Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
140/09.0TYVNG.C.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
ERRO
PODERES DO JUIZ
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS / IMPUGNAÇÃO DA LISTA DE CREDORES RECONHECIDOS.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., p. 528 e 529.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 130.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-07-2011, RELATOR FONSECA RAMOS;
- DE 27-06-2019, RELATOR HENRIQUE ARAÚJO.
Sumário :

I. No apenso de verificação e graduação de créditos, o juiz não deve adotar um papel puramente formalista face ao modo como o administrador da insolvência e os credores reclamantes observam os respetivos deveres e ónus processuais.

II. O conceito de “erro manifesto”, constante do art.130º, n.3 do CIRE, deve ser interpretado em sentido amplo, permitindo ao juiz reconhecer um crédito laboral que o administrador da insolvência considerou como não reconhecido, por errada qualificação jurídica.

III. O juiz não deve aderir acriticamente às razões apresentadas pelo administrador da insolvência para não inscrever na lista de créditos reconhecidos o crédito pela compensação emergente da caducidade do contrato de trabalho, quando existe nos autos informação que lhe permite qualificar corretamente esse crédito.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO


1. Por apenso aos autos de insolvência n. 140/09.OTYVNG-C.P1, em que é insolvente CC, empresário em nome individual, o Administrador da Insolvência apresentou a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos.
A agora recorrida BB reclamou oportunamente um crédito laboral – emergente de contrato de trabalho com o insolvente, por meio do qual prestou os seus serviços como psicóloga – tendo o administrador da insolvência incluído, o referido crédito na lista de créditos não reconhecidos, nos seguintes termos e com a seguinte justificação: «capital 17.088,61€; encargos, juros de mora e indemnizações 84.824,52€. Crédito com condição suspensiva de verificação nos termos do artigo 50.º do CIRE, que impõe que o crédito só seja verificado e graduado após a prolação da decisão proferida na ação que corre termos no Tribunal de Trabalho da ... com o n. 473/08.3TTMAI. A ação foi contestada pelo insolvente e ainda não foi proferida decisão».

2. Foi proferida sentença, em 05.03.2010, pelo Tribunal de trabalho da ..., na qual o insolvente foi condenado a pagar à reclamante BB os créditos salariais que se encontravam vencidos à data da caducidade do contrato, no montante de €18.352,13, acrescidos de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4%, até integral liquidação e até efetivo pagamento; o insolvente foi absolvido do pedido de pagamento de uma indemnização nos termos do artigo 443.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Trabalho (na versão vigente a essa data) e do pedido de pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais (como consta da sentença daquele tribunal, que se encontra a fls.723 e seguintes dos autos).
3. A Credora reclamante, BB, apresentou aditamento à primitiva reclamação de créditos na qual juntou sentença do Tribunal do Trabalho da M... aia e requereu que, considerando a caducidade da condição suspensiva a que os créditos reclamados se encontravam sujeitos, fosse a primitiva reclamação de créditos da requerente verificada em função do reconhecimento pelo tribunal dos créditos salariais em mora e os vencidos com a caducidade do contrato de trabalho da Autora, por incapacidade absoluta e definitiva do empregador/insolvente, no total de €18.352,13 acrescida da quantia de juros de mora à taxa legal de 4%, contados até à data da declaração da insolvência o que perfaz €18.745,41.
Aos créditos salariais assim contados, a reclamante acrescentou os créditos compensatórios como consequência da caducidade do contrato, nos termos do artigo 309.º, n.5 e 401.º, n.3 do Código do Trabalho (versão vigente a essa data), que liquidou em €41.426,93;
A requerente reclamou através deste aditamento o crédito total de €60.172,34 e invocou o gozo de privilégio mobiliário geral e privilegio imobiliário especial, pois prestou trabalho nas instalações do insolvente, sito ao ..., …, ..., ....

4. O administrador de insolvência não retificou a lista de créditos em conformidade com o aditamento apresentado nem se pronunciou sobre o mesmo.

5. Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que não contemplou os créditos da trabalhadora, BB.

6. Posteriormente a esta sentença BB veio requerer que o credito de €60.172,34 fosse incluído na sentença e na Relação de Créditos respetiva com privilegio mobiliário geral e imobiliário especial, com os fundamentos supra expostos.

