Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13/20.6YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PROCESSO DISCIPLINAR
REABILITAÇÃO
APOSENTAÇÃO COMPULSIVA
LACUNA
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA.
Sumário :
I. O instituto da reabilitação assume carácter inovatório nas alterações ao EMJ introduzidas pela Lei 67/2019, de 27 de agosto.
II. Antes da entrada em vigor dessas alterações, a um magistrado judicial a quem tivesse sido aplicada a sanção disciplinar de aposentação compulsiva não podia ser aplicado, subsidiariamente, o regime de reabilitação previsto no artigo 240.º da LFTP, na medida em que não havia lacuna que cumprisse suprir por essa via.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 13/20.6YFLSB

                                               *

ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO DO

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

AA, juíza de Direito, instaurou acção administrativa comum dirigida à impugnação da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura, de 11.02.2020, que lhe indeferiu o pedido de reabilitação.

Imputa a essa deliberação os seguintes vícios:

a) Omissão de pronúncia, por ausência de decisão sobre a questão de aplicação no tempo de normas do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ);

b) Violação de lei, por aplicação de norma do EMJ que não se encontrava em vigor à data do pedido de reabilitação, norma essa com efeito sancionatório mais desfavorável relativamente à norma em vigor.

c)  Interpretação normativa inconstitucional dos artigos 69º, 131º e 132º, n.º 2, do EMJ, em violação dos artigos 30º, nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (proibição de sanções perpétuas) e do artigo 13º, n.º 1, do mesmo diploma (princípio da igualdade)

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) contestou, pedindo a improcedência da acção.

Foi dispensada a audiência prévia, nos termos do artigo 87º-B, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

                                                     *

II.        FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Importa considerar a seguinte factualidade:

1.      Por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 20.06.2013, no âmbito do Processo disciplinar ….198, a demandante AA foi condenada “pela prática das infracções ao dever de zelo na administração da justiça e ao dever de prossecução do interesse público e de manter a confiança dos cidadãos no funcionamento dos tribunais e do poder judicial, nas vertentes do cumprimento  dos processos, da assiduidade e da pontualidade, da organização do agendamento e da direcção funcional da secretaria, na pena de aposentação compulsiva, ao abrigo do art.º 95º n.º 1 a) do Estatuto dos Magistrados Judiciais.”

2.      Por acórdão de 26.02.2014, a secção do contencioso do Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 20.06.2013.

3.      A demandante interpôs recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da LTC.

4.       No acórdão n.º 345/015 de 23/06/2015, a 2ª secção do Tribunal Constitucional, decidiu além do mais:

b) não julgar inconstitucional da norma extraída dos art.ºs 168º n. 1, e 178º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de julho, na redação que lhes foi dada pela Lei n.º 143/99, de 31 de Agosto, segundo a qual a secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça é instância jurisdicional única de decisão de recursos interpostos de actos administrativos, maxime sancionatórios, praticados pelo Conselho Superior da Magistratura; e em consequência,

c) Negar provimento ao recurso e confirma a decisão recorrida”.

5.     Em 30.12.2019, a demandante requereu junto do CSM a sua reabilitação e que, em consequência, fosse determinado o regresso às funções como Magistrada Judicial, podendo concorrer no movimento subsequente de acordo com a nota e antiguidade, ou, caso assim não se entendesse, fosse declarada a sua reabilitação fazendo cessar as incapacidades, concedendo-lhe a possibilidade de concorrer a quaisquer cargos ou funções públicas sem qualquer constrangimento decorrente das sanções antes aplicadas.

6.     Por deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 11.02.2020, foi decidido: “Em face do supra exposto, delibera o Plenário do Conselho Superior da Magistratura indeferir o pedido de reabilitação requerido por AA por inadmissibilidade legal.”.

O DIREITO

a) Omissão de pronúncia

A demandante entende que a deliberação do Plenário do CSM de 11.02.2020 é anulável, nos termos do artigo 163º, n.º 1, do CPA, por ter omitido pronúncia sobre a questão da aplicação no tempo das normas do EMJ.

Vejamos, antes de mais, em que termos é que a questão foi colocada:

A demandante alegou que, à data em que apresentou o requerimento de reabilitação (30.12.2019) ainda não se encontrava em vigor a redação do EMJ conferida pela Lei n.º 67/2019 de 27 de agosto, impondo-se, consequentemente, a aplicação subsidiária do regime previsto no artigo 240.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas[1] (doravante LTFP), aplicável ex vi art. 131.º do EMJ (na redação então vigente), por ser mais favorável.

