Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
298/14.7JALRA-E.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
ARRESTO
EXECUÇÃO POR CUSTAS
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O recorrente fundamenta o seu pedido de revisão na descoberta de novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação (art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP). E nesse sentido, defende o recorrente que deve ser autorizada a revisão da sentença recorrida e que a referida sentença e o arresto decretado devem ser revogados, por entender que a decisão que decretou o arresto padece de nulidade por ter decretado o arresto sobre um bem comum da arguida/executada e do recorrente e por o recorrente não ter sido ouvido sobre a constituição da dívida que fundamentou o arresto antes do mesmo ser decretado.
II - Porém, a decisão de decretar o arresto de todos os bens pertencentes à arguida/executada, foi tomada na sentença proferida nos autos principais (em sede de processo-crime) e não nos autos de execução, pelo que o pedido de revisão deveria ter sido apresentado nos autos principais e não no processo de execução (art. 451.º, n.º 1 CPP).
III - Com efeito, não obstante o recurso se dirigir ao acórdão condenatório, verifica-se que o recorrente pede, afinal, a "revisão" do despacho judicial proferido em 1 de Fevereiro de 2021 no apenso de execução por custas, que indeferiu o pedido, efectuado pelo recorrente, de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado no processo de execução.
IV - Como estabelece o art. 449.º, n.º 1 e 2, do CPP, só podem ser objecto do recurso extraordinário de revisão as sentenças e os despachos que ponham fim ao processo.
V - A referência legal a despacho que tiver posto fim ao processo deve ser interpretada com apelo ao art. 97.º, n.os 1, al. a) e b), e 2, do CPP. Isto é, terá de tratar-se sempre de acto decisório do juiz, quer tome a forma de sentença (quando o acto decisório conhecer a final do objecto do processo) quer tome a forma de despacho (quando conhecer de qualquer questão interlocutória ou quando puser termo ao processo sem conhecer a final do seu objecto) quer, quando tais actos decisórios forem proferidos por um tribunal colegial, tomem a forma de acórdãos.
VI - No caso vertente, a decisão de que se recorre não é uma sentença condenatória nem um despacho que ponha termo ao processo, relativamente aos quais ocorra qualquer dos fundamentos da revisão previstos no n.º 1 do art. 449.º do CPP, visto que o despacho recorrido se limitou a indeferir o pedido formulado pelo recorrente, de revogação da sentença, na parte em que decretou o arresto do imóvel, e determinou que prosseguisse o processo executivo. Assim, por não ser subsumível à previsão do n.º 2 do art. 449.º do CPP, o despacho recorrido não é susceptível de recurso de revisão.
VII - E, ainda que assim se não entendesse, sempre se dirá que o facto do recorrente ser marido da arguida e o facto do bem arrestado ser um bem comum do casal não são circunstâncias que coloquem dúvidas sobre a justiça de decisão que decidiu condenar a arguida pela prática de um crime e que decidiu decretar o arresto dos bens da mesma. Desde logo, o facto da arguida ser casada nenhuma relação tem com a prática do crime de tráfico de estupefacientes. Por outro lado, nada obsta a que o arresto recaia sobre um bem de propriedade comum da arguida/executada.
VIII - Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, as normas legais do instituto da penhora regulado no CPC não se aplicam ao caso dos presentes autos. Embora o instituto do arresto regulado no CPC remeta para o instituto da penhora, as normas deste instituto apenas serão aplicáveis se não existir norma expressa a regular a questão em análise e apenas na medida em que não contradigam o regime especificamente aplicável (art. 391.º, n.º 2, do CPC). Ora, no caso dos presentes autos, esta questão coloca-se ainda com mais acuidade, uma vez que o arresto de bens decretado ocorreu no âmbito de processo de natureza criminal e ao abrigo de normas processuais penais específicas, resultando da aplicação do regime da perda alargada previsto na Lei n.º 5/2002, de 11-01.
IX - Não ocorre a invocada nulidade em virtude da ausência de citação do recorrente, visto que no âmbito do processo-crime em que foi decretado o arresto o recorrente não tinha que ser citado ou ouvido, uma vez que não era arguido ou acusado. Aliás apenas foi decretado o arresto dos bens da arguida. Mas já no âmbito da ação executiva, o recorrente foi devidamente citado, na qualidade de cônjuge da executada para, querendo, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução mediante embargos e/ou à penhora.
X - Verifica-se, assim, que as duas circunstâncias já foram apreciadas pela sentença transitada em julgado em17/07/2017, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 2, pelo despacho judicial proferido em 1 de Fevereiro de 2021 no apenso de execução por custas, que indeferiu o pedido, efectuado pelo recorrente, de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado no processo de execução, e pelo acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, pelo que não se pode considerar que sejam factos novos que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, conforme é legalmente exigido pelo art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP, não existindo, portanto, e no caso em apreço, fundamento que justifique a admissibilidade da revisão.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 298/14.7JALRA-E.S1