7. O Administrador da Insolvência veio a concordar que o crédito de €18.352,13 fosse reconhecido, mas opôs-se a que fosse reconhecido o crédito compensatório por caducidade do contrato, dada a decisão do Tribunal do Trabalho não o ter reconhecido (enquanto crédito fundado na resolução do contrato de trabalho alegada pela trabalhadora agora recorrida).

8. Foi proferido despacho julgando parcialmente procedente o requerimento nos seguintes termos (…)
«O crédito reclamado pela ora requerente, BB, como resulta das listas apresentadas pelo Sr. Administrador da Insolvência a 1 de Outubro de 2009, foi incluído na lista de créditos não reconhecidos (cfr. fls. 9 e 12 e seguintes).
O Sr. Administrador da Insolvência cumpriu o disposto no art. 129º, n.- 4, do CIRE, fazendo constar o crédito, para além do mais, como não reconhecido (cfr. fls. 57).
A ora requerente não apresentou impugnação à lista de credores reconhecidos (ao contrário do que sucedeu com outros trabalhadores notificados nos referidos termos, designadamente os identificados pela ora requerente).
A lista apresentada a 24 de fevereiro de 2010 (cfr. fls. 461 e seguintes) apenas contemplou a posição assumida pelo Sr. Administrador da Insolvência no que diz respeito às impugnações oportunamente apresentadas, sendo o "Aditamento" referido posterior, de que não foi dado conhecimento aos autos na altura [a sentença de verificação e graduação de créditos proferida atendeu, no seu ponto 1, à lista apresentada a 1 de Outubro de 2009].
O Sr. Administrador da Insolvência aceita reconhecer um crédito no montante de 18.352,13 Euros, relativo a créditos salariais.
A ora requerente reclamou, no âmbito dos presentes autos, para além do mais, um crédito relativo à indemnização prevista no então art. 443.º do CT, sendo certo que o Tribunal do Trabalho da ..., na sentença que proferiu no processo 473/08.3TTMAI, transitada em julgado, considerou não ser a mesma devida pelas razões que aqui damos por reproduzidas, motivo pelo qual se nos afigura que não poder ser alterada a causa de pedir e o pedido, pretendendo-se que seja atendido o invocado direito à compensação pela caducidade do contrato de trabalho.
Assim, apesar de a ora requerente não ter impugnado a lista de credores reconhecidos, considerando a sentença acima referida e a posição assumida pelo Sr. Administrador da Insolvência, afigura-se-nos que deve ser reconhecido o crédito no montante de 18.352.13 euros, mas já não o remanescente, nos termos pretendidos.
Pelo exposto, defiro parcialmente requerido e, em consequência, considero reconhecido à ora requerente um crédito no montante de 18.352,13 Euros, o qual deverá ser graduado nos termos dos créditos dos trabalhadores, em conformidade com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida a 1 de Julho de 2016.»

9. O AAS.A., apelou desta decisão pedindo a sua inteira revogação.


 10. A segunda instância decidiu nos seguintes termos: «Na improcedência das alegações de recurso do AA e procedência das alegações de recurso da credora BB revoga-se parcialmente a decisão recorrida devendo ser incluída na sentença o credito da reclamante à indemnização por caducidade após previa pronuncia do a AI sobre o mesmo designadamente quanto à sua liquidação.»

11. Inconformado com a decisão da segunda instância, o credor “AA, S.A.” interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso vem interposto do Douto Acórdão que manteve na íntegra a decisão singular proferida que julgou procedente as alegações de recurso da credora BB e, em consequência, revogou parcialmente a decisão recorrida e incluiu na sentença o crédito da reclamante referente à indemnização por caducidade após a prévia pronúncia do AI quanto à respetiva liquidação.

2. A Credora BB reclamou os seus créditos no montante global de € 84.824,52.

3. A 1 de outubro de 2009, foi apresentada a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, ao abrigo do disposto no n.1 do artigo 129.° do CIRE, tendo sido incluído na lista de créditos não reconhecidos o crédito reclamado por BB.

4. Nos termos do disposto no n.4 do artigo 129.° do CIRE, BB foi notificada, por carta registada, pelo Exmo. Senhor Administrador de insolvência do reconhecimento do crédito de modo diferente ao reclamado, sendo crédito sob condição suspensiva à decisão proferida no processo de trabalho n. 473/08.3TTMAI, não tendo a Credora impugnado a lista.

