Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELDER ROQUE | ||
Descritores: | DIVORCIO SEM CONSENTIMENTO VIDA EM COMUM DOS CÔNJUGES DEVERES CONJUGAIS NORMA INOVADORA APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 02/09/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I - A adesão ao conceito-modelo do “divórcio-constatação da ruptura conjugal” representa uma nova realidade destinada a ser o instrumento para a obtenção da felicidade de ambos os cônjuges, conduzindo à concepção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode por termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do matrimónio, por simples declaração singular, ainda que a responsabilidade pela falência do casamento lhe possa ser imputada, em exclusivo. II - Na acção de “divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges”, em que não há lugar à declaração de cônjuge, único ou principal culpado, o tribunal não pode determinar e graduar a eventual violação culposa dos deveres conjugais, com vista à aplicação de quaisquer sanções patrimoniais ou outras. III - O lugar próprio da valoração da violação culposa dos deveres conjugais, que continuam a merecer a tutela do direito, é a acção judicial de responsabilidade civil para reparação de danos, processualmente, separada da acção de divórcio, incluindo, de igual modo, a eventual declaração de existência de créditos de compensação, mas onde não ocorre, também, a declaração de cônjuge, único ou principal culpado, pelo divórcio. IV - Se a nova lei se refere, imediatamente, ao direito, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe serviu de fonte ou de termo [conteúdo], aplica-se, imediatamente, a todas as situações ou direitos existentes, constituídos ou a constituir, que se mantenham no futuro. V - A família transforma-se num espaço privado, de exercício da liberdade própria de cada um dos seus membros, na prossecução da sua felicidade pessoal, livremente, entendida e obtida, deixando o casamento de assumir, progressivamente, um carácter institucional, maxime, sacramental, sobretudo na componente da afirmação jurídico-estadual da sua perpetuidade e indissolubilidade, para passar a constituir uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e realização pessoal, e em que a dissolução jurídica do vínculo matrimonial se verifica quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:
AA, residente na Rua C... C..., ..., 2° esquerdo, Porto, propôs a presente acção com processo especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra BB, residente na Rua A...de C..., ..., ...° direito, Porto, pedindo que, na sua procedência, seja decretado o divórcio entre o autor e a ré, dissolvendo-se o casamento celebrado entre ambos, alegando, para tanto, em síntese essencial, que, desde 31 de Março de 2005, vivem em casas separadas, nelas dormindo, comendo e reconstruindo as suas vidas, de modo pleno, divergente, irreversível e autónomo, com vontade de ambos em romper o matrimónio. Na contestação, a ré argui a inconstitucionalidade da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, e, nesta sequência, pede que se declare que o autor seja considerado como o único culpado pelo divórcio a decretar [a], e bem assim como, na procedência da reconvenção que deduz, que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de €7.500,00, a título de indemnização pelos danos causados com a sua conduta para com a ré [b], e ainda, mensalmente, a título de pensão, que seja condenado a pagar-lhe as quantias necessárias para suportar os gastos médicos e medicamentosos da ré, em virtude da alteração do seu estado psíquico e psicológico, com origem naquela mesma conduta [c]. Na réplica, o autor alega que as pretensões formuladas pela ré, na contestação-reconvenção, constituem acto anómalo e que a inconstitucionalidade arguida não tem fundamento. Em sede de audiência preliminar, foi admitido, liminarmente, o pedido reconvencional, que, em seguida, foi julgado improcedente, na parte em que se solicitava a condenação do autor a pagar à ré a quantia de €7.500,00, a título de indemnização pelos danos causados com a sua conduta para com esta [b], e ainda, mensalmente, as quantias necessárias para suportar os gastos médicos e medicamentosos da ré com origem naquela mesma conduta [c], em virtude de os danos invocados por esta não serem susceptíveis de ressarcimento, à luz do preceituado pelo artigo 1792º, do Código Civil (CC), nem na anterior, nem na redacção vigente, introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, absolvendo-se, consequentemente, o autor desses pedidos. A sentença julgou a acção, totalmente, procedente e, em consequência, decretou o divórcio entre o autor e a ré, considerando dissolvido o casamento celebrado entre ambos, em 16 de Outubro de 1993, mas improcedente o pedido reconvencional, não julgando inconstitucional a norma constante do artigo 8°, da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, e, em consequência, absolveu o autor do pedido. Do acórdão da Relação do Porto, a ré interpôs agora recurso de revista excepcional, que o colectivo da formação deste Supremo Tribunal de Justiça, a que alude o artigo 721º-A, nº 3, do Código de Processo Civil (CPC), admitiu, terminando as alegações com o pedido da sua procedência e, por via dele, que seja julgada procedente a excepção inominada de inconstitucionalidade deduzida pela recorrente, na contestação, e julgada improcedente na douta sentença recorrida [a] e declarado o recorrido, em conformidade com a matéria de facto, doutamente, apurada, como cônjuge, único ou principal culpado, formulando as seguintes conclusões, que, integralmente, se transcrevem:
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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir. As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 685º-A e 726º, todos do CPC, são as seguintes: I. DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO “2. Deste casamento existem duas filhas, menores: CC, nascida no dia 12 de Abril de 1995, e CC, nascida a 24 de Julho de 1997 - B). 3. Autor e ré encontram-se separados, desde meados de 31 de Março de 2005 - 1°. 4. Desde essa data e de forma consecutiva, as partes passaram a viver como estranhos, sem qualquer comunhão de vida, residindo em casas separadas (nelas dormindo, comendo, e reconstruindo as suas vidas de modo pleno) e de forma absolutamente autónoma - 2°. 5. Manifestam ambos plena vontade de romper em definitivo o seu casamento - 3°. 6. Na tarde do dia 31 de Março de 2005, a ré, encontrando-se na companhia das filhas menores do casal e da avó materna destas, foi abordada pelo autor, na via pública, na cidade do Porto, apresentando-se este exaltado, tendo ambos discutido, acabando a ré por apresentar duas queixas, contra o autor, na PSP - 4° a 11º. 7. A partir do dia 31 de Março de 2005, a ré passou a residir, juntamente com as filhas, em casa dos seus pais, em V. N. de Gaia, não tendo levado as suas roupas, material de trabalho, nem as roupas, brinquedos e material escolar das menores - 12° e 13°. 8. No âmbito do processo de regulação do exercício do poder paternal que correu termos sob o nº 3658/05. TBVNG, no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, foi ordenado ao autor que, no prazo de 10 dias, entregasse à ré todos os artigos de vestuário e higiene, bem como brinquedos, e material escolar das filhas que estivesse em sua casa - 14° e 21°. 9. Essa entrega foi feita em sacos pretos - 22°”. Deste modo, não existe qualquer oposição entre os dois blocos de factos considerados, em especial, no segmento mais vincado pela ré, porquanto não é contraditório entre si o ter-se dado como provado que o autor e a ré se encontram separados, desde meados de 31 de Março de 2005 [3. (1º)], passando, desde essa data, a residir em casas separadas (nelas dormindo, comendo, e reconstruindo as suas vidas de modo pleno) e de forma absolutamente autónoma [4. (2º)], com plena vontade de romper em definitivo o seu casamento [5. (3º)], por um lado, enquanto que, por seu turno, a ré passou, a partir de então, a residir, juntamente com as filhas, em casa dos seus pais, não tendo levado as suas roupas, material de trabalho, nem as roupas, brinquedos e material escolar das menores [7. (12º e 13º)]. I. 2. Deste modo, não ocorre qualquer contradição na factualidade que inviabilize a decisão jurídica do pleito, pelo que não sendo de alterar a decisão sobre a matéria de facto emitida pelas instâncias, importa considerar demonstrados os seguintes factos consagrados pelo Tribunal da Relação, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 3 e 729º, nº 2, do CPC, que, em seguida, se reproduzem, integralmente, acrescentando-lhe, porém, um novo facto, sob os nº 13, com base no teor de um documento e bem assim como no preceituado pelos artigos 369º, nº 1 e 371º, nº 1, do CC, 659º, nº 3, 713º, nº 2 e 726º, estes do CPC: 1. Autor e ré contraíram casamento civil, com convenção antenupcial, em 16 de Outubro de 1993 - A). 2. Deste casamento existem duas filhas menores: CC, nascida no dia 12 de Abril de 1995, e DD, nascida a 24 de Julho de 1997 - B). 3. Autor e ré encontram-se separados, desde meados de 31 de Março de 2005 - 1°. 4. Desde essa data e, de forma consecutiva, as partes passaram a viver como estranhos, sem qualquer comunhão de vida, residindo em casas separadas (nelas dormindo, comendo, e reconstruindo as suas vidas, de modo pleno) e de forma, absolutamente, autónoma - 2°. 5. Manifestam ambos plena vontade de romper, em definitivo, o seu casamento - 3°. 6. Na tarde do dia 31 de Março de 2005, a ré, encontrando-se na companhia das filhas menores do casal e da avó materna destas, foi abordada pelo autor, na via pública, na cidade do Porto, apresentando-se este exaltado, tendo ambos discutido, acabando a ré por apresentar duas queixas, contra o autor, na PSP - 4° a 11º. 7. A partir do dia 31 de Março de 2005, a ré passou a residir, juntamente com as filhas, em casa dos seus pais, em V. N. de Gaia, não tendo levado as suas roupas, material de trabalho, nem as roupas, brinquedos e material escolar das menores - 12° e 13°. 8. No âmbito do processo de regulação do exercício do poder paternal, que correu termos sob o nº 3658/05. TBVNG, no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, foi ordenado ao autor que, no prazo de 10 dias, entregasse à ré todos os artigos de vestuário e higiene, bem como brinquedos, e material escolar das filhas que estivesse em sua casa - 14° e 21°. 9. Essa entrega foi feita em sacos pretos - 22°. 10. O avô materno dava à ré géneros alimentícios e guloseimas para as menores, sempre que estas passavam no seu estabelecimento comercial de venda deste tipo de produtos - 23°. 11. A ré era e é professora do 3° ciclo na Escola "A R...", em M... da M..., V... do C... - 26°. 12. Foram emitidas, em nome da ré, com datas de 5 de Fevereiro e 29 de Março de 2010, as facturas constantes de fls. 148 e 149 dos autos - 30° e 31°. 13. A acção deu entrada em juízo, no dia 20 de Março de 2009 – Documento de folhas 2.
II. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA REDUÇÃO DO PRAZO DA SEPARAÇÃO DE FACTO COMO FUNDAMENTO DE DIVÓRCO E DA DESCONSIDERAÇÃO DA CULPA
II. 1. Defende a ré-reconvinte que se revela inconstitucional o actual regime do artigo 1781°, a) e d), do CC, na redacção da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, e bem assim como a norma revogatória do artigo 1787°, do CC, inclusa no artigo 8°, daquela mesma Lei, face às normas e princípios constitucionais constantes dos artigos 1°, 2°, 9°, b) e h), 18°, nº 2 e 36°, todos da Constituição da República (CRP). A este propósito, diga-se, liminarmente, que a sentença proferida, em sede de 1ª instância, que o acórdão recorrido confirmou, decretou o divórcio entre o autor e a ré, considerando dissolvido o casamento celebrado entre ambos, com base na separação de facto por um ano consecutivo, incluída na previsão do artigo 1781º, a), do CC, e não, igualmente, com fundamento na existência de outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do matrimónio, a que se reporta a respectiva alínea d). Dispõe o artigo 1781º, a), do CC, que constitui “…fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges a separação de facto por um ano consecutivo”. Por outro lado, estipulava o artigo 1787º, nº 1, na versão resultante da Reforma de 1977, entretanto, revogado pelo artigo 8º, da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que “se houver culpa de um ou de ambos os cônjuges, assim o declarará a sentença; sendo a culpa de um dos cônjuges consideravelmente superior à do outro, a sentença deve declarar ainda qual deles é o principal culpado”. Por seu turno, preceitua a Constituição da República (CRP), que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” [artigo 1º], que “a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” [artigo 2º] e que “são tarefas fundamentais do Estado: garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático e promover a igualdade entre homens e mulheres [artigo 9º, b) e h), respectivamente]. E o artigo 18º, nº 2, da CRP, preceitua ainda que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”, para, finalmente, o artigo 36º, do mesmo diploma fundamental, estatuir que “todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade” [1.] e que “a lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração” [2.]. II. 2. O divórcio é, conjuntamente com a morte, uma das duas causas de dissolução e extinção do casamento válido [existente e não anulável ou nulo], em vida de ambos os cônjuges, nos termos do estipulado pelo artigo 1788º, do CC. A legislação nacional, num manifesto propósito de desdramatizar o conceito de divórcio, optou, claramente, pelo divórcio por mútuo consentimento, face ao divórcio litigioso, como resulta da colocação sistemática daquela primeira modalidade a anteceder a segunda, mas, especialmente, da obrigatoriedade de o Juiz, na tentativa de conciliação prévia à contestação, no «divórcio litigioso», subentenda-se agora, no divórcio onde a lei continua a usar a terminologia antiga, por força do disposto pelo artigo 1407º, nº 2, do CPC, dever procurar “obter o acordo dos cônjuges para o divórcio…por mútuo consentimento”. A definição do regime regulador do divórcio depende das concepções sociais e culturais, historicamente, adoptadas pelo legislador sobre o casamento, em função da sua maior ou menor incidência, contratual ou institucional, em sintonia com os três conceitos-modelo distintos sobre a sua natureza jurídica, adoptados pela doutrina e pela jurisprudência, isto é, o do «divórcio-sanção», o do «divórcio remédio» e o do «divórcio como simples constatação de ruptura do casamento». Efectivamente, na evolução legislativa da história do direito ao divórcio, no que respeita à consagração do divórcio com fundamento em causas objectivas, impõe-se destacar algumas sequências temporais. Desde logo, o Decreto de 3 de Novembro de 1910, que instituiu a Lei do Divórcio, foi o primeira a prever, com ampla admissibilidade, em várias das suas alíneas, a existência de causas objectivas de divórcio, consagrando a possibilidade do divórcio independentemente de culpa dos cônjuges. Porém, o DL nº 47344, de 25 de Novembro de 1966, que revogou o Código Civil de 1867 (Código Civil de Seabra) e, simultaneamente, aprovou o Código Civil vigente, procedeu à eliminação, na modalidade do divórcio litigioso, de todas as causas objectivas, apenas passando a admitir as causas subjectivas de divórcio, dependentes de culpa, exclusiva ou predominante, de um dos cônjuges, com base na concepção da doutrina do «divórcio-sanção», que pretende censurar o acto culposo de qualquer dos cônjuges, só sendo admitido o divórcio, em caso de grave ofensa a um deles, mas em que, por seu turno, o único ou principal culpado deve acarretar com as respectivas consequências danosas. E a culpa que estava subjacente ao modelo do «divórcio-sanção» era ainda reforçada com a criminalização de grande parte das violações dos deveres conjugais, o que constituía uma dupla sanção para o cônjuge infractor. Em seguida, com o DL nº 261/75, de 27 de Maio, aconteceu o regresso ao regime das causas objectivas de divórcio, conquanto que, em forma mitigada, mediante a reintrodução da separação de facto, «livremente consentida», por um período