Recurso de Revisão

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. No proc. nº 298/14.7JALRA, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 2, por sentença transitada em julgado em17/07/2017, foi a arguida AA condenada pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de cinco anos de prisão, a qual foi suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, sendo tal suspensão acompanhada de regime de prova.

Foi ainda julgado procedente o incidente de liquidação deduzido contra as arguidas AA, declarando perdido a favor do Estado o montante de € 45.935,00 (quarenta e cinco mil novecentos e trinta e cinco euros), condenando as arguidas no pagamento do referido montante e decretando o arresto de todos os bens pertencentes às arguidas que sejam suficientes para garantir o pagamento dessa quantia.

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2. Nesta sequência, foi decretado o arresto de todos os bens pertencentes à arguida, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia declarada perdida a favor do Estado em sede de incidente de liquidação.

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3. Já no âmbito da execução daquela decisão, na sequência da citação do cônjuge da executada AA, veio BB requerer a separação de bens e pedir a revogação da decisão que determinou o arresto do bem imóvel identificado nos autos, alegando que se trata de um bem comum do casal.

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4. Tal requerimento de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado no processo de execução foi indeferido pelo despacho de 1 de Fevereiro de 2021 proferido no apenso de execução por custas (NUIPC n.º 298/14…, com a referência ...67, cfr. fls. 25/27/29/31 da certidão, 1ª parte, com a referência ...93, de 21-03-2022, com cópia em melhores condições a fls. 29/31/33/35 da mesma certidão, 3ª parte).

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5. Inconformado com tal despacho de indeferimento, dele recorreu BB para o para o Tribunal da Relação ..., pretendendo ver revogado o despacho que decretou o arresto de determinado bem imóvel arrestado à executada AA, no âmbito do qual o recorrente foi citado na qualidade de cônjuge da executada.

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6. Por acórdão de 17 de Novembro de 2021, foi negado provimento ao recurso, uma vez que o arresto impugnado foi decidido por acórdão do tribunal criminal transitado em julgado, tendo os direitos do recorrente sido assegurados com a citação no processo executivo, na qualidade de cônjuge da executada.

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7. Nesta sequência, por requerimento apresentado em 4 de Janeiro de 2022, BB, na qualidade de interveniente acidental (cônjuge da executada), veio interpor recurso extraordinário de revisão do acórdão condenatório, invocando o disposto no art. 449.º, n.º 1, al. d) do Código do Processo Penal, por não ter sido apreciada no processo que levou à condenação, a devida citação do recorrente enquanto cônjuge da executada, pelo que, o arresto padece de nulidade em virtude da ausência de citação do recorrente, a qual foi ignorada na ocasião em que teve lugar o julgamento, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

A- O presente recurso tem como objetivo a matéria de Direito do despacho proferido com a refª. ...86 de 15/02/2021, 1ª parte, e que foi confirmada pelo acórdão proferido em Recurso nº 298/14…, o qual manteve o indeferimento da questão prévia de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado na presente execução, com a justificativa de que os direitos do recorrente foram assegurados através de sua citação no processo executivo;

B- O despacho recorrido foi proferido num processo de Execução por Custas;

C- O Recorrente foi citado, na qualidade de Cônjuge da executada AA para, querendo, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução mediante embargos e/ou à penhora, sem prejuízo de poder também requerer a separação de bens ou juntar certidão da pendência de outro processo em que aquela separação já tenha sido requerida, quando a penhora recaia sobre bens comuns do casal, sob pena de a execução contra o seu cônjuge prosseguir nos bens penhorados.