A deliberação do CSM refere o seguinte:

Alegou para tal, em síntese que:

São aplicáveis subsidiariamente em matéria disciplinar as normas do Estatuto disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central;

Prevendo tal lei a reabilitação, qualquer que tenha sido a sanção disciplinar em que tenha sido condenado;

O novo Estatuto dos Magistrados Judiciais consagra expressamente o instituo da reabilitação, embora com âmbito restrito;

Pelo que deverá ser aplicado o regime subsidiário por mais favorável;

(…)

O Conselho Superior da Magistratura é, por determinação constitucional, o órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial (art. 217.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e art.º 136º do Estatuto dos Magistrados Judicial – na redacção introduzida pela Lei 67/2019 de 27 de Agosto).

O regime disciplinar dos magistrados judiciais é regulado pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais, adiante designado por EMJ e, subsidiariamente, pelo regime previsto para os trabalhadores em funções públicas.

Assim, os magistrados estão sujeitos a responsabilidade disciplinar nos casos previstos e com as garantias estabelecidas no EMJ (cfr. art.º 81º do citado diploma legal).

De acordo com o art.º 91º do EMJ, os magistrados judiciais estão sujeitos às seguintes sanções:

a) Advertência;

b) Multa;

c) Transferência;

d) Suspensão de exercício;

e) Aposentação ou reforma compulsiva e

f) Demissão.

O EMJ, na redacção da citada Lei, prevê, na secção VI, nos art.ºs 131º a 133º, a reabilitação estipulando-se as regras concretas para que a mesma possa ter lugar.

Desta feita, pode ser concedida a reabilitação a quem a demonstre merecer, pela boa conduta posterior à aplicação da sanção (cfr. art.º 131º do EMJ).

É competente para o procedimento de reabilitação o Conselho Superior da Magistratura. Podem ser reabilitados, independentemente de revisão do processo disciplinar, os magistrados judiciais condenados nas sanções disciplinares previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do art.º 91º do EMJ (vide art.º 132º do EMJ).

Quer isto dizer que, só podem ser reabilitados os magistrados judiciais que tenham sido condenados nas sanções de advertência, multa, transferência e/ou suspensão de exercício. A lei veda, por isso, a possibilidade de ser reabilitado o magistrado judicial que tendo sido condenado na pena de aposentação compulsiva ou de demissão.

Por sua vez, a reabilitação é requerida pelo magistrado judicial, decorridos os prazos previstos no art.º 133º do EMJ, sobre a aplicação das sanções disciplinares de advertência ou de transferência, ou sobre o cumprimento de sanções disciplinares de multa ou de suspensão de exercício, bem como, do decurso do período de suspensão de qualquer uma das referidas sanções. A reabilitação faz cessar os efeitos ainda subsistentes das sanções disciplinares.

A ora requerente foi condenada com a sanção de aposentação compulsiva, tendo a deliberação sido confirmada em sede de recurso, tornando-se definitiva. Tal como acima plasmado, a condenação em tal sanção não permite a reabilitação, sendo legalmente inadmissível.

Acresce que, ao contrário do invocado pela requerente, no caso não é aplicável o regime subsidiário, o contrário resultando da lei.

Na verdade, conforme dispõe o art.º 188º do EMJ, em tudo o que não esteja expressamente previsto no presente Estatuto é subsidiariamente aplicável aos magistrados judiciais o regime previsto para os trabalhadores em funções públicas.

Ora, como é bom de ver, o regime subsidiário só é aplicável nos casos omissos, ou seja, aqueles que não estejam regulados expressamente pelo Estatuto, não sendo esse o caso do regime de aplicação da reabilitação.

Como acima se deixou consignado, o EMJ prevê, expressamente, e tipifica, taxativamente, as situações em que pode haver reabilitação, a quem compete o procedimento, quem pode requerer e os prazos e períodos durante os quais pode ser requerida, dependendo da sanção que tenha sido aplicada.

Atentos os argumentos expendidos, é de indeferir a reabilitação por inadmissibilidade legal, o que se delibera.”.

Sob a epígrafe “princípio da decisão, determina o artigo 13º, n.º 1, do CPA:

1 - Os órgãos da Administração Pública têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados e, nomeadamente, sobre os assuntos que aos interessados digam diretamente respeito, bem como sobre quaisquer petições, representações, reclamações ou queixas formuladas em defesa da Constituição, das leis ou do interesse público.”.