de cinco anos, expressão esta, entretanto, desaparecida, por força do DL nº 561/76, de 17 de Julho, que se limitou a prever a mera situação da separação de facto, desacompanhada do qualificativo do «livre consentimento», embora agora por um período de seis anos consecutivos. Tratava-se, então, da concepção do «divórcio como simples constatação da ruptura do casamento», objectivamente considerada, independentemente da imputabilidade da situação a um ou outro dos cônjuges e de qualquer indagação de culpas. Entretanto, com a evolução dos tempos, começaram a admitir-se certas circunstâncias em que o casamento já não podia prosseguir os seus fins, independentemente da vontade dos cônjuges[3], tratando-se, em especial, de causas objectivas, que impossibilitavam ou comprometiam, de modo irremediável, o vínculo matrimonial, nomeadamente, a ausência prolongada sem noticias, a loucura e demência insanáveis e a doença contagiosa grave e impeditiva de uma vida e conjugação conjugal normal, o que constituiu a fase intermédia do conceito-modelo do «divórcio-remédio», de carácter híbrido, mas que estabeleceu a transição entre o figurino do «divórcio-sanção» e o modelo do «divórcio-constatação da ruptura conjugal». Assim, com a Reforma de 1977, introduzida pelo DL nº 496/77, de 10 de Agosto, o divórcio litigioso passou a assumir duas vertentes, inteiramente, distintas, sendo uma a do «divórcio-sanção», fundada em razões subjectivas, ou seja, na culpa, consagrada na cláusula geral prevista pelo artigo 1779º, nº 1, do CC, em substituição da tipificação genérica do catálogo das causas de divórcio litigioso, segundo a qual “qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum”, e a outra a do «divórcio-ruptura da vida em comum», fundada em causas objectivas, não dependentes da culpa dos cônjuges, consagrada pelo artigo 1781º, do CC, reportando-se, como fundamento do divórcio litigioso, às situações de separação de facto por três anos consecutivos [a], de separação de facto por um ano se o divórcio for requerido por um dos cônjuges sem oposição do outro [b], à alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de três anos e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum [c] e à ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a dois anos [d]. Era já o «divórcio-sanção» como uma entidade em vias de ser ultrapassada e a adesão ao conceito-modelo do «divórcio-constatação da ruptura conjugal» como uma nova realidade destinada a ser o instrumento para a obtenção da felicidade de ambos os cônjuges[4], razão pela qual sempre que um deles entenda, mesmo numa perspectiva egoísta, que, pelo menos, para si, essa felicidade já não pode ser alcançada com o casamento, goza de legitimidade para requerer o divórcio, ainda que a responsabilidade pela falência do casamento lhe possa ser imputada, em exclusivo. É agora a concepção do divórcio unilateral e potestativo, em que um dos cônjuges pode por termo ao casamento, por simples declaração de vontade singular, sem que haja lugar à apreciação da culpa ou à aplicação de sanções, o que acaba por significar que o fundamento da ruptura se traduz na inexistência de uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, a que alude o artigo 1577º, do CC, isto é, numa expressão mais redutora, quando a «affectio conjugalis» e a cumplicidade entre os cônjuges baixou ao grau zero de satisfação para um deles, e em que a lei não pode sobrepor-se ou substituir-se à vontade do cônjuge que pretende a dissolução do seu casamento[5]. Trata-se, afinal, do direito ao casamento e do direito ao divórcio como duas faces inseparáveis da mesma moeda, expressão do princípio da autonomia da vontade[6], que, na hipótese do divórcio, pode ainda ser decretado, em consequência da vontade unilateral de um dos cônjuges, nos casos e termos previstos na lei, atento o estipulado pelos artigos 406º, nº 1 e 1781º, do CC, na sequência do entendimento que reconduz o casamento a um contrato dissolúvel pela vontade das partes, porque celebrado com vista à sua felicidade[7]. Com efeito, a relação a dois existente dentro do casal, movida pelo propósito da realização pessoal, independentemente de qualquer quadro de valores e de respostas externas, apenas baseada no compromisso permanente e na gratificação renovada, contém, em si mesma, o acordo prévio sobre a sua própria dissolução[8]. Este último diploma encontra-se em linha coerente com a crescente propensão para a “privatização” do casamento, subtraído, gradualmente, à intervenção tutelar do Estado, como contrato, tendencialmente, denunciável, cada vez mais próximo da disciplina dos contratos em geral, de cujo tronco comum, outrora, já fez parte e, por outro lado, com as tentativas actuais da sua descontratualização, pela sua assimilação a outras fórmulas de comunhão de vida, mas, também, de descontextualização, pela alteração do binómio natural das pessoas, originariamente, hábeis a contraí-lo, associadas à desformalização do divórcio e à sua frequência redobrada, já bem longe da natureza publicista e sacramental antecedentes, enquanto realidades a tomar em consideração na abordagem da questão do divórcio. Da exposição de motivos do projecto de lei nº 509/X, que contempla as alterações ao regime jurídico do divórcio[11], constam como fundamentos do casamento, nas sociedades actuais, a liberdade de escolha pelo casamento [a], a igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges [b], a afectividade no centro da relação [c] e a plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos, quando os houver [d]. Do princípio da liberdade decorre que ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade, incluindo quando considerar que houve quebra do laço afectivo, devendo o cônjuge que for tratado, de forma desigual, injusta ou de forma a atentar contra a sua dignidade, poder terminar a relação conjugal, mesmo sem a vontade do outro, sendo certo que a invocação da ruptura definitiva da vida em comum deve constituir fundamento suficiente para a declaração do divórcio, não como sinal de facilitismo, mas antes de valorização de uma conjugalidade, feliz e conseguida, potencialmente, repetível. Por outro lado, os movimentos de sentimentalização, individualização e secularização, no âmbito da vida conjugal, de que a dimensão afectiva, tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos, é o seu núcleo fundador e central, conferem à conjugalidade particular relevo, mal se tolerando, pois, que o casamento se possa tornar fonte persistente de mal-estar, e que, no caso de reiterados desentendimentos no matrimónio, as pessoas sejam obrigados a manter a instituição, a qualquer preço. Para o que importa evitar que o processo de divórcio se transforme num litígio persistente e destrutivo, emocionalmente, doloroso, exigindo-se o afastamento do fundamento da culpa, sempre de difícil avaliação, para que seja decretado o divórcio sem o consentimento do outro membro, sem prejuízo da tutela das situações de injustiça ou de desigualdade. Para tanto, privilegia-se o mútuo acordo na ruptura conjugal e a mediação familiar como solução de proximidade e forma de dirimir o conflito no sentido de evitar arrastamentos judiciais penosos e desgastantes, e, na impossibilidade do mútuo consenso, a sustentação do divórcio em causas objectivas da ruptura da vida em comum e de ausência de vontade em a não continuar, independentemente do consentimento de uma das partes. Contra as situações de injustiça, desigualdade e assimetria, protegem-se os mais fragilizados, prevendo-se ainda, no domínio das consequências do divórcio, a reparação dos danos, bem como a existência de créditos de compensação, quando houver manifesta desigualdade de contributos dos cônjuges para os encargos da vida familiar, designadamente, em relação aos filhos. Quanto à secularização, o que está em causa não é, necessariamente, o abandono das referências religiosas, mas antes uma retração destas para esferas mais íntimas, assumindo dimensões menos consequenciais em outros aspectos da vida. É ainda a constatação da menor dependência do casamento como estado de vida, face ao progressivo ingresso das mulheres no mercado de trabalho. Exige-se, em contrapartida, sempre com acordo ou sem ele, rigor e equilíbrio na gestão das consequências do divórcio, sobretudo quando há crianças envolvidas ou situações de assimetria e fragilidade de uma das partes. II. 4. Como corolário da opção legislativa que esgota os fundamentos do ex-designado «divórcio litigioso», agora denominado, mais por uma questão de nomenclatura carismática do que por desvio processual do «modus procedendi», de natureza contenciosa e sujeito ao princípio do contraditório, «divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges», a causas objectivas, no âmbito da acção de divórcio autónoma, não pode o Tribunal determinar e graduar a eventual violação culposa dos deveres conjugais, com vista à aplicação de quaisquer sanções patrimoniais ou outras, sendo ainda alheias ao mesmo processo as questões relacionadas com os danos provocados por actos ilícitos. Todavia, tal não significa que a valoração dos deveres conjugais não continue a merecer a tutela do direito, em acção judicial de responsabilidade civil para reparação de danos, separada da acção de divórcio, nos termos do estipulado pelo artigo 1792º, nº 1, do CC, mas não já, a título de declaração de cônjuge único ou principal culpado pelo divórcio, na acção de divórcio autónoma, incluindo, igualmente, a declaração de existência de créditos de compensação, quando houver manifesta desigualdade de contributos dos cônjuges para os encargos da vida familiar. A violação culposa dos deveres conjugais deixa, assim, de constituir um dos fundamentos da acção de divórcio autónoma, para passar apenas a representar uma causa de pedir da acção de responsabilidade civil, destinada ao ressarcimento do cônjuge lesado, nos termos do disposto pelo artigo 1792º, nº 1, do CC. Na acção de divórcio autónoma, apenas pode ser pedida a compensação pelos danos não patrimoniais, eventualmente, sofridos pelo cônjuge com a dissolução do casamento, proposta pelo outro cônjuge, por alteração das respectivas faculdades mentais, atendo o preceituado pelos artigos 1792º, nº 2 e 1781º, b), do CC. II. 5. As alterações introduzidas pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que consubstanciam a aproximação do regime nacional às opções legislativas europeias[12], ao por fim à declaração de culpa no divórcio e às consequências patrimoniais negativas à mesma associadas, face ao regime de sanções do ilícito conjugal