D- Todavia, em requerimento com a refª. ...36 de 15/07/2020, o recorrente invoca questões supervenientes que não só justificam, mas demonstram a nulidade do arresto pela ausência de notificação do ora Apelante.

E- Isto porque, a sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado na presente execução padece de nulidade grave, ante a ausência de citação do Recorrente.

Termos em que, ex positis, e nos demais de direito, que Vossas Exas. mui doutamente melhor suprirão, deve o presente recurso extraordinário de revisão ser considerado procedente e, por via dele, decretar a revogação do arresto que incidiu sobre IMÓVEL de propriedade comum do casal e não próprio da Executada, uma vez que a decisão que decretou o arresto padece de nulidade em virtude da audiência de citação do Apelante.

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8. O Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

- Nos autos principais, foi a arguida AA condenada pela prática de um crime de tráfico e foi decretado o arresto de todos os bens pertencentes à arguida, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia declarada perdida a favor do Estado em sede de incidente de liquidação.

- O Interveniente Acidental BB pretende que a decisão que determinou o arresto do imóvel id. nos autos seja revogada.
- O recurso interposto não foi apresentado no processo competente (art. 451º, n.º 1 CPP).

-  O facto do recorrente ser marido da arguida e o facto do bem arrestado ser um bem comum do casal não são circunstâncias que coloquem dúvidas sobre a justiça de decisão nem que configurem factos novos.

- O recorrente não tem legitimidade para requerer a revisão (art. 450º, n.º 2 CPP).

- As normas legais do instituto da penhora regulado no Código de Processo Civil não se aplicam ao caso dos presentes autos.

- O arresto decretado pela sentença criminal resultou da aplicação do regime da perda alargada previsto na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.

- Perante a redacção dos art.os 7º, n.º 2, al. a) e 10º, n.º 1, ambos da Lei 5/2002, qualquer bem que se inclua no património do arguido tem a possibilidade de ser objecto de arresto.

- Se um bem propriedade de um terceiro pode ser arrestado, por maioria de razão se deverá admitir o arresto de um bem de que a arguida é comproprietária.

10º - Não existe qualquer obrigação legal de ouvir o comproprietário do bem arrestado antes de decretar o arresto.

11º - Resulta dos art.os 7º, n.º 1 e 10º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2002 que o arresto dos bens é determinado se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes previstos no art. 1º da referida lei, independentemente da verificação de quaisquer outros requisitos.

12º - No regime processual penal, a única diligência de prova cuja realização é obrigatória, sob pena de nulidade, é o interrogatório do arguido (art.os 61º, n.º 1, al. b) e 120º, n.º 2, al. d), ambos do CPP).

13º - O recorrente foi citado para deduzir oposição à execução ou à penhora, requerer a separação de bens ou juntar certidão de outro processo que corra termos com vista à referida separação; podendo, desta forma, salvaguardar os seus interesses.

14º - Pelo exposto, entendemos que o recurso apresentado pelo Interveniente Acidental deve ser rejeitado.

Caso assim não se entenda, consideramos que a sentença que decretou o arresto não padece de nulidade, pelo que deve o recurso interposto pelo Interveniente Acidental ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, deve ser negada a revisão da decisão recorrida.

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9. A Mmª Juíza junto do Tribunal recorrido, na informação a que alude o art. 454º, do CPP, pronunciou-se nos seguintes termos:

«Analisado o recurso interposto, de fls. 153, do apenso E, de Recurso Extraordinário de Revisão, cumpre, ao abrigo do disposto no artigo 453.º, n.º 1 do CPP, salientar incidir o objecto de recurso sobre interpretação de elementos já documentados nos autos e insusceptíveis de instrução, através da inquirição de testemunhas.