E o n.º 1, do artigo 94º do mesmo Código prescreve:

Na decisão final, o órgão competente deve resolver todas as questões pertinentes suscitadas durante o procedimento e que não hajam sido decididas em momento anterior”.

Como se vê da transcrição acima feita, a decisão impugnada não deixou de se pronunciar sobre a questão suscitada pela demandante, afastando a aplicação da LTFP, por considerar que, não se tratando de caso omisso, não era de ponderar, sequer, o regime subsidiário previsto nessa lei.

Não pode, pois, dizer-se que foi praticada omissão de pronúncia.

Saber se a apreciação em causa foi condizente com a lei, é questão diversa que se irá conhecer no ponto seguinte.

b) Violação de lei

Defende a demandante que quando, em 30.12.2019, apresentou requerimento junto do CSM, requerendo a sua reabilitação para o exercício de funções públicas, ainda não se encontrava em vigor a redação do EMJ conferida pela Lei n.º 67/2019 de 27 de Agosto, impondo-se, consequentemente, a aplicação subsidiária do regime previsto no artigo 240.º da LTFP, aplicável ex vi artigo 131º do EMJ (na redação então vigente), por lhe ser mais favorável. Salienta que a previsão do actual artigo 131º do EMJ tem um âmbito de aplicação mais restrito que a do artigo 240.º da LTFP, por não abranger os casos de aposentação ou reforma compulsiva e de demissão, e conclui que ao aplicar aquela norma (mais desfavorável) a deliberação impugnada violou o disposto no artigo 29.º da CRP e o princípio constitucional do tratamento mais favorável em matéria sancionatória.

Vejamos, então, se a deliberação ora impugnada incorre no apontado vício de violação de lei.

A figura da reabilitação só passou a integrar o EMJ após as alterações introduzidas pela Lei 67/2019, de 27 de Agosto, que entraram em vigor no dia 01.01.2020 (artigo 10º).

Prevê-se, agora, nos artigos 131º a 133º, de forma inovatória, a reabilitação dos magistrados judiciais, independentemente de revisão do processo disciplinar, mas apenas se tiverem sido condenados nas sanções disciplinares das alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 91º, ou seja, advertência, multa, transferência e suspensão do exercício de funções. De fora ficam, portanto, as sanções disciplinares mais graves, a aposentação ou reforma compulsiva e a demissão.

A reabilitação faz cessar os efeitos ainda subsistentes das sanções disciplinares que hajam sido aplicadas, ficando registada no processo individual do magistrado judicial – n.º 3 do artigo 133º.

Evidentemente que neste actual quadro legal, a reabilitação requerida pela demandante é inadmissível, na medida em que, tendo sido sancionada disciplinarmente com a pena de aposentação compulsiva, o artigo 132º, n.º 2, exclui-a dessa possibilidade.

Considera, porém, a demandante que lhe terá de ser aplicável o regime de reabilitação da LTFP em vigor antes das alterações ao EMJ, por força do disposto no artigo 131º do antigo EMJ.

Dizia-se nesse artigo 131º: “São aplicáveis subsidiariamente em matéria disciplinar as normas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local[2], do Código Penal, bem como do Código de Processo Penal, e diplomas complementares”.

Ora, o artigo 240º de LTFP, cuja aplicação a demandante sugere, estabelece o regime aplicável à reabilitação nos seguintes termos:

1 - Os trabalhadores condenados em quaisquer sanções disciplinares podem ser reabilitados independentemente da revisão do procedimento disciplinar, sendo competente para o efeito a entidade à qual cabe a aplicação da sanção.

2 - A reabilitação é concedida a quem a tenha merecido pela sua boa conduta, podendo o interessado utilizar para o comprovar todos os meios de prova admitidos em direito.

3 - A reabilitação é requerida pelo trabalhador ou pelo seu representante, decorridos os prazos seguintes sobre a aplicação das sanções disciplinares de repreensão escrita, despedimento disciplinar, demissão e cessação da comissão de serviço ou sobre o cumprimento das sanções disciplinares de multa e suspensão, bem como sobre o decurso do tempo de suspensão de qualquer sanção:

a) Seis meses, no caso de repreensão escrita;

b) Um ano, no caso de multa;

c) Dois anos, no caso de suspensão e de cessação da comissão de serviço;

d) Três anos, no caso de despedimento disciplinar ou demissão.

