º, nº 1, se prescreve o seguinte:

A presente convenção não prejudica as convenções a que as partes contratantes e/ou os Estados vinculados pela presente convenção estejam vinculados e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões. Sem prejuízo das obrigações resultantes de outros acordos entre algumas partes contratantes, a presente convenção não as impede de serem parte em tais convenções.


Com base nesta norma, e em considerações genéricas acerca da prevalência da norma especial sobre a norma geral, pretende a Recorrente que se reconheça que a presente lide se encontra abrangida pelas regras de competência da Convenção de Montreal, e não pelas regras de competência da Convenção de Lugano II.

Contudo, não pode concluir-se pela adopção de tal solução, assente na relação de especialidade normativa, sem se terem em conta os princípios e normas a que a própria interpretação da Convenção de Lugano II se encontra sujeita, consagrados no Protocolo nº 2 à mesma Convenção. Pela importância decisiva deste Protoloco para a resolução da questão objecto do presente recurso se transcreve o seu conteúdo integral:


PROTOCOLO N.º 2

Relativo à interpretação uniforme da convenção e ao Comité Permanente


PREÂMBULO

AS ALTAS PARTES CONTRATANTES,

TENDO EM CONTA o artigo 75.º da presente convenção,

CONSIDERANDO a ligação substancial entre a presente convenção, a Convenção de Lugano de 1988 e os instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção,

CONSIDERANDO que ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias foi atribuída competência para decidir sobre a interpretação das disposições dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção,

CONSIDERANDO que a presente convenção passa a fazer parte integrante das normas comunitárias e que, por conseguinte, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem competência para decidir sobre a interpretação das disposições da presente convenção no que respeita à sua aplicação pelos tribunais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia,

COM PLENO CONHECIMENTO das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre a interpretação dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção até à data da assinatura da mesma, bem como das decisões proferidas pelos tribunais das partes contratantes na Convenção de Lugano de 1988 sobre esta última até à data da assinatura da presente convenção,

CONSIDERANDO que a revisão paralela das Convenções de Lugano de 1988 e de Bruxelas, que levou à redacção de um texto revisto em relação a estas convenções, se baseou principalmente nas decisões acima mencionadas relativas às Convenções de Bruxelas de 1968 e de Lugano de 1988,

CONSIDERANDO que o texto revisto da Convenção de Bruxelas foi incorporado, após a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, no Regulamento (CE) n.º 44/2001,

CONSIDERANDO que o referido texto revisto constituiu igualmente a base para o texto da presente convenção,

DESEJANDO, no pleno respeito pela independência dos tribunais, impedir interpretações divergentes e chegar a uma interpretação tão uniforme quanto possível das disposições da presente convenção e das disposições do Regulamento (CE) n.º 44/2001, cujo conteúdo é em grande medida reproduzido na presente convenção, e dos outros instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção,


ACORDARAM NO SEGUINTE:


Artigo 1.º

1. Na aplicação e na interpretação das disposições da presente convenção, os tribunais terão em devida conta os princípios definidos em qualquer decisão pertinente proferida pelos tribunais dos Estados vinculados pela presente convenção e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativamente à ou às disposições em causa ou a disposições análogas da Convenção de Lugano de 1988 ou dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da convenção. [Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como todas as suas alterações, da Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Bruxelas, em 27 de Setembro de 1968, e do Protocolo relativo à interpretação desta convenção pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, assinado no Luxemburgo em 3 de Junho de 1971, na redacção que lhes foi dada pelas convenções de adesão à referida convenção e ao referido protocolo pelos Estados aderentes às Comunidades Europeias, bem como do Acordo entre a Comunidade Europeia e o Reino da Dinamarca relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinado em Bruxelas em 19 de Outubro de 2005]

2. No que diz respeito aos tribunais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia, a obrigação estabelecida no n.º 1 aplica-se sem prejuízo das suas obrigações em relação ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias resultantes do Tratado que institui a Comunidade Europeia ou do Acordo entre a Comunidade Europeia e o Reino da Dinamarca relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinado em Bruxelas em 19 de Outubro de 2005.


Artigo 2.º

Qualquer Estado vinculado pela presente convenção que não seja Estado-Membro da Comunidade Europeia pode apresentar alegações ou observações escritas, em conformidade com o artigo 23.º do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, sempre que um tribunal de um Estado-Membro da Comunidade Europeia apresentar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial sobre a interpretação da presente convenção ou dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da mesma.


Artigo 3.º

1. A Comissão das Comunidades Europeias instituirá um sistema de intercâmbio de informações relativo a decisões pertinentes proferidas nos termos da presente convenção, bem como nos termos da Convenção de Lugano de 1988 e dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção. O sistema deve ser acessível ao público e incluir as decisões proferidas pelos tribunais de última instância e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, bem como as decisões de especial relevância transitadas em julgado e proferidas nos termos da presente convenção, da Convenção de Lugano de 1988 e dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção. As decisões devem ser classificadas e acompanhadas de um resumo. O sistema inclui a transmissão à Comissão, pelas autoridades competentes dos Estados vinculados pela presente convenção, das decisões proferidas pelos tribunais desses Estados tal como acima referido.

2. O Secretário do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias efectuará uma selecção das causas com especial relevância para o correcto funcionamento da convenção e apresentará a jurisprudência seleccionada na reunião de peritos, em conformidade com o artigo 5.º do presente protocolo.

3. Até à instituição do sistema referido no n.º 1 pelas Comunidades Europeias, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias mantém o sistema de intercâmbio de informações estabelecido pelo protocolo n.º 2 da Convenção de Lugano de 1988 relativo a decisões proferidas ao abrigo da presente convenção e da Convenção de Lugano de 1988.


Artigo 4.º

1. É instituído um Comité Permanente, composto por representantes das partes contratantes.

2. A pedido de uma parte contratante, o depositário da presente convenção convoca reuniões do Comité para efeitos de:

— consulta sobre a articulação entre a presente convenção e outros instrumentos internacionais,

— consulta sobre a aplicação do artigo 67.º, designadamente sobre as adesões previstas aos instrumentos relativos a matérias especiais, em conformidade com o n.º 1 do artigo 67.º, e a propostas de legislação em conformidade com o protocolo n.º 3,

— exame da adesão de novos Estados. Em especial, o Comité pode colocar questões aos Estados aderentes, referidos no n.º 1, alínea c), do artigo 70.º, sobre o seu sistema judicial e a aplicação da presente convenção.

