Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
749/13.8TTGMR.G2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
NEXO DE CAUSALIDADE
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
Data do Acordão: 07/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- Aníbal de Castro, Impugnação das Decisões Judiciais, 2.ª ed., p. 111;
- Júlio Gomes, O Acidente de Trabalho - O acidente in itinere e a sua descaracterização, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, p. 251;
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, p. 247.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-04-1989, IN BMJ, 386º, P. 446;
- DE 22-04-2004, PROCESSO N.º 04B1040, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-01-2006, PROCESSO N.º 05S3228, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-02-2010, PROCESSO N.º 304/07.1TTSNT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
-DE 22-09-2010, PROCESSO N.º 190/04.3TTLVCT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 20-10-2011, PROCESSO N.º 1127/08.6TTLRA.C1.S1;
- DE 03-04-2013, PROCESSO N.º 241/08.2TTLSB.L1.S1;
- DE 26-10-2017, PROCESSO N.º 156/14.5TBSRQ.L1.S1.
Sumário :

I – Tratando-se as presunções judiciais dum meio probatório que é admitido para prova de factos suscetíveis de serem demonstrados por prova testemunhal, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso deste meio probatório pelas instâncias, por ser da sua exclusiva competência.

II – Compete, todavia, ao Supremo Tribunal de Justiça averiguar se os factos provados constituem o suporte das ilações extraídas pelas instâncias.

III – A descaracterização do acidente exige a verificação de dois requisitos: que o acidente provenha de comportamento indesculpável, temerário em alto e relevante grau do sinistrado, e que esta sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo.

IV – Sendo a ocorrência do acidente por culpa grave e indesculpável da vítima a circunstância impeditiva do direito à indemnização, é sobre a empregadora e/ou sobre a seguradora que, nos termos do art. 342º, nº 2 do CC, impende o ónus de provar os factos respetivos e que foram eles a sua causa adequada e exclusiva.

V – No caso concreto, o sinistrado adotou um comportamento objetivamente grave, temerário em alto e relevante grau e indesculpável, ao conduzir o ciclomotor com uma taxa de alcoolémia de 2,74 g/l que, atenta a matéria de facto fixada pelas instâncias e como concluiu a Relação, foi a causa exclusiva do acidente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

Nos presentes autos de ação declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, veio a beneficiária AA, na qualidade de viúva do sinistrado BB, patrocinada pelo Ministério Público, pedir a condenação de CC, S.A. a pagar-lhe a pensão anual de € 2.226,12, com início em 11.07.2013, a quantia de € 1.828,00, de despesas de funeral, a quantia de € 5.533,70, de subsídio por morte e a quantia de € 16,00 a título de despesas com transportes nas deslocações a tribunal, acrescidas de juros de mora à taxa legal.

Alegou que o seu marido, no dia 10 de julho de 2013, quando trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de “DD, Lda.”, auferindo a retribuição de € 492,00 x 14 meses/ano, acrescida de € 2,20 x 22 x 11 meses/ano de subsídio de alimentação, cuja responsabilidade infortunística estava transferida para a Ré, e se deslocava do seu local de trabalho para a sua residência, sofreu um acidente que lhe causou lesões que lhe provocaram a morte.

O INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL I.P. deduziu pedido de reembolso contra a Ré, no valor de € 3.607,64, acrescido das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da ação e respetivos juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Contestou a Ré, não aceitando qualquer responsabilidade pela reparação do acidente por o mesmo se mostrar descaracterizado nos termos do disposto no art. 14.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 98/2009, de 04/09, por o sinistrado conduzir sob o efeito de uma TAS de 2,74 g/l, sendo o estado de embriaguez em que conduzia a única causa determinante do acidente.

Contestou também o pedido formulado pelo Instituto de Segurança Social I.P., em termos semelhantes e acrescentando que, ainda que se viesse a apurar que as prestações reclamadas eram devidas, a quantia a reembolsar deveria sempre ser abatida da indemnização reclamada pela Autora.

Foi fixada à beneficiária a pensão anual provisória de € 2.226,12, a pagar pela seguradora.

Saneado o processo, realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida a sentença de que foi interposto recurso de apelação pela Ré, tendo o Tribunal da Relação proferido a seguinte deliberação:

«Nestes termos, acorda-se em anular parcialmente a decisão proferida na primeira instância e determinar que o tribunal recorrido proceda à ampliação da matéria de facto que foi objecto de julgamento, repetindo este quanto aos factos constantes dos arts. 15.º, 18.º e 19.º da contestação, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições, proferindo-se nova sentença em conformidade com o resultado da ampliação da matéria de facto objecto de julgamento.