Por outro lado, analisados os autos, somos do parecer que o recorrente labora em equívoco, no que respeita às finalidades do Recurso de Revisão em Processo Penal, não constituindo o objecto do recurso a sentença penal condenatória, mas sim a decisão de arresto da casa de morada de família, pertencente ao recorrente e à arguida condenada AA, na altura casados sob o regime de comunhão geral.

Invoca o recorrente a nulidade da citação, naqueles autos, mas compulsados os autos de execução (apenso C), constatamos pela regularidade da citação, a fls. 72, como atesta a junção aos autos de requerimento subscrito pelo punho do recorrente, informando ter requerido apoio judiciário, no dia 26 de Junho de 2020, fls. 76, e conforme atesta o requerimento apresentado no dia 15/7/2020 (fls. 96), encontrando-se esta matéria já decidida por despacho, proferido em 1/2/2021 (fls. 117) e confirmado por Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/11/2021, de fls. 359.

Nesses termos, em face do supra exposto e ao abrigo do preceituado no artigo 454.º do CPP, somos do parecer que não se encontram preenchidos os requisitos para que seja autorizada a revisão da sentença proferida».

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10. No Supremo Tribunal de Justiça, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto, concluindo que, por não ser subsumível à previsão do n.º 2 do artigo 449.º do C.P.P., uma vez que o despacho recorrido não é susceptível de recurso de revisão, deverá ser rejeitado.

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11. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.

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 II. Fundamentação.

II.1. O recorrente fundamenta o seu pedido de revisão na descoberta de novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação (artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal).

E nesse sentido, nas respectivas alegações de recurso, defende o recorrente que deve ser autorizada a revisão da sentença recorrida e que a referida sentença e o arresto decretado devem ser revogados, por entender que a decisão que decretou o arresto padece de nulidade por ter decretado o arresto sobre um bem comum da arguida/executada e do recorrente e por o recorrente não ter sido ouvido sobre a constituição da dívida que fundamentou o arresto antes do mesmo ser decretado.

Apreciando:

II.2. A revisão de sentença, com consagração constitucional (artº 29º, nº 6 da CRP), tem natureza excepcional, no preciso sentido de que constitui uma restrição evidente ao princípio da segurança jurídica. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, pag. 1206, «só circunstâncias “substantivas e imperiosas” (…) devem permitir a quebra do caso julgado, de modo que este recurso extraordinário se não transforme em uma “apelação disfarçada”» ou, como ensina o Prof. Eduardo Correia, a revisão de sentença, “ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a paz; quer-se afastar definitivamente o perigo das decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto.” (Caso julgado e poderes de cognição do juiz, Almedina, 1996, pag. 7.).

O caso julgado concede estabilidade à decisão, servindo por isso o valor da segurança na afirmação do direito, segurança que é um dos fins do processo penal. Mas o processo visa também a realização da justiça e por isso se não confere valor absoluto ao caso julgado, que deve ceder em situações de gravíssima e comprovada injustiça. O recurso de revisão representa, pois, a procura do adequado equilíbrio entre aqueles dois valores.

Destina-se, assim, a assegurar a possibilidade de corrigir o chamado «erro judiciário», visando “a obtenção de uma nova decisão judicial que se substitua, através da repetição do julgamento, a uma outra já transitada em julgado.” (In Recursos em Processo Penal – Simas Santos e Leal Henriques – 3ª edição – pag. 164)