O Comité pode igualmente analisar a oportunidade de se proceder a eventuais adaptações da presente convenção tendo em vista a sua aplicação nos Estados aderentes,

— aceitação de novas versões linguísticas que fazem fé, nos termos do n.º 3 do artigo 73.º da presente convenção, e das alterações necessárias ao anexo VIII,

— consulta sobre uma revisão da convenção, nos termos do artigo 76.º,

— consulta sobre alterações aos anexos I a IV e ao anexo VII nos termos do n.º 1 do artigo 77.º,

— adopção de alterações aos anexos V e VI, nos termos do n.º 2 do artigo 77.º,

— retirada das reservas e das declarações efectuadas pelas partes contratantes nos termos do protocolo n.º 1 e de adopção das alterações necessárias ao anexo IX.

3. O Comité estabelece as regras processuais que regulam o seu funcionamento e a tomada de decisões. Essas regras devem prever a possibilidade de efectuar consultas e adoptar decisões mediante procedimento escrito.


Artigo 5.º

1. O depositário pode convocar, sempre que necessário, uma reunião de peritos para trocar opiniões sobre o funcionamento da convenção, em especial sobre o desenvolvimento da jurisprudência e de nova legislação que possam influenciar a aplicação da convenção.

2. Esta reunião é composta por peritos das partes contratantes, dos Estados vinculados pela presente convenção, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e da Associação Europeia de Comércio Livre. As reuniões são abertas à participação de outros peritos cuja presença seja considerada adequada.

3. Eventuais problemas resultantes do funcionamento da convenção podem ser apresentados ao Comité Permanente referido no artigo 4.º do presente protocolo, a fim de serem tomadas as medidas necessárias.”


    Tanto do Preâmbulo do Protocolo como das suas regras deriva que as partes contratantes da Convenção de Lugano II reforçaram os meios para alcançar o objectivo de uniformização das decisões em matéria de competência judiciária, assim como de reconhecimento e de execução das decisões judiciais. Não se limitaram a fixar, na Convenção, regras uniformes sobre tais matérias, antes adoptaram, no Protocolo nº 2, um sistema que visa assegurar que a interpretação daquelas regras será realizada, também ela, de modo uniforme. Além disso, reconheceram a função, para esse efeito primacial, do Tribunal de Justiça da União Europeia (cfr. o Preâmbulo do Protocolo nº 2 e as previsões dos nºs 1 e 2 do artigo 1º do mesmo Protocolo) e adoptaram, entre outros, um mecanismo que permite a “Qualquer Estado vinculado pela presente convenção que não seja Estado-Membro da Comunidade Europeia” pronunciar-se no âmbito dos processos de reenvio prejudicial suscitados junto do Tribunal de Justiça pelos tribunais dos Estados-Membros (cfr. artigo 2º do Protocolo). Cfr. a este respeito: J. C. Moitinho de Almeida, “L’ interpretation par la Cour du droit européen de procédure civile”, in Of Courts and Constitutions: Liber Amicorum Honour of Nial Fennelly, Hart Publishing, Oxford, 2014, págs. 29-30; Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, Tomo I – Competência Internacional, 3ª ed., AAFDL, Lisboa, 2019, págs. 77 e segs.


7.3.2. Neste ponto, afigura-se relevante conhecer as considerações do “Relatório Explicativo” da Convenção de Lugano II, da autoria do Professor Fausto Pocar (conhecido simplesmente por Relatório Pocar), publicado no JOUE C 319/1, de 23/12/2009, considerações que, em seguida, se reproduzem na parte relevante:

“2. Protocolo n.º 2 relativo à interpretação uniforme da Convenção e ao Comité Permanente 

1. Generalidades

196.    Tal como na Convenção de 1988, o Protocolo n.º 2 diz respeito à interpretação uniforme da Convenção e ainda, conforme refere o título, ao Comité Permanente, instituído pelo Protocolo anterior. Todavia, as regras de interpretação e o papel do Comité Permanente foram substancialmente alterados. As alterações destinam-se em grande medida a ter em conta a participação da Comunidade Europeia na Convenção em lugar dos seus Estados-Membros, o que torna aconselhável que se preveja um papel mais alargado do Tribunal de Justiça e se institua um mecanismo tão flexível e célere quanto possível para qualquer revisão da Convenção com vista a adaptá-la à evolução do direito comunitário.

A abordagem é explicitada logo no preâmbulo, que não se limita a mencionar a ligação substancial entre a Convenção e os instrumentos referidos no artigo 64.º, e a consequente competência do Tribunal de Justiça para decidir sobre a interpretação das disposições desses instrumentos: vai mais longe ao considerar que a própria Convenção passa a fazer parte integrante das normas comunitárias e que, por conseguinte, o Tribunal de Justiça tem competência para decidir da interpretação da própria Convenção no que respeita à sua aplicação pelos tribunais dos Estados-Membros. O preâmbulo refere em seguida que a revisão paralela das Convenções de Lugano e de Bruxelas levou à redacção de um texto revisto comum, baseado nas decisões do Tribunal de Justiça e dos tribunais nacionais, tendo esse texto sido incorporado no Regulamento Bruxelas I, que por sua vez constituiu a base para a nova Convenção de Lugano; e conclui que é desejável impedir interpretações divergentes e chegar a uma interpretação tão uniforme quanto possível dos diversos instrumentos legislativos; trata-se, efectivamente, de uma condição necessária num espaço judiciário comum aos Estados-Membros da Comunidade e aos Estados que são Partes Contratantes na Convenção de Lugano.

 

2. Obrigação de ter em conta os precedentes (artigos 1.º e 2.º)

197.    Com base nos princípios enunciados no preâmbulo, o artigo 1.º do Protocolo determina que os tribunais terão em devida conta não apenas as decisões proferidas pelos tribunais dos outros Estados vinculados pela Convenção (como na disposição correspondente do Protocolo n.º 2 à Convenção de 1988), mas também as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça sobre a própria Convenção, sobre a anterior Convenção de 1988 e sobre os instrumentos referidos no artigo 64º, n.º 1, da Convenção – o primeiro e o mais importante dos quais é o Regulamento Bruxelas I.