Custas pela parte vencida a final.»

O Instituto de Solidariedade e Segurança Social requereu a ampliação do pedido inicial, o que foi indeferido.

Procedeu-se a julgamento para os efeitos determinados no mencionado acórdão, após o que foi proferida nova sentença com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, julgo:

A) A acção procedente, por provada e, em consequência, condeno a seguradora “CC, SA”, a pagar à A.:

- A pensão anual de € 2 226,12 (dois mil, duzentos e vinte e seis euros e doze cêntimos), com início em 11/07/2013 (sem prejuízo da pensão já recebida pela A. a título de pensão provisória);

- A quantia de € 1 828,00 (mil, oitocentos e vinte e oito euros) de despesas de funeral;

- A quantia de € 5 533,70 (cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), de subsídio por morte;

- A quantia de 16,00 (dezasseis euros) a título de despesas com transportes nas deslocações a este tribunal, sendo essas quantias acrescidas de juros, à taxa de 4%, nos termos do disposto nos artºs. 135º, in fine, do Cód. Proc. do Trabalho e 559º, nº. 1do Cód. Civil, desde a data do respectivo vencimento até integral pagamento.

B) Absolver a mesma Companhia de Seguros do pedido de reembolso deduzido pelo Instituto de Segurança Social IP.

Custas pela R. Seguradora.

Fixo à acção o valor de € 37 530,60.»

Inconformada, a R. apelou, impugnando também a decisão sobre a matéria de facto, na sequência do que foi proferida a seguinte deliberação:

«Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação procedente e revogar a sentença recorrida, absolvendo-se a Ré do pedido.

Custas pela Recorrida, sem prejuízo da isenção ou apoio judiciário de que beneficie.»

Com o patrocínio do Ministério Público, recorre agora a A. de revista para este Supremo Tribunal, impetrando a revogação do acórdão e a repristinação da sentença da 1ª instância.

A R. contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

1. Vem o presente recurso do acórdão que revogou a sentença da 1.ª instância, absolvendo do pedido a Ré Seguradora,

2. por entender mostrar-se descaracterizado o acidente, nos termos do art. 14.º, n.º 1, alínea b) e 3, da Lei n.º 98/2009, de 04.09,

3. devido a negligência grosseira do sinistrado, como causa exclusiva do acidente.

4. A recorrente discorda frontalmente do entendimento vertido no acórdão recorrido,

5. por não resultar da matéria de facto provada que o acidente se deveu, em concreto, à condução sob influência de álcool pelo sinistrado, ou foi por ele influenciado,

6. e o evento, em face da matéria de facto assente, tanto poder provir da TAS, como de qualquer outra causa desconhecida, como cansaço, inabilidade ou imperícia na condução do ciclomotor, ou até perda momentânea de consciência (sem ligação com a TAS);

7. Não foi produzida prova pela Ré seguradora, da existência de negligência grosseira do sinistrado e do nexo de causalidade adequada com o acidente;

8. Consequentemente, aquela não pode ser desonerada da obrigação de proceder à reparação do acidente, nos termos do art. 14.º, n.º 1, alínea b) e 3, da Lei n2 98/2009, de 04.09;

9. posto que esta só se verifica, como salienta uniformemente a doutrina e a jurisprudência, quando o acidente resultar exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

10. considerando-se esta um concreto comportamento temerário, em alto e relevante grau, de culpa grave e próxima do dolo;

11. de alguém que, nos casos de condução sob influência de álcool, se encontra, em concreto, em estado de privação do uso da razão e próximo do coma;

12. o que se não pode inferir da simples existência de TAS no sangue;

13. por a influência no comportamento humano da TAS variar de pessoa para pessoa e de variados factores (dos hábitos alimentares, dos hábitos de consumo de álcool, da constituição física, da toma de medicação, do repouso);

14. Ora, como facto impeditivo do direito da Autora, tinha a Ré seguradora o ónus de prova de que o acidente se deveu a negligência grosseira do sinistrado, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil;

15. Não tendo produzido prova da descaracterização do acidente in itinere, que vitimou o sinistrado, a Ré seguradora terá de proceder à reparação do acidente, conforme bem decidiu a 1.ª instância;

16. A decisão recorrida violou, por errada interpretação/aplicação, o disposto no artigo 14.º, n.º 1, alínea b) e 3, da Lei n.º 98/2009, de 04.09;

17. Pelo que deve ser revogada e substituída por outra, que condene a Ré seguradora nos pedidos, tal como bem decidiu a 1.ª instância.”

Por seu turno a R., recorrida, formulou seguintes conclusões:

“i) Atenta a matéria de facto dada como provada das instâncias resulta clara a demonstração dos pressupostos da descaracterização do acidente de trabalho por negligência grosseira do sinistrado;

ii) Não se podendo impor ao responsável onerado com a prova da descaracterização, a alegação de conjecturas causais possíveis ainda que sem qualquer indício de terem ocorrido, para que faça a prova negativa de todas elas;

iii) Provado o TAS de 2,74g/l, mais do dobro do limite que configura crime, provada a inexistência de factores na via, ou no veículo que pudessem ter concorrido para o acidente, e consistindo este no facto de seguindo devagar o condutor não desfazer a curva, seguir de frente contra o passeio e colidir com um poste, é de ter como demonstrada a exclusividade causal do TAS na eclosão do acidente;

iv) Não violou, por isso, o acórdão sob revista, nenhuma das invocadas disposições legais visadas nas conclusões da recorrente.”

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO ADJETIVO

Os presentes autos respeitam a ação especial emergente de acidente de trabalho participado em 11 de julho de 2013.

O acórdão recorrido foi proferido em 7.03.2019.

Assim sendo, são aplicáveis:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão atual.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO:

Face às conclusões formuladas, a questão submetida à nossa apreciação consiste em saber se o acidente ocorreu exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado, com a sua consequente descaracterização.

4 - FUNDAMENTAÇÃO

4.1 - OS FACTOS

A matéria de facto julgada provada pelas instâncias é a seguinte:

1- O sinistrado era trabalhador ao serviço de “DD, Lda.”, com sede na Rua ..., Ap. …, ..., ..., que se dedica à indústria de calçado.

2- Executava as funções de guarda no local da sede da entidade empregadora referida, sob as ordens, direcção e fiscalização da mesma.

3- E residia na Rua …, em ..., ....

4- O sinistrado seguia na Rua …, no sentido … - ..., na EN 207, sentido Norte/Sul.

5- No dia 10/07/2013, pelas 20,30horas, o sinistrado deslocava-se do seu local de trabalho para a sua residência.

6- E tripulava como sempre o ciclomotor de matrícula -FX-.

7- Seguia pela metade direita da faixa de rodagem e usava capacete de protecção.

8- Ao chegar a uma curva à esquerda, atento o seu sentido de marcha referido no facto 4, e na Rua aí também referida, freguesia de ..., ..., ..., o sinistrado entrou em marcha desgovernada.

9- Ao chegar a essa curva, o sinistrado não conseguiu manobrar a direcção do ciclomotor em que seguia para curvar à esquerda, nem ter reflexos para evitar que o mesmo embatesse no passeio, e, após, desequilibrou-se. (Alterado pela Relação).

10- E foi embater no passeio do lado direito da faixa de rodagem e de seguida deslizou a raspar lateralmente no passeio por cerca de 5 m, depois colidiu o seu corpo com o sinal de trânsito vertical aí existente, caindo de seguida imobilizado.

11- O sinistrado circulava entre os 30 e os 50 km/hora.

12- Em consequência do descrito acidente, o sinistrado sofreu lesões traumáticas torácicas descritas no relatório de autópsia no cadáver, junto a fls. 41 a 43, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, que lhe causaram directa e necessariamente a morte às 21,15 horas, do dia 10/07/2013.

13- A rua referida no facto 4, antes de chegar à curva referida no facto 8, tem uma configuração rectilínea.

14- Essa curva dista cerca de 1 Km do local de trabalho do sinistrado.

15- Nesse local a estrada tem 5,90 metros de largura.

16- Na ocasião descrita nos números anteriores ainda era dia, com luz solar.

17- O piso da estrada por onde o sinistrado circulava era betuminoso.

18- E estava seco.

19- O sinistrado quando foi autopsiado apresentava uma presença de álcool etílico numa concentração de 2,74 g/l.

