Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2620/17.5T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
SIMULAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE INSTÂNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, que podem utilizar prova por presunções.

 II - O Supremo tem apenas competências residuais para censurar a forma como o tribunal recorrido utilizou as presunções judiciais em três casos: ofensa de norma legal, violação evidente de regras elementares de lógica, ou se o tribunal recorrido firmar os factos desconhecidos a partir de outros que não estejam provados no processo.

III - O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO


1. BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S. A. veio intentar a presente ação de processo comum contra CC, AA e mulher BB, alegando que é credor do primeiro por lhe ter mutuado 74.880 euros, em 2004, e que, tendo sido admitido e reconhecido como credor no âmbito de execução fiscal que contra aquele correu termos, ali adquiriu o imóvel sobre o qual constituíra hipoteca para garantia do valor mutuado, cuja entrega ainda não conseguiu porque aquele Réu celebrou com os segundos contrato de arrendamento do referido imóvel.

Pede a declaração de nulidade desse negócio que alega ter sido simulado por todos com o intuito de frustrarem a satisfação do seu crédito.

Citados os Réus, vieram AA e mulher BB contestar, excecionando a incompetência material deste tribunal, a preclusão do direito do Autor por o não ter invocado no âmbito da execução fiscal em que adquiriu o imóvel, invocando a decisão ali proferida como caso julgado relativo à não extinção do direito ao arrendamento e impugnando parte dos factos alegados como causa de pedir, nomeadamente que o primeiro Réu tenha vivido no imóvel que lhes arrendou após a celebração de tal contrato.

Também o Réu CC contestou sustentado na defesa da tese de que o Autor não tem interesse na declaração de nulidade do contrato de arrendamento, pois bem sabia, antes de adquirir o imóvel em processo de execução fiscal, que o mesmo estava arrendado, pelo que lhe está agora vedado alegar a nulidade de tal contrato.

Manifestou a pretensão de, no caso de procedência do pedido, ser julgada também nula a venda executiva pela qual o Autor adquiriu o imóvel pois este, sem o contrato de arrendamento, seria vendido por valor superior, ou, caso assim não se entenda, se condene o Autor a ressarcir o Réu por enriquecimento sem causa.

Foi designada audiência prévia e convidado o Réu a aperfeiçoar a contestação deduzindo pedido reconvencional de forma articulada e autónoma e indicando o respetivo valor sob pena de as suas pretensões não poderem ser conhecidas.

Desde logo se advertiu tal Réu, contudo, da possibilidade de o tribunal se vir a julgar incompetente em razão da matéria para conhecer de tais pretensões.

O Réu CC aceitou o convite e deduziu pedidos reconvencionais em expressão das pretensões acima referidas.

O Autor replicou pugnando pela inadmissibilidade da dedução da reconvenção e pela sua falta de fundamento de facto.

Foi saneada a causa, com conhecimento, pela sua improcedência, da exceção de incompetência deste tribunal para conhecimento do pedido, bem como das exceções de caso julgado/inominada de preclusão do direito do Autor invocar a nulidade por simulação do contrato de arrendamento objeto dos autos.

Não se admitiu a reconvenção por se ter julgado a incompetência material deste tribunal para conhecer dessa pretensão.  

Afirmou-se da validade e regularidade da instância, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas de prova.

Realizou-se a audiência de julgamento com observância de todas as formalidades legais. 

2. De seguida foi proferida a sentença, que decidiu o seguinte:

“V – Julgo a acção totalmente provada e procedente e em consequência:

1. Declara-se nulo e de nenhum efeito o contrato, datado de 1 de Abril de 2007, em que os Réus declararam dar e tomar de arrendamento o prédio urbano constituído por casa, de cave, rés do chão e andar para habitação, com logradouro, sito no lugar da …, freguesia de …, concelho de …., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …78 e descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de ….. sob o número ….34, figurando o primeiro Réu como senhorio e os segundos Réus como inquilinos.

2. Condenam-se os Réus a procederem à sua entrega à Autora livre de pessoas e bens.

3. Custas pelos Réus – cfr artigo 527º do Código de Processo Civil.

4. Registe e notifique”.


3. Inconformados, os réus recorreram desta decisão, tendo o Tribunal da Relação …. julgado o recurso totalmente improcedente.

4. Inconformados, interpõem os réus, AA e BB, recurso de revista, alegando que apesar de o acórdão recorrido ter confirmado a sentença do tribunal de 1.ª instância, fê-lo com uma fundamentação essencialmente diferente, no sentido do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, invocando subsidiariamente que o recurso seja admitido pela formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, como revista excecional, por estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito (artigo 672º, nº1, al. a), do CPC), bem como “interesses de particular relevância social”, no sentido do artigo 672º nº1, al. b), do CPC.

Na sua alegação de recurso, formularam as seguintes conclusões:

«1. Por douto acórdão proferido pelo Tribunal ora Recorrido foi alterada a redação do artigo

8. e 34. dos factos dados como provados pelo tribunal da 1ª instância.  

2. Relativamente aos pontos 31. e 32. dos factos dados como provados cuja alteração também era requerida no sentido de serem dados como não provados, entendeu o Tribunal ora recorrido, que deveria manter-se e assim não proceder à sua alteração, porquanto se tratam de factos que visam provar a simulação absoluta do contrato de arrendamento e que a prova desses factos não é possível, em regra de ser feita de forma directa.