Esta obrigação é motivada pelo facto de as disposições da Convenção e do Regulamento serem idênticas, e aplica-se na medida em que as mesmas sejam estritamente paralelas. Quando os dois textos divergem, os tribunais dos Estados vinculados pela Convenção deverão ter em conta apenas as decisões relativas à aplicação da Convenção proferidas pelos tribunais nacionais.

Para os tribunais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia, esta obrigação está subordinada às obrigações decorrentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Acordo de 2005 entre a Comunidade e a Dinamarca. Embora a Convenção seja um instrumento formalmente distinto, e independente, do Regulamento Bruxelas I, os tribunais dos Estados-Membros podem solicitar ao Tribunal de Justiça que, nos termos dos artigos 234.º e 68.º do TCE, se pronuncie a título prejudicial sobre a interpretação das disposições da Convenção, já que as mesmas fazem parte integrante do direito comunitário. Podem também, no entanto, ser apresentadas questões prejudiciais sobre a interpretação do Regulamento Bruxelas I, e poderá dar-se o caso de as disposições [em] serem idênticas às da Convenção, pelo que, mesmo tratando-se do Regulamento, a interpretação do Tribunal de Justiça terá inevitavelmente implicações para a clarificação do teor e do âmbito de aplicação das disposições da Convenção.

Quando é pedida uma interpretação ao Tribunal de Justiça, essa interpretação é vinculativa no processo em questão, o que significa que o órgão jurisdicional de reenvio é obrigado não apenas a tê-la em conta mas a aplicá-la na resolução do litígio. A obrigação para os tribunais dos Estados-Membros da Comunidade é por conseguinte mais estrita do que para os tribunais dos Estados não membros da Comunidade que são Partes na Convenção de Lugano, vinculados apenas pela obrigação menos específica de «ter em devida conta» os princípios definidos em qualquer decisão pertinente proferida pelo Tribunal de Justiça.

 

198.    Importa ter presente que o Protocolo se propõe impedir interpretações divergentes e chegar a uma interpretação tão uniforme quanto possível da Convenção, do Regulamento Bruxelas I e dos outros instrumentos referidos no artigo 64.º. Quando o Tribunal de Justiça é chamado a dar a sua interpretação, deverá, por conseguinte, poder tomar em consideração os pontos de vista dos Estados que não são membros da Comunidade Europeia. Os tribunais dos Estados não membros da Comunidade não podem apresentar questões prejudiciais para o efeito, pelo que o artigo 2.º do Protocolo permite a esses Estados apresentar alegações ou observações escritas sempre que um tribunal de um Estado-Membro da Comunidade apresente uma questão prejudicial. A apresentação de alegações ou observações escritas é regida pelo artigo 23.º do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça (228), e é possível não apenas relativamente à Convenção, mas também aos instrumentos referidos no seu artigo 64.º, n.º 1, atendendo às implicações que a sua interpretação pode ter para as disposições da Convenção, que são geralmente idênticas.” [negritos nossos]


Assim sendo, é de concluir que, na actividade de interpretação e de aplicação das normas da Convenção de Lugano II, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, vinculado (ao abrigo do nº 2 do artigo 1º do Protocolo nº 2 à mesma Convenção) a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, tal como realizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia; e, em caso de dúvida sobre tal interpretação, a proceder a reenvio prejudicial para o mesmo Tribunal de Justiça.


7.3.3. Aqui chegados, constata-se ser à luz da conclusão formulada no final do ponto anterior que deve ser apreciada a dúvida, supra enunciada, relativa à inserção de um litígio judicial no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II ou no âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal, designadamente quando, como é o caso dos autos, estiver em causa uma acção em que se pretende exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7° do Regulamento n° 261/2004.

     Tendo presente a necessidade de, na interpretação das normas da Convenção de Lugano II, se respeitar a interpretação do Tribunal de Justiça da União Europeia relativamente às normas do Regulamento nº 44/2001, desde que estas sejam substancialmente equivalentes a normas da Convenção, há que ter em conta:

- Que o nº 1 do artigo 71º do Regulamento nº 44/2001 contém a seguinte disposição:

“O presente regulamento não prejudica as convenções em que os Estados-Membros são partes e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões.”

- E que esta norma é substancialmente equivalente à norma, supra referida, do nº 1 do artigo 67º da Convenção de Lugano II, que aqui se reproduz novamente:

A presente convenção não prejudica as convenções a que as partes contratantes e/ou os Estados vinculados pela presente convenção estejam vinculados e que, em matérias especiais, regulem a competência judiciária, o reconhecimento ou a execução de decisões”.


Assim sendo, não pode deixar de se considerar que o Tribunal de Justiça já se pronunciou – no supra indicado Acórdão de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation) – sobre a questão de saber se uma acção destinada ao exercício do direito de indemnização, previsto no artigo 7° do Regulamento n° 261/2004, se insere no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II ou no âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal.

    Esta decisão do Tribunal de Justiça (referida pelo acórdão ora recorrido a propósito do problema da interpretação do artigo 5º da Convenção de Lugano II, mas não do problema, logicamente precedente que ora nos ocupa, do âmbito material de aplicação da mesma Convenção) contém na respectiva fundamentação a resolução, como questão preliminar, da dúvida acerca da delimitação do âmbito material de aplicação de um e outro instrumento normativo internacional.

      Vejamos os termos em que tal questão foi resolvida no referido acórdão:

“26. Antes de proceder ao exame das questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, deve assinalar‑se, a título preliminar, que certas observações apresentadas no Tribunal de Justiça suscitaram a questão da aplicabilidade, numa situação como a do processo principal, do artigo 33.° da Convenção de Montreal para determinar o órgão jurisdicional competente.

27. Note-se, a este respeito, que o direito alegado no caso em apreço pelo requerente no processo principal, que se baseia no artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004, constitui um direito a indemnização fixa e uniformizada do passageiro, na sequência do cancelamento de um voo, direito que é independente da reparação de danos no quadro do artigo 19.° da Convenção de Montreal (v. acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C- 344/04, Colect., p. I-403, n.os 43 a 46). Assim, os direitos baseados, respectivamente, nas referidas disposições do Regulamento n.° 261/2004 e da Convenção de Montreal são regulados por quadros normativos diferentes.