5. A 24 de fevereiro de 2010, foi apresentada uma nova lista de credores, nos termos do artigo 129.° do CIRE, de forma a contemplar a posição assumida pelo Senhor administrador de Insolvência relativamente às impugnações apresentadas por outras trabalhadores, na mesma situação da Credora BB, tendo o crédito desta sido novamente incluído na lista dos créditos não reconhecidos.

6. A 31 de maio de 2010, a Credora BB apresentou ao Sr. AI um aditamento à sua reclamação de créditos, tendo junto a sentença proferida no processo laboral n. 473/08.3TTMAI, onde lhe foi reconhecida a quantia de € 18.745,41, tendo pedido uma retificação do crédito para € 60.172,34, sendo € 18.745,41 de créditos laborais e os restantes € 41.426,93 a título de indemnização.

7. O Senhor Administrador de Insolvência não retificou a lista de créditos reconhecidos em conformidade com o aditamento apresentado pela Credora BB.

8. No dia 3 de outubro de 2016, BB requereu que lhe fosse reconhecido o montante de €60.172,34 e, consequentemente, fosse o mesmo incluído na "Relação de Créditos" respetiva, com privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial.

9. O Exmo. Senhor Administrador de Insolvência não se opôs ao reconhecimento do crédito no montante de €18.352,13, enquanto o demais peticionado, a título indemnizatório, deveria ser indeferido.

10. O Tribunal de 1ª instância reconheceu o crédito à Credora BB no montante de €18.352,13, acrescido de juros, mas não reconheceu o crédito relativo à indemnização, tendo a Credora BB apresentado recurso de apelação.

11. O Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão que manteve a decisão singular que julgou procedentes as alegações de recurso da Credora BB e, consequência, revogou parcialmente a decisão recorrida no sentido de ser incluída na sentença o crédito referente à indemnização por caducidade.

 12. Na lista definitiva, o crédito reclamado por BB ficou a constar da Lista dos créditos não reconhecidos com o seguinte fundamento: "Crédito com condição suspensiva de verificação nos termos do art. 50º do CIRE, que impõe que o crédito só seja verificado e graduado após a prolação da decisão proferida na Acção que corre termos no Tribunal de Trabalho da ... com o n.473/08.3TBMAI. A Acção foi contestada pelo Insolvente e ainda não foi proferida decisão. Ainda não é conhecida nenhuma decisão quanto a este processo”.

13. Um crédito sujeito a condições deve ser reconhecido na lista de credores reconhecidos e não na lista de credores não reconhecidos, ficando apenas sujeito a uma condição, ou seja, à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto.

14. A Credora BB, tendo sido notificada nos termos do n. 4 do artigo 129º do CIRE, tinha necessariamente de impugnar a lista de credores reconhecidos por indevida exclusão do respetivo crédito reclamado, o que não fez, pelo que se esgotou qualquer oportunidade de ver verificados os créditos por si reclamados — cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de maio de 2010.

15. A lista de credores reconhecidos não padece de erro manifesto, já que foi elaborada atendendo aos documentos e à reclamação de créditos apresentada e o juiz de 1ª instância não detetou qualquer erro de natureza substancial.

16. O pedido de reconhecimento do crédito relativo à indemnização é manifestamente extemporâneo, porquanto deveria o mesmo ter sido apresentado com a impugnação à lista de credores apresentada, em especial, porque a Credora foi notificada pelo AI nos termos do artigo 129º, n. 4 do CIRE

17. Por outro lado, caso seja tempestivo, o reconhecimento deve ser feito nos moldes constantes da lista de credores não reconhecidos, tal como a Credora aceitou, por não ter impugnado a mesma, ou seja, em função da decisão proferida no processo n. 473/08.3TBMAI.

18. A Credora BB não impugnou a lista de credores, aceitando a condição do reconhecimento do respetivo crédito à decisão proferida no âmbito do processo n.473/08.3TBMAI, onde foi reconhecido um crédito no valor de € 18.352,13, relativo a créditos salariais» acrescido dos juros.