Como tem sido repetidamente afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, o recurso de revisão mais não pode ser do que um meio extraordinário de reacção contra sentenças e/ou despachos a elas equiparados transitados em julgado, que apenas deve ser usado nos casos em que o caso julgado se formou em circunstâncias susceptíveis de produzir injustiça clamorosa, visando com a eliminação dessa eventual anomalia, reparar a repulsa de tal injustiça – por todos veja-se o Acórdão proferido no proc. nº 1101/09.5JACBR-B.S1 Relator: Pires da Graça, 15-01-2020: “I. O recurso de revisão, previsto no art. 449.° do CPP, assenta num compromisso entre a salvaguarda do caso julgado, que é condição essencial da manutenção da paz jurídica, e as exigência da justiça. Trata-se de um recurso extraordinário, de um “remédio” a aplicar a situações em que seria chocante e intolerável, em nome da paz jurídica, manter uma decisão de tal forma injusta (aparentemente injusta) que essa própria paz jurídica ficaria posta em causa II. O recurso de revisão é abrangido pelas garantias de defesa, constitucionalmente consagrado, no artigo 29º nº 6, da Constituição da República Portuguesa ao dispor que os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão de sentença e à indemnização pelos danos sofridos. III. O recurso de revisão como recurso extraordinário, é um recurso apertis verbis, isso é destina-se a apreciar perante taxativos pressupostos legalmente consentidos, que sejam invocados como fundamento do recurso extraordinário e na sua apreciação, possam conduzir à revisão do julgado, se dessa apreciação, de forma séria e grave sobressair a injustiça da condenação revidenda.

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II.3. Entende o recorrente que a decisão que decretou o arresto padece de nulidade por ter decretado o arresto sobre um bem comum da arguida/executada e do recorrente e por o recorrente não ter sido ouvido sobre a constituição da dívida que fundamentou o arresto antes do mesmo ser decretado.

Verifica-se, porém, que a decisão de decretar o arresto de todos os bens pertencentes à arguida/executada AA, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia declarada perdida a favor do Estado em sede de incidente de liquidação, foi tomada na sentença proferida nos autos principais (em sede de processo-crime) e não nos autos de execução, pelo que o pedido de revisão deveria ter sido apresentado nos autos principais e não no processo de execução (art. 451º, n.º 1 CPP).

Com efeito, não obstante o recurso se dirigir ao acórdão condenatório, verifica-se que o recorrente pede, afinal, a "revisão" do despacho judicial proferido em 1 de Fevereiro de 2021 no apenso de execução por custas, que indeferiu o pedido, efectuado pelo recorrente, de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado no processo de execução.

Ora, como estabelece o artigo 449.º, n.º 1 e 2, do C.P.P., só podem ser objecto do recurso extraordinário de revisão as sentenças e os despachos que ponham fim ao processo.

A referência legal a despacho que tiver posto fim ao processo deve ser interpretada com apelo ao artigo 97.º, n.os 1, alíneas a) e b), e 2, do Código de Processo Penal.

Isto é, terá de tratar-se sempre de acto decisório do juiz, quer tome a forma de sentença (quando o acto decisório conhecer a final do objecto do processo) quer tome a forma de despacho (quando conhecer de qualquer questão interlocutória ou quando puser termo ao processo sem conhecer a final do seu objecto) quer, quando tais actos decisórios forem proferidos por um tribunal colegial, tomem a forma de acórdãos.

A questão que, por isso, se coloca está em saber se um despacho que se limita a indeferir o pedido, efectuado pelo recorrente, de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado no processo de execução, é um acto decisório, na acepção definida pelo artigo 97.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.

A resposta, em nosso entender, não pode deixar de ser negativa.

Como bem observa o Exmº Procurador Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, despachos que põem termo ao processo são actos decisórios que afirmam a cessação da relação processual por uma forma diversa e alternativa à sentença, ou seja, são actos decisórios que obstam ao prosseguimento do processo até à sentença, o que claramente não sucede no caso do despacho recorrido, que se limitou a indeferir o pedido formulado pelo recorrente, de revogação da sentença, na parte em que decretou o arresto do imóvel, e determinou que prosseguisse o processo executivo.

No caso vertente, a decisão de que se recorre não é uma sentença condenatória nem um despacho que ponha termo ao processo, relativamente aos quais ocorra qualquer dos fundamentos da revisão previstos no n.° 1 do artigo 449.° do C.P.P.

Assim, por não ser subsumível à previsão do n.º 2 do artigo 449.º do C.P.P., o despacho recorrido não é susceptível de recurso de revisão.

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II.4. E, ainda que assim se não entendesse, sempre se dirá que, quanto ao fundamento previsto no art.º 449º n.º 1 d) do CPP, pressuposto primeiro da revisão é a existência de factos ou meios de provas que possam considerar-se novos.