refletidas sobre os efeitos do divórcio, atento o preceituado pelos artigos 1790º a 1792º e 2016º, do CC, na redacção do DL nº 496/77, de 25 de Novembro[13], vieram dotar o regime legal de maior flexibilidade e a situação dos cônjuges de maior segurança e previsibilidade, ao contrário da situação anterior, dotada de rigidez e aleatoriedade. A eliminação de qualquer referência à culpa é consistente com a evolução da lei e da prática na generalidade dos sistemas legais europeus, em muitos dos quais a culpa foi abandonada, sendo certo que os poucos que, de forma parcial, ainda a mantêm, tendem a evoluir em direcção à concepção do «divórcio sem culpa»[14]. E a solução do novo texto do artigo 1792º, nº 1, do CC, constitui uma alteração clarificadora que, repudiando, abertamente, a tese da fragilidade da garantia, contribui para uma utilização mais efectiva dos meios comuns de tutela entre os cônjuges[15]. Todavia, a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, como se retira da leitura das novas versões dos artigos 1790º, 1791º e 2016º, bem como do novo artigo 2016º-A, do CC, não centrou na equidade a regulamentação jusfamiliar das consequências da dissolução do casamento, mostrando-se pouco sensível à relevância da actuação culposa de um dos cônjuges e à repercussão do divórcio na condição económica das partes, substituindo o regime anterior dos efeitos do divórcio, rígido e aleatório, centrado na culpa, por um outro regime, também, rígido e aleatório, que, em geral, trata de forma idêntica os cônjuges, ainda que um deles tenha violado, de modo sistemático e patente, o princípio da boa fé, e despreza as legítimas expectativas da parte que mais investiu na relação conjugal[16]. II. 6. Diz ainda a ré que o novo regime legal nem sequer ressalvou a existência de casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor ou após a sua publicação, frustrando relevantíssimas expectativas depositadas pelos cidadãos na consistência jurídico-civil do vínculo que, de livre vontade, aceitaram contrair. Efectivamente, a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, encurtou ainda todos os prazos para a concessão do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, fundado em causas objectivas, prazos esses que passaram a ser, para as diferentes situações, de um ano, acabando por consagrar uma causa geral objectiva, não dependente de qualquer prazo, isto é, “quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento”. Assim, a nova lei, ao alterar a redacção do artigo 1781º, a), do CC, no sentido de que “a separação de facto por três anos consecutivos” era, ela própria, suficientemente, reveladora da inviabilidade da continuidade da relação matrimonial, não pôs em causa, decisivamente, com esta nova opção, nenhum dos parâmetros constitucionais da tutela da família, qualquer que tenha sido a anterior valoração do legislador na matéria[17]. Por outro lado, o princípio geral, no âmbito da aplicação das leis no tempo, consta do artigo 12º, nº 1, do CC, ao estatuir que “a lei só dispõe para o futuro, e ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”. Na verdade, quando é publicada uma lei nova, esta dispõe, por via de regra, para o futuro, a menos que o legislador tenha atribuído efeitos retroactivos à nova regulamentação, sendo certo que o princípio da não retroactividade não tem força de preceito constitucional, com excepção do âmbito restrito das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, atento o preceituado pelo artigo 29º, nºs 1, 2, 3 e 4, da CRP. Assim sendo, a lei não deve aplicar-se, em princípio, a factos passados, nem aos seus efeitos, sendo certo que a definição do que são ou não são os factos passados e os respectivos efeitos dos factos pretéritos, deve encontrar-se, no artigo 12º, nº 2, do CC, que desenvolve o princípio da não retroactividade, nos termos da teoria do facto passado, na formulação doutrinária defendida por Enneccerus[18]. Ora, este nº 2, do artigo 12º, citado, preceitua que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”. Estas últimas normas, que regulam apenas o conteúdo das situações jurídicas já constituídas, abstraindo dos factos que as originaram, não são, verdadeiramente, retroactivas, porquanto não visam atingir os factos anteriores à sua entrada em vigor, verificando-se uma «retroconexão» ou uma «referência pressuponente»[19], tratando-se antes de uma aplicação imediata, no futuro, às relações constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor. Deste modo, se há normas que dispõem sobre a validade ou invalidade ou os efeitos de certos factos e que, simultaneamente, são normas relativas ao conteúdo de uma situação jurídica, outras há que respeitam, directamente, ao conteúdo legal de uma situação jurídica, que se referem a factos ou às consequências dos mesmos sobre aquele conteúdo legal, abstraindo dos factos que lhes deram origem[20]. Assim sendo, das duas regras enunciadas neste nº 2, do artigo 12º, do CC, resulta que a aplicabilidade da lei nova aos requisitos, conteúdo e efeitos dos contratos e às relações jurídicas anteriores que subsistam à data da sua entrada em vigor, varia conforme ela abstrair, ou não, dos factos que dão origem às situações jurídicas em causa[21]. Ora, a lei nova abstrai dos factos constitutivos