19. No que respeita à indemnização peticionada pela Credora BB, no referido processo n. 473/08.3TBMAI, foi considerado que a mesma não era devida, razão pela qual o Tribunal de lª  instância entendeu que não pode ser alterada a causa de pedir e o pedido, pretendendo-se que seja atendido o direito à compensação pela caducidade do contrato de trabalho.

20. A ser reconhecido um crédito à Requerente BB apenas poderá sê-lo nos moldes constantes da sentença proferida no âmbito do processo n.473/08.3TBMAI, ou seja, pelo reconhecimento da quantia de € 18.352,13, acrescido dos juros.

21. O argumento sufragado pelo Douto Tribunal a quo de que estamos perante um crédito constitucionalmente consagrado não pode permitir que sejam reconhecidos créditos quando o Credor aceitou os termos de reconhecimento constantes da lista de credores reconhecida.

22. Se assim fosso, em qualquer fase do processo, designadamente dos pagamentos aos credores, era admissível o reconhecimento de créditos laborais que não foram reconhecidos na lista definitiva, subvertendo-se o ónus do credor impugnar a lista definitiva.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão, com todas as consequências, conforme é de justiça»

12. A recorrida contra-alegou defendendo, em síntese, a inadmissibilidade do recurso, nomeadamente, por o recorrente não ter demonstrado a verificação dos requisitos do art.14º do CIRE.

II. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso:

Ao presente recurso não tem aplicação o disposto no art.14º do CIRE (contrariamente ao que a recorrida defende nas suas contra-alegações), dado que o apenso de verificação e graduação de créditos não se encontra aí previsto.

Este tem sido o entendimento constante deste Supremo Tribunal. Veja-se, por exemplo, o que se afirma no Acórdão do STJ, de 27.06.2019 (relator Henrique Araújo):

As decisões proferidas em incidentes processados por apenso ao processo de insolvência, como acontece no presente incidente de verificação e graduação de créditos (art. 132.º do CIRE), são susceptíveis de recurso nos termos gerais, aplicando-se, para tanto, as regras do processo civil por efeito da remissão do artigo 17.º do CIRE [1].

São, assim, aplicáveis as regras gerais sobre o recurso de revista previstas no art.671º do CPC (ex vi do art.17º do CIRE).

Nos termos do n.3 do art.671º, que consagra a denominada regra da “dupla conforme”, não é admissível recurso de revista quando o acórdão recorrido confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na primeira instância.

No caso em apreço, tendo o acórdão recorrido confirmado parcialmente a decisão da primeira instância (no que respeita ao montante correspondente aos salários que a recorrida não recebeu), importa considerar se a referida regra da “dupla conforme” obsta ao conhecimento do recurso nessa parte, ou seja, se existe “dupla conforme parcial”.

 Na realidade, o crédito reclamado pela agora recorrida é integrado por duas parcelas, cuja origem é distinta. Uma respeita aos salários devidos na vigência do contrato de trabalho; a outra emerge (por força da lei) da extinção do contrato de trabalho.

Quanto à primeira, verifica-se, efetivamente, dupla conformidade decisória das duas instâncias, pelo que a função de certeza e segurança que o recurso permite alcançar se encontra, assim, preenchida. Quanto a este montante, o recurso não é admissível, porque a tal se opõe o disposto no art.671º, n. 3 do CPC.

Quanto à segunda parcela, tendo as instâncias decidido de modos diversos, encontra-se aberto o caminho de acesso ao terceiro grau de jurisdição, pelo que o objeto do recurso se limita ao conhecimento dessa matéria.    

2. O objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso integrado pelas conclusões das alegações do recorrente, e tendo presente que o recurso não é admissível na parte em que existe coincidência das decisões das duas instâncias (ou seja, quanto ao valor das remunerações não pagas – €18.352,13 – e juros), está apenas em causa a questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao considerar o alegado crédito emergente da extinção do contrato de trabalho como um crédito a ser reconhecido e graduado.