Por outro lado, nos termos do art. 449º, n.º 1, al. d) CPP, a revisão só é admissível se forem descobertos novos factos ou meios de prova que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Sucede, porém, que o facto do recorrente ser marido da arguida e o facto do bem arrestado ser um bem comum do casal não são circunstâncias que coloquem dúvidas sobre a justiça de decisão que decidiu condenar a arguida AA pela prática de um crime e que decidiu decretar o arresto dos bens da mesma.

Desde logo, o facto da arguida ser casada nenhuma relação tem com a prática do crime de tráfico de estupefacientes.

Por outro lado, nada obsta a que o arresto recaia sobre um bem de propriedade comum da arguida/executada.

Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, as normas legais do instituto da penhora regulado no Código de Processo Civil não se aplicam ao caso dos presentes autos.

Embora o instituto do arresto regulado no Código de Processo Civil remeta para o instituto da penhora, as normas deste instituto apenas serão aplicáveis se não existir norma expressa a regular a questão em análise e apenas na medida em que não contradigam o regime especificamente aplicável (art. 391º, n.º 2 CPC).

Ora, no caso dos presentes autos, esta questão coloca-se ainda com mais acuidade, uma vez que o arresto de bens decretado ocorreu no âmbito de processo de natureza criminal e ao abrigo de normas processuais penais específicas.

Assim sendo, as normas de direito processual civil apenas se aplicarão na medida em que as normas de direito processual penal padecerem de lacunas que cumpra preencher (art.os 3º e 4º, ambos do CPP); o que não sucede no que à questão em apreciação diz respeito.

Na verdade, o arresto decretado pela sentença criminal resultou da aplicação do regime da perda alargada previsto na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.

Como refere o despacho judicial proferido em 1 de Fevereiro de 2021 no apenso de execução por custas:

«(…) o arresto foi decretado por sentença proferida nos autos principais (instância criminal) ao abrigo da Lei nº 5/2002 de 11.01, tendo em vista a garantia de perda alargada de produto e vantagens de crime. Por outro lado, decorrida a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu julgar o Incidente de liquidação totalmente procedente e condenou as arguidas no pagamento do valor de € 45.935,00 a título de perda de vantagens do crime.

É esta sentença que funda a presente acção executiva e não se vê que a precedência (ou não) de uma medida de arresto sobre o imóvel prejudicasse a cobrabilidade deste montante: a única utilidade que decorre da providência cautelar, para os presentes efeitos executivos, é a retroacção dos efeitos da penhora à data de um arresto que, a não existir, nenhuma alteração importaria no que tange a atacabilidade do património da executada e do seu cônjuge como agora se observa.

Também não é menos evidente que nenhuma das sentenças judiciárias supra referidas é passível de ser revogada por este Tribunal, como peticiona o requerente, não apenas por força do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613.°/1 do NCPC, ex vi art. 4.° do CPP), mas também porque se acham ambas protegidas por efeito de caso julgado (cfr. art. 621.° do NCPC, ex vi art. 4.° do CPP).

Por outra parte, será de notar que o art. 391.°/2, in fine, do NCPC, expressamente afasta do regime do arresto o corpo de normas relativo à penhora que não se compatibilize com natureza cautelar, transitória e meramente conservatória, da providência e, a nosso ver, conta-se entre elas o disposto no art. 740.° do NCPC.

O disposto neste último articulado legal visa proteger o interesse patrimonial do cônjuge sobre uma acção executiva dirigida contra bens comuns quando esteja colocada a iminência da sua venda judicial, já que os seus efeitos são expurgativos da dominiabilidade pregressa (cfr. art. 824.72 do CC). Tendo em vista não ferir a esfera jurídica do consorte, é imposto á acção executiva que o convoque à instância, permitindo que suscite a separação de acervos patrimoniais do casal, fazendo depender da consolidação de uma situação de inércia imputável ao cônjuge o prosseguimento da cobrança sobre os bens comuns (e levando a que a perda do património conjugal se repercuta sobre outros activos dos consortes na fixação dos respectivos quinhões, assim cingindo os seus efeitos ás relações internas entre ambos).