de uma situação jurídica contratual antecedente quando for dirigida à tutela dos interesses de uma generalidade de pessoas que se acham ou possam vir a encontrar ligadas por certa relação jurídica, de modo que se possa dizer que a lei nova atinge as pessoas, não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual[22]. E toda a lei nova que seja de qualificar como respeitando ao estatuto das pessoas ou dos bens e à defesa dos direitos das pessoas restringe o domínio da autonomia contratual e será, em regra, de aplicação imediata. Por seu turno, quando uma lei nova passa a disciplinar para o futuro, de forma diversa, o conteúdo de certa relação jurídica, abstraindo do respectivo facto gerador, deve entender-se, em conformidade com o estipulado pelo artigo 12º, nº 2, que “…abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”. Efectivamente, o interesse público de política legislativa na unidade e homogeneidade do ordenamento, movido por factores de segurança e de igualdade jurídica, aponta, decisivamente, no sentido da aplicação imediata da lei nova[23], sob pena de, adoptando-se o princípio contrário, daí resultar, inevitavelmente, que, para situações jurídicas da mesma natureza, leis diferentes se tornariam, concorrentemente, competentes, no interior do mesmo país[24]. Aliás, uma lei pode ser inconstitucional, não por ser uma lei retroactiva, propriamente dita, mas antes por contrariar normas ou princípios constitucionais, designadamente, o princípio da protecção da confiança, “ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, especificamente acolhido no artigo 2º, da CRP”, o que sucederá quando a aplicação retroactiva de um preceito legal se revelar “ostensivamente irrazoável”, quando a norma retroactiva violar “de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que os cidadãos e a comunidade hão-de depositar na ordem jurídica que os rege, confiança materialmente justificada no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências”[25]. Assim sendo, sempre que a nova lei se prenda, directamente, com qualquer facto que tenha servido de fonte ou sirva de causa extintiva ou modificativa do direito [constituição], só podem servir de pressuposto à aplicação da mesma os factos posteriores à sua entrada em vigor, enquanto que, pelo contrário, se a nova lei se refere, imediatamente, ao direito, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe serviu de fonte ou de termo [conteúdo], aplica-se, imediatamente, a todas as situações ou direitos existentes, constituídos ou a constituir, que se mantenham no futuro. A Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, entrou em vigor, a 30 de Novembro de 2008, de acordo com o disposto no seu artigo 10º, muito embora o respectivo artigo 9º determine que o seu regime se não aplique aos processos pendentes em tribunal. Deste modo, conjugando o exposto com o caso em análise, o novo texto normativo introduzido pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que nada dispõe sobre o âmbito temporal de duração das situações consubstanciadoras do divórcio, deve ser aplicado, imediatamente, com excepção dos “processos pendentes em tribunal”, e, mesmo nesta situação, cujos pressupostos factuais não ocorrem, sob forte suspeita de inconstitucionalidade[26], mas que não seria o caso, porquanto o estado de divórcio, em si mesmo considerado, não apresenta qualquer ligação especial directa com qualquer outro facto anterior, designadamente, com a constituição do casamento que pretende dissolver. II. 7. A protecção da unidade familiar, constitucionalmente reconhecida, pelo artigo 67º, da CRP, significa, em primeiro lugar, a tutela do “direito dos membros do agregado familiar e viveram juntos”, que é, precisamente, o que a ré não quer, sendo certo que se não pode desconhecer que “cada vez mais, na sociedade actual, por largas camadas da população, o casamento deixa de ser encarado como uma instituição acima dos próprios cônjuges”[27], sem esquecer, igualmente, que “a família é feita de pessoas e existe para realização pessoal delas, não podendo a família ser considerada independentemente das pessoas que a constituem, muito menos contra elas”[28]. Ora, a introdução de causas de divórcio, de natureza objectiva, que, pura e simplesmente, exprimem a “ruptura da vida em comum”, traduziu o abandono da ideia de «divórcio-sanção»[29], na tentativa de retomar, o mais, amplamente, possível, a ideia de «divórcio-remédio», alargando-a mesmo a uma concepção de «divórcio-consumação» ou «divórcio-falência»[30]. Efectivamente, a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, limitou-se a aprofundar o modelo “moderno” de casamento, por contraposição ao seu modelo “tradicional”, modelo esse que “desvaloriza o lado institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação afectiva, o verdadeiro fundamento do casamento”, que passa a ser “tendencialmente”, ou, no limite, antes que uma “instituição”, “uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e a sua realização pessoal”[31], ideia que justifica e propugna a dissolução jurídica do vínculo matrimonial quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, ele se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e, sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum. É que, pese