3. Fundamentação de facto: a matéria de facto relevante é a que consta do relatório supra.

4. O direito aplicável:

4.1. Na decisão recorrida, justificou-se a opção de revogação parcial da decisão da primeira instância nos termos que, no essencial, se transcrevem:
«(…) o administrador de insolvência tem a obrigação de qualificar os créditos reclamados nos termos do artigo 128º, n.1, al. a) a c) do CIRE, e ainda reconhecê-los ou não.
Na elaboração da lista de créditos deve ter em conta não só a relação dos credores que deduziram reclamação, mas também "daqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento" (…).
Assim estando no poder do AI reconhecer créditos que não tenham sido reclamados, como também reconhecer garantias pessoais invocadas e reais e privilégios, não expressamente invocados pelos seus beneficiários podemos extrair dos autos que o AI não cuidou de rectificar a lista de créditos de forma a incluir os créditos emergentes de contrato de trabalho celebrado entre o insolvente e a BB Jesus e que decorrem justamente da insolvência deste. Todos os créditos que lhe assistem incluindo a indemnização por compensação.
Na realidade o AI ao organizar a lista de créditos não tem limitações no recurso às suas fontes do seu conhecimento, podendo socorrer-se, de todas as informações de que disponha, sendo, todavia, de salientar a contabilidade do devedor. O AI deve proceder a uma indagação oficiosa com vista a alcançar tanto quanto possível a verdade material. Na verdade, no processo insolvencial está em causa o interesse dos credores em geral e o interesse de ordem pública que leva a que constitui seu princípio enformador o inquisitório de que é reflexo o artigo 129º do CIRE.
(…) tendo sido reclamado atempadamente os créditos pela BB o facto de figurarem como não reconhecidos traduz uma imprecisão que pode a todo o tempo ser corrigido dado o princípio do inquisitório referido e a busca da verdade material. (…)
Não podemos esquecer a dignidade constitucional que é conferida aos créditos dos trabalhadores consagrado no n.º 3 do artigo 59º 3 da Constituição estabelece que os créditos salariais gozam de garantias especiais. (…)
A credora reclamou atempadamente o seu crédito, juntou aditamento à sua reclamação, quando foi proferida a sentença que condicionou o seu crédito, e por isso, temos de considerar as declarações do insolvente como reconhecimento do crédito sujeito a condição.
 O AI utilizou uma linguagem imprópria, e na sequência de tudo quanto exposto devem improceder as alegações de recurso da Apelante AA.
Face aos princípios e disposições citadas entendemos que devem proceder as alegações da reclamante. Na realidade na acção do Tribunal da ... a credora invocou a resolução do contrato de trabalho e por conseguinte foi a indemnização pedida julgada improcedente.
Poderá a apelante "converter" a indemnização para indemnização por caducidade do contrato de trabalho?
A caducidade é a cessação do contrato em virtude da ocorrência de um facto a que a lei associa a extinção da relação contratual. A extinção verifica-se automaticamente, por força da lei, independentemente da vontade das partes.
De acordo com o artigo 346°, do C Trabalho:
“3- O encerramento total e definitivo de empresa determina a caducidade do contrato de trabalho, devendo seguisse o procedimento previsto nos artigos 360º e seguintes, com as necessárias adaptações.
5 - Verificando-se a caducidade do contrato em caso previsto num dos números anteriores, o trabalhador tem direito a compensação calculada nos termos do artigo 366°, pela qual responde o património da empresa. (…)”
Se o trabalhador qualificou erradamente o seu crédito no processo declarativo intentado contra o empregador (e que deveria ter sido declarado extinto por inutilidade superveniente da lide tal como aconteceu nas acções que correram termos no Tribunal de Trabalho de ...) e não podendo a causa de pedir ser alterada e, portanto por constrangimentos processuais, levou à absolvição do pedido de indemnização por resolução, nada impede o AI no âmbito dos seus amplos poderes conferidos pelo artigo 129º do ClRE – além do mais porque tempestivamente reclamados – de os qualificar na forma correcta, isto é como indemnização por compensação, e integra-los na lista de créditos sob pena de omitir um credito que é consagrado constitucionalmente.
Porque o Al não tomou posição sobre o mesmo desconhecendo-se se a liquidação se encontra correcta, deve revogar-se o despacho recorrido nesta parte.
Mais deve o AI pronunciasse sobre a indemnização e a liquidação da mesma, de forma a ser verificado e graduado este crédito laboral.
Na improcedência das alegações de recurso do AA e procedência das alegações de recurso da credora BB  revoga-se parcialmente a decisão recorrida devendo ser incluída na sentença o credito da reclamante à indemnização por caducidade após previa pronuncia do a AI sobre o mesmo designadamente quanto à sua liquidação.»