Está bom de ver, porque o arresto constitui apenas uma medida cautelar, por sua natureza transitória, produz por efeito nada mais que a imobilização dos bens sobre os quais incide (cfr. art. 622.71 do CC). Dito de outra forma, o arresto cinge-se a impor a ineficácia de actos de disposição dos bens praticados pelo titular (a prevalência de pagamento sobre credores depende até de penhora ulterior - cfr. arts. 622.71, in fine e 822.71, ambos do CC) e, nesse pressuposto, não há dúvidas que o escopo normativo do art. 740.° do NCPC se não coaduna com a natureza meramente preventiva da providência de arresto, ficando excluída a sua aplicabilidade deste instituto, ex vi art. 391.72, in fine do NCPC. Por outro lado, mesmo que se entendesse que o reclamante deveria ter sido chamado ao incidente cautelar para pedir a divisão de patrimónios na sequência da efectivação da providência cautelar de arresto, a supressão da nulidade apenas imporia que se realizasse, agora e em resposta à sua reclamação, o acto omitido, ex vi art. 195.72 e 3 do NCPC, salvaguardando-se in totum os demais efeitos produzidos. Significa isto, portanto, que o escopo visado pelo reclamante, de desoneração do bem, jamais seria obtido, resultando suprida a nulidade reclamada (que nenhuma se vislumbra, note-se) com o chamamento à acção executiva para separação de meações já efectuada nesta instância executiva, Temos, portanto, que, por um lado, a sentença proferida acha-se protegida por caso julgado, a perda foi declarada ao abrigo da Lei Penal e a execução do bem afigura-se devidamente titulada por sentença judicial exequível; por outro lado, o facto de não ter sido dado cumprimento ao disposto no art. 740.°, ex vi art. 391./2, ambos do NCPC no âmbito dos autos cautelares não conforma qualquer irregularidade; por fim, que, mesmo que existisse preterição de acto formal na efectivação da providência de arresto, a supressão da nulidade teria de se entender já suprida pela convocação aos autos executivos para os mesmos efeitos».

Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra decidiu negar provimento ao recurso, uma vez que, tendo o arresto impugnado sido decidido por acórdão do tribunal criminal transitado em julgado e, tendo os direitos do recorrente sido assegurados com a citação no processo executivo, na qualidade de cônjuge da executada, impunha-se a improcedência do recurso.

E, quanto à invocada nulidade em virtude da ausência de citação do recorrente, como o próprio alega, " O Apelante foi citado, na qualidade de Cônjuge da executada CC para, querendo, no prazo de 20 dias, deduzir oposição".

No âmbito do processo-crime em que foi decretado o arresto o recorrente não tinha que ser citado ou ouvido, uma vez que não era arguido ou acusado. Aliás apenas foi decretado o arresto dos bens da arguida.

Já no âmbito da ação executiva, o recorrente foi devidamente citado, na qualidade de Cônjuge da executada AA para, querendo, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução mediante embargos e/ou à penhora.

A eventual lesão dos seus direitos, enquanto cônjuge da executada, foi assim salvaguardada, podendo deduzir a sua defesa através de embargos e/ou da separação de bens, com a consequente divisão de meações.

Verifica-se, assim, que as duas circunstâncias já foram apreciadas pela sentença transitada em julgado em17/07/2017, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande - Juiz 2, pelo despacho judicial proferido em 1 de Fevereiro de 2021 no apenso de execução por custas, que indeferiu o pedido, efectuado pelo recorrente, de revogação da sentença que decretou o arresto do imóvel penhorado no processo de execução, e pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, pelo que não se pode considerar que sejam factos novos.

Assim, não se nos afigura a existência de facto ou meio de prova novos, que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, conforme é legalmente exigido pelo art. 449º, nº 1, d) C.P.P., não existindo, portanto, e no caso em apreço, fundamento que justifique a admissibilidade da revisão.

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III. Decisão

Pelo exposto, acordam na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar o pedido de revisão apresentado pelo recorrente BB.  

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC – arts. 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, e Tabela III do RCP.

 

Lisboa, 9 de junho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro