Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2213/20.0T8STB-A.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
FIADOR
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
RECONHECIMENTO DO DIREITO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
DECLARAÇÃO TÁCITA
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
FIANÇA
AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, DETERMINANDO-SE A REMESSA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO PARA CONHECIMENTO DA EXCEÇÃO DE PRESCRIÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Por força do disposto no art.º 782 do C. Civil, num contrato de mútuo pagável em prestações de capital e juros em que os mutuários hajam incorrido em perda do benefício do prazo, os fiadores não são atingidos por esta perda, salvo quando também resulte do convencionado no contrato que essa perda lhes é extensível.

II. Ainda que não hajam perdido o benefício do prazo, nada impede os fiadores, se tal lhes convier, de optarem por não opor esse benefício ao credor quando este lhe exija integralmente a obrigação.

III. Para efeito da verificação do reconhecimento tácito do direito e interrupção da prescrição a que se reporta o art.º 325, nº 2, do C. Civil, só são inequívocos na revelação desse reconhecimento os factos que, numa interpretação à luz do art.º 236 do C. Civil, excluam com segurança todas as demais possibilidades, nomeadamente a de o devedor se reportar a créditos de outra fonte ou origem ou com um diferente capital.

IV. Por virtude da acessoriedade que é característica essencial da fiança, se a obrigação do devedor principal se extinguir por prescrição, a fiança prestada para a garantir extingue-se necessariamente (art.º 651 do CC).

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(1ª Secção)


I – RELATÓRIO 

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., instaurou uma execução para pagamento de quantia certa sob a forma sumária contra AA, BB, CC e DD, alegando o seguinte:

Em 09.08.2004 outorgou com os Executados AA e BB como mutuários, e com  os restantes Executados  como fiadores, um contrato de mútuo com hipoteca, pelo qual emprestou àqueles a quantia de € 73.800,00 com as taxas de juros e demais condições previstas na escritura e documento complementar que integram o título executivo; para garantia do capital mutuado os devedores constituíram hipoteca sobre o imóvel ali identificado que lhes pertencia em compropriedade; sucede que a metade do imóvel da comproprietária e mutuária AA veio a ser vendida em execução fiscal que contra a mesma foi instaurada; tendo do produto da venda a Exequente recebido  o montante de € 23.840,33, que abateu ao valor em dívida; ao abrigo do convencionado no contrato de mútuo e no documento complementar então elaborado, a Exequente considerou integralmente vencidae exigível toda a quantia mutuada, permanecendo em dívida pelos Executados o valor de € 85.588,67.

Os Executados DD e CC deduziram oposição à execução mediante embargos invocando a prescrição do crédito exequendo.

A Exequente/Embargada contestou, alegando que o prazo de prescrição do crédito exequendo é o ordinário, de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil (CC), e não o de 5 anos, estabelecido no artigo 310.º, al. e), do aludido CC; e mesmo que, por hipótese, esse prazo fosse de 5 anos, ele não decorreu porque em Março de 2015 e Setembro de 2016 se verificou o reconhecimento da dívida por parte dos Embargantes, operando-se com isso a causa de interrupção do artigo 325.º CC.

Na audiência prévia os Embargantes impugnaram os factos alegados na contestação sobre o alegado reconhecimento da dívida, concluindo pelo decurso integral do prazo prescricional.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e, em consequência, determinou a extinção da execução relativamente aos Embargantes.

Inconformada, recorreu a Exequente/Embargada para a Relação, a qual, por acórdão de 24.02.2022, julgou procedente a apelação, revogou a sentença recorrida e declarou improcedente a oposição à execução.

Agora inconformados, deste acórdão interpuseram os Embargantes para este Supremo recurso de revista, em cuja alegação formulam as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão que decidiu revogar a sentença recorrida, julgando procedente o recurso e improcedente a oposição à Execução.

II. No Acórdão ora recorrido (página 8), foram dados como provados na sentença de primeira instância os factos que se passam a transcrever:

“1. No dia 14.04.2020, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. intentou acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumária, contra AA, BB, CC e DD, visando a cobrança coerciva da quantia de € 85.588,67, que correspondem ao capital e juros por liquidar do contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 09.08.2004.

2. Tal contrato foi considerado resolvido, com vencimento integral da dívida, no dia 21.11.2012.

3. Entre 2015 e 2016 foram iniciadas conversações dos executados com a exequente no sentido de perceber se seria possível obter um financiamento para a aquisição da parte do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, sem que os executados tenham concretizado qualquer proposta e/ou aquisição.

4. Os executados DD e CC foram citados no dia 14.08.2020.

5. Os presentes embargos deram entrada em 05.10.2020”.

III. O Acórdão ora recorrido decidiu alterar a matéria de facto dada como provada em 3., a qual passou a ter a seguinte redacção:

“3) Entre 2015 e 2016, foram iniciadas conversações dos executados com a exequente no sentido de saber se seria possível obter um financiamento para a aquisição do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, de forma a solucionar o montante do qual eram devedores” - conforme consta do Acórdão ora recorrido na sua página 11.

IV. Os fundamentos do acórdão ora recorrido para alterar a redacção do ponto 3 da matéria de facto dada como provada constam das páginas 8 a 11 do acórdão ora recorrido e que passamos a citar:

“A recorrente considera que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento no que concerne à matéria que consta do n.º 3 dos factos provados. No entendimento da recorrente, aquilo que ocorreu em 2015 e 2016 não se resumiu a meras conversações entre ela e os recorridos no sentido de perceber se seria viável um financiamento destinado à aquisição, pelos segundos, da parte do imóvel sobre o qual incide a hipoteca. A recorrente sustenta que resulta dos documentos juntos com a contestação e do depoimento da testemunha EE que as referidas conversações visavam, em última instância, a extinção da dívida exequenda e a constituição de uma nova dívida, tendo os recorridos como devedores principais e adquirindo estes o imóvel sobre o qual incide a hipoteca. Ao tentarem, pela forma descrita, negociar a dívida exequenda, os recorridos teriam reconhecido a existência da mesma e a sua qualidade de fiadores.

Como resulta da exposição anterior, é pacífico que, em 2015 e 2016, ocorreram conversações entre os recorridos e a recorrente no sentido de a segunda conceder, aos primeiros, um financiamento destinado à aquisição do imóvel onerado com a hipoteca referida no n.º 1 dos factos provados. Ou seja, os fiadores quiseram comprar precisamente o imóvel cuja anterior compra originara a obrigação de pagamento do preço por eles garantida e, para esse efeito, mantiveram negociações com a credora. Considerando aquilo que é a normalidade da vida, fácil é concluir que a escolha do imóvel não foi fruto do acaso. Os recorrentes quiseram comprar aquele imóvel e não outro justamente porque a sua anterior compra gerara uma dívida por eles afiançada e que se encontrava numa situação de incumprimento. Por outras palavras, o projecto de compra daquele imóvel pelos recorridos visava a produção de efeitos ao nível das relações obrigacionais geradas pala compra anterior, encontrando-se uma solução para a referida situação de incumprimento, que os afectava enquanto fiadores. Não há outra explicação possível para a vontade dos recorridos de comprarem precisamente aquele imóvel e, para esse efeito, pretenderem um financiamento por parte da recorrente.

A prova indicada pela recorrente corrobora o que acabámos de afirmar. Disse-o expressamente a testemunha EE, segundo a qual, em 2016, os fiadores apresentaram-se numa agência da Caixa Geral de Depósitos da ... pretendendo obter um financiamento destinado a pagar a dívida garantida pela fiança, a qual se encontrava numa situação de incumprimento. Essa proposta dos fiadores passava pela aquisição, por eles, do imóvel em questão, sendo o preço pago através do referido financiamento. Porém, analisada a situação financeira dos fiadores, a Caixa Geral de Depósitos concluiu que a taxa de esforço era excessiva e, por essa razão, não concedeu o financiamento pretendido.

Este depoimento encontra corroboração em documentos juntos com a contestação. Num mail remetido por um representante dos recorridos à recorrente em 03.03.2015, é indicado, como assunto, o contrato de mútuo referido no n.º 1 da matéria de facto provada.

Aí se afirma, nomeadamente, que o remetente se encontra “informalmente mandatado pelos fiadores DD e FF para intervir no processo” e se solicita informação sobre o “andamento do processo relativo ao imóvel sito à Rua ..., ..., ..., Freguesia ..., em ... – empréstimo n.º ...19 – operação n.º ...85”.

Salienta-se, ainda, que “Sendo os fiadores a parte tendencialmente mais prejudicada no desfecho do processo, sentem-se igualmente apreensivos e agastados com a presente situação”.

No mail enviado, em 07.09.2016, pela gerente da agência da recorrente no ..., GG, a um outro departamento da mesma entidade, informa-se que a recorrida DD entrou em contacto com aquela agência no sentido de se estudar a hipótese de financiamento da compra do imóvel dado em hipoteca para garantia do pagamento do empréstimo de que ela é fiadora e solicita-se que a gestora do processo informe “quais as hipóteses de alienação do imóvel à fiadora, e quais os montantes em cima da mesa”. No mail enviado, em 02.01.2017, pela recorrida DD à gerente da agência da recorrente no ..., é indicado, como assunto, o empréstimo a que nos vimos referindo, e pergunta-se “se existe alguma novidade sobre o assunto em título”.

A exposição a que procedemos demonstra que faltou, ao tribunal a quo, retirar a conclusão que se impunha: as conversações referidas no n.º 3 dos factos provados visavam solucionar a situação de incumprimento do contrato de mútuo referido no n.º 1. O financiamento da aquisição do imóvel constituía o meio para atingir aquele fim”.

V. O acórdão recorrido a partir da nova redação do ponto 3 da matéria de facto dada como provada conclui que houve interrupção da prescrição entre 2015 a 2016 nos termos artigo 325.º, n. 1, do Código Civil, pelo que não se verifica a prescrição invocada pelos recorrentes em sede de contestação.

VI. Os recorrentes discordam dos fundamentos agora citados para alterar a redacção do ponto 3 da matéria de facto dada como provada, sendo certo que estes não ignoram que a modificabilidade da decisão de facto da Relação não é recorrível (cfr. artigo 662.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), o presente recurso vai no sentido do direito aplicável à matéria de facto dada como provada no ponto 3 com a nova redacção. Passemos a relembrá-la:

“Entre 2015 e 2016, foram iniciadas conversações dos executados com a exequente no sentido de saber se seria possível obter um financiamento para a aquisição do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, de forma a solucionar o montante do qual eram devedores”.

VII. Salvo o devido, respeito da matéria dada como provada em 3 com a redacção dada pelo acórdão ora recorrido, não é aplicável tout court o artigo 325.º do CC à referida matéria de facto para se concluir pela interrupção do prazo de prescrição com os fundamentos ali referidos.

VIII. Na realidade, em momento algum se refere na factualidade agora analisada, bem como na produção de prova que conduziu a concluir tal factualidade provada que os recorrentes reconheceram expressa ou implicitamente a dívida e em que circunstâncias.

IX. Ainda que se aceite que iniciaram conversações para aquisição do imóvel objecto da hipoteca, em momento nenhum existe uma assumpção de dívida, mas sim uma intenção, enquanto fiadores, de saber o ponto de situação do processo, o que é substancialmente diferente de reconhecimento do direito.

X. Destarte, mal andou o Acórdão aqui sindicado ao considerar que se verificou o fundamento do artigo 325.º, n.º 1, do CC, para considerar interrompida a prescrição da dívida exequenda reclamada pela agora Recorrida.

XI. Por maioria de razão, o mesmo se diga quanto ao n.º 2 do mesmo artigo, dado que, como assinala a sentença de 1ª instância não houve qualquer facto inequívoco por parte dos ora recorrentes que consubstancie um reconhecimento tácito da dívida.

XII. Consequentemente, consideram os ora recorrentes que deve ser revogado o acórdão da Relação de Lisboa, devendo ser julgada procedente a oposição à execução, por verificação do prazo prescrição previsto no artigo 310.º, alínea e) do CC.

XIII. Com efeito, o acórdão da Relação de Évora ora recorrido, interpretou e aplicou erroneamente os artigos 325.º e 310.º, alínea e), ambos do CC, devendo tal decisão ser revogada por outra que julgue procedente a oposição à execução dos Recorrentes, com as legais consequências.

Contra-alegou a Embargada, pugnando pela manutenção do acórdão da Relação, com as legais consequências, ou, caso assim não se entenda, pela apreciação das restantes questões suscitadas em sede de recurso da decisão prolatada em primeira instância, nomeadamente, quanto ao prazo de prescrição, que se entende ser de 20 anos, e da inconstitucionalidade da interpretação do art. 310º, al. e) do CC, julgando-se não prescrito o crédito da exequente.


*

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

São os seguintes os factos que vêm dados como provados nas instâncias:

1. No dia 14.04.2020, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. intentou acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo sumário, contra AA, BB, CC e DD, visando a cobrança coerciva da quantia de € 85.588,67, que corresponde ao capital e juros por liquidar do contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 09.08.2004.

2. Tal contrato foi considerado resolvido, com vencimento integral da dívida, no dia 21.11.2012.

3. Entre 2015 e 2016 foram iniciadas conversações dos executados com a exequente no sentido de perceber se seria possível obter um financiamento para a aquisição do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, de forma a solucionar o montante do qual eram devedores.

4. Os executados DD e CC foram citados no dia 14.08.2020.

5. Os presentes embargos deram entrada em 05.10.2020.


*

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (art.º 635, nºs 3 e 4 do CPC), são as seguintes as questões que importa decidir:

Se houve reconhecimento da dívida pelos Embargantes perante a Embargada em 2015 e 2016 que implicou a interrupção do prazo prescricional em curso, nos termos do art.º 325 do C.Civil;

Se o prazo prescricional aplicável é o prazo de cinco anos da al.ª e) do art.º 310 do CC ou o prazo ordinário de 20 anos do art.º 309 do mesmo diploma.

Se é inconstitucional a interpretação feita na sentença recorrida da alínea e) do art.º 310 do C. Civil.

Sobre o reconhecimento da dívida pelos Embargantes em 2015 e 2016.

Em causa está a verificação da causa de interrupção da prescrição do art.º 325 do CC quanto aos Embargantes/Executados, atenta a sua qualidade de fiadores no contrato de mútuo outorgado com a Exequente/Embargante.

Na oposição deduzida à execução a prescrição da dívida exequenda aparece exclusivamente alegada pelos Embargantes como fiadores no contrato de mútuo com hipoteca que foi outorgado com a Exequente/Embargada em 9 de Agosto de 2004.

A sua defesa centra-se unicamente na invocação da prescrição do crédito da Embargada objecto da execução, crédito que abrange, nos termos convencionados, o montante por ela considerado integralmente vencido em 21.11.2012 por força da execução fiscal que conduziu à venda do imóvel hipotecado.

Defesa que, por banda da Embargada, foi alvo da formulação da contra-excepção da interrupção da prescrição pelo reconhecimento da dívida que teria sido realizado pelos Embargantes/fiadores em 2015 e 2016.

É de notar que apesar de o facto provado em 2 se referir à resolução do mútuo nunca pela Exequente foi alegada tal modalidade de extinção do contrato. O que foi invocado pela Exequente/Embargada no ponto 6 do requerimento executivo foi tão somente a perda do benefício do prazo pelos Executados, mutuários e fiadores – com o inerente vencimento integral da obrigação mutuada – ao abrigo do convencionado no art.º 14, b), do documento complementar da escritura de mútuo, em face da execução fiscal que levou à venda de ½ do imóvel que integrava a garantia hipotecária.

Ou seja, a execução move-se exclusivamente no âmbito do cumprimento do mútuo e da convencionada perda (automática) do benefício do prazo estabelecido a favor dos mutuários/devedores e demais co-obrigados.

No acórdão recorrido considerou-se que, fosse de cinco ou vinte anos o prazo de prescrição do crédito da Exequente/Embargante decorrente do integral vencimento das prestações do mútuo em 21.11.2012, tinha ocorrido o facto interruptivo do reconhecimento da dívida pelos Embargantes em 2015 e 2016, pelo que em 14.08.2020 (data da citação dos Embargantes para a execução), esse prazo, mesmo sendo o mais curto (de cinco anos), não se achava esgotado.

Vejamos os precisos termos de tal raciocínio:

“(…) Impõe-se, assim, concluir que, em 2015 e 2016, os recorridos reconheceram a existência do direito da recorrente, reconhecimento esse que interrompeu a prescrição nos termos do n.º 1 do artigo 325.º CC.

O vencimento integral da dívida ocorreu no dia 21.11.2012. Iniciou-se nessa data o prazo de prescrição das prestações então vencidas nos termos do artigo 781.º CC. Seja esse prazo de 5 ou de 20 anos, estava em curso em 2015 e foi interrompido nesse ano e, novamente no de 2016. Nos termos do artigo 326.º CC, ficou inutilizado o tempo até então decorrido e começou a contar novo prazo, idêntico ao anterior, na data em que ocorreu o último facto interruptivo. Os recorridos foram citados no dia 14.08.2020. Logo, ainda que o prazo de prescrição fosse de 5 anos, não se teria completado, devido às interrupções ocorridas em 2015 e 2016. O mesmo é dizer que o direito da recorrente não prescreveu (…)”.

A execução objecto dos presentes embargos foi, por conseguinte, instaurada em 05.10.2020 para obtenção de todas as prestações do mútuo outorgado com os Executados vencidas após 21.11.2012, montante ao qual foi abatido o valor de € 23.840,33 entretanto recebido pela Exequente na aludida execução fiscal (ponto 5 do requerimento executivo).

Importa ter aqui em atenção que os Embargantes, sendo meros co-obrigados pela fiança, não colocaram a menor objecção à perda do benefício do prazo em relação a eles em 21.11.2012, dado que o mútuo, como emerge da escritura e documento complementar que enformam o título executivo, tinha um período de amortização inicial de 30 anos em prestações mensais constantes com início a partir de Agosto de 2004.

E, na realidade, nada os coagia a invocar tal benefício.

Em princípio, os co-obrigados do devedor como os fiadores não são atingidos pela perda do benefício do prazo que afecte o devedor – art.º 782 do C. Civil.

Esta norma visa preservar os co-obrigados dos efeitos de uma quebra de confiança que se produziu apenas perante o principal obrigado, o devedor propriamente dito.

Ora tem sido entendido que a dita norma tem natureza supletiva, podendo ser derrogada pelos contraentes, neles incluídos os co-obrigados, desde que sejam observados os requisitos da sua declaração expressa e da forma do mútuo (neste sentido, pode ver-se os Acórdãos do STJ de 06.02.2018, p. no P. 4739/16.0T8LOU-A.P1.S1 e de 21.02.2021, p. no P. 845/19.8T8SRE-A.C1.S1, com a posição aí referida de Januário da C. Gomes, in Assunção Fidejussória da Dívida, Almedina, 2006, p. 619-620).

Na situação concreta sub judice dá-se a circunstância de ter sido expressamente convencionado na cláusula 14ª do documento complementar ao contrato de mútuo o vencimento e exigibilidade automáticos de todas as prestações ainda não vencidas, em face de um conjunto de eventos, entre os quais se conta a execução do bem hipotecado.

Aí se previu que:

 “A parte credora poderá, sem necessidade de aviso, considerar imediatamente vencidas e exigíveis todas as responsabilidades garantidas (…)

(…)

b) Quando o bem hipotecado vier a ser objecto de execução (…) “.

Ora, seguindo as linhas da interpretação da declaração negocial dos art.º 236 a 238 do C. Civil, em particular da que deriva do nº 1 do art.º 236 (interpretação objectivista) uma vez que não foi apontado o cotejo com a vontade real dos declarantes (que, como matéria de facto, escaparia à sindicância deste Supremo), é de concluir que também os Embargantes abdicaram do benefício do prazo que lhes adviria da aplicação supletiva do art.º 782 do C. Civil.

Aliás, ainda que se lhes aplicasse a regra supletiva do art.º 782 do C.Civil, o respeito da vontade dos beneficiados – porque se trata de algo que, como é óbvio, sempre estaria na sua disponibilidade usar ou não usar – não os poderia impedir de, apesar de beneficiarem do prazo inicial de pagamento da dívida, virem a optar por não adversar esse benefício diante da sua reclamação integral pelo credor.

Terá sido essa certamente a vontade dos Embargantes que, por essa via, lobrigaram a possibilidade de alegar a prescrição de toda a dívida objecto de execução.

Seja como for, a perda do benefício do prazo dos fiadores no que concerne às prestações vincendas em 21.11.2012 não foi controvertida na oposição à execução por eles apresentada nem está questionada no objecto do presente recurso.

No presente recurso, como fiadores, os Embargantes ora recorrentes insurgem-se apenas contra o entendimento sufragado no acórdão recorrido de que o facto dado como provado em 3 do respectivo elenco, mesmo com a alteração introduzida pela Relação, configura quanto a eles a causa interruptiva do prazo prescricional prevista no art.º 325 do C. Civil (reconhecimento do direito).

É esta a única questão pela qual vem agora pedida a revista do acórdão recorrido.

Vejamos então se, in casu, perante o teor do mencionado facto elencado em 3 dos factos provados, se pode falar de reconhecimento do direito de crédito da Exequente/Embargada (isto é, da dívida exequenda) pelos fiadores ora Embargantes.

 

Dispõe-se no art.º 325 do C. Civil:

“1. A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.

2. O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam.”

No facto agora em apreço – provado em 3 – consignou-se o seguinte:

“Entre 2015 e 2016 foram iniciadas conversações dos executados com a exequente no sentido de perceber se seria possível obter um financiamento para a aquisição do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, de forma a solucionar o montante do qual eram devedores.”

Será para todos evidente que a matéria descrita não envolve um reconhecimento expresso do crédito da Exequente/Embargada.

Poderemos, no entanto, estar confrontados com um eventual reconhecimento tácito do direito, reconhecimento esse que, nos termos do nº 2 do citado art.º 325 do C. Civil, “só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam”.

Factos estes que terão de ser aqueles que para o intérprete apontem com segurança para uma aceitação do concreto direito do credor, afastando qualquer outra hipótese.

Não se tratam aqui de meros factos probabilísticos, isto é de factos que provavelmente ou com toda a verosimilhança apontem para o reconhecimento do direito.

A inequivocidade do reconhecimento implica que estejam seguramente excluídas ou arredadas todas as outras possibilidades, como serão, p. ex., a de ter sido por ele visado outro (ou outros) crédito(s), ainda que com a idêntica natureza, com outra fonte ou origem, ou com um capital diferente.

Avançando, julgamos que, socorrendo-nos da impressão provocada num declaratário normal (art.º 236, nº 1 do CC), esse reconhecimento inequívoco não se verificou.    

Na realidade, o facto identificado sob o nº 3 dos factos provados encerra a necessidade de uma interpretação razoável e harmonizada como os demais elementos disponíveis nos autos.

Nessa interpretação, a primeira observação a fazer é a de que ½ do imóvel dado de hipoteca havia sido vendido numa execução fiscal em 2012, pelo que, em rigor, a Exequente só iria a financiar a aquisição do restante ½ (que era a ainda pertencente ao Executado e mutuário BB).

A segunda observação é a de que tendo existido da parte dos Executados/Embargantes, ou seja, dos fiadores no mútuo, uma proposta dirigida à Exequente/Embargante no sentido de esta lhes conceder um financiamento destinado à aquisição de uma parte do imóvel ainda hipotecado, não se vê como mediante a concretização dessa aquisição eles passariam a dispor da liquidez necessária para o pagamento da dívida. Pelo contrário, a aquisição do imóvel (aliás, de ½) significava imediatamente para eles apenas contracção de um novo encargo.

A terceira, e porventura mais relevante, é a de que o facto em questão não especifica qual era a concreta dívida a “solucionar”, nomeadamente qual o montante que os Embargantes “quiseram” reconhecer ou confessar. Na verdade, nada nos permite afirmar que os Embargantes sabiam o exacto montante que os mutuários tinham que liquidar, sendo até muito plausível que o desconhecessem em função da venda em execução fiscal que se tinha operado. Acresce que nada indica que não tivessem outras obrigações perante a Embargada Caixa Geral de Depósitos.

Desta forma, e sempre salvo o respeito devido, afigura-se precipitada ou temerária a conclusão do acórdão recorrido de que “Não há outra explicação possível para a vontade dos recorridos de comprarem precisamente aquele imóvel e, para esse efeito, pretenderem um financiamento por parte da recorrente.”

De sorte que não apontando a interpretação da mencionada declaração do devedor/obrigado, segundo o critério jurídico do art.º 236, nº 1, do CC, para uma concreta definição da dívida perante a credora, com a manifestação da sua aceitação ou reconhecimento, não se pode dar como consumado o efeito interruptivo aludido no art.º 325 do C. Civil, (cfr. o Ac. do STJ de 23.03.2000, in CJ/STJ, 2000, I, p. 288).

Em suma, a factualidade inserida no facto elencado em 3 dos factos provados, por não traduzir um inequívoco reconhecimento do direito da Embargada como credora da quantia exequenda, não teve a virtualidade de interromper o prazo prescricional eventualmente em curso, à luz do disposto no nº 2 do art.º 325 do C. Civil.      

Uma das características da fiança é da sua acessoriedade em face da obrigação afiançada.

Como se escreveu no Ac. deste STJ de 11 de Maio de 2022, no P. nº 1511/19.0T8STB-A.E1.S1, em que foi 1º Adjunto o aqui relator, “ (…) A fiança é uma garantia pessoal, através da qual um terceiro (fiador) assegura/garante com o seu património o cumprimento de uma obrigação alheia (do credor), ou seja, e por outras palavras, é um vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste último sobre o devedor – cfr. artº. 627º do C. Civil, diploma esse ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua fonte.

Fiança que tanto pode ser legal como convencional ou voluntária, decorrendo aquela de uma imposição da lei, enquanto a última – aquela que nestes autos está em causa – resulta de uma relação negocial entre as partes.

Garantia essa que tem o conteúdo da obrigação principal e que cobre as consequências legais e contratuais da mora ou da culpa do devedor (artº. 634º).

Figura essa que apresenta duas características fundamentais: a sua acessoriedade e a sua subsidiariedade (apresentando-se, contudo, a primeira mais essencial do que a segunda).

É acessória porque obrigação assumida pelo fiador apresenta-se como acessória daquela que recai sobre a obrigação assumida pelo principal devedor, pois que o fiador assume não uma obrigação própria e autónoma, mas antes uma obrigação que é do devedor principal, ou seja, ele apenas garante que a obrigação (afiançada) do devedor será por si satisfeita no caso de aquele não cumprir. Traço caraterístico esse que se encontra expressamente plasmado no artº. 627º, nº. 2, e com efeitos refletidos, em termos de consequências, nos normativos subsequentes (cfr. artºs. 628º, 631º, 632º, 634º, 637º e 651º)”.

Contudo, a acessoriedade da fiança não é perfeita, isto é, não se estende a todos os aspectos que se ligam à responsabilidade do fiador: este pode usar dos meios de defesa que lhe são próprios e não está impedido de opor ao credor os que competem ao devedor salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador (art.º 637 do CC).

No que respeita à prescrição o art.º 636 do CC preceitua a não interferência da interrupção, suspensão ou renúncia à prescrição pelo devedor na obrigação do fiador, nem desses factos, quando referidos ao fiador, na obrigação do devedor.

Como corolário da natureza acessória da fiança, o art.º 651 do CC estatui a sua extinção sempre que se verifique a extinção da obrigação principal por ela garantida.

Quando se fala em prescrição no âmbito de uma obrigação garantida por fiança ela reporta-se necessariamente ao direito do credor por contraponto à obrigação do devedor ou principal obrigado.

Correndo a prescrição desse direito sem qualquer interrupção ou outra causa modificativa, o transcurso desse prazo provoca inexoravelmente a cessação da responsabilidade dos fiadores/Embargantes.   

Mas só depois de se concluir que na data da citação para a execução (em que se produziu o efeito interruptivo do direito da Exequente/Embargada, nos termos do art.º 323, nº 1, do C.Civil) já havia decorrido o pertinente prazo de prescrição – fundamento da oposição à execução – é que as obrigações dos Embargantes ora recorrentes, como fiadores, se poderão ter por extintas.

Para isso haverá que proceder à determinação do prazo de prescrição concretamente aplicável, tarefa que o acórdão recorrido só não empreendeu com a argumentação de que, diante do reconhecimento da dívida, qualquer que fosse esse prazo ele estaria sempre em curso na data da citação dos Embargantes (ali mencionados como recorridos).

Do prazo de prescrição concretamente aplicável e da constitucionalidade da interpretação da al.ª e) do art.º 310 do CC feita na sentença de 1ª instância.

Como se disse, o acórdão recorrido não chegou a tomar posição sobre a questão suscitada pela Embargada/Exequente sobre o prazo de prescrição do crédito objecto da execução com o argumento de que, quer esse prazo seja o mais curto do art.º 310, al.ª e) (5 anos), quer seja o ordinário do art.º 309 do C. Civil (20 anos), foi interrompido em 2016, e, desse modo, ter-se-ia renovado e estaria ainda em curso quando os Executados foram citados (em 14.08.2020).

Considerou tal questão prejudicada, e, bem assim, a que igualmente vinha levantada no recurso de apelação da Embargada/Exequente respeitante à constitucionalidade da interpretação feita na sentença sobre a norma do art.º 310, al.ª e), do C.Civil.

A este Supremo Tribunal não é aplicável a regra da substituição do tribunal recorrido do art.º 665, nº 2, do CPC (cfr. o art.º 679 do mesmo Código).

Donde que os autos devam voltar à Relação para a mesma se pronunciar sobre as questões que foram tidas por prejudicadas.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, concedendo a revista, revogam o acórdão recorrido, declarando que não se verificou interrupção do prazo de prescrição do crédito da Embargada/Exequente, e, em função disso, determinam que os autos voltem à Relação a fim de que a mesma conheça das questões que teve por prejudicadas, atinentes ao prazo de prescrição aplicável e à constitucionalidade da interpretação do art.º 310, al.ª e) feita pela sentença de 1ª instância.

Custas pela apelada.

Lisboa, 7 de Junho de 2022


Freitas Neto (Relator)

Maria Clara Sottomayor

Pedro Lima Gonçalves