4.2. A realização da justiça de cada caso concreto não pode satisfazer-se com o cumprimento da fria geometria das normas processuais, quando o juiz pode ir mais longe.

No apenso de verificação e graduação de créditos, o juiz não deve adotar um papel puramente formalista face ao modo como o administrador da insolvência e os credores reclamantes observam os respetivos deveres e ónus processuais.

Apesar de o art.11º do CIRE, ao consagrar o princípio do inquisitório, não se referir expressamente à verificação e graduação de créditos, tal não significa que o juiz deva ter, nesse campo, um papel passivo. Sempre os princípios gerais que regem o processo civil, convocáveis pelo art.17º do CIRE, terão aplicação neste domínio.

 Por outro lado, em matéria de reconhecimento de créditos laborais, este Supremo Tribunal já destacou a primazia da verdade material face a subtilizas processuais.

Veja-se, neste sentido, o excerto do sumário do acórdão do STJ, de 06.07.2011 (relator Fonseca Ramos):

 «(…) Entendendo o Juiz do processo que os elementos constantes da reclamação de créditos laborais não evidenciava, claramente, se, ao tempo da declaração de insolvência, os trabalhadores reclamantes trabalhavam em imóveis do insolvente, nada impedia que solicitasse tal informação ao administrador da insolvência: não se tratou de considerar factos não alegados, mas antes de obter informações para que a sentença fosse consonante com a realidade material em consideração do princípio da primazia da materialidade subjacente.

Ao tribunal compete assegurar a igualdade das partes para que as decisões que profere não assentem em formalidades ou subtilezas processuais que conduzem a desigualdade no plano da defesa e protecção substancial dos direitos, sejam as partes economicamente poderosas ou débeis».[2]

Ainda neste âmbito temático, deve notar-se que do n.3 do art.130º do CIRE não resulta, de forma imperativa e preclusiva, que a ausência de impugnação da lista de credores tem como consequência inevitável o não reconhecimento do crédito reclamado e não reconhecido pelo administrador da insolvência.

O juiz tem sempre o poder-dever de aferir se existe “erro manifesto”, máxime, cometido pelo administrador de insolvência.    

Como Afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao art.130º do CIRE: «(…) a inexistência de impugnação não constitui garantia significativa da correção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência (…) defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode solicitar ao administrador os elementos que necessite (…) esse erro pode respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades (…)»[3].

           4.3. À luz deste enquadramento jurisprudencial e doutrinal, sempre ao tribunal caberá a liberdade de contrariar a incorreta inscrição que o administrador da insolvência faça na lista de créditos reconhecidos ou não reconhecidos, como aconteceu no caso concreto em relação aos créditos correspondentes a remunerações não pagas e inerentes juros (que agora não integram o objeto do presente recurso por, nessa parte, existir dupla conforme).

           Todavia, quanto à indemnização que a trabalhadora reclamou com base na extinção do contrato de trabalho, já a primeira instância não contrariou o administrador da insolvência, pelo que bem decidiu o acórdão recorrido ao revogar parcialmente essa decisão e ao reconhecer o crédito da recorrida à compensação pela extinção do contrato de trabalho.

4.4. Ao reconhecer esse crédito, o tribunal coloca a trabalhadora recorrida na mesma situação em que se encontram outras trabalhadoras, em idênticas circunstâncias, cujos créditos pela compensação emergente da caducidade dos respetivos contratos de trabalho foram reconhecidos e que, tal como a recorrida, também propuseram ações no tribunal do trabalho contra a entidade empregadora que veio a ser declarada insolvente. A ação proposta pela recorrida correu no Tribunal do Trabalho da ... e as ações propostas pelas outras trabalhadoras correram no Tribunal do Trabalho de ....  Todavia, os percursos processuais dessas ações não foram idênticos, e isso pode ter levado o administrador da insolvência em persistir na errada inscrição do crédito da recorrido como não reconhecido.