20- Essa concentração de TAS corresponde na escala de EE à fase de

“Confusão”: desorientação, confusão mental, vertigem, disforia, estados emocionais exagerados (e.g. medo, raiva, tristeza); distúrbios da visão (e.g. diplopia) e de percepção da cor, forma, movimento e dimensões, limiar de dor aumentado, aumento da incoordenação motora, com andar cambaleante, ataxia, apatia e letargia; ou

“Letargia”: inércia generalizada, praticamente com perda das funções motoras; diminuição marcada da resposta a estímulos; descoordenação motora, incapacidade em se manter de pé ou para deambular, vómitos e incontinência, prejuízo da consciência, estado de sonolência ou de letargia.

20-A)- A autoridade policial autuante e os serviços de averiguação da ré não detectaram qualquer deficiência no veículo que pudesse ter motivado o despiste. (Aditado pela Relação).

21- O sinistrado auferia a retribuição de € 492,00 x 14 meses/ano, acrescida de € 2,20 x 22 x 11 meses/ano de subsídio de alimentação.

22- A “DD, Lda." transferiu para a seguradora “CC, S.A.” a sua responsabilidade infortunística através de um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho titulado pela apólice n.º …, pela retribuição referida no número anterior.

23- A Autora despendeu a quantia de € 16,00 em transportes nas deslocações a tribunal.

24- E a quantia de € 1.828,00 com o funeral do sinistrado.

25- A Autora nasceu no dia 13/03/1959, era beneficiária da S. Social do Porto n.º ... e era casada com o sinistrado.

26- Frustrou-se a tentativa de conciliação pelos fundamentos constantes do auto de fls. 44 a 47, cujo teor dou aqui por integralmente reproduzido.

4.2 - O DIREITO

Vejamos então a referida questão que constitui o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

4.2.1 – Se o acidente ocorreu exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado, com a sua consequente descaracterização.

Concordam as instâncias, e não é questão que venha suscitada na revista, que se tratou de um acidente in itinere.

Também coincidiram na consideração de que a descaracterização do acidente apenas ocorre se o comportamento do sinistrado, que o originou, tenha sido grosseiramente negligente e que tenha sido essa a causa exclusiva do evento.

Dissentiram todavia na valoração dos factos provados relativos ao nexo de causalidade, tendo a 1ª instância entendido que apesar do sinistrado ter sido o único interveniente no acidente e «apresentar álcool etílico numa concentração de 2,74 g/l., o que… é susceptível de integrar a prática de uma crime p.p. pelo artº 292º do C. Penal… não é, só por si, suficiente para considerar verificada a descaracterização do acidente de trabalho (…). Na verdade, não podemos ignorar, que a matéria de facto provada é manifestamente insuficiente para apurar a dinâmica do acidente e sustentar que a taxa de alcoolémia foi a causadora do acidente, ou seja, que tenham resultado factos que permitam concluir pela existência de nexo de causalidade entre a aludida condução sobre o efeito do álcool e o acidente de que o sinistrado foi vítima. Com efeito, apenas se apurou, no essencial, que ao chegar a uma curva à esquerda o sinistrado entrou em marcha desgovernada embateu no passeio e após desequilibrou-se e foi embater no passeio do lado direito da faixa de rodagem e de seguida deslizou a raspar lateralmente no passeio por cerca de 5 m, depois colidiu o seu corpo com o sinal de trânsito vertical ai existente, caindo de seguida imobilizado. Ficou pois por apurar o que provocou a aludida marcha desgovernada e o desequilíbrio do sinistrado, se o estado de alcoolemia que ele apresentava ou outro factor, nomeadamente alguma avaria do ciclomotor ou outra circunstância externa.»

Já a Relação considerou que dos factos provados «resulta à saciedade que (…) o acidente rodoviário em apreço, que é simultaneamente um acidente in itinere, resultou da falta de domínio e perícia do próprio sinistrado na condução do ciclomotor, que não conseguiu manobrar a direcção do mesmo para curvar à esquerda nem teve reflexos para evitar que embatesse no passeio, causando o seu desequilíbrio, sendo certo ainda que o mesmo circulava com álcool etílico no sangue numa concentração de 2,74 g/l» e que o facto de conduzir com esta taxa de alcoolémia foi a causa exclusiva do acidente com a sua consequente descaracterização.

Vejamos.

Como refere Júlio Gomes ([5]) “[a] descaracterização dos acidentes in itinere faz-se, fundamentalmente, pela aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009…” de 4/09.

