Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10/16.6YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADE
ASSINATURA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTENCISO
Decisão: NEGADO.
Sumário :
I. Não ocorre nulidade por falta de fundamentação de direito se a decisão, apesar de não fazer menção expressa a normas jurídicas, enuncia as regras ou princípios jurídicos em que se baseia.
II. O artigo I5°-A do DL do DL 10-A/2020 não padece de inconstitucionalidade orgânica.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 10/16.6YFLSB

                                                                          *

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO

DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA                                          

Notificado do acórdão desta Secção do Contencioso, datado de 24 de Novembro de 2020, veio o Requerente AA arguir nulidades e pedir a reforma do mesmo, invocando ainda algumas inconstitucionalidades.

De forma esquemática, a presente reclamação suscita as seguintes questões:

A - Nulidades:

a)         Falta de especificação dos fundamentos de direito – artigo 615º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil[1].

b) Omissão de pronúncia – artigo 615º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, quanto às seguintes questões:

b.1.     Prescrição do procedimento disciplinar;

b.2.     Ilegalidade na notificação que lhe foi dirigida pelo CSM por omissão da indicação do meio de impugnação administrativa;

b.3. Reabertura da audiência de julgamento para aplicação retroactiva do regime sancionatório mais favorável; Ilegalidade da notificação que lhe foi dirigida, por violação do disposto no artigo 114º, n.º 2, alínea c), do CPA

B. – Inconstitucionalidades

a)         Do artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março;

b)         Das interpretações normativas dos artigos 613º, n.º 1, e 619º a 621º do CPC.

c)         Da interpretação do artigo 114º, n.º 2, alínea c), e n.º 4 do Código do Procedimento Administrativo.

d)        Da interpretação do artigo 371º-A, do Código de Processo Penal.

O Conselho Superior da Magistratura respondeu, pedindo o indeferimento da reclamação.

Apreciando:

É longa a lista de vícios apontados ao acórdão sob reclamação.

Comecemos pelas nulidades.

           

A.

a)

A alínea b) do n.º 1 do artigo 615º comina com nulidade a decisão que não especifique os fundamentos de facto e de direito que a justificam.

Refere o Requerente, a este propósito, que o acórdão sob reclamação não especificou os fundamentos de direito (artigos 5º a 9º da reclamação).

A invulgar situação criada pelo Requerente ao reagir, muito intempestivamente, ao acórdão desta Secção do Contencioso de 22.02.2017, transitado em julgado, que julgou improcedente o recurso que interpusera da deliberação do Plenário do CSM que lhe aplicou a pena de demissão, deu azo a que fosse produzido despacho em que, de forma lapidar, se considerou esgotado o poder jurisdicional e, consequentemente, se declarou não ser possível conhecer do objecto do requerimento apresentado.

Ao reclamar desse despacho para a conferência, o Requerente nada invocou no sentido de infirmar o conteúdo desse despacho e daí que, no acórdão de 24.11.2020 (ora sob reclamação), se tenha referido:

           

“Em relação ao despacho acabado de transcrever, o reclamante não invoca um único argumento susceptível de abalar os seus fundamentos, optando por repetir tudo o que já dissera anteriormente, na tentativa de fazer ressurgir a discussão sobre os motivos de facto e de direito que conduziram à improcedência do recurso que oportunamente interpôs da deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.

O acórdão desta Secção do Contencioso foi proferido em 22.02.2017 e há muito que se mostra transitado em julgado, estando assim esgotada a possibilidade de nova apreciação jurisdicional.

Reitera-se, por conseguinte, o decidido no despacho acima transcrito, com o que se indefere a reclamação”.

Não deixa de ser verdade que nesta decisão da conferência de 24.11.2020 não se faz alusão “a um específico preceito legal”, para usar a expressão do Requerente.

Não cremos, porém, que tal redunde na nulidade invocada.

Como diz Amâncio Ferreira, secundando Antunes Varela[2] e Alberto dos Reis[3], no que concerne aos fundamentos de direito não é forçoso que o juiz indique as disposições legais em que baseia a sua decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam[4]. Também tem sido este o entendimento do STJ [5].

Ora, ao mencionar-se que o acórdão de 22.02.2017 “há muito que se mostra transitado em julgado” e que, desse modo, está “esgotada a possibilidade de nova apreciação jurisdicional”, o acórdão da conferência de 24.11.2020 enunciou, os princípios jurídicos essenciais em que estruturou o indeferimento da reclamação, concretizados nas normas dos artigos 628º e 613º.

b)

No que concerne à nulidade de omissão de pronúncia, refere o reclamante que a decisão da conferência não tomou conhecimento das questões que lhe haviam sido colocadas no requerimento de 15.09.2020, nomeadamente as respeitantes ao conhecimento oficioso da prescrição do procedimento disciplinar, à ilegalidade da notificação do CSM e ao pedido de reabertura da audiência de julgamento para apuramento do regime disciplinar mais favorável (cfr. artigos 10º a 23º da reclamação).

Mais uma vez, sem razão.

Dispõe o artigo 615º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC, que a decisão é nula quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”. Esta nulidade é consequência do incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever ínsito na norma do artigo 608º, n.º 2, onde se prescreve que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

A suscitação desta nulidade pelo reclamante parte do princípio de que esta Secção do Contencioso devia apreciar essas questões. Não foi esse, no entanto, o entendimento do nosso acórdão de 24.11.2020, na medida em que se considerou que, mercê do trânsito em julgado do acórdão de 22.02.2017 tinha ficado esgotado o poder jurisdicional em relação a todo o objecto da impugnação recursória, obstando tal circunstância ao conhecimento dessas questões.

B.

a)

O acórdão reclamado encontra-se apenas assinado pelo relator, que atestou, por escrito, ter o mesmo voto de conformidade dos Ex.ºs Conselheiros Adjuntos, ao abrigo do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março. 

Sustenta o recorrente a inconstitucionalidade orgânica dessa norma, por violação do artigo 165º, nºs 1 e 2 da CRP, afirmando que, ao dispor sobre a forma como devem ser assinadas decisões judiciais colegiais, o DL invadiu a esfera de competência legislativa da Assembleia da República, na medida em que o artigo 165º, n.º 1, alínea p), defere a esta a competência para legislar sobre a organização dos tribunais (artigos 25º a 34º da reclamação).

Vejamos:

Em 13 de Março de 2020 foi publicado o DL 10-A/2020, que estabeleceu medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus - COVID 19.

A Assembleia da República, pela Lei 1-A/2020, de 19 de Março, procedeu à ratificação dos efeitos daquele DL e considerou o conteúdo deste diploma como parte integrante da referida Lei – cfr. artigo 1º, alínea a), e artigo 2º.

O artigo 15º-A foi aditado ao DL 10-A/2020 pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, nele se estatuindo:

“A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram”.

A inconstitucionalidade orgânica dirigida à norma do artigo 15º-A resulta de esta, alegadamente, se incluir na reserva relativa de competência da Assembleia da República, face ao estatuído no artigo 165º, n.º 1, alínea p) da Constituição:

“É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:

(…)

p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos”.

A matéria do artigo 15º-A não diz respeito à organização e competência dos tribunais. Limita-se a prever a possibilidade de, nas decisões judiciais colegiais, a assinatura dos juízes adjuntos ser substituída por declaração escrita do juiz relator, atestando o voto de conformidade daqueles. Neste domínio, a competência legislativa autónoma do Governo advém do disposto no artigo 189º, n.º 1, alínea a), da Constituição.

Sem embargo, mesmo que se pudesse equacionar a inconstitucionalidade orgânica nos termos avançados pelo recorrente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional contraria a conclusão que desses termos se pretende extrair.

O acórdão n.º 859/2014, de 10 de Dezembro[6], esclarece:

“Por outro lado, de acordo com a jurisprudência reiterada do Tribunal, para que se afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante. O facto de o Governo aprovar atos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas por vício de inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, o Tribunal vem entendendo não existir invasão relevante da esfera de competência reservada.”

Ora, se atentarmos na redacção original do artigo 153º do CPC, aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho, reparamos que, na substância, a solução preconizada no artigo 15º-A não conflitua com aquela.

Veja-se, então, o que constava do artigo 153º, n.º 1[7]:

“As decisões judiciais são datadas e assinadas pelo juiz ou relator, que devem rubricar ainda as folhas não manuscritas e proceder às ressalvas consideradas necessárias; os acórdãos são também assinados pelos outros juízes que hajam intervindo, salvo se não estiverem presentes, do que se faz menção”.

Portanto, como se depreende da segunda parte desta norma, quando alguns dos juízes do colégio não estivessem presentes, a sua assinatura era dispensável, conquanto o relator fizesse a indispensável menção.

A norma do artigo 15º-A repristina de certo modo esse procedimento, adaptando-o ao actual estado de coisas, com o objectivo de não comprometer o normal funcionamento dos tribunais durante a crise pandémica. Não introduz, por conseguinte, qualquer inovação ao que já se havia legislado sobre essa matéria. Pode até asseverar-se que o referido artigo constitui ‘um menos’ em relação à norma original do artigo 153º, na medida em que nesta se pressupunha a ausência dos juízes adjuntos, ao passo que na redacção do artigo 15º-A apenas se substitui, por menção escrita do relator, a assinaturas dos juízes adjuntos fisicamente ausentes, mas presentes por via telemática no momento da discussão e votação da decisão.

Improcede, pois, esta arguição de inconstitucionalidade, valendo os mesmos argumentos para afastar a nulidade da decisão reclamada com base na previsão da alínea a), do n.º 1 do artigo 615º do CPC, subsidiariamente alegada no artigo 34º da reclamação.

b)

Afirma também o recorrente, nos artigos 35º a 37º da reclamação, que a interpretação que o acórdão reclamado fez sobre os artigos 613º, n.º 1, e 619º a 621º do CPC desrespeitam os direitos e princípios constitucionais contidos nos artigos 1º e 2º (princípios do respeito pela dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito democrático), 18.º, n.ºs 1 e 2 (princípio da proporcionalidade), e 20.º, n.ºs 1 e 4, e 268.º, n.º 4 (direito a um processo equitativo e a uma tutela jurisdicional efectiva).

Tentando concretizar, refere o recorrente/reclamante (artigo 36º da reclamação):

“(…) , à luz de tais interpretações, por um lado, esgota-se o poder jurisdicional do tribunal e tem lugar o trânsito em julgado de uma decisão judicial que apreciou a impugnação de um acto administrativo através do qual foi aplicada uma pena disciplinar expulsiva a um magistrado judicial sem que tenha chegado a ser apreciada judicialmente a eventual prescrição total do processo disciplinar ocorrida após a apresentação daquela impugnação, invocada pelo sujeito punido já na pendência da ação administrativa[8], e, por outro, esse trânsito em julgado assim alcançado obsta a que seja posteriormente ao mesmo (isto é, a este mesmo trânsito) analisado ainda nesses mesmos autos de ação administrativa o eventual decurso do prazo máximo constitucional e legalmente admissível para a pendência dessa ação administrativa de impugnação de um ato administrativo de aplicação de uma pena disciplinar expulsiva.”

Esta alegação, no segmento que realmente interessa, parte de um pressuposto errado. É que, contrariamente ao alegado, o reclamante apenas invocou a questão da prescrição do procedimento disciplinar no que toca aos factos do processo disciplinar n.º 290/….., não tendo suscitado essa excepção relativamente aos factos do processo disciplinar n.º 155/…... Daí que se tenha concluído pela preclusão desse direito, no âmbito do objecto do recurso apreciado pela decisão de 22.02.2017, conforme expresso na decisão singular do relator que viria a originar a reclamação decidida no acórdão de 24.11.2020.

Como assim, a aplicação dos conceitos de trânsito em julgado e de esgotamento do poder jurisdicional, estribados nos preceitos dos artigos 613º, n.º 1, 619º, n.º 1, 621º e 628º do CPC, está conforme com a lei e não belisca nenhuma das normas ou princípios constitucionais invocados.


c) e d)

Finalmente, o reclamante vem arguir a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 114º, n.º 2, alínea c) e n.º 4 do CPA e do artigo 371º-A do CPP, nos termos acima descritos (artigos 38º a 40º da reclamação).

Com todo o respeito, não vemos como possa vingar tal pretensão.

De facto, a decisão sob reclamação não aplicou, enquanto ratio decidendi da sua pronúncia, qualquer dos preceitos a que o reclamante reporta os problemas de constitucionalidade, limitando-se a concluir, como repetidamente dito, que se mostrava esgotado o poder de apreciação de quaisquer outras questões pelo tribunal, em resultado do trânsito em julgado do acórdão de 22.02.2017 que aplicou ao reclamante a pena disciplinar de demissão.

                                                           *

Em conformidade com o exposto, indefere-se a presente reclamação.

                                                           *

Custas pelo reclamante.

                                                                       *

LISBOA, 25 de Março de 2021

(uma vez que a sessão se realizou por vídeo conferência, atesta-se, nos termos do artigo 15º-A do DL 10-A/2020, que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Ilídio Sacarrão Martins, Maria de Fátima Gomes, Maria Rosa Oliveira Tching, Conceição Gomes, Paula Sá Fernandes e Maria dos Prazeres Beleza)

 

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).   

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[1] Pertencem a este diploma todas as disposições legais sem menção diversa.
[2] “Manual de Processo Civil”, página 688.
[3] “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, página 141.
[4] “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, páginas 48/49.
[5] Cfr., entre outros, os acórdãos de 09.07.2002, no processo n.º 02B331, e de 19.10.2004, no processo n.º 
[6] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt; cfr., também, o acórdão n.º 102/2016, de 23.02.2016, no mesmo endereço electrónico.
[7] Entretanto alterado pelo DL 97/2019, de 26 de Julho.
[8] Nosso sublinhado.