4 - A reabilitação faz cessar as incapacidades e demais efeitos da condenação ainda subsistentes, sendo registada no processo individual do trabalhador.

5 - A concessão da reabilitação não atribui ao trabalhador a quem tenha sido aplicada sanção disciplinar de despedimento disciplinar ou demissão o direito de, por esse facto, restabelecer o vínculo de emprego público previamente constituído.       

É patente o largo espectro de aplicação deste regime de reabilitação, na medida em que cobre todo o leque de sanções previstas nos artigos 183º a 188º da LFTP, do qual não faz parte – note-se – a aposentação ou reforma compulsiva.

A aplicação deste regime de reabilitação, por via subsidiária, aos magistrados judiciais foi, ao que sabemos, aflorada apenas uma vez na jurisprudência da secção do contencioso do STJ, embora sem que tenha havido pronúncia definitiva sobre a questão.

De facto, o acórdão de 18.10.2012[3], ao longo da exposição dos factos, deu notícia da discussão que se travou no seio do Plenário do CSM sobre essa matéria, numa situação em que ao requerente havia sido aplicada uma pena de advertência não registada.

Tal como decidido na deliberação agora impugnada, entendemos que a anterior versão do EMJ, vigente até 01.01.2020 não continha qualquer caso omisso ou lacuna que convocasse a aplicação subsidiária do regime de reabilitação previsto na LTFP.

Eis as razões:

Nos termos do artigo 215.º da CRP os juízes dos tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto.

A propósito do princípio da unicidade estatutária sustentado naquele artigo 215º, escreveu-se na fundamentação do acórdão desta Secção do Contencioso, de 23.01.2018[4]:

O facto de o art. 215º da CRP prever que os juízes se regem por um só estatuto não tem aquele sentido que a recorrente enuncia, mas antes o que o Tribunal Constitucional – que tem a última palavra nesta matéria – já explicitou no Ac. N.º 620/07:

‘Exigência de um estatuto unificado, constituído por um complexo de normas que apenas são aplicáveis aos juízes dos tribunais judiciais e de um estatuto específico, no sentido de que são as suas disposições, ainda que de natureza remissiva, que determinam e conformam o respectivo regime jurídico-funcional’.

É claro que idealmente seria mais adequado que todas as regras estatutárias aplicáveis aos juízes de direito estivessem concentradas num único diploma, ao qual, aliás, deveria ser atribuído um valor reforçado que impusesse ao legislador ordinário determinadas exigências acrescidas quando pretendesse introduzir modificações. O facto de os Tribunais, representados pelos respectivos magistrados judiciais, constituírem um órgão de soberania, justificaria precisamente essa garantia acrescida quando um outro órgão de soberania – a Assembleia da República – pretendesse modificar as normas estatutárias. Afinal, a independência dos Tribunais (e dos Juízes que os integram) pode ser precisamente afectada por via de alterações legislativas conjunturais.

Ocorre, porém, que a CRP, embora preveja no seu art. 215º a existência de um Estatuto destinado a reger os Juízes dos Tribunais Judiciais, não foi ao ponto de prescrever a necessária concentração num único diploma de todas as normas de cariz estatutário. Sendo inegável que os preceitos que se reportam aos vectores essenciais da magistratura judicial estão concentrados no EMJ, tal não impede (nem tem impedido, aliás) a coexistência de outras normas que regulam alguns aspectos específicos, como ocorre precisamente com o nº 5 do art. 183º da LOSJ a respeito da orgânica dos Tribunais Judiciais (…)

Noutros casos é o próprio EMJ que prevê a aplicação subsidiária de preceitos que constam de outros diplomas. Tal ocorre designadamente em matéria de equiparação a bolseiro (art. 10º-A), direitos de deveres dos magistrados judiciais (art. 32º), estatuto de aposentação aplicável a magistrados judiciais (art. 69º), diverso do estatuto da jubilação que é específico, matéria disciplinar (art. 131º) ou impugnação das deliberações do CSM (art. 178º)”.

Ora, se é certo que nem todas as normas que regem a atividade dos juízes têm de constar do respectivo Estatuto, a aplicação subsidiária de preceitos previstos noutros diplomas pressupõe a verificação de lacuna que a justifique.

Contudo, na nossa apreciação – repete-se – nenhuma lacuna existe.