28. Daqui decorre que, tendo o pedido no processo principal sido apresentado com base apenas no Regulamento n.° 261/2004, deve ser examinado à luz do Regulamento n.° 44/2001.” [negritos nossos]


     Os termos simplificados em que a questão da delimitação entre o âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal e o âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001 é aqui solucionada compreendem-se em função da remissão para o Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2006, proferido no Processo C-344/04 (IATA e ELFAA contra Department for Transport), no qual foram apreciadas e decididas questões prejudiciais relativas à validade dos artigos 5º, 6º e 7º do Regulamento nº 261/2004, incluindo, a respeito do artigo 6º (que prevê medidas das companhias aéreas em caso de “atraso” de um voo), quanto à compatibilidade entre a Convenção de Montreal e o Regulamento nº 261/2004, compatibilidade que é, afinal, o cerne da problemática em causa.

     Deste Acórdão de 10 de Janeiro de 2006 – que resolveu todas as questões prejudiciais declarando a inexistência de eventuais causas de invalidade das normas do Regulamento nº 261/2004 – destaca-se, com especial relevo para o presente recurso, o seguinte:

(i) Por um lado foi afirmado, ao menos implicitamente, que o Tribunal de Justiça tem competência para interpretar a Convenção de Montreal, na seguinte passagem do acórdão:

“36 A Convenção de Montreal, assinada pela Comunidade em 9 de Dezembro de 1999 ao abrigo do artigo 300.°, n.° 2, CE, foi aprovada por decisão do Conselho de 5 de Abril de 2001 e entrou em vigor, no que à Comunidade diz respeito, em 28 de Junho de 2004. Daqui resulta que, a partir desta última data e segundo jurisprudência assente, as disposições daquela convenção fazem parte integrante da ordem jurídica comunitária (acórdãos de 30 de Abril de 1974, Haegeman, 181/73, Colect., p. 251, n.° 5, e de 30 de Setembro de 1987, Demirel, 12/86, Colect., p. 3719, n.° 7)” [negritos nossos]

(ii) Por outro lado, a propósito da questão respeitante à (in)validade do artigo 6º (no qual se prevêem medidas das companhias aéreas em caso de “atraso” de um voo), foi afirmada a compatibilidade entre a Convenção de Montreal e o Regulamento nº 291/2004, concluindo-se:

“48. Por conseguinte, estas medidas, que melhoram a protecção dos interesses dos passageiros e as condições em que perante estes se aplica o princípio da reparação, não podem ser consideradas incompatíveis com a Convenção de Montreal.” [negritos nossos]


   A competência do Tribunal de Justiça para interpretar a Convenção de Montreal veio a ser expressamente afirmada no Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2010, proferido no processo C-63/09 (Axel Walz contra Clickair S.A.):

“20. Uma vez que as disposições desta Convenção [de Montreal] fazem parte integrante, a partir da sua entrada em vigor, da ordem jurídica da União, o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a sua interpretação (v., por analogia, acórdão de 30 de Abril de 1974, Haegeman, 181/73, Colect., p. 251, n.os 2, 4 e 5; e, no que respeita à Convenção de Montreal, os acórdãos de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C-344/04, Colect., p. I-403, n.° 36, e de 22 de Dezembro de 2008, Wallentin-Hermann, C-549/07, Colect., p. I-11061, n.° 28).” [negritos nossos]

         E, mais recentemente, no Acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de Abril de 2018, proferido no Processo C-258/16 (Finnair Oyj contra Keskinäinen Vakuutusyhtiö Fennia):

“19 Cabe precisar que a Convenção de Montreal foi assinada pela Comunidade Europeia, em 9 de dezembro de 1999, e aprovada, em nome desta, pelo Conselho da União Europeia, em 5 de abril de 2001. Entrou em vigor em 28 de junho de 2004, no que respeita à União Europeia.

20 A partir dessa data, a Convenção de Montreal faz parte integrante da ordem jurídica da União e, por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a sua interpretação (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C 344/04, EU:C:2006:10, n.º 36, e de 6 de maio de 2010, Walz, C 63/09, EU:C:2010:251, n.º 20).” [negritos nossos]


      Entretanto, ao longo do tempo, o Tribunal de Justiça foi chamado por diversas vezes a interpretar normas do Regulamento nº 261/2004, assim como a pronunciar-se sobre a compatibilização de tais normas com o regime da Convenção de Montreal. Para a devida compreensão das decisões do Tribunal de Justiça a este respeito, importa ter presente que, diversamente da Convenção de Montreal, que apenas abrange a situação de “atraso” de voos (artigo 19º), as normas do Regulamento nº 261/2004 abrangem tanto a situação de “atraso” de voos (artigo 6º), como de “recusa de embarque” (artigo 4º) e de “cancelamento” de voos (artigo 5º). Ver, a respeito desta problemática, Nuno Calaim Lourenço, “A limitação de responsabilidade do transportador aéreo internacional no transporte de pessoas – de Varsóvia a Montreal”, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, coord. Januário da Costa Gomes, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 506-512, e Luís de Lima Pinheiro, “Breves notas sobre o direito aplicável ao contrato de transporte aéreo internacional”, in Estudos de Direito Aéreo, coord. Dário Moura Vicente, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, págs. 253-256.