4.5. O Tribunal do Trabalho da ... (na sentença que se encontra a fls 732 e seguintes dos autos) entendeu que não existia fundamento para a resolução do contrato de trabalho que ligava a recorrida à entidade empregadora (posteriormente declarada insolvente), mas sim caducidade por impossibilidade absoluta superveniente e definitiva em receber a prestação de trabalho. Consequentemente, decidiu absolver o réu (agora insolvente) do pedido de indemnização baseado na invocada resolução do contrato de trabalho (nos termos do art.443º do Código do Trabalho então vigente). O tribunal do trabalho não se pronunciou, assim, sobre a eventual compensação a que a trabalhadora teria direito em consequência da caducidade do contrato, porque tal problema não foi suscitado.

A questão em análise é, agora, a de saber se o montante que não foi reconhecido pelo Tribunal do Trabalho da ..., a título de indemnização por resolução do contrato, e que com tal natureza havia sido reclamada nos presentes autos, pode, depois, ser requalificado, para ser reconhecido como compensação pela caducidade do contrato de trabalho com base no art.346º do Código do Trabalho. 

4.6. Como supra referido, a situação da agora recorrida não é materialmente distinta da situação de outras trabalhadoras que também propuseram ação contra a entidade empregadora, agora insolvente (pedindo salários em atraso e indemnização pela extinção do contrato de trabalho), embora os percursos processuais das respetivas ações tenham sido diversos. Enquanto que o Tribunal do Trabalho de ... não chegou a pronunciar-se sobre os pedidos de indemnização das outras trabalhadoras, tendo decidido pela extinção da instância, dada a declaração de insolvência do réu, o Tribunal do Trabalho da ... pronunciou-se sobre o pedido de indemnização formulado pela aqui recorrente, entendendo que esta não tinha direito a indemnização com base na resolução do contrato (como havia pedido), porque o contrato não se considerava extinto por resolução mas sim por caducidade.

4.7. Com base nesta diversidade de percursos processuais, o administrador da insolvência veio (na relação de créditos reformulada) a reconhecer o direito das outras trabalhadoras à indemnização por caducidade e a não reconhecer idêntico direito à trabalhadora agora recorrida.

4.8. Ora, se todos os contratos terminaram por caducidade, e se o Tribunal do Trabalho da ... não se pronunciou sobre a hipótese de a recorrida ter direito a compensação pela caducidade do contrato (porque tal hipótese não foi formulada), todas as trabalhadoras estão, do ponto de vista substantivo, em situações equiparáveis.

4.9. O crédito que está em causa é um crédito de origem legal, emergente do disposto no art.346º do Código do Trabalho[4], e de fácil cálculo aritmético, pois depende objetivamente do número de anos de trabalho ao serviço da entidade empregadora declarada insolvente e da remuneração auferida pela trabalhadora.

4.10. Deve, assim, entender-se, com base no art.130º, n.3, interpretado nos termos supra referidos, que existiu erro manifesto do administrador da insolvência ao não inscrever o crédito da recorrida na lista dos créditos reconhecidos, tendo, consequentemente, existido errada aplicação da lei pela decisão da primeira instância. Deste modo, há que concluir que o acórdão recorrido, ao reconhecer o direito da trabalhadora a este crédito fez a correta aplicação da lei.

Todavia, tal como se entendeu no acórdão recorrido, é necessário proceder à concreta quantificação do crédito em causa, pelo que se justifica que o administrador da insolvência se pronuncie sobre essa quantificação, devendo, depois, o crédito, porque reconhecido, ser graduado no local próprio.

III.DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida, devendo ser dado cumprimento ao que aí se ordenou para efeitos de quantificação do crédito emergente da caducidade do contrato de trabalho da reclamante/recorrida, o qual, por ser reconhecido, deverá ser graduado no lugar próprio.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 1 de outubro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/62c5427dfa6b5c4d80258426004d0ec7?OpenDocument
[2] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/517d84dfdc6b96d5802578c700331faf?OpenDocument

[3][3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., pág.528 e 529.

[4] Dispõe o art. 346º do Código do Trabalho:

(…)

3 - O encerramento total e definitivo de empresa determina a caducidade do contrato de trabalho, devendo seguir-se o procedimento previsto nos artigos 360.º e seguintes, com as necessárias adaptações.

4 (…)

5 - Verificando-se a caducidade do contrato em caso previsto num dos números anteriores, o trabalhador tem direito a compensação calculada nos termos do artigo 366.º, pela qual responde o património da empresa.