Os juízes dos tribunais judiciais são titulares de órgãos de soberania e a sua independência funcional e orgânica resulta da aplicação efectiva dos princípios da inamovibilidade e irresponsabilidade consagrados no artigo 216º da CRP.

O recorte jurídico-constitucional da função jurisdicional implica que, no exercício das suas funções, os juízes estejam vinculados a um vasto conjunto de deveres com conteúdos distintos dos que são impostos aos funcionários públicos em geral.

A natureza e especificidade da função jurisdicional impõe, consequentemente, um Estatuto com um conteúdo especial, normativamente adequado aos princípios que regem a magistratura judicial, e que tenha designadamente em consideração as concretas funções dos magistrados judiciais, a prossecução do interesse público na realização da Justiça e a confiança da sociedade no sistema judicial, procurando evitar (novas) violações dos deveres inerentes ao exercício dessas funções.  

Não sendo possível a previsão estatutária de todas as situações e aspectos a regular, a legislação supletivamente aplicável ao Estatuto terá, assim, de ater-se aos casos, não directamente regulados, que não colidam com a especificidade dessas funções nem com os objectivos que com ela se visam alcançar.

Ora, em nosso entender, essa especificidade é incompatível com o amplo regime de reabilitação constante da LTFP, e daí que, conforme consta do parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, de 02.05.2018[5], sobre a Proposta de Lei n.º 122/XIII-3ª (GOV), de alteração ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, se tenha referido, para sublinhar o seu aspecto inovatório: “É consagrado o instituto da reabilitação (artigos 131º a 133º) …”.

O que o anterior Estatuto previa como ‘remédio’ para a sanção disciplinar aplicada era apenas a revisão da decisão disciplinar, na formulação então constante do artigo 127º:

As decisões condenatórias proferidas em processo disciplinar podem ser revistas a todo o tempo quando se verifiquem circunstâncias ou meios de prova susceptíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição e que não puderam ser oportunamente utilizados pelo arguido”.

Esse mecanismo legal passou, com formulação praticamente idêntica, para o novo Estatuto (artigo 127º).

Extrai-se do exposto que, ao optar por consagrar na redação anterior do EMJ[6] apenas o instituto da revisão de decisões disciplinares (também previsto nos artigos 78º a 83º LTFP da redacção original do DL 24/84, de 16 de Janeiro), e não o da reabilitação (igualmente previsto no artigo 84º do DL 24/84)[7], o legislador quis afastar a aplicação da reabilitação aos magistrados judiciais. E integrando-a, agora, no novo Estatuto, limitou-a às penas disciplinares menos gravosas, excluindo do seu âmbito as sanções disciplinares de aposentação ou reforma compulsiva e de demissão, mantendo, por outro, de forma autónoma, a figura da revisão da sanção disciplinar (artigo 127º do EMJ).

Conclui-se, assim, que, anteriormente à entrada em vigor das alterações ao EMJ introduzidas pela Lei 67/2019, o regime de reabilitação previsto na LTFP não era aplicável aos magistrados judiciais, pois não existia lacuna que cumprisse suprir pela aplicação subsidiária desse instituto.  

c)    Da violação dos artigos 30º, nºs 1 e 4, e 13º, n.º 1 da CRP

Sustenta a demandante que a interpretação seguida na deliberação impugnada viola, em primeira linha, o princípio da proibição de sanções perpétuas postulado no artigo 30º, n.º 1 e 4 da Constituição.

Concretiza dizendo que “ao excluir do âmbito das sanções potencialmente abrangidas pela reabilitação a de «aposentação compulsiva» o artigo 132.º do EMJ (actual redacção) comporta uma dimensão interpretativa inconstitucional na medida em que impõe aos sancionados com aquela sanção uma «pena» perpétua, impedindo-os de para todo o sempre voltar ao exercício de funções públicas, nomeadamente àquelas que antes desempenhavam (mas não só a essas)”.

Aduz ainda que, ao afirmar a aplicação de sanção disciplinar definitiva ou perpétua sem qualquer possibilidade de reapreciação, nomeadamente por reabilitação do visado, tal interpretação é também violadora dos artigos 6.º e 7.º da CEDH.

Vejamos.

O n.º 1 do artigo 30º da CRP estabelece que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, acrescentando o n.º 4 que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.