     Consideremos as decisões do Tribunal de Justiça com relevância para a resolução da dúvida que ora nos ocupa (inserção da presente lide no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II ou no âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal):

- No Acórdão de 19 de Novembro de 2009, proferido nos Processos apensos C-402/07 e C-432/07 (denominado Acórdão Sturgeon), para efeitos da indemnização do artigo 7º do Regulamento, o Tribunal de Justiça equiparou a situação dos passageiros de um voo “atrasado” à situação dos passageiros de um voo “cancelado”, ao decidir:

“2) Os artigos 5.°, 6.° e 7.° do Regulamento n.° 261/2004 devem ser interpretados no sentido de que os passageiros de voos atrasados podem ser equiparados aos passageiros de voos cancelados, para efeitos da aplicação do direito a indemnização, e de que esses passageiros podem, assim, invocar o direito a indemnização previsto no artigo 7.° desse regulamento, quando o tempo que perderam por causa de um voo atrasado seja igual ou superior a três horas, isto é, quando cheguem ao seu destino final três horas ou mais após a hora de chegada inicialmente prevista pela transportadora aérea. Todavia, tal atraso não confere aos passageiros o direito a uma indemnização, se a transportadora aérea puder provar que o atraso considerável se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis, mais precisamente circunstâncias que escapam ao controlo efectivo da transportadora.” [negritos nossos]

- No Acórdão de 23 de Outubro de 2012, proferido nos Processos apensos C-581/10 e C-629/10 (denominado Acórdão Nelson), no qual foram apreciadas as seguintes questões prejudiciais relativas à interpretação das normas do Regulamento nº 261/2004, assim como relativas à compatibilidade entre as previsões do mesmo Regulamento e o regime da Convenção de Montreal, tendo ademais em conta as anteriores decisões do Tribunal de Justiça:

“1) O direito a indemnização regulado pelo artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004 é um direito a indemnização não compensatória na aceção do artigo 29.°, segundo período, da [Convenção de Montreal]?

2) Qual a relação existente entre o direito a indemnização baseado no artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004, […] que pode [invocar], nos termos do acórdão [Sturgeon e o., já referido], o passageiro que chega ao seu destino final três ou mais horas após a hora de chegada inicialmente prevista, e o direito a indemnização por danos resultantes de atraso, previsto no artigo 19.° da Convenção de Montreal, tendo em conta a exclusão [da indemnização não compensatória] estabelecida no segundo período do artigo 29.° da Convenção de Montreal?

3) Em que medida o critério de interpretação subjacente ao acórdão […] Sturgeon e o.[, já referido], que permite um alargamento do direito a indemnização nos termos do artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004 a casos de atraso, é compatível com o critério de interpretação que o Tribunal de Justiça aplica [a este mesmo regulamento] no seu acórdão de [10 de janeiro de 2006], IATA e [ELFAA] (C-344/04, Colet., p. I-403)?” [negritos nossos]

E ainda:

“1) Devem os artigos 5.° a 7.° do Regulamento […] n.° 261/2004 ser interpretados no sentido de que exigem que a indemnização prevista no artigo 7.° [desse regulamento] seja paga aos passageiros quando os seus voos sofrem um atraso, na aceção do artigo 6.° [do referido regulamento] e, em caso afirmativo, em que circunstâncias?

2) Se a resposta à primeira questão for negativa, devem os artigos 5.° a 7.° do Regulamento […] n.° 261/2004 ser considerados, total ou parcialmente, inválidos por violação do princípio da igualdade de tratamento?

3) Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, os artigos 5.° a 7.° do [Regulamento n.° 261/2004] são inválidos, no todo ou em parte, por  a) incompatibilidade com a Convenção [de Montreal] b) violação do princípio da proporcionalidade, e/ou c) violação do princípio da segurança jurídica[?] [negritos nossos]


As respostas do Tribunal de Justiça (no Acórdão de 23 de Outubro de 2012 a que nos estamos a referir) a todas estas questões foram as seguintes:

“1) Os artigos 5.° a 7.° do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, devem ser interpretados no sentido de que os passageiros de voos atrasados têm direito a indemnização ao abrigo deste regulamento quando o tempo que perderam em razão desses voos seja igual ou superior a três horas, isto é, quando cheguem ao seu destino final três ou mais horas após a hora de chegada inicialmente prevista pela transportadora aérea. Todavia, tal atraso não confere aos passageiros o direito a uma indemnização se a transportadora aérea estiver em condições de provar que o atraso considerável se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis, mais precisamente devido a circunstâncias que escapam ao controlo efetivo da transportadora aérea.

2) A análise das questões prejudiciais não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade dos artigos 5.° a 7.° do Regulamento n.° 261/2004.” [negritos nossos]


    Podemos assim concluir que a jurisprudência do Tribunal de Justiça se orientou no sentido da equiparação, para efeitos de reconhecimento do direito de indemnização do artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, da situação dos passageiros com voos “atrasados” à situação dos passageiros com voos “cancelados”, afirmando simultaneamente, e de forma crescentemente acentuada, a autonomia do regime do Regulamento nº 261/2004 em relação ao regime da Convenção de Montreal.


7.3.4. Aqui chegados, estamos em condições de responder à questão que nos vem ocupando, a qual não se refere à determinação das normas de direito substantivo, mas antes à determinação da fonte normativa aplicável à resolução da questão da competência internacional para conhecer da presente acção: cabe a presente acção no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II ou no âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal?

Recorde-se que, ainda que não se ignorem as objecções críticas feitas à orientação jurisprudencial do Tribunal de Justiça, sobretudo em razão do princípio da exclusividade ínsito no artigo 29º da Convenção de Montreal (ver, por todos, Paul Stephen Dempsey/Svante O. Johansson, “Montreal v Brussels: The conflict of laws on the issue of delay in international air carriage” in Air and Space Law, Volume 35 (2010), 3, págs. 207-224), se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, vinculado à orientação interpretativa adoptada pelo mesmo Tribunal a respeito da inserção de uma acção, destinada a exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7° do Regulamento n° 261/2004, no âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001; orientação que, em virtude das imposições do Protocolo nº 2 à Convenção de Lugano II (designadamente do nº 2 do artigo 1º do mesmo Protocolo, que se aplica aos tribunais dos Estados-Membros), é extensível à resolução da questão da delimitação do âmbito material de aplicação da mesma Convenção face ao âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal.

Ora, como se referiu supra, num caso idêntico ao caso dos autos, em que estava em causa uma acção para, numa situação de “cancelamento” de voo, exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, o Tribunal de Justiça resolveu a questão preliminar de delimitação do âmbito material de aplicação do Regulamento nº 44/2001 em relação ao âmbito material de aplicação da Convenção de Montreal. Fê-lo, como se viu, no Acórdão de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), em termos que aqui se transcrevem de novo:

“26. Antes de proceder ao exame das questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, deve assinalar‑se, a título preliminar, que certas observações apresentadas no Tribunal de Justiça suscitaram a questão da aplicabilidade, numa situação como a do processo principal, do artigo 33.° da Convenção de Montreal para determinar o órgão jurisdicional competente.

27. Note-se, a este respeito, que o direito alegado no caso em apreço pelo requerente no processo principal, que se baseia no artigo 7.° do Regulamento n.° 261/2004, constitui um direito a indemnização fixa e uniformizada do passageiro, na sequência do cancelamento de um voo, direito que é independente da reparação de danos no quadro do artigo 19.° da Convenção de Montreal (v. acórdão de 10 de Janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C-344/04, Colect., p. I-403, n.os 43 a 46). Assim, os direitos baseados, respectivamente, nas referidas disposições do Regulamento n.° 261/2004 e da Convenção de Montreal são regulados por quadros normativos diferentes.

28. Daqui decorre que, tendo o pedido no processo principal sido apresentado com base apenas no Regulamento n.° 261/2004, deve ser examinado à luz do Regulamento n.° 44/2001.” [negritos nossos]


Assim, e mais uma vez tendo presente a necessidade de, na interpretação das normas da Convenção de Lugano II, se respeitar a interpretação do Tribunal de Justiça relativamente às normas do Regulamento nº 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas da Convenção, considera-se que a interpretação do nº 1 do artigo 67º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais, sendo norma substancialmente idêntica à norma do nº 1 do artigo 71º do Regulamento nº 44/2001, deve ser interpretada de acordo com a orientação do Acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de Julho de 2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation).

Em consonância com o que se conclui que, no caso dos autos, tendo o pedido do A. sido apresentado com base apenas no Regulamento n° 261/2004, deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II e não da Convenção de Montreal.


7.3.5. Confirma-se, assim, que a presente lide se insere no âmbito temporal, espacial e material de aplicação da Convenção de Lugano II, concluindo-se ser esta a fonte normativa à luz da qual se deve identificar a regra de competência internacional aplicável.


8. A regra geral de atribuição de competência da Convenção de Lugano II consta do nº 1 do artigo 2º, que dispõe:

“Sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado vinculado pela presente convenção devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.”


   De entre as regras especiais de atribuição de competência, consagradas no artigo 5º da Convenção, relevam, para o caso sub judice, as seguintes:

Uma pessoa com domicílio no território de um Estado vinculado pela presente convenção pode ser demandada noutro Estado vinculado pela presente convenção:

1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

— no caso da venda de bens, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c) Se a alínea b) não se aplicar, será aplicável a alínea a).

(…)”.


     Tal como entendeu o acórdão recorrido, estando em causa uma acção de responsabilidade por incumprimento de um contrato de transporte aéreo, da aplicação conjugada das normas do artigo 5º, nº 1, resulta a necessidade de determinar qual é o “lugar de cumprimento da obrigação do transportador” (alínea a)), sendo que – uma vez que o contrato de transporte se integra na categoria mais ampla do contrato de prestação de serviços – esse lugar será “o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados” (alínea b), segundo travessão).


8.1. Neste ponto depara-se, porém, com as dificuldades inerentes a um contrato de transporte aéreo relativo a voo com partida de aeroporto situado em território português e com destino a aeroporto situado em território suíço. Qual dos locais é aquele em que se deve entender que os serviços de transporte foram ou deviam ter sido prestados?

     Pretende a Recorrente que esta dúvida interpretativa das normas do artigo 5º da Convenção de Lugano II seja resolvida no sentido de se considerar que o lugar de cumprimento da obrigação do transportador é o aeroporto de destino, que, no caso dos autos, se situa em território suíço. Em consequência, será a jurisdição suíça, e não a portuguesa, a jurisdição competente para conhecer da pretensão indemnizatória do A. Solução que, no entender da mesma Recorrente, está em consonância com as exigências do princípio da conexão mais próxima, uma vez que, no caso concreto, segundo alega, “tal local também corresponde (i) ao local da sede da Ré, (ii) ao local do estabelecimento da transportadora onde o contrato foi celebrado e ainda (iii) [ao] local da nacionalidade e residência do Recorrido”.

      Vejamos.

      Tal como em relação à questão, apreciada no ponto 7.3. do presente acórdão, da determinação do âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II, importa ter presente que, também quanto às dúvidas interpretativas das normas do artigo 5º, aqui em causa – e em razão da previsão do nº 2, do artigo 1º, do Protoloco nº 2 à Convenção de Lugano II –, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, vinculado a respeitar a interpretação que o Tribunal de Justiça fez de normas do Regulamento nº 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas daquela Convenção.  

     Ora, como entendeu o acórdão recorrido, o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre essas dúvidas interpretativas no repetidamente referido Acórdão de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation).

      Com efeito, nesse processo de reenvio prejudicial o Bundesgerichtshof formulara as seguintes questões:

“1) O artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento [n.° 44/2001] deve ser interpretado no sentido de que, no caso de voos de um Estado-Membro da Comunidade para outro Estado-Membro, também se deve considerar que o lugar de cumprimento único das obrigações contratuais é o lugar de cumprimento da prestação principal, que deve ser determinado com base em critérios económicos?

2) Havendo que determinar um lugar de cumprimento único da obrigação: que critérios devem ser tidos em consideração para a sua determinação? O lugar de cumprimento único será, designadamente, o lugar da partida do voo ou o lugar da chegada?[negritos nossos]


      Questões que o Tribunal de Justiça apreciou em termos que, pela sua importância para a resolução da questão objecto do presente recurso, se transcrevem na íntegra:

“29. Através das suas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça, no essencial, que esclareça como deve ser interpretada a expressão «o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados» constante do artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.° 44/2001, no caso do transporte aéreo de pessoas de um Estado-Membro com destino a outro Estado-Membro, no contexto de um pedido de indemnização baseado no Regulamento n.° 261/2004.

30. Na realidade, com essas questões, pergunta-se ao Tribunal de Justiça se, no caso de uma prestação de serviços como a que está em causa no processo principal, se deve aplicar à expressão indicada a mesma interpretação que foi dada pelo Tribunal de Justiça ao primeiro travessão daquela disposição no acórdão Color Drack, já referido, em caso de pluralidade de lugares de entrega de mercadorias num mesmo Estado-Membro.

31. No n.° 18 do acórdão Color Drack, já referido, o Tribunal de Justiça baseou-se, para responder à questão colocada, na génese, nos objectivos e na sistemática do Regulamento n.° 44/2001.

32. A este respeito, o Tribunal de Justiça começou por recordar que a regra de competência especial prevista no artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 em matéria contratual, que completa a regra da competência de princípio do foro do domicílio do requerido, responde a um objectivo de proximidade e tem como fundamento a existência de um elemento de conexão estreito entre o contrato e o órgão jurisdicional chamado a examinar o mesmo (acórdão Color Drack, já referido, n.° 22).

33. Em seguida, o Tribunal de Justiça notou que, no que toca ao lugar de cumprimento das obrigações decorrentes de contratos de venda de bens, o Regulamento n.° 44/2001 define, no seu artigo 5.°, n.° 1, alínea b), primeiro travessão, este critério de conexão autonomamente, para reforçar os objectivos de unificação das regras de competência judiciária e de certeza jurídica. Assim, neste caso, o lugar de entrega de mercadorias é consagrado como critério de conexão autónomo, susceptível de se aplicar a todos os pedidos baseados num mesmo contrato de compra e venda (acórdão Color Drack, já referido, n.os 24 e 26).

34. À luz dos objectivos de proximidade e de certeza jurídica, o Tribunal de Justiça declarou que a regra enunciada no artigo 5.°, n.° 1, alínea b), primeiro travessão, do Regulamento n.° 44/2001 é igualmente aplicável em caso de pluralidade de lugares de entrega de mercadorias num mesmo Estado-Membro, devendo entender-se que apenas um tribunal deve ser competente para conhecer de todos os pedidos baseados no contrato (acórdão Color Drack, já referido, n.os 36 e 38).

35. Finalmente, em caso de pluralidade de lugares de entrega de mercadorias num mesmo Estado-Membro, o Tribunal de Justiça considerou que o lugar que assegura o elemento de conexão mais estreito entre o contrato e o órgão jurisdicional competente é o da entrega principal, que deve ser determinado em função de critérios económicos, e que, se não se puder determinar o lugar da entrega principal, cada um dos lugares de entrega apresenta um elemento suficiente de proximidade com os elementos materiais do litígio, caso em que o requerente pode demandar o requerido no tribunal do lugar de entrega da sua escolha (acórdão Color Drack, já referido, n.os 40 e 42).

36. Importa sublinhar que as considerações nas quais o Tribunal de Justiça se baseou para chegar à interpretação adoptada no acórdão Color Drack, já referido, são igualmente válidas em relação aos contratos de prestação de serviços, incluindo os casos em que essa prestação não é realizada num único Estado-Membro. Com efeito, as regras de competência especial previstas no Regulamento n.° 44/2001 em matéria de contratos de compra e venda de bens e de prestação de serviços têm a mesma génese, prosseguem a mesma finalidade e ocupam o mesmo lugar na sistemática estabelecida por esse regulamento.

37. Os objectivos de proximidade e de certeza jurídica, que são prosseguidos pela concentração da competência judiciária no lugar de prestação dos serviços, em virtude do contrato em causa, e pela determinação de uma competência judiciária única para todas as pretenções baseadas nesse contrato, não podem ser apreciados de modo diferente na hipótese de pluralidade de lugares de prestação dos serviços em causa em Estados-Membros diferentes. Com efeito, uma diferenciação desse tipo, além de não encontrar apoio nas disposições do Regulamento n.° 44/2001, contradiz a finalidade que presidiu à adopção deste, que, através da unificação das regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, contribui para o desenvolvimento de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, bem como para o bom funcionamento do mercado interno no seio da Comunidade (v. primeiro e segundo considerandos do Regulamento n.° 44/2001).

38. Por consequência, na hipótese de pluralidade de lugares de prestação de serviços em Estados-Membros diferentes, importa igualmente determinar o lugar que garante o elemento de conexão mais estreito entre o contrato em causa e o órgão jurisdicional competente, em particular aquele onde, em virtude desse contrato, deve ser realizada a principal prestação de serviços.

39. A este respeito, impõe-se observar desde já que, como sublinhou o órgão jurisdicional de reenvio, o lugar da sede ou do estabelecimento principal da companhia aérea em causa não apresenta a necessária conexão estreita com o contrato. Com efeito, as operações e acções praticadas a partir desse lugar, em particular a colocação à disposição de uma aeronave e de uma tripulação adequadas, constituem medidas logísticas e preparatórias com vista à execução do contrato de transporte aéreo e não serviços cuja prestação estaria relacionada com o conteúdo do contrato propriamente dito. O mesmo é válido quanto ao lugar da celebração do contrato de transporte aéreo e da emissão do bilhete.

40. Os serviços cuja prestação corresponde ao cumprimento das obrigações decorrentes de um contrato de transporte aéreo de pessoas são, com efeito, o registo assim como o embarque dos passageiros e o acolhimento destes últimos a bordo do avião no lugar de descolagem estipulado no contrato de transporte em causa, a partida da aeronave à hora prevista, o transporte dos passageiros e das suas bagagens do lugar de partida para o lugar de chegada, o acompanhamento dos passageiros durante o voo e, finalmente, o desembarque destes, em condições de segurança, no lugar de aterragem e à hora que esse contrato fixa. Deste ponto de vista, os eventuais lugares de escala da aeronave também não apresentam um elemento de conexão suficiente com o essencial dos serviços resultantes do referido contrato.

41. Ora, os únicos lugares que apresentam uma conexão directa com os referidos serviços, prestados no cumprimento das obrigações decorrentes do objecto do contrato, são os de partida e de chegada do avião, sendo certo que a expressão «lugares de partida e de chegada» deve ser entendida como os que estão estipulados no contrato de transporte em causa, celebrado com uma única companhia aérea que é a transportadora operadora.

42. Todavia, deve assinalar-se a este respeito que, ao invés das entregas de mercadorias em lugares diferentes, que constituem operações distintas e quantificáveis para determinar a entrega principal em função de critérios económicos, os transportes aéreos constituem, devido à sua própria natureza, serviços prestados de maneira indivisível e unitária desde o lugar de partida ao lugar de chegada do avião, de modo que não se pode distinguir, neste caso, em função de um critério económico, uma parte distinta da prestação que constituiria a prestação principal, realizada num lugar preciso.