3. Ora, o Tribunal de 1ª instância referiu-se à prova testemunhal para fundamentar aquela decisão quanto àqueles factos provados, mas não fez a necessária análise crítica do depoimento das testemunhas sobre aqueles concretos pontos de facto.

4. É que os depoimentos das testemunhas não permitem responder daquela forma a tais factos, já que nenhuma delas, ouvida em audiência de julgamento, conhecia ou sabia do contrato de arrendamento e as circunstâncias em que o mesmo tinha sido celebrado.

5. Com relevo para o presente recurso interessa-nos, desde logo, a nova redacção dada ao ponto 8. “O primeiro Réu foi executado em vários processos de execução fiscal que se unificaram no processo n.º …...31, onde foi efetuada e registada provisoriamente, penhora sobre prédio supra identificado, em 2 de junho de 2005, penhora essa inscrita na conservatória do Registo Predial em 4 de janeiro de 2007, tendo caducado em 24/10/2007. Em 29/04/2008 foi efetuada nova penhora, registada em 29/04/2008 com caráter provisório, tendo sido convertida em definitivo em 02/09/2008”

6. Socorrendo-se de tal alteração conclui o agora Tribunal recorrido: ““(…) surge como uma evidência que a causa da alegada (simulada) celebração do contrato de arrendamento pode ser encontra nas execuções fiscais (e nos atos de penhora nelas concretizados) tendo os RR. se conluiado no sentido de, por essa via, tentar prejudicar os interesses da Autora enquanto compradora do prédio em sede da venda efetivada na ação executiva (e dos demais credores).

7. Não foi alegado, e por isso não foi provado, que os Réus tiveram conhecimento da penhora efetuada em 25/06/2005.

8. Pelo que foi, apenas com recurso à invocada presunção judicial, que o douto acórdão recorrido considerou provada a simulação, recorrendo ao iter temporal das penhoras!

9. Presumir e concluir que o contrato de arrendamento foi simulado, que os intervenientes não quiseram dar nem tomar de arrendamento mas apenas evitar que o Autor adquirisse a casa, tentando prejudicar os interesses deste enquanto comprador do prédio em sede da venda efetivada na ação executiva (e dos demais Credores) e, que os Réus agiram de conluio, não é nenhuma consequência típica, ou sequer lógica, da proximidade dos registos das penhoras, ou até da relação familiar existente entre os Réus.

10. As presunções judiciais têm como função apenas auxiliar o julgador a formar a sua convicção, pelo que não pode o julgador, na total ausência de prova testemunhal, julgar procedente a ação com base apenas numa "prova de primeira aparência" ou num mero juízo de probabilidade, não podendo os Tribunais recorridos substituir-se ao Autor e colmatar a ausência de prova verificada e a ele imputável;

11. Não bastam indícios e “Em Direito não se especula, conclui-se apenas quando há fundamentos firmes de que determinado ou determinados factos ocorreram ou não ocorreram.”

12. O acórdão recorrido violou o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 665° do CPC, porquanto procedeu a uma apreciação da prova arbitrária e discricionária que se fundou, única e exclusivamente em esquemas mentais e lógicos de percepção da realidade através das regras da experiência;

13. Sabendo-se que o Autor pretendia que fosse declarado nulo por simulado o contrato de arrendamento celebrado ente os Réus, em 1/4/2007, face ao pedido e à repartição do ónus probatório - artigo 342º do C.C - cabia ao Autor alegar e provar os elementos constitutivos do seu direito, isto é, do acordo simulatório e, em consequência pressupunha que se provasse que houve divergência entre a declaração negocial e a vontade real das partes, por acordo entre o 1.º Réu e os 2.ºs Réus, com o intuito de enganar o Autor, - artigo 240º do CC.

14. O Tribunal de primeira instância fundou-se em meros indícios, frágeis e erroneamente apreciados, comungados pelo Tribunal da Relação.

15. Não se diga, como o fez o Tribunal agora recorrido, que “na verdade, a posição da Autora foi sempre consistente ao longo dos tempos, uma vez que, utilizando os mais diversos fundamentos, sempre pôs em causa, designadamente no momento da sua aquisição em sede de venda executiva, a subsistência do alegado direito de arrendamento dos 2ºs RR.”

16. Isto porque foi a própria Autora quem confessou nos artigos 14º e 16º da sua PI que já antes da aquisição do imóvel sabiam que os “Réus decidiram simular que celebravam com data de 01 de Abril de 2007, um contrato de arrendamento do prédio em questão” e que ele próprio “pouco ou nada se importou com tal simulacro contrato de arrendamento porque sabia que, por força do artº 824º 2 do CC, tal contrato caducaria com a venda executiva (porque, embora simulado, o mesmo era anterior às hipotecas).”