Parece claro que o artigo 30º, nº 1, da CRP não proíbe a existência de todas e quaisquer penas perpétuas ou de duração ilimitada ou indefinida. Só as proíbe, se forem privativas ou restritivas da liberdade, ou seja, do direito à liberdade física, de que fala o artigo 27°, n.º 1, e não se forem privativas ou restritivas de outros direitos.

Não haverá, portanto, obstáculo constitucional à existência de uma sanção que se traduza na proibição perpétua do exercício de uma determinada actividade ou profissão, ou na expulsão de uma ordem profissional, apesar de, por essa forma, se afectar a liberdade de escolha de profissão.

Por outro lado, também não se vê, face ao que se expôs, como a interpretação prosseguida na deliberação do CSM viole as normas dos artigos 6º e 7º do CEDH, que consagram o direito a um julgamento justo e equitativo, em prazo razoável, e a proibição de alguém ser condenado em sanção mais grave do que aquela que seria aplicável no momento em que a infracção foi cometida.

Por fim, quanto à suposta violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, n.º 1, da CRP:

Afirma a demandante que, ao excluir do âmbito das sanções potencialmente abrangidas pela reabilitação a de «aposentação compulsiva», o artigo 132º do EMJ, na actual redacção, comporta uma dimensão interpretativa inconstitucional na medida em que impede discriminatoriamente os juízes (só os juízes) de voltar a exercer quaisquer funções públicas (mesmo fora da judicatura), mesmo que demonstrem ser merecedores dos fundamentos da reabilitação.

Como se sabe, o princípio da igualdade significa, na sua dimensão material, que se trate de forma igual o que na sua essência for igual e de forma distinta o que for essencialmente distinto.

Este princípio deve ser olhado sob dois ângulos: o da criação do direito e o da aplicação do direito.

Neste último, a igualdade perante a lei significa que na aplicação do direito não há lugar para operar discriminação em função das pessoas; todas beneficiam, por forma idêntica, dos direitos que a lei estabelece, e todas se acham sujeitas, por forma idêntica, aos deveres que ela impõe.

Sob o ângulo da criação do direito, o princípio da igualdade vincula o órgão legiferante a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em condições semelhantes, proibindo o arbítrio legislativo. Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a sua liberdade de conformação, de que resulta que possam e devam estabelecer-se diferenciações de tratamento, desde que razoável, racional e objetivamente fundadas.

Na concreta situação, não existe o mínimo indício de que esse princípio estruturante do Estado de direito democrático tenha sido infringido.

De facto, a opção legislativa de excluir da possibilidade de reabilitação os magistrados judiciais a quem tenha sido aplicada a sanção disciplinar de aposentação ou reforma compulsiva (e também a pena de demissão) radica na especial natureza das funções judiciais acima referenciada, sendo certo que tal impossibilidade afecta, por igual, todos os magistrados judiciais que se encontrem nessa situação.

                                                  *

III.      DECISÃO

Em conformidade com o que se deixou exposto, julga-se a presente acção improcedente.

                                                   *

Custas pela demandante.

                                                   *

LISBOA, 25 de Março de 2021

(uma vez que a sessão se realizou por vídeo conferência, atesta-se, nos termos do artigo 15º-A do DL 10-A/2020, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Ilídio Sacarrão Martins, Maria de Fátima Gomes, Maria Rosa Oliveira Tching, Conceição Gomes, Paula Sá Fernandes, Clemente Lima e Maria dos Prazeres Beleza)


Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Aprovada pela Lei 35/2014, de 20 de Junho.
[2] Agora designado por Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).
[3] Proferido no processo n.º 140/11.64FLSB, em www.dgsi.pt.
[4] No processo n.º 47/17.8YFLSB; no mesmo sentido o acórdão proferido nessa mesma data no processo n.º 46/17.0YFLSB, ambos consultáveis em www.dgsi.pt
[5] Consultável em https://app.parlamento.pt
[6] Lei 21/85, de 30 de Julho.
[7] A reabilitação foi introduzida no Direito Disciplinar através do artigo 84.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (DL 24/84, de 16 de Janeiro), mantendo-se no artigo 78.º do Novo Estatuto Disciplinar anexo à Lei n.º 58/2008 de 9 de Setembro – Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas. Actualmente a reabilitação encontra-se consagrada, conforme dito, no artigo 240.º da Lei nº 35/2014, de 20 de Junho, que, revogando a Lei nº 58/2008, de 9 de setembro (EDTEFP), aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – LTFP.