Estipula o referido preceito:

Descaracterização do acidente

1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) (…)

b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

c) (…)

2 – (…)

3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

Como daqui resulta, a descaracterização do acidente exige a verificação de dois requisitos: que o acidente provenha de negligência grosseira do sinistrado e que esta sua conduta seja a causa exclusiva do mesmo ([6]). Ou seja, “[p]ara excluir o direito à reparação de acidente (…) é indispensável que o evento seja imputado, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, a comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado (…) o que implica, por um lado, a prova de que o acidente se deveu a conduta inútil, indesculpável, sem fundamento, e de elevado grau de imprudência, da vítima, e, por outro lado, a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção([7]).

É certo também que, como tem sido jurisprudência desta Secção, a simples “circunstância da conduta do sinistrado ser susceptível de integrar infracção estradal, qualificável como grave, não basta para se dar por preenchido o requisito da falta grave e indesculpável da vítima, que está na base da descaracterização do acidente de trabalho([8]). Não é, por isso, suficiente “a mera demonstração de que o sinistrado conduzia com uma taxa de alcoolemia elevada. É indispensável provar a existência dum nexo de causalidade entre esse grau de alcoolemia e o acidente([9]) e que nenhum outro fator causou ou contribuiu de alguma forma para a sua produção.

Foi entendimento da Relação que dos factos provados “resulta à saciedade que” a condução com a taxa de alcoolémia de 2,74 g/l foi a causa exclusiva do acidente. Ou seja, socorrendo-se do disposto nos arts. 349º e 351º do CC, concluiu a Relação que os factos provados estabeleciam o necessário nexo de causalidade, adequado e exclusivo, entre a condução do sinistrado com aquela taxa de alcoolémia e o acidente.

Como se consignou no acórdão desta Secção, de 3.02.2010, proc. 304/07.1TTSNT.L1.S1 (Sousa Grandão) ([10]), «[a] afirmação de um nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: a vertente naturalística, de conhecimento exclusivo das instâncias, porque contido no âmbito restrito da matéria factual, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano; a vertente jurídica, já sindicável pelo Supremo, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido. A adequação concreta entre o comportamento do agente e o efeito lesivo tanto pode ser obtida através da prova que tenha sido directamente alcançada sobre a matéria, como pode ser indirectamente afirmada por meio de presunções judiciais, sendo que, em qualquer dos casos, estamos sempre num domínio de soberania exclusiva das instâncias».

Tratando-se as presunções judiciais «dum meio probatório que é admitido para prova de factos susceptíveis de serem provados por prova testemunhal, conforme determina o artigo 351º do CC, está (…) vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso deste meio probatório pelas instâncias, visto a sua competência, afora as situações de controlo de prova tabelada, se restringir a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados pelas instâncias, conforme resulta dos artigos 722º, nº 3 e 729º, nº 1, do CPC. No entanto, já poderá o Supremo Tribunal de Justiça aferir se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349º e 351º do CC, por se tratar duma questão de direito, podendo assim sindicar se as ilações foram inferidas de forma válida, designadamente se foram retiradas dum facto desconhecido por não ter sido dado como provado e bem assim se contrariam ou conflituam com a restante matéria de facto que tenha sido dada como provada, após ter sido submetida ao crivo probatório.» ([11]).

«O nexo de causalidade (naturalístico) ou seja, indagar se, na sequência do processamento naturalístico dos factos, estes funcionaram ou não como factor desencadeador ou como condição detonadora do dano, é algo que se insere no puro plano factual…» ([12]).

Por conseguinte, uma vez que a respetiva demonstração não está legalmente sujeita a meio de prova diverso da testemunhal, o que a este Supremo Tribunal compete é averiguar se os factos provados constituem o suporte das referidas ilações extraídas pelas instâncias, sem perder de vista que, nos termos do art. 342º, nº 2 do Código Civil, sendo a ocorrência do acidente por culpa grave e indesculpável da vítima, a circunstância impeditiva do direito à indemnização, é sobre a empregadora e/ou sobre a seguradora que impende o ónus de provar os factos respetivos e que foram eles a sua causa exclusiva ([13]).

Consta do elenco dos factos provados que, aquando do acidente, o sinistrado deslocava-se do seu local de trabalho para a sua residência (5) conduzindo, como sempre, o seu ciclomotor (6), a uma velocidade entre os 30 e os 50 Km/hora (11), circulando pela metade direita da faixa de rodagem (7), tendo a rua uma configuração retilínea (13). Ao chegar a uma curva à esquerda, atento o seu sentido de marcha, situada a cerca de 1 Km do seu local de trabalho (14) o sinistrado entrou em marcha desgovernada (8), não conseguiu manobrar a direção do ciclomotor em que seguia para curvar à esquerda, nem ter reflexos para evitar que o mesmo embatesse no passeio, e, após, desequilibrou-se (9).

O sinistrado quando foi autopsiado apresentava uma presença de álcool etílico numa concentração de 2,74 g/l (19). Essa concentração de TAS corresponde na escala de EE à fase de “Confusão”: desorientação, confusão mental, vertigem, disforia, estados emocionais exagerados (e.g. medo, raiva, tristeza); distúrbios da visão (e.g. diplopia) e de perceção da cor, forma, movimento e dimensões, limiar de dor aumentado, aumento da incoordenação motora, com andar cambaleante, ataxia, apatia e letargia; ou “Letargia”: inércia generalizada, praticamente com perda das funções motoras; diminuição marcada da resposta a estímulos; descoordenação motora, incapacidade em se manter de pé ou para deambular, vómitos e incontinência, prejuízo da consciência, estado de sonolência ou de letargia (20).

Está também provado que, na ocasião ainda era dia, com luz solar (16), o piso da estrada por onde o sinistrado circulava era betuminoso (17) e estava seco (18) e a autoridade policial autuante e os serviços de averiguação da ré não detetaram qualquer deficiência no veículo que pudesse ter motivado o despiste (20-A).

A ilação extraída pela Relação de que “a conduta do sinistrado [foi] adequada a, por si só, dar causa ao acidente [e] foi a sua causa exclusiva”, assentou, assim, nos factos provados, parâmetro a que se limita o poder sindicante do Supremo Tribunal de Justiça, porquanto a demonstração daqueles factos deduzidos não está sujeita a prova de valor superior à testemunhal.

Fixados os factos pelas instâncias resta a este Supremo Tribunal aplicar o regime jurídico adequado (art. 682º, nº 1 do CPC).

Ora, o sinistrado ao iniciar a condução do ciclomotor com uma taxa de alcoolémia de 2,74 g/l, com as consequências psicossomáticas e motoras referidas, e que, como vem provado, foi a causa exclusiva do acidente, adotou um comportamento objetivamente grave, temerário em alto e relevante grau e indesculpável.

Agiu, assim, com negligência grosseira.

Mostram-se, por conseguinte, preenchidas as causas de exclusão da responsabilidade indemnizatória da seguradora, previstas no art. 14º, nº 1, al. b) e nº 4, da Lei 98/2009, de 4/09, como decidido no acórdão revidendo.

5 - DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista.

2 – Confirmar o acórdão recorrido.

3 – Condenar a recorrente nas custas da revista, sem prejuízo da isenção de que beneficie.

Anexa-se o sumário do acórdão.


Lisboa, 3 de julho de 2019


Ribeiro Cardoso (Relator)


Ferreira Pinto


Chambel Mourisco



___________________________
[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão recorrido.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] O ACIDENTE DE TRABALHO - O acidente in itinere e a sua descaracterização, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 251.
[6] Ac. do STJ de 20.10.2011, proc. 1127/08.6TTLRA.C1.S1 (Fernandes da Silva).
[7] Ac. STJ de 17.09.2009, proc. 451/05 (Vasques Dinis). No mesmo sentido os acs. do STJ de 22.06.2005, proc. 360/05 (Maria Laura Leonardo) e de 27.03.2003, proc. 2509/02 (Vítor Mesquita).
[8] Ac. do STJ de 29.11.2005, proc. 1924/05 (Pinto Hespanhol). No mesmo sentido o ac. do STJ de 26.10.2017, proc. 156/14.5TBSRQ.L1.S1 (Gonçalves Rocha).
[9] Ac. do STJ de 17.05.2007, proc. 51/07 (Maria Laura Leonardo).
[10] No mesmo sentido os acórdãos de 22.09.2010, proc. 190/04.3TTLVCT.P1.S1 (Sousa Grandão), de 26.01.2006, proc. 05S3228 (Sousa Peixoto) e de 22.04.2004, proc. 04B1040 (Ferreira de Almeida), entre outros, todos consultáveis in www.dgsi.pt.
[11] Ac. desta Secção de 3.04.2013, proc. 241/08.2TTLSB.L1.S1 (Gonçalves Rocha).
[12] Ac. de 22.04.2004, proc. 04B1040, referido na nota 10.
[13] «[N]ão cabe[ndo], todavia, na amplitude de tal ónus o da demonstração de eventuais fenómenos que, de algum modo e medida, pudessem ter afectado ou condicionado a condução/actuação infraccional do sinistrado». Acórdão referido na nota 6.