embora o reconhecimento constitucional da família como unidade fundamental da sociedade, o legislador terá considerado o seu significado, cada vez menor, como forma de realização social, cujas funções tradicionais, com a sua crescente desagregação, têm vindo a ser perdidas e só, marginalmente, apropriadas pela sociedade ou pelo Estado. E a própria destruição do carácter religioso da família contribuiu para a perda da natureza sacramental do casamento, sobretudo na componente da afirmação jurídico-estadual da sua perpetuidade e indissolubilidade, que se perfetibilizava com a simples troca dos consentimentos, considerando-se, entretanto, que o casamento é matéria laica, que só diz respeito à sociedade e ao Estado. E, assim, a família transforma-se num espaço privado de exercício da liberdade própria de cada um dos seus membros, na prossecução da sua felicidade pessoal, livremente, entendida e obtida, que deixa de poder ser utilizada como um instrumento de ordem pública. O Estado já não pode obrigar uma mulher a amar o seu marido ou este a amar aquela, situando-se o correspondente sancionatório normativo, sobretudo, na área da moral, dos costumes ou das regras de conduta social, numa clara afirmação da congénita fragilidade da garantia do Direito da Família. O investimento da confiança no projecto matrimonial que, alegadamente, a ré colocou no casamento, e admitindo que em nada tenha contribuído para o seu desvanecimento, já não pode lograr outra compensação, exceptuada a reparação, em sede de responsabilidade civil, a não ser a honrosa satisfação pelo dever cumprido.
CONCLUSÕES:
I – A adesão ao conceito-modelo do «divórcio-constatação da ruptura conjugal» representa uma nova realidade destinada a ser o instrumento para a obtenção da felicidade de ambos os cônjuges, conduzindo à concepção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode por termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do matrimónio, por simples declaração singular, ainda que a responsabilidade pela falência do casamento lhe possa ser imputada, em exclusivo. II – Na acção de «divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges», em que não há lugar à declaração de cônjuge, único ou principal culpado, o Tribunal não pode determinar e graduar a eventual violação culposa dos deveres conjugais, com vista à aplicação de quaisquer sanções patrimoniais ou outras. III - O lugar próprio da valoração da violação culposa dos deveres conjugais, que continuam a merecer a tutela do direito, é a acção judicial de responsabilidade civil para reparação de danos, processualmente, separada da acção de divórcio, incluindo, de igual modo, a eventual declaração de existência de créditos de compensação, mas onde não ocorre, também, a declaração de cônjuge, único ou principal culpado, pelo divórcio. IV - Se a nova lei se refere, imediatamente, ao direito, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe serviu de fonte ou de termo [conteúdo], aplica-se, imediatamente, a todas as situações ou direitos existentes, constituídos ou a constituir, que se mantenham no futuro. V - A família transforma-se num espaço privado, de exercício da liberdade própria de cada um dos seus membros, na prossecução da sua felicidade pessoal, livremente, entendida e obtida, deixando o casamento de assumir, progressivamente, um carácter institucional, maxime, sacramental, sobretudo na componente da afirmação jurídico-estadual da sua perpetuidade e indissolubilidade, para passar a constituir uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e realização pessoal, e em que a dissolução jurídica do vínculo matrimonial se verifica quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.
DECISÃO[32]:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando, inteiramente, o douto acórdão recorrido.
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Custas da revista, a cargo da ré.
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Notifique.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 2012.
Helder Roque (Relator) *
[7] Alfred Dufour, Mariage et société moderne (Les idéologies du droit matrimonial moderne), Fribourg (Suíça), Éditions Universitaires Fribourg Suisse, 1997, 37 a 39, 70 e 71. [13] O cônjuge declarado único ou principal culpado não podia na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos (artigo 1790º); perdia todos os benefícios recebidos ou que houvesse de receber do outro cônjuge ou terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado (artigo 1791º, nº 1); devia reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento (artigo 1792º, nº 1); e só excepcionalmente tinha direito a exigir alimentos ao outro (artigo 2016º, nº 2). [15] Jorge Duarte Pinheiro, O Ensino do Direito da Família Contemporâneo, Lisboa, AAFDL, 2008, 98. [16] Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos (artigo 1790º); e cada cônjuge perde os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado (artigo 1791º, nº 1). A nova lei procura sobretudo destacar o carácter excepcional e limitado dos alimentos pós-matrimoniais, afirmando que "cada cônjuge deve prover à sua subsistência depois do divórcio" (artigo 2016º, nº 1) e que, havendo alimentos, "o cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio" (artigo 2016º-A, nº 3). |