17. Resultando ainda provado que a Autora, enquanto credora reclamante, nada fez no processo executivo fiscal para impedir que do edital/anúncio constasse o contrato de arrendamento e o valor da renda - não tendo reclamado do despacho que ordenou a inclusão no edital/anúncio da existência do contrato de arrendamento e do valor da renda-, sendo que a partir do momento em adquiriu o imóvel, adquiriu-o de acordo com o que estava descrito no edital/anúncio e não outra coisa, o mesmo é dizer com os ónus e encargos existentes sobre o imóvel.

18. Daí que o Tribunal de 1ª instância tenha dado como provado no ponto 12.  que o Autor estava ciente da existência do contrato de arrendamento e, por isso, plenamente consciente do risco que corria e com ele se conformando.

19. O contrato de arrendamento em apreço foi celebrado, pois, antes da constituição e registo da penhora que recaiu sobre o prédio locado, pelo que aquele contrato de arrendamento é válido.

20. Pelo que os pontos 31 e 32 da factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1ª instância e mantidos pela Relação deveriam ter sido dados como não provados.

21. Ao assim não decidir o douto acórdão recorrido violou os artigos 227.º, 236.º, nº 1, 240.º, 241.º, 289.º, 341°, 342º, nº 1, 392°; 393, 394º e 1305.º do Código Civil, 65º da CRP, art. 662º do CPC.

22. O que não se aceita, atendendo até a que hoje, face à competência alargada da Relação em sede de impugnação da decisão de facto, em conformidade com o disposto no art. 662º, nº 1, do CPC, é lícito à 2ª instância com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, incluindo as presunções judiciais, nos termos do art. 607º, nº 4, aplicável por via do art. 663º, nº 2, ambos do mesmo código.

23. O que se pede a este Tribunal Superior é que censure a decisão da Relação que, no que respeita a conclusões ou ilações de factos, infringiu o limite a que está vinculada, designadamente pelo uso de tais presunções ter conduzido à violação daqueles preceitos legais, isto é decidir se, no caso concreto, era ou não permitido o uso de tais presunções.

24. Acresce que está em causa a discussão dos factos que determinam a validade de um contrato de arrendamento referente à casa de morada de família dos ora Recorrentes há mais de 50 anos, pessoas com mais de 80 anos, conforme certidões de nascimento juntas pelo A. aos autos com a Petição Inicial, doc. 10 e 11, (R. marido 81 anos e Ré esposa 82 anos), que por fruto da idade e por fruto da sua condição física padecem de graves problemas de saúde que afectam o seu dia a dia, mais não tendo onde residir, de parcos rendimentos e que no fim das suas vidas veem-se deparados com a possibilidade de um despejo.

25. Pelo que é socialmente determinante apurar o risco de declarar-se nulo o contrato de arrendamento, por simulação, quando as decisões da instância e da Relação se sustentam, unicamente, em prova indiciária e por recurso a presunções.

26. A relevância social da questão decorre, para além do mais, de estar em causa o instituto da casa de morada de família, com dignidade constitucional reconhecida, e logo ao nível dos direitos, liberdades e garantias pessoais (art. 65º da CRP).

27. A necessária concretização positiva para a consideração da existência da relevância social quanto à questão ora analisada terá de deferir-se atendendo: -ao impacto social significativo por acontecer frequentemente; - por repetir-se em casos futuros (expansão da controvérsia); - Assim podendo relacionar-se com um conjunto alargado de pessoas; - E, consequentemente, criar inquietações políticas ou sociais; -Fazendo, assim, duvidar da boa aplicação e credibilidade do Direito, ou das instituições.

28. Haveria, ainda, a considerar, no entender dos recorrentes, o instituto do "venire contra factum proprium" por parte do Autor/Recorrido – artigos 227º, 236º, nº 1, artº 237º, 762º e 334º do Código Civil, o que não foi feito pelo Tribunal Recorrido, assim violando tais preceitos legais.

29. Pelo que é ilegal a decisão tomada e, como tal, deve ser declarada e substituída por outra que absolva os Réus dos pedidos formulados pelo Autor e em que foram condenados.

com o que tudo se fará a habitual JUSTIÇA!»

5. O Banco, autor, apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.


6. Delimitação do objeto do recurso

Sabido que o objeto do recurso, conforme o disposto nos artigos 635.°, n.° 2 e 639.°, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 608.°, n.° 2, do CPC, as questões suscitadas pelos recorrentes são duas:

I – Saber se o tribunal recorrido, no uso de presunções judiciais e prova indiciária,  violou, ou não, o disposto no artigo 662.º do CPC;

II – Saber se a invocação, pelo Banco, da nulidade do contrato de arrendamento por simulação, constitui, ou não, um abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. 

Cumpre apreciar e decidir


II – Fundamentação

A – Os Factos

 Os factos provados com relevância para a decisão da causa são os seguintes:  

1. A Autora dedica-se à atividade bancária.

2. O primeiro Réu é filho dos segundos Réus e irmão de DD.

3. O primeiro Réu, em 22/01/2004, celebrou Escritura Pública de aquisição a DD do Prédio urbano constituído por casa, de cave, rés do chão e andar para habitação, com logradouro, sito no lugar da …, freguesia de …., concelho de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …..78 e descrito na ….ª Conservatória do Registo Predial de … sob o número ….34, pelo valor de € 50.000,00.

4. Tal aquisição imobiliária foi feita com recurso a um crédito que o banco Autor concedeu ao Réu, no valor de € 50.000,00.

5. Foi constituída hipoteca para garantia desse valor que se encontra inscrita na Conservatória do Registo Predial pelo AP. ….. de 2003/09/16.

6. No mesmo dia 22/01/2004 o Autor concedeu ao primeiro Réu um outro empréstimo de € 24.880,00 também garantido por hipoteca constituída sobre o mesmo imóvel e inscrita sob o AP. …..

7. O primeiro Réu dedicava-se à atividade industrial de ….

8.  “O primeiro Réu foi executado em vários processos de execução fiscal que se unificaram no processo n.º …..31, onde foi efectuada e registada provisoriamente, penhora sobre prédio supra identificado, em 2 de Junho de 2005, penhora essa inscrita na Conservatória do Registo Predial em 4 de Janeiro de 2007, cuja conversão foi recusada em 26/02/2007, tendo caducado em 24/10/2007. Em 29/04/2008 foi efectuada nova penhora, registada em 29/04/2008 com carácter provisório, tendo sido convertida em definitiva em 02/09/2008” (Facto modificado pelo Tribunal da Relação)

9. No âmbito desse processo, o Autor foi citado, na qualidade de credor hipotecário, para reclamar os seus créditos, o que fez.

10.Veio a ser proferida a sentença, já transitada em julgado, que reconheceu os dois créditos hipotecários da Autora.

11.Na pendência da execução fiscal supra mencionada em sede de venda executiva, o prédio identificado veio a ser adquirido pela Autora por € 51.870,00.

12. A Autora adquiriu tal imóvel ciente de que os Réus haviam declarado arrendar (o primeiro) e tomar de arrendamento (os segundos) o referido imóvel porque entendia que tal contrato de arredamento caducaria com a venda executiva.

13. Após a aquisição do imóvel, o Autor requereu à Repartição de Finanças respectiva (onde correra e corria a execução fiscal já referida – o Serviço de Finanças de ….), a entrega material do bem.

14. O Serviço de Finanças indeferiu tal pedido, tendo o Autor reclamado dessa decisão para a Direcção Distrital de Finanças que ordenou a descida dos autos para revogação do despacho reclamado.

15.O que foi efectuado em 10.07.2012, prosseguindo os autos com a notificação dos ocupantes do imóvel para entrega do mesmo.

16. Deste acto (de notificação para entrega do imóvel), reclamaram os aqui Segundos Réus em 22.10.2012, tendo a Direcção Distrital de Finanças proferido novo despacho, revogando o anterior e considerando “válido” o contrato de arrendamento acima referido.

17. O Autor apresentou Reclamação ao Tribunal Administrativo e Fiscal de …. (proc. n.º 111/13….), o qual proferiu sentença em 24.05.2013 que declarou caduco o arrendamento “celebrado” depois das hipotecas constituídas a favor do ora Autor.

18. Desta sentença recorreram os agora segundos Réus para o Tribunal Central Administrativo …., o qual, por entender que a questão em apreciação era apenas de direito, se julgou hierarquicamente incompetente e, após requerimento dos aqui segundos Réus, remeteu os autos para o Supremo Tribunal Administrativo.

19. O Supremo Tribunal Administrativo revogou a sentença referida em 17.

20. Por escrito datado de 1 de Abril de 2007 os Réus declararam dar e tomar de arrendamento o prédio referido em 3, figurando o primeiro Réu como senhorio e os segundos Réus como inquilinos.

21. Todos vivem hoje no referido imóvel

22. Os segundos Réus vivem no referido imóvel, continuamente, há mais de 50 anos.

23.Tal prédio urbano foi por eles edificado.

24. Foi nesse prédio que os segundos Réus criaram os seus quatro filhos, de entre eles o primeiro Réu, CC, e a irmã deste, DD.

25.O Réu CC exerceu atividade industrial no prédio supra identificado.

26.O mesmo imóvel já fora objecto de penhora fiscal em 23 de Janeiro de 1986 e em 11 de Junho de 1990.

27.No âmbito das execuções fiscais supra referidas, o prédio em questão foi posto à venda tendo a filha dos segundos Réus, DD, exercido o direito de remição, em 1992.

28.A dita DD casou em 22 de Maio de 1993 tendo passado a residir e a viver com habitualidade na Avenida …, em …..

29.A aquisição da propriedade do prédio já identificado a favor de DD só veio a ser registada em 18 de Fevereiro de 2003.

30.Em 16 de Setembro de 2003, o 1º Réu registou provisoriamente, a propriedade do aludido prédio.

31. O contrato de arrendamento referido em 20 teve como único objectivo o de possibilitar a todos os Réus continuarem a viver no prédio em questão.

32. Nem o 1º Réu o quis dar de arrendamento nem estes quiseram tomá-lo de arrendamento.

33. Tal contrato de arrendamento não foi participado no respectivo Serviço de Finanças.

34.  Pelo menos desde Agosto de 2003, o Réu residiu com a sua namorada em …., onde permaneceu a residir depois de com esta casar, em 04/09/2004, e até dela se divorciar, em 06/01/2006 (Facto modificado pelo Tribunal da Relação).

35. A partir desta última data o Réu passou a residir no …, por período de tempo não concretamente apurado.

36. O primeiro Réu nunca alterou a morada fiscal e onde recebia correspondência destinada à indústria que explorou no prédio referido em 3.

37. Os segundos Réus foram sempre quem no prédio identificado no (nele) habitou permanentemente no prédio referido em 3.

38. A luz, água e telefone estão em nome dos 2º Réus.

39. Em 03/03/2011 foi ordenada a penhora da renda nos autos de execução fiscal referidos em 8.

40. Os 2º Réus, conforme ordenado nesses autos, passaram a depositar as rendas no Serviço de Finanças.

41. Após a aquisição do imóvel pela Autora os segundos Réus passaram a depositar a renda na C.G.D. à ordem do Autor.

Factos não provados:

a) Antes da data referida em 20 o Réu CC habitava no imóvel referido em 3 e ali continuou a habitar depois dessa data.

Todos os demais factos alegados não foram seleccionados por conclusivos, meramente instrumentais ou irrelevantes à decisão do pleito.

B – O Direito

I - Questão prévia da admissibilidade do recurso

1. Em primeiro lugar, terá de se fazer a análise da questão prévia de saber se o recurso é admissível como revista normal ou se deverá ser remetido à formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC.

Apesar de entendermos que a fundamentação aduzida pelas instâncias não é essencialmente diferente, em virtude de as modificações da matéria de facto efetuadas pelo Tribunal da Relação não assumirem relevância para a decisão de direito, admitimos o recurso de revista normal, pois as questões suscitadas na revista não estão abrangidas pela dupla conformidade.

A primeira questão relativa à violação de normas de direito probatório na reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação e ao uso de presunções judiciais não está abrangida pela dupla conformidade, devendo ser conhecida por este Supremo Tribunal (cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-10-2020, proc. n.º 2124/17.6T8VCT.G1.S1).

A questão do abuso do direito só foi conhecida pelo Tribunal da Relação, não constituindo, portanto, dupla conforme porque sobre ela não se pronunciou a sentença de 1.ª instância.  

Assim sendo, admite-se o recurso como revista normal, não sendo necessário remeter o processo à formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, para apreciação dos requisitos da revista excecional. 

II – O uso de presunções judiciais para dar como provados os requisitos da simulação absoluta

2. Nesta matéria, os princípios adotados pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça restringem os poderes cognitivos deste Tribunal, enquanto tribunal de revista, a casos em que o uso de presunções desrespeitou manifestamente as regras da lógica e da razoabilidade. Como se entende no Acórdão de de 24-11-2020 (proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S1), «Há muito que se problematiza a questão da sindicância pelo Supremo Tribunal de Justiça dos juízos de inferência retirados pelas instâncias, apenas se admitindo que este Órgão controle se as presunções foram ou não obtidas com o recurso aos normativos legais aplicáveis, bem como se a sua obtenção se encontra ferida de alguma deficiência, nomeadamente, se o método discursivo utilizado lhe tolda a logicidade», concluindo-se que, «O erro sobre a substância de um tal juízo presuntivo só será sindicável pelo Tribunal de Revista em caso de manifesto contra senso e/ou desrazoabilidade».

Como é comumente aceite, apenas se admite um controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre as presunções judiciais, quando o Tribunal da Relação violou alguma norma legal, se as presunções carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, isto é, se o facto conhecido não está provado.

Em relação à utilização de presunções para a decisão quanto aos requisitos do negócio simulado, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 24-10-2019 (Proc. n.º 56/14.9T8VNF.G1.S1) reafirmou estes princípio, concluindo no seu sumário que  «I – Os factos que o tribunal recorrido julgou provados por presunção judicial correspondem aos requisitos da simulação previstos no artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil: 1) acordo ou conluio (pactum simulationis) entre declarante e declaratário; 2) intuito de enganar terceiros (no caso vertente, a jurisprudência exige o requisito de prejudicar terceiros, por ser a nulidade invocada por um herdeiro legitimário – cf. acórdão do STJ, de 10-04-2003, proc. n.º 03B544); 3) divergência intencional (bilateral) entre a declaração negocial e a vontade real do declarante. II – Presunções judiciais são meios lógicos ou mentais de descoberta de factos ou operações probatórias que se firmam mediante regras de experiência, e permitem ao julgador extrair conclusões de factos conhecidos e provados para firmar factos desconhecidos. III - A determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, que podem utilizar prova por presunções, e não do Supremo Tribunal de Justiça. IV - O Supremo tem apenas competências residuais para censurar a forma como o tribunal recorrido utilizou as presunções judiciais em três casos: ofensa de norma legal, violação evidente de regras elementares de lógica, ou se o tribunal recorrido firmar os factos desconhecidos a partir de outros que não estejam provados no processo».

3. No caso vertente, o Tribunal da Relação modificou os factos 8. e 34, que passaram a ter a seguinte redação:

8. “O primeiro Réu foi executado em vários processos de execução fiscal que se unificaram no processo n.º …..31, onde foi efectuada e registada provisoriamente, penhora sobre prédio supra identificado, em 2 de Junho de 2005, penhora essa inscrita na Conservatória do Registo Predial em 4 de Janeiro de 2007, cuja conversão foi recusada em 26/02/2007, tendo caducado em 24/10/2007. Em 29/04/2008 foi efectuada nova penhora, registada em 29/04/2008 com carácter provisório, tendo sido convertida em definitiva em 02/09/2008”. 

34.Pelo menos desde Agosto de 2003, o Réu residiu com a sua namorada em …., onde permaneceu a residir depois de com esta casar, em 04/09/2004, e até dela se divorciar, em 06/01/2006”.

Estas alterações da matéria de facto fixada, contudo, foram consideradas irrelevantes, pelo Tribunal da Relação, para o tema principal do processo, que se prende com o preenchimento dos requisitos da simulação absoluta do contrato de arrendamento, cuja verificação as instâncias afirmam nos pontos 31 e 32 dos factos provados, que não foram eliminados da matéria de facto, como pretendiam os recorrentes.

Os factos impugnados são do seguinte teor:

«31.O contrato de arrendamento referido em 20 teve como único objectivo o de possibilitar a todos os Réus continuarem a viver no prédio em questão.

32. Nem o 1º Réu o quis dar de arrendamento nem estes quiseram tomá-lo de arrendamento».

As instâncias basearam-se, para a prova dos factos 31 e 32, nos depoimentos de parte dos réus, em documentos juntos aos autos e na prova testemunhal, utilizando presunções, para dar como provado o acordo simulatório e a intenção de prejudicar terceiros.

O Tribunal da Relação indeferiu a impugnação dos factos 31 e 32 com o seguinte fundamento:

«Ora, neste âmbito, importa, desde logo, chamar à atenção das partes que a prova da necessária “intenção de enganar terceiros” - que, como vimos, a simulação pressupõe (conforme art. 240º, nº 1 do CC) - correspondendo, obviamente, a um facto do foro interno, não é, em regra, susceptível de ser feita de forma directa.

Por outras palavras, os “eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) constituem factos cujo conhecimento pode ser atingido directamente pelos sentidos ou através das regras de experiência.

Assim na tramitação deste tipo de processos é necessário alegar intenções com única forma de alcançar uma solução jurídica através de conceitos que podem não ser de puro facto (…)”

Ora, a “prova directa dessas intenções é rara (v.g. confissão) pelo que quase sempre terá que ser feita por meio de indícios/presunções.  

(…)

Na verdade, tendo em conta a sucessão no tempo dos diversos actos jurídicos praticados em função do prédio dos RR., surge como uma evidência que a causa da alegada (simulada) celebração do contrato de arrendamento só pode ser encontrada nas execuções fiscais (e nos actos de penhora nelas concretizados), tendo os RR. se conluiado no sentido de, por essa via, tentar prejudicar os interesses da Autora enquanto compradora do prédio em sede da venda efectivada na acção executiva (e dos demais credores) (destaque nosso).

Nesse sentido aponta decisivamente a coincidência das datas entre as penhoras efectivadas (posteriormente caducadas ou não) e a data da alegada celebração do contrato de arrendamento, mas também a ausência de qualquer outra explicação credível para a celebração do discutido contrato de arrendamento (quando os 2ºs RR. (pais) sempre foram reconhecidos como proprietários do prédio que inclusivamente edificaram).

De facto, ficou provado que o referido imóvel sempre foi habitado pelos 2ºs Réus tendo o mesmo sido sucessivamente adquirido por uma filha sua, no âmbito de execução fiscal em que eram executados (através do exercício do direito de remição) e, depois, pelo o outro filho (o aqui 1º Réu) que o adquiriu àquela sua irmã.

Sendo os proprietários do prédio, não lograram os Réus provar qualquer circunstancialismo fáctico que permitisse justificar a celebração do contrato de arrendamento com o seu filho (que seja diferente daquele que foi apontado pelo tribunal recorrido).

Antes, o que decorre da prova produzida (e da conjugação das datas referidas – datas das penhoras, da venda e do negócio celebrado), é que os RR. só concretizaram tal negócio jurídico no sentido de salvaguardar o prédio na sua posse, nunca tendo querido tomar tal prédio de arrendamento, ou nunca tendo o 1º Réu querido dar de arrendamento a seus pais tal prédio (pois que o mesmo, como todos os familiares reconhecem, lhes pertence) (destaque nosso).

Não há dúvidas que a causa do negócio celebrado foi apenas a de (tentar) evitar os efeitos das penhoras e da subsequente venda em execução fiscal e com o objectivo de permitir que os 2ºs RR continuassem a residir no seu prédio (atribuindo-lhe um direito de arrendamento susceptível de ser oposto ao comprador na venda executiva) - como, aliás, acabou por acontecer (destaque nosso).

Mas não é só por aí que se pode concluir pela existência da simulação absoluta.

É que outro “dos indícios mais operativos em sede de simulação é o indicio affectio, gerado pelas relações familiares, de amizade, de dependência, de negócios, profissionais ou de dependência, anteriormente firmadas entre o simulador e o seu co-autor e que vinculam este àquele por um motivo de tal índole. O simulador escolhe como parceiro negocial uma pessoa da sua confiança porque pretende preservar o negócio dissimulado (ou o objectivo final que preside à sua actuação) e subtraí-lo a qualquer risco que ponha em causa a sua subsistência” (destaque nosso).

Ora, não será difícil considerar também verificado este indício, pois que os RR. são todos familiares entre si (o 1º Réu é filho dos 2ºs RR. e no primeiro negócio jurídico interveio a irmã DD).

Além disso, também não podemos deixar de apontar como indício da existência de simulação o facto de o pagamento das alegadas rendas só ter ficado demonstrado quanto ao período em que as mesmas tiveram que ser depositadas à ordem das execuções fiscais (quanto às outras rendas, segundo o depoimento do 2º Réu, teriam sido pagos em numerário…).

Prosseguindo, dir-se-á finalmente que “um dos indícios mais emblemáticos da simulação é o indício retentio possessionis (retenção da posse) que se traduz no facto de o simulador adquirente da coisa transmitida não exercitar sobre a coisa qualquer conduta possessória, sucumbindo por parte deste qualquer actividade reconduzível ao jus utendi, fruendi, disponendi e vindicandi. Assim, apesar da transmissão formal de bens, o vendedor continua na posse do imóvel ou aí a residir, ou seja, o contrato não é executado”.

Foi também o que sucedeu no caso concreto (embora não se trate de uma alienação), pois que os 2ºs RR. sempre se mantiveram na posse do prédio (agindo como seus proprietários - veja-se que o próprio 1º Réu assim o declarou), pelo que, também por esta via, se indicia de uma forma clara a existência de simulação».

Analisada a fundamentação do acórdão recorrido não se encontra qualquer desrazoabilidade ou falta de lógica no recurso a presunções, que possa justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na matéria de facto fixada, nem tão-pouco qualquer violação de regras de direito probatório.

Com efeito, o Tribunal da Relação concretizou o direito dos recorrentes ao duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise, obedecendo aos parâmetros legais, em sede de impugnação da matéria de facto, formando a sua convicção de uma forma autónoma, através da reapreciação de todos os elementos probatórios acessíveis, e procedendo a uma análise crítica e lógica da prova, nada havendo a censurar nesta sede.

O tribunal recorrido retirou ilações de um conjunto de factos conhecidos – os processos de execução fiscal contra o réu acompanhados de sucessivas penhoras do imóvel e a relação familiar entre o 1.º réu e os 2.ºs réus – para deduzir a divergência entre a vontade e a declaração e a intenção de prejudicar o Banco. A circunstância de a primeira penhora, de 2005, ser provisória à data do arrendamento, 1 de abril de 2007, e de ter sido recusada a sua conversão em definitiva em fevereiro de 2007, tendo caducado em momento posterior à data do arrendamento, em outubro de 2007, e de só em 2008 ter sido efetuada e registada definitivamente outra penhora (facto provado n.º 8), não torna ilógica a presunção de facto deduzida pelo tribunal recorrido, pois estando pendente processo executivo era expectável que o imóvel viesse a ser vendido. Este contexto fáctico –  pendência de um processo executivo à data da celebração do contrato de arrendamento, com registo provisório de penhora sobre o imóvel – interpretado à luz da globalidade dos factos que ficaram provados, permite não tornar desrazoável a dedução do tribunal recorrido, não sendo descabido recorrer a presunções judiciais, como fizeram as instâncias, para dar como provado que o contrato de arrendamento visou atribuir aos segundos réus, uma posição jurídica oponível ao adquirente em venda executiva.

É certo que pode suceder que exista um acordo simulatório, sem a intenção de enganar o terceiro que, em concreto, pede a nulidade do negócio, como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 14-02-2017 (724/09.7TBAMT.P2.S1), onde se afirmou que «Assim, embora a factualidade provada indique que houve realmente um acordo simulatório entre os 1ºs e 2ºs Réus no respeitante ao prédio rústico integrante do prédio misto (v. a propósito os pontos 12º a 17º dos factos provados), por isso que não quiseram vender e comprar tal prédio, a verdade é que não se mostra que tal comportamento teve subjacente o intuito de enganar a Ré BANCO GG, S.A, fosse para a prejudicar fosse para a iludir». No caso do acórdão citado, as instâncias deram como não provada a intenção de prejudicar o Banco, como se afirma na fundamentação do acórdão acabado de citar: «Mas tal simulação nunca poderá ter-se por verificada, visto que as instâncias entenderam que não ficou provado (e essa prova pertencia aos Autores, conforme o estabelecido no art. 342º, nº 1 do CCivil) o intuito de enganar terceiros, neste caso a Ré BANCO GG».

Todavia, no presente caso, as instâncias deram como provada essa intenção de prejudicar, o que restringe, como vimos, a intervenção deste Supremo aos casos em que o recurso de presunções padece de manifesta falta de lógica.

Tem-se entendido, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que a determinação da intenção dos contraentes, designadamente, o intuito de enganar terceiros, constitui matéria de facto (Acs. STJ, de 18-12-2003, proc. n.º 03B3794), de 08-10-2009 proc. n.º 4132/06.3TBVCT.S1 e de 16-10-2012, proc. n.º 649/04.2TBPDL.L1.S1). Sendo o Banco um terceiro, a ação intentada contra os réus, visando a declaração da nulidade do contrato de arrendamento, com fundamento em simulação absoluta, não está submetida a prova vinculada para a demonstração do acordo simulatório e do elemento intencional, não podendo, pois, este Supremo Tribunal dar como não provada a alegada intenção de prejudicar o Banco quando as instâncias a deduziram dos factos provados de acordo com regras de experiência e presunções de facto.

Uma vez que as intenções se relacionam com o mundo psíquico e interno dos sujeitos, não é possível determiná-las através de prova direta, a não ser que os sujeitos confessem, ou assumam as suas intenções por escrito ou verbalmente, diante de terceiros que o atestem em tribunal prestando testemunho credível. Os tribunais não têm outra alternativa, nesta sede, senão recorrer a prova indiciária. Se não fosse admissível a utilização de presunções, o artigo 240.º do Código Civil seria, praticamente, letra morta.

  Na apreciação da prova é aceitável que o tribunal recorrido, desde que mantenha coerência lógica, possa fazer operar a presunção sobre factos provados, com base em regras de experiência, para, a partir desses factos, fixar outros em relação aos quais não existe prova direta. 

O Banco, não tendo qualquer intervenção no contrato de arrendamento celebrado pelos réus, não pode deixar de ser considerado terceiro em relação ao negócio simulado, com legitimidade para invocar a sua nulidade, na medida em que é titular de uma relação, cuja consistência jurídica ou prática é afetada pelo negócio simulado. Com a aquisição na venda executiva, o Banco deixa de ter a qualidade de credor hipotecário, passando a assumir a qualidade de proprietário. Mas, nada impede que o adquirente, na venda executiva de imóvel arrendado, possa invocar a nulidade do contrato de arrendamento simulado, desde que prove os requisitos da simulação fixados no artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil.    

 O tribunal recorrido, usando o seu poder de livre apreciação da prova, aplicou regras de experiência, nas quais não se deteta qualquer desrazoabilidade ou falta de lógica. Qualquer erro na apreciação da prova que tenha sido cometido não é sindicável por este Supremo Tribunal, que não se pode substituir à apreciação que o tribunal recorrido fez de prova não vinculada.

Em consequência, nega-se a revista quanto à questão do uso de presunções judiciais pelo tribunal recorrido.

II – Abuso do direito

4. Relativamente ao alegado abuso de direito do Banco, quando invoca a nulidade do contrato de arrendamento, interessa ter em conta, como ponto de partida, a premissa segundo a qual o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes.

                       

Vejamos:

O Banco tinha o seu crédito sobre o 1.º Réu garantido por uma hipoteca, direito real de garantia que goza de sequela e que acompanha a coisa ao longo de todas as vicissitudes jurídicas. No âmbito do processo de execução fiscal pendente contra o 1.º Réu, o banco foi citado para, na qualidade de credor hipotecário, reclamar os seus créditos, o que fez (facto provado n.º 9), tendo vindo esses créditos a ser reconhecidos por sentença transitada em julgado (facto provado n.º 10). O Banco adquiriu o prédio na pendência da execução fiscal, em sede de venda executiva (facto provado n.º 11), ciente de que os Réus haviam declarado arrendar (o primeiro) e tomar de arrendamento (os segundos) o referido imóvel porque entendia que tal contrato de arredamento caducaria com a venda executiva (facto n.º 12). Tentou obter a entrega do prédio, invocando a caducidade do arrendamento por força da venda executiva, ao abrigo do artigo 824.º, n.º2, do Código Civil, junto do Serviço e Finanças (factos provados n.ºs 13 a 16) o que lhe veio a ser negado por decisão do Supremo Tribunal Administrativo (facto provado n.º19).

Ora, a circunstância de o Banco ter adquirido o imóvel em venda executiva, com conhecimento do ónus do arrendamento, e de só mais tarde, após ter perdido a ação que correu os seus termos nos tribunais administrativos e fiscais, em que invocou a caducidade do arrendamento, ter peticionado nos tribunais comuns a nulidade por simulação absoluta do contrato de arrendamento, não consiste num comportamento contraditório.

Assim, no contexto factual do caso, não se pode afirmar ser ilegítimo ou representar o exercício abusivo de um direito, optar primeiro por um pedido de caducidade do arrendamento e num momento ulterior intentar ação de nulidade por simulação, uma vez que se trata de pedidos diferentes. Para além disto, a nulidade por simulação absoluta é invocável a todo o tempo (artigos 240.º, n.º 2 e 286.º, ambos do Código Civil), e a sua procedência depende, contudo, de requisitos cuja demonstração em tribunal nem sempre são fáceis, o que explica que seja uma via secundária de impugnação.

Em conclusão, improcede o pedido de abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.


 Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I - A determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, que podem utilizar prova por presunções.

 II - O Supremo tem apenas competências residuais para censurar a forma como o tribunal recorrido utilizou as presunções judiciais em três casos: ofensa de norma legal, violação evidente de regras elementares de lógica, ou se o tribunal recorrido firmar os factos desconhecidos a partir de outros que não estejam provados no processo.

III - O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de março de 2021

Maria Clara Sottomayor – Relatora

Alexandre Reis – 1.º Adjunto

Pedro Lima Gonçalves – 2.º Adjunto


 Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).