43. Nestas condições, quer o lugar de partida quer o lugar de chegada do avião devem ser considerados, ao mesmo título, os lugares da prestação principal dos serviços que são objecto de um contrato de transporte aéreo.

44. Cada um desses dois lugares apresenta um elemento suficiente de proximidade com os elementos materiais do litígio e, portanto, assegura a conexão estreita pretendida pelas regras de competência especial, enunciadas no artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, entre o contrato e o órgão jurisdicional competente. Por conseguinte, quem pede uma indemnização com base no Regulamento n.° 261/2004 pode demandar o requerido, em virtude da escolha que lhe cabe efectuar, no órgão jurisdicional do foro onde se situa um dos referidos lugares, ao abrigo do artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.° 44/2001.

45. Tal faculdade de escolha reconhecida ao requerente não só respeita o critério da proximidade mas satisfaz igualmente a exigência de certeza jurídica, na medida em que permite quer ao requerente quer ao requerido identificar facilmente os órgãos jurisdicionais que podem ser chamados a decidir. Acresce que está em conformidade com o objectivo da segurança jurídica, dado que a escolha do requerente é limitada, no âmbito do artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.° 44/2001, a dois órgãos jurisdicionais. Importa ainda lembrar que o requerente conserva a possibilidade de se dirigir ao órgão jurisdicional do domicílio do requerido, previsto no artigo 2.°, n.° 1, do referido regulamento, isto é, no caso em apreço, em virtude do artigo 60.°, n.° 1, do mesmo regulamento, ao órgão jurisdicional do foro onde a transportadora aérea tem a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal, o que está em conformidade com o artigo 33.° da Convenção de Montreal.

46. De resto, esta faculdade de escolha, mesmo quando se trata de órgãos jurisdicionais situados em Estados-Membros diferentes, é também reconhecida ao requerente pela jurisprudência assente do Tribunal de Justiça no âmbito da competência especial em matéria extracontratual, prevista no artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas e igualmente no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 44/2001 (v., designadamente, acórdãos de 30 de Novembro de 1976, Bier, dito «Mines de potasse d’Alsace», 21/76, Colect., p. 677, n.os 24 e 25, e de 10 de Junho de 2004, Kronhofer, C-168/02, Colect., p. I-6009, n.° 16 e jurisprudência referida).

47. Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às duas questões submetidas que o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que, em caso de transporte aéreo de pessoas de um Estado-Membro com destino a outro Estado-Membro, realizado com base num contrato celebrado com uma única companhia aérea que é a transportadora operadora, o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado nesse contrato de transporte e no Regulamento n.° 261/2004 é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato. [negritos nossos]


       Em conformidade com a fundamentação aqui reproduzida, o Tribunal de Justiça respondeu às questões prejudicais da seguinte forma:

“O artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, em caso de transporte aéreo de pessoas de um Estado-Membro com destino a outro Estado-Membro, realizado com base num contrato celebrado com uma única companhia aérea que é a transportadora operadora, o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado nesse contrato de transporte e no Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.° 295/91, é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato.” [negritos nossos]


      Perante esta decisão do Tribunal de Justiça, não oferece dúvidas que – como entendeu o acórdão recorrido e, não será de mais repetir, conforme decorre das imposições do Protocolo nº 2 à Convenção de Lugano II – a interpretação da norma do artigo 5°, n° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n° 44/2001, deve ser estendida à interpretação de idêntica norma de competência, consagrada no artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, daquela Convenção.

        

8.2. Apesar de a conclusão anterior ser indubitável, sempre se dirá, a respeito da argumentação apresentada pela Recorrente no sentido de extrair do Acórdão Sturgeon e do Acórdão Nelson, supra indicados, critérios que conduzam a uma diferente solução interpretativa, válida para a resolução da questão objecto do presente recurso, que tal argumentação não se afigura pertinente.

Com efeito, os referidos acórdãos do Tribunal de Justiça [Acórdão de 19 de Novembro de 2009 (Acórdão Sturgeon) e Acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 2012 (Acórdão Nelson)] conheceram de questões relativas à interpretação de normas do Regulamento nº 261/2004, que, como vimos, regula a indemnização e assistência aos passageiros de transporte aéreo em caso de recusa de embarque, de cancelamento ou de atraso considerável de voos, designadamente quanto à interpretação dos conceitos de “atraso” e de “cancelamento” de um voo, para efeitos de aplicação das regras de direito substantivo consagradas no mesmo Regulamento nº 261/2004.  

Tais acórdãos do Tribunal de Justiça não dilucidaram, como pretende a Recorrente, tais conceitos normativos, de “atraso” e de “cancelamento” de voos, para efeitos de aplicação da norma de competência internacional consagrada no artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento nº 44/2001, equivalente à norma do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, da Convenção de Lugano II, que é aquela que está em causa para a resolução da questão objecto do presente recurso.


8.3. Conclui-se, assim, que a questão da interpretação da norma relevante para a resolução da questão objecto do presente recurso – interpretação do artigo 5º, nº 1, alínea b), segundo travessão, da Convenção de Lugano II – foi apreciada e decidida pelo Tribunal de Justiça a respeito da norma equivalente do Regulamento nº 44/2001, no supra referido Acórdão de 9 de Julho de 2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), interpretação essa que, nos termos do Protocolo nº 2 à Convenção, é válida para a interpretação da referida norma da Convenção, a saber:

O tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n° 261/2004 (que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque, de cancelamento ou de atraso considerável dos voos), é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoa colectiva, e de acordo com o artigo 60º, nº 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social.

      Deste modo, no caso dos autos, para exercer o direito de indemnização previsto no artigo 7º do Regulamento nº 261/2004, o A. podia optar por demandar a R.: (i) na jurisdição do lugar de partida do voo cancelado, a jurisdição portuguesa; (ii) ou na jurisdição do lugar do destino do mesmo voo, a jurisdição suíça, que, simultaneamente, é a jurisdição do lugar do domicilio da demandada.

      Conclui-se, assim, pela competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente acção.


9. Pelo exposto, com fundamento na interpretação das normas de direito da União Europeia tal como realizada pelo Tribunal de Justiça, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 3 de Outubro de 2019


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho