Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
24/20.1YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
JUIZ
DEVERES FUNCIONAIS
ATO ADMINISTRATIVO
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
PARTICIPAÇÃO
LEGITIMIDADE
INTERESSE PÚBLICO
VIOLAÇÃO DE LEI
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO BOM NOME
CONFLITO DE DIREITOS
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIRIGENTE SINDICAL
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I. Nem sempre o exercício da ação de impugnação da decisão de arquivamento de participação disciplinar é ditado apenas pelo interesse da entidade funcional em causa, pelo que, subsequentemente, nem sempre essa impugnação se deve considerar subtraída e alheada dos interesses individuais ofendidos.
II. Nomeadamente, não se vislumbram motivos pelos quais se há de julgar vedada ao participante disciplinar a possibilidade de, mais do que (ou até em vez de) proclamar um interesse na prossecução do interesse público no correto exercício da perseguição disciplinar, alegar, ao invés, pretender pugnar pela defesa de interesses individuais como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação.
III. E, se assim for, não se divisam motivos para, à luz do critério estabelecido na alínea a) do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA, não lhes reconhecer legitimidade para impugnar a decisão de arquivar uma determinada participação disciplinar.
IV. A legitimidade processual ativa radica no interesse concreto e individual da pessoa lesada, e, porque assim, a legitimidade da autora dependia, não da invocação genérica de que a atuação da entidade demandada era violadora do bloco de legalidade aplicável, mas da alegação especificada da forma como o ato impugnado era lesivo e de que modo o mesmo violava os seus próprios direitos e interesses. E ocorre que, conforme emerge grandemente do que vem de expender, essa alegação especificada foi feita.
V. Efetivamente, para além da ofensa do bloco de legalidade, traduzido na alegada violação dos deveres deontológicos a que o participado estava adstrito, a autora salientou ser o participado responsável de lesões na sua esfera jurídica pessoal, nomeadamente ao nível da honra e da boa imagem enquanto magistrada.
VI. Logo, resulta que a impugnação da deliberação da entidade demandada, que ordenou o arquivamento da participação disciplinar, aqui impugnada, visa, para além da defesa da legalidade em geral, a reparação de valores e interesses eminentemente pessoais, que terão sido lesados com essa decisão. O que significa que a autora também alegou ser titular de um interesse direto pessoal e legítimo, como prescreve o artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do CPTA.
VII. A Constituição da República Portuguesa não estabelece qualquer hierarquia entre o direito ao bom nome e reputação, e o direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente através da imprensa. Quando em colisão, devem tais direitos considerar-se como princípios suscetíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infra valoração abstrata.
VIII. De acordo com a orientação estabelecida pelo TEDH e que os tribunais nacionais terão que seguir, as condicionantes à liberdade de expressão e de imprensa devem ser objeto de uma interpretação restritiva e a sua necessidade deve ser estabelecida de forma convincente.
IX. Muito embora o exercício da liberdade de expressão e do direito de informação sejam potencialmente conflituantes com o direito ao crédito e ao bom nome de outrem, tendo em consideração o que decorre da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o Tribunal Europeu dos Direito do Homem (TEDH), tem vindo a dar particular relevo à liberdade de expressão, enquanto fundamento essencial de uma sociedade democrática.
X. A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.
XI. O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de proteção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.
XII. A vinculação dos juízes nacionais à CEDH e à jurisprudência consolidada do TEDH implica uma inflexão da jurisprudência portuguesa, assente no entendimento, até há pouco dominante, de que o direito ao bom nome e reputação se deveria sobrepor ao direito de liberdade de expressão e/ou informação.
XIII. Nos anos mais recentes vingou e privilegiou-se uma orientação segundo a qual a liberdade de expressão, embora deva ser sempre apreciada em equilíbrio com os direitos ao bom nome, à reputação e à imagem, visando a salvaguarda de uma sociedade democrática e considerando a envolvência de cada caso concreto, numa ótica de proporcionalidade, ainda assim merece tutela mais efetiva e candente, enquanto direito essencial cuja proteção é condição para a existência de uma democracia pluralista necessária ao desenvolvimento do homem e ao progresso da sociedade. Isto porque a liberdade de expressão assenta e encontra respaldo no pluralismo de ideias e opiniões livremente expressas.
XIV. O conteúdo e o tom das afirmações do dirigente hão de ser proporcionais à gravidade do dissídio, sob pena da eficácia do discurso pecar por excesso ou por defeito. Vistas as coisas a esta luz, coartar-se-ia excessivamente a liberdade de expressão do dirigente sindical se, por ocasião de um conflito sério, lhe fosse negada a possibilidade de se exprimir com severidade, dureza ou contundência. E tudo isto se aproxima ainda de outra ideia, aliás transversal à nossa ordem jurídica: a de que se deve garantir aos dirigentes sindicais alguma imunidade.
XV. Até porque a relativa imunidade que aos sindicalistas se deve reconhecer aponta na direção contrária: a de que as declarações que profiram têm em vista a defesa dos interesses coletivos a cargo do sindicato, e não um qualquer fim subversivo da “legalidade democrática” ou da consideração devida aos órgãos de soberania.
XVI. A liberdade de expressão de juízes, quando atuam em funções de representação, deve merecer proteção especial.
XVII. O contrainteressado subscreveu o artigo de opinião na qualidade de Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) e não como mero magistrado.
XVIII. Ora, essa qualidade postula uma leitura do comando normativo e estatutário do artigo 7.º-B do EMJ com as devidas adaptações, nomeadamente compaginando-o com o decorrente nos artigos 3.º, alíneas a) e g), dos Estatutos da ASJP e 55.º, nos 1 e 6, da CRP, sob pena de ficar esvaziado do seu conteúdo, e se coartar o direito à liberdade de expressão do dirigente da ASJP.
XIX. Nesse artigo o contrainteressado expressou a opinião que entendeu ser maioritária dos juízes e tendo sempre em consideração o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses sufragado nos órgãos próprios da ASJP pelos juízes.
XX. Dos factos apurados resulta que a atuação do contrainteressado ocorreu nas vestes de Presidente da ASJP, tendo por base o que era do conhecimento público por força de diversos artigos escritos e publicados em jornais, o que se tornou inevitavelmente num assunto mediático e por contraponto, na sua perspetiva, não prestigiador da imagem da justiça, sendo esse o seu ponto de partida para a elaboração do artigo de opinião.
XXI. A esta luz, não se lobriga de que forma possa a atuação aqui apreciada pôr em causa o dever de reserva decorrente do disposto no artigo 7.º-B do EMJ, uma vez que o contrainteressado: a) agiu na qualidade de presidente e representante de uma associação sindical; b) comentou assuntos relevantes para o exercício dessa função e incluídos no respetivo objeto estatutário; e, sobretudo, c) não teceu comentários quanto a um processo judicial em concreto, mas apenas quanto a uma notícia que era veiculada por diversos jornais (de natureza pública).
XXII. As afirmações em causa não foram feitas em termos gratuitos, visando difamar ou ofender a autora, nem têm qualquer intuito difamatório, não havendo aqui uma crítica caluniosa, gratuita, que tem em vista afetar as qualidades pessoais da autora.
Decisão Texto Integral:

Procº nº 24/20.1YFLSB

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO 

AA, Juíza Conselheira……, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 164.°, n.° 1, alínea c), 166.°, n.° 2, 169.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) e 37.° do CPTA, intentar acção administrativa contra o Conselho Superior de Magistratura (CSM), tendo como contra-interessado BB, Juiz Desembargador do Tribunal da Relação .........

Pede que a presente acção seja julgada procedente, declarando-se que a deliberação do Plenário do CSM de 07.07.2020 que ordenou o arquivamento  dos autos  de processo  de inquérito  instaurado contra o Contra-Interessado, é inválida, sendo a mesma anulada, mais devendo o mesmo ser condenado a converter os aludidos autos de inquérito em autos de processo disciplinar.

Em síntese, alegou que o Conselho Superior da Magistratura, ao arquivar o inquérito violou o disposto nos artigos 82.º, 110.º e 126.º do EMJ, na medida em que o participado praticou factos que importam em infracção disciplinar.

Entende a autora que as afirmações feitas pelo participado e constantes do artigo “Militâncias e Justiça” que o mesmo, invocando a qualidade …… da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, fez publicar no jornal ….., na edição …… de Julho de 2020, violam os deveres de boa fé, lealdade e correção, previstos nos artigos 70.º, n.º 1, 73.º, n.º 2, alªs g) e h), da LGTFP, ex vi art.º 32.º do EMJ (na redacção da Lei n.º 21/85, de 30-07, vigente à data dos factos) e, ainda, o dever de reserva previsto no art.º 7.º-B, n.º 2, 3 e 4, do EMJ (na redacção

introduzida pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto).

O demandado, Conselho Superior de Magistratura, contestou, pedindo a improcedência da excepção de ilegitimidade da   autora ou, caso assim se não entenda, deverá a presente ação ser julgada improcedente.

Em resumo, disse que em 09-12-2019, a autora apresentou participação disciplinar junto do CSM, contra o Juiz Desembargador BB, mediante a qual lhe imputou a violação dos deveres profissionais acima já referenciados.

Por deliberação do Plenário do CSM, datada de 03-03-2020, foi determinada a instauração de inquérito para apreciação dos factos participados contra o Senhor Juiz Desembargador, BB e, também contra-participados, relativamente à   Senhora Juíza Conselheira AA.

 Em 05-06-2020, foi elaborado relatório pelo Exmº Senhor Inspector Judicial Extraordinário nomeado para proceder à instrução do inquérito, no qual se concluiu pela falta de indícios suficientes para responsabilização disciplinar do participado Juiz Desembargador BB, propondo-se, em consequência, o arquivamento do inquérito.

No âmbito da deliberação de 07-07-2020, ora impugnada, foi decidido aprovar por maioria, o arquivamento dos presentes autos de inquérito em que são visados a demandante Exmª Senhora Juíza Conselheira Dra. AA, e o contra-interessado Juiz Desembargador Dr. BB.

Em matéria disciplinar o direito dos cidadãos em geral esgota-se na faculdade de participar ao CSM factos ou decisões susceptíveis de constituir infracção disciplinar.

Uma vez deduzida a participação ou queixa, cumpre ao CSM, nos termos legalmente previstos e no âmbito das competências que lhe são confiadas enquanto órgão constitucional dotado de autonomia administrativa e responsável pela gestão e disciplina dos juízes da jurisdição judicial, decidir, fundamentadamente, acerca do arquivamento ou do prosseguimento do processo em matéria disciplinar.

De resto, desde há muito que o sentido dominante e pacífico da Secção do Contencioso do STJ é de que falta legitimidade ao participante para impugnar contenciosamente a deliberação do CSM que, apreciados os concretos circunstancialismos da participação ou queixa apresentada, decide pelo seu arquivamento.

No caso dos autos não se vislumbra em que medida o arquivamento da queixa apresentada e não prossecução de acção disciplinar poderia reflectir-se, directa e pessoalmente na esfera jurídica da autora, lesando-a.

A deliberação que decidiu pela não instauração do procedimento disciplinar, concluindo pela inexistência de indícios suficientes do cometimento de infracção disciplinar, não é suscetível de causar prejuízo à autora, uma vez que essa decisão não causa qualquer prejuízo directo e imediato na sua esfera jurídica.  

A autora não tem interesse directo e legítimo, nem é lesada, nos termos do disposto nos artigos 164.º, n.º 2, do EMJ, e 55.º do CPTA, aplicável ex vi do artigo 169.º do EMJ, na redacção actualmente vigente, aprovada através da Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

Donde, forçoso será concluir que a autora carece de legitimidade para impugnar contenciosamente a deliberação que decidiu pelo arquivamento da participação disciplinar que apresentou.

 Deverá ser liminarmente rejeitada a presente acção administrativa, por falta de legitimidade da autora.

Caso assim se não entenda, inexistem elementos que indiciem a violação, por parte do Juiz Desembargador participado, de qualquer dever funcional susceptível de o fazer incorrer em responsabilidade disciplinar, pelo que não podia ser outro o sentido da deliberação ora posta em crise, sendo indiferente a discordância, ainda que legítima, da autora participante.

Outrossim, inexiste a verificação de qualquer interesse pessoal, directo e legítimo da autora participante quanto à sequência de tal responsabilidade disciplinar.

A deliberação em questão não padece de nenhum vício, seja omissão de pronúncia, falta de fundamentação, violação de lei, ou outro, sendo irrepreensível do ponto de vista da sua validade e plena eficácia.

 

O contra-interessado BB contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Em síntese, alegou que a deliberação impugnada não padece de qualquer ilegalidade, porque os factos praticados não consubstanciam uma infracção disciplinar. Mais alegou que a notícia respeitante à renúncia das funções da autora no Tribunal ….. gerou imensa polémica, visto que foi amplamente difundida na imprensa, e que por esse motivo e atendendo aos seus contornos específicos, e no entendimento do contra-interessado, revelou ser negativo e desprestigioso para a imagem da justiça e dos juízes.

Nessa decorrência, e apenas por esse motivo, sendo o contra-interessado Presidente da ASJP, no cumprimento dos Estatutos da ASJP, do mandato que lhe foi conferido pelos juízes associados e do programa de acção da direcção a que preside, escreveu um artigo de opinião quanto ao assunto vertente – a legitimidade ética de se assumirem publicamente militâncias em causas sociais, políticas, ideológicas, religiosas ou outras – reitere-se, que se encontrava em discussão nos jornais, onde expressou a opinião maioritária dos juízes e tendo sempre em consideração o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses sufragado nos órgãos próprios da ASJP pelos juízes.

O contra-interessado não violou o dever de reserva decorrente do disposto no artigo 7º-B do EMJ, uma vez que agiu na qualidade de presidente e representante de uma associação sindical, comentando assuntos relevantes para o exercício dessa função e incluídos no respetivo objecto estatutário.

Não comentou ou teceu comentários quanto a um processo judicial em concreto, mas quanto a uma notícia que era veiculada por diversos jornais (de natureza

Pública).

Tendo por base o veiculado na comunicação social, o contra-interessado limitou-se a fazer uma reflexão sobre o tema e aquilo que o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses determina, agindo ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº 1, alíneas a) e g), dos Estatutos da ASJP.

Mais alegou que, no caso em concreto, impunha-se ao contra-interessado, e na qualidade de representante dos Juízes Portugueses, a tomada de posição quanto a um assunto que era veiculado na comunicação social, por diversos jornais, e que colocava em causa a imagem da justiça, que expressasse a opinião dos juízes que representa.

Impõe-se que o artigo 7ºB do EMJ, seja interpretado em consonância com o decorrente nos artigos 3º, alíneas a) e g), dos Estatutos da ASJP, sob pena de se

coarctar o direito à liberdade de expressão do dirigente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, aqui contra-interessado, e assim se impedir o exercício da actividade sindical em pleno, que se traduz em concreto na defesa dos interesses dos magistrados e da imagem da justiça, pelo que outra interpretação se revelará inevitavelmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 55º, nºs 1 e 6, da CRP.

Razão pela qual, se deverá entender que a conduta do contra-interessado não

consubstancia numa infracção disciplinar e assim na violação do dever funcional/profissional do direito de reserva, uma vez que a conduta adoptada teve como justificação o exercício da actividade sindical, e não existiu, entre o mais, a intenção.

 Por outro lado, não se vislumbra de que forma o artigo de opinião possa violar

os deveres de lealdade e correcção, atendendo que a linguagem empregue não é de todo ofensiva ou menos própria e não se poderá considerar que os sobreditos deveres se encontram violados pelo facto de o artigo não ser de feição à autora.

O artigo em questão é um artigo de opinião que não visou directamente a autora mas uma reflexão sobre o tema em discussão, demonstrando o que se impõe aos juízes, pelo que mais não fez que exercer o seu direito de liberdade de expressão, e que se impunha em prol da defesa dos interesses da colectividade (juízes e imagem da justiça).

A autora replicou, dizendo que o contra-interessado acusou a autora de usar uma decisão judicial em que, na qualidade de juíza, interviria, como veículo de propaganda de determinada convicção política ou ideológica cuja partilha lhe imputou.

A acusação feita - de a autora instrumentalizar a função judicial a interesses que lhe seriam alheios - constitui - julga-se - um dos piores insultos que pode fazer-se a um Magistrado Judicial.

Tal discurso coloca em crise os atributos de independência e imparcialidade que segundo o EMJ - cf. artigos 4.° e 6.°- C - são apanágio dos Magistrados Judiciais, estando a sua pretensa falta aqui imputada à autora de forma directa e absolutamente inequívoca.  

E sem prejuízo da conduta que a autora imputou ao contra-interessado violar vários deveres de natureza profissional e, de entre eles, o dever de correcção - em que o direito à honra de terceiros pode ver-se parcialmente vertido - é o direito à honra da autora que com a queixa que veio a ser arquivada e a dedução da presente acção está em causa. Como pode ver-se na petição inicial, a autora alegou a lesão desse (seu) direito.

Por isso, a autora é parte legítima na presente acção.

Termina, pedindo que a autora seja considerada parte legítima na presente acção.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

Tendo em atenção a posição das partes expressas nos seus articulados e o acervo documental junto aos autos (maxime a constante do processo administrativo, na acepção dos artigos 1.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo e 84.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, está provada, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos e de acordo com as várias soluções de direito plausíveis, a seguinte matéria de facto:

1) A Exma Doutora AA, ora autora, é Juíza Conselheira ….. desde 26-09-2012.

2) A autora foi colocada, em comissão ordinária de serviço, como Juíza Conselheira do Tribunal….., com efeitos a partir de 22-07-2016, cargo que desempenhou até 04-10-2019, tendo feito cessar a referida comissão de serviço, por renúncia ao referido cargo.  

3) A referida Magistrada foi sócia da Associação Sindical de Juízes Portugueses, desde que iniciou funções no ….. até 04-10-2019, data em que solicitou a sua desvinculação.

4) O Exmo. Dr. BB, ora contra-interessado, é Juiz Desembargador, em funções, como efectivo, no Tribunal da Relação ........., e desempenha o cargo ….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) por via das eleições para os órgãos da ASJP que oportunamente decorreram para o efeito.

5) A …-07-2019, foi publicado no jornal «…….» um artigo da jornalista CC (actualizado em …-07-2019, 0:43), sob a epígrafe «Lei ….. precipitou renúncia de juíza ……» e, como subtítulo, «Colegas de AA reviam-se nas conclusões da magistrada, mas não com a comparação de violência doméstica com terrorismo», e com o seguinte teor:

A controversa lei ….. foi o que precipitou a renúncia da juíza AA às funções de juíza no Tribunal …….  (….),

A magistrada estava incumbida de redigir o acórdão que iria determinar se o diploma que permite aos serviços secretos ter acesso a dados de comunicações, nomeadamente ao tráfego e à localização celular» respeitava ou não a lei fundamental.

Ao que o Jornal ….. apurou, embora a maioria dos juízes se revisse nas conclusões a que chegou AA, não concordou com as considerações que esta fazia comparando violência doméstica e terrorismo.

Assumidamente feminista, AA partilhou de resto, na sua publicação mais recente no ……, um artigo que avança precisamente com a possibilidade de a violência contra mulheres e raparigas ser equiparável ao terrorismo.

A lei …… foi a gota de água que fez transbordar o copo ao fim de três anos desta juíza no ……..

(cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 102-105 do processo administrativo instrutor)

6) Além do artigo referido em 5), entre 25 e 27-07-2019, a notícia da renúncia da autora ao Tribunal ……… foi veiculada por diversos órgãos de comunicação social (jornais impressos e online, televisões e rádios) como tendo resultado de desentendimentos com outros Juízes Conselheiros relativos à decisão de um processo concreto e também relacionadas com um alegado “activismo feminista” da demandante, sem que fosse divulgada nenhuma posição pública da aqui autora quanto ao ocorrido (cf. doc. 1 junto à contestação do contra-interessado, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

7) No dia …-07-2019, na coluna de opinião do jornal «……», onde publica artigos quinzenalmente, o ora contra-interessado, na qualidade ….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, publicou um artigo de opinião alusivo à renúncia da ora autora às funções que exercia no Tribunal……, com o seguinte teor:

Militâncias e Justiça

Ê lícito que o juiz se envolva ativamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam?

A renúncia da juíza do Tribunal …… (….) AA suscita perplexidades que merecem reflexão. Segundo veio a público, ter-se-á recusado a retirar do projeto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei ...... uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo. Não é fácil ver a relação entre o acesso dos serviços de informações aos dados das comunicações privadas e a violência doméstica, ao ponto de se perceber a necessidade de incluir na decisão aquela discutível equiparação conceptual. O facto é que, horas depois da renúncia, a propósito de um artigo da organização……, a mesma juíza proclamou no …. aquilo que tinha tentado pôr no acórdão: «A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados atuem.»

Chegamos assim à primeira perplexidade: é lícito que o juiz expresse na decisão judicial convicções pessoais laterais à fundamentação? No plano da auto regulação ética, a resposta é clara e está dada há muito tempo no documento Compromisso Ético dos Juízes Portugueses: «a correta interpretação do princípio da reserva impede que o juiz utilize a decisão judicial ou a audiência pública para exprimir opiniões ou considerações pessoais de natureza política, ideológica ou religiosa, que não sejam estritamente necessárias para a respetiva fundamentação e se afastem manifestamente do objeto do caso.» Portanto, sem dúvida, uma «decisão comício» em que o juiz usa o poder de que está investido para forçar a imposição das suas convicções pessoais sobre matérias alheias ao processo, é eticamente ilegítima.

Questão diferente é saber se essa falha ética deve ter relevância disciplinar. A resposta não é fácil. Depende das variáveis concretas do caso. Mas, em regra, o controlo administrativo-disciplinar do mérito da fundamentação da decisão judicial implicará violação flagrante do princípio da independência. De todo o modo, não quero avançar mais nesta matéria enquanto estiver pendente nos tribunais a apreciação do caso de outro juiz que foi punido pelas expressões que escreveu num acórdão.

De acordo com os jornais, a juíza que renunciou ao T…. assume-se como ativista de causas feministas. Chegou a declarar que, infelizmente, em Portugal não existe uma teoria feminista do direito! (….., entrevista de …/11/2015).

Esta é a segunda perplexidade. É lícito que o juiz se envolva ativamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam? O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses dá outra vez uma resposta muito clara: «O juiz é livre de participar em qualquer atividade cívica, desde que a mesma não seja suscetível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da atividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações coletivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objetiva e de boa-fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões suscetíveis de virem a ser submetidas aos tribunais.» Portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam.

É evidente que nenhum juiz é ideologicamente neutro e que todas as decisões têm efeitos sociais. Aplicar a lei aos casos da vida não é um ato asséptico. Simplesmente, o problema não é esse. O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais - sejam elas quais forem - tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções. E isso é a negação da Justiça, que tem de ser imparcial, objetiva e o mais distanciada possível da personalidade do juiz.

Se quisermos ver isso com toda a nitidez, fora deste caso da juíza do T…., podemos pensar no que aconteceu em 2001, quando o Tribunal ….. foi chamado a decidir sobre os touros …….. Se a juíza que julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma ativista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão? A resposta é tão óbvia que dispensa mais justificação. Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa.

…….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

(cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 97-101 do processo administrativo instrutor)

8) A 09-12-2019 a aqui autora apresentou na entidade demandada participação disciplinar contra o aqui contra-interessado, em função do artigo referido em 7), através da carta expedida sob registo …… (cf. doc. 1 junto à petição inicial, a fls. 7-v. a 26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

9) A 14-01-2020, o Plenário do CSM, aqui entidade demandada, deliberou por unanimidade «tomar conhecimento do expediente apresentado pela Exma. Senhora Juíza Conselheira…….., Dra. AA, bem como o apresentado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador BB. Mais foi deliberado por unanimidade, delegar no Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Vice Presidente o acompanhamento desta situação» (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 38-v. do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

10) A 15-01-2020 a entidade demandada remeteu ao contra-interessado cópia da participação da autora «para conhecimento» (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 40 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

11) A 09-02-2020 o contra-interessado remeteu a sua resposta à participação referida em 8) (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 60-67-v. do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

12) A 12-02-2020 o Sr. Vice-Presidente do CSM exarou despacho com o seguinte teor: «Falei pessoalmente com a Sra. Conselheira e com o Sr. Desembargador tendo marcado reunião com ambos para o próximo dia 18 às 14.30» (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 68-v. do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

13) A 19-02-2020, o Sr. Vice-Presidente do CSM exarou despacho com o seguinte teor: «Após a reunião do dia de ontem com a Senhora Conselheira e com o Senhor Desembargador entendo que os factos participados devem ser objecto de averiguação, devendo ser apresentados os autos ao Plenário para tomada de decisão. Dê conhecimento à Senhora Conselheira da resposta apresentada pelo Senhor Desembargador.» (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 69 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

14) A 27-02-2020 a aqui autora apresentou instrumento processual pelo qual exerceu contraditório à resposta do contra-interessado referida em 11) (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 71-83-v. do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

15) - No Plenário da entidade demandada de 03-03-2020 foi deliberada a instauração de processo de inquérito (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 6-v. do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

16) A 13-03-2020, abaixo de uma cota assinada pela Secretária, atestando a recepção dos autos com 85 folhas e de uma conclusão ao Exmo. Juiz Conselheiro DD, na qualidade de Inspector Judicial Extraordinário, consta despacho deste, ordenando, designadamente, a comunicação ao Sr. Vice-Presidente do CSM e informando ter, nessa data, dado início à instrução do inquérito, autuado nos serviços da entidade demandada sob o n.º «………06», mais ordenando a junção aos autos da Nota Biográfica e Registo Individual da autora e do contra-interessado, bem como cópia do relatório de Inspeção Judicial do contra-interessado (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 86-87 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

17) No âmbito do procedimento referido em 16):

a. a ora autora prestou declarações a 25-05-2020 (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 295-298 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

b. o ora contrainteressado prestou declarações a 29-05-2020 (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 299-304 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

c. a autora juntou aos autos, a 03-06-2020, cópia da declaração de voto …… emitida no Proc. n.° 26/2018, do Tribunal Constitucional (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 305 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

d. foi nessa mesma data junta aos autos fotocópia dos Estatutos da Associação Sindical dos Magistrados Judiciais (cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 318-329 do processo administrativo instrutor, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

18) Ainda no âmbito do procedimento referido em 16), foi a 05-06-2020 elaborado relatório com o seguinte teor:

Pº ……….. 06 do CSM

Relatório do Inquérito       

                       

I. Introdução

O presente processo de Inquérito tem por base a douta deliberação do Plenário Ordinário do Venerando Conselho Superior da Magistratura, proferida na sua Sessão de 03-03-2020, do seguinte teor:

«Apreciado o expediente - participação disciplinar, apresentado pela Exma. Senhora Juíza Conselheira, Dra. AA, bem como a resposta do Exmo. Senhor Juiz Desembargador, Dr. BB, após ampla discussão entre os Exmºs.Senhores  Conselheiros presentes, foi          deliberado por unanimidade proceder a inquérito para apreciação dos factos participados e contra participados, relativamente à Exmª Senhora Juíza Conselheira, Dra. AA e Exmo. Senhor Juiz Desembargador, Dr. BB, por Inspetor Judicial Extraordinário, a designar  pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Vice-Presidente»

Na sequência de tal deliberação, dignou-se o Exmº Senhor Juiz Conselheiro Vice-Presidente do CSM designar como Inspetor Judicial Extraordinário, o ora signatário, Juiz Conselheiro Jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, a fim de proceder à instrução do presente Inquérito, como se colhe do expediente que se mostra junto na parte inicial dos presentes autos.

Serviu, como Secretária de Inspeções Eventual, a Exmª Senhora Escrivã de Direito, D. EE, em serviço na 4.ª Secção (Social e Contencioso) do S.T.J., que gentilmente aceitou a incumbência, devidamente autorizada pelo Exmº Senhor Administrador do STJ e igualmente designada para tais funções por douto despacho do Exmº Senhor Juiz Conselheiro Vice-Presidente do CSM.

II. Preliminares

A instrução do presente Inquérito teve início no dia 13 de Março de 2020, nas instalações do Supremo Tribunal de Justiça, num gabinete em que o signatário trabalhava quando aqui exercia funções e, no próprio dia 13 de Março, foram proferidos despachos do Inspetor Judicial signatário, determinando que se informasse o Exmº Senhor Vice-Presidente do CSM de que naquela data se havia dado início da tal instrução, solicitando ao Venerando Conselho as notas biográficas e cópias do Registo Individual dos Exmº s Magistrados visados nos presentes autos, assim como dos dois últimos relatórios de Inspeção referentes ao Exmº Desembargador BB.

De igual sorte, se solicitou a designação da Senhora Secretária de Inspeções Eventual supra referida.

Tendo tomado conhecimento do douto Provimento exarado por S.Exª o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com o nº 2/2020, determinando o isolamento preventivo em face da pandemia que assola o País e o encerramento das instalações do STJ em face do alerta causado pelo surto COVID-2019, ressalvadas as exceções constantes do aludido provimento, teve-se por conveniente não se proceder à tomada de declarações aos visados nestes autos, assim se aguardando a possibilidade de realização de tais diligências presenciais na data a designar quando o estado de emergência findasse se as mesmas se revelassem possíveis.

Entretanto, foi recebida pelo Inspetor signatário uma cópia da procuração outorgada pela Exmª Conselheira AA aos Ilustres Advogados Dr. FF e Dr.ª GG, documento este que lhe foi enviado pela secretaria do CSM na própria data da sua outorga, por via eletrónica, a qual foi mandada juntar aos presentes autos, pelo signatário.

Dado que o estado de emergência foi renovado até 03 de maio p.f., e tendo em atenção que a Exmª Juíza Conselheira – a ser ouvida em declarações nestes autos – reside na cidade ........., implicando a sua deslocação a ….. para o efeito, entrei em contacto telefónico com a mesma, com vista à designação da data para a diligência presencial ou, em alternativa, por teleconferência, tendo a mesma me informado que preferia fazê-lo presencialmente, pretendendo que o seu Ilustre Advogado estivesse consigo, pelo que seria, na sua ótica, preferível que a diligência fosse designada a partir do dia 18 de maio, dado o alívio das medidas de confinamento que então se espera, para poder fazer a viagem ......... a …. e volta.

III. Diligências efetuadas para o apuramento dos factos

Foram efetuadas diligências para obtenção dos documentos relativos à matéria denunciada nos presentes autos e procedeu-se à seleção do mesmos pelo critério da sua relevância para o presente Inquérito, bem como ouvidos presencialmente, mas em dias diferentes, ambos os Exmºs Magistrados em referência cujas declarações constam dos respetivos autos no presente processo.

Em face do exposto, os elementos probatórios apreciados são de natureza essencialmente documental (incluindo fotocópias dos recortes da imprensa), não tendo sido indicadas testemunhas nem efetuados quaisquer exames, por desnecessários, consistindo a prova pessoal nas declarações tomadas a ambos os Magistrados visados.

Deste modo, o presente processo de Inquérito mostra-se instruído com o seguinte:

Acervo probatório documental:

Quanto ao objeto do presente processo:

01– Participação Disciplinar da Exmª Juíza Conselheira AA contra o Exmº Desembargador BB ( fls. 7v-15v).

02– Fotocópia do artigo da jornalista CC, no jornal «…..», …. de Julho de 2019, (actualizado em …..-07-2019, 0:43), sob a epígrafe «Lei ...... precipitou renúncia de juíza …..» e, como subtítulo, «Colegas de AA reviam-se nas conclusões da magistrada, mas não com a comparação de violência doméstica com terrorismo» ( fls. 17v).

03- Fotocópia do artigo subscrito pelas jornalistas HH e CC, … de Julho de 2019, no jornal  «……», sob o título  «Juíza do …. que bateu com a porta já se tinha candidatado ao Tribunal ……» ( fls. 19v).

04- Fotocópia do artigo de opinião «Militâncias e Justiça» publicado no jornal «…» de  …. de 2019, da autoria de BB com a menção de ser Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses ( fls. 15-17).

05- Fotocópia do artigo de opinião da Exmª Juíza Conselheira…., com o título «Quem…..?», no jornal ….., título logo seguido de uma breve asserção, em negrito, com o seguinte teor: «A minha renúncia às funções de juíza-conselheira do T…. não foi uma questão de natureza subjetiva ou de mero conflito entre pares, mas uma questão de interesse público, em relação à qual as sociedades têm direito à verdade», seguindo-se, depois, o texto do artigo ( fls. 23v- 26).

06- Fotocópia de um email, dirigido pela Exmª Conselheira AA aos Exmºs Senhores Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, solicitando uma audiência a propósito da sua renúncia às funções de Juíza Conselheira, datado de 29 de julho de 2019 (fls. 27v).

07- Fotocópia de uma exposição, datada do dia 01-08-2019, que a mesma Exmª Magistrada deu entrada no Conselho Superior da Magistratura, exposição explicativa dos motivos da sua renúncia ao cargo de Juíza Conselheira do Tribunal….., renovando o pedido de audiência solicitado em 29 de Julho de 2019 e acrescentando, na parte inicial da referida exposição, o seguinte: «… vem por este meio apresentar ao Conselho Superior da Magistratura  os motivos de renúncia e solicitar, dado o teor das notícias divulgadas pela comunicação social, que põem em causa a sua honra de juíza, autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ»  (sublinhados nossos) – ( fls. 28,29).

08- Fotocópia de um artigo com o título « É a minha honra de Juíza», publicado no jornal «…..», de ….-12-2019 ( fls. 33 v)

09- Resposta do Exmº Desembargador BB à participação disciplinar contra si apresentada pela Exmª Conselheira AA, referida no nº 1 do presente acervo ( fls. 60v-67).

10- Resposta da Exmª Juíza Conselheira em referência, à resposta indicada no item anterior, acompanhado de dois documentos, a saber:

a)         O meu direito de resposta

b)        artigo da jornalista II, no Jornal…., de …. de Julho de 2019 ( fls. 71-77)

11- Fotocópia do artigo intitulado “Honra de Juíza”. Violência Doméstica nada teve a ver com a saída da juíza AA, a que se refere a alínea b) do número anterior, da autoria da jornalista II, seguindo-se ao título mencionado o seguinte resumo: «Ao contrário do que tem sido noticiado, a proposta de redação do acórdão sobre a lei …. de que AA era relatora, não mencionava violência doméstica. Magistrada saiu por considerar estar em causa a sua “ honra de juíza”. E já pediu audiência ao Conselho Superior da Magistratura para expor o caso (fls.77v)

12- Fotocópia do artigo intitulado «AA: renúncia ao silêncio», com a menção específica de tratar-se de «Direito de resposta de AA a notícias sobre a sua renúncia às funções de juíza do Tribunal ……, publicadas nos dias …, … e … de julho», datado de 13 de agosto de 2019 e sendo tal artigo subscrito por AA e publicado em ......... de 31 de julho de 2019 ( fls. 82).

13- Extrato da Deliberação do Plenário Ordinário do Conselho Superior da Magistratura, de 3 de setembro de 2019, que recaiu sobre o pedido de audiência e de autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ a que se refere o item 07 deste acervo, do seguinte teor:

«O Conselho Superior da Magistratura tomou conhecimento da exposição da Exmª. Sra. Conselheira Dr.ª. AA e, ponderando o teor da mesma, que apenas respeita à organização do Tribunal …… e ao seu funcionamento, considera que não existem razões para deferir a pretensão da Exma. Senhora Conselheira com o fundamento invocado» ( fls. 31v).

14 - Fotocópia do comprovativo da notificação, à Exmª Magistrada, da deliberação referida no item anterior ( fls. 32).

15 – Registo das classificações de serviço do Exmº Desembargador BB, existente no Conselho Superior da Magistratura ( fls. 101- 102).

16 – Mapa do Percurso Profissional do Exmº Juiz Desembargador BB, existente no Conselho Superior da Magistratura ( fls. 100).

17 – Mapa do Percurso Profissional da Exmª Juíza Conselheira AA, existente no Conselho Superior da Magistratura ( fls. 99).

18 - Documento curricular relativo a Habilitações Académicas referente à Exmª Conselheira AA, remetido pelos serviços do CSM, onde constam os graus de Licenciatura em Direito, Mestre em ……. e Doutoramento em Direito, a sua atividade docente universitária, a sua docência em  cursos de pós-graduações e mestrados e uma vasta relação de monografias, anotações a acórdãos publicadas em revistas e livros e ainda a colaboração em obras coletivas ( fls. 274-292).

19 – Cópia dos Estatutos da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), referidos pelo Exmº Desembargador BB, na sua resposta à participação contra si apresentada, e que foi requisitada pelo Inspector signatário à referida Instituição ( fls. )

20 – Cópia de um documento junto pela Exmª Magistrada referida que alega ser a declaração do voto ….. que pretendia que fosse junta ao processo onde foi proferido o acórdão no Tribunal ……, mas cuja junção não terá sido aceite ( fls. 305-317).

IV. Factualidade apurada no Presente Inquérito

Com relevo para os presentes autos mostra-se demonstrada a seguinte factualidade:

Factos respeitantes ao objeto do presente processo:

 01- O Exmº Dr. BB é Juiz Desembargador, em funções, como efectivo, no Tribunal da Relação ........., e desempenha o cargo de Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) por via das eleições para os órgãos da ASJP que oportunamente decorreram para o efeito.

02- A Exmª Doutora AA é Juíza Conselheira……, desde 26-09-2012, tendo sido colocada, em comissão ordinária de serviço, como Juíza Conselheira do Tribunal …….., com efeitos a partir de 22-07-2016, cargo que desempenhou até 04 de outubro de 2019, tendo feito cessar a referida comissão de serviço, por renúncia ao referido cargo.  

03- A referida Magistrada foi sócia da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, desde que iniciou funções no Supremo Tribunal da Justiça até 04 de outubro de 2019, data em que solicitou a sua desvinculação.

04- No dia … de julho de 2019, foi publicado no jornal «……» um artigo da jornalista CC (atualizado em …-07-2019, 0:43), sob a epígrafe «Lei ...... precipitou renúncia de juíza do ……» e, como subtítulo, «Colegas de AA reviam-se nas conclusões da magistrada, mas não com a comparação de violência doméstica com terrorismo».

05- No artigo a que se refere o número anterior, de CC, assim se noticiou no jornal ….. a razão da renúncia da referida Juíza Conselheira:

«A controversa lei ...... foi o que precipitou a renúncia da juíza AA às funções de juíza no Tribunal ……… (….),

» A magistrada estava incumbida de redigir o acórdão que iria determinar se o diploma que permite aos serviços secretos ter acesso a dados de comunicações, nomeadamente ao tráfego e à localização celular» respeitava ou não a lei fundamental.

» Ao que o Jornal……. apurou, embora a maioria dos juízes se revisse nas conclusões a que chegou AA, não concordou com as considerações que esta fazia comparando violência doméstica e terrorismo,

»          Assumidamente feminista, AA partilhou de resto, na sua publicação mais recente no ……, um artigo que avança precisamente com a possibilidade de a violência contra mulheres e raparigas ser equiparável ao terrorismo.

» A lei ...... foi a gota de água que fez transbordar o copo ao fim de três anos desta juíza no ………..».

06 - No dia … de julho de 2019, foi publicado também no jornal «……», um artigo subscrito pelas jornalistas HH e CC, sob o título: «Juíza do …..  que bateu com a porta já se tinha candidatado ao Tribunal ……».

07 - Neste artigo a que se refere o número anterior, de HH e CC, assim se noticiou no jornal ……. a razão da renúncia da referida Juíza Conselheira:

«A até ontem juíza do T…. demitiu-se numa atitude de rutura por causa da redação da proposta de acórdão sobre a constitucionalidade da polémica lei ...... (que regula o acesso dos serviços de informações a dados de tráfego de telecomunicações por parte dos serviços de informação a suspeitos de terrorismo espionagem e criminalidade organizada).

» O texto pronunciava-se no sentido da inconstitucionalidade, mas AA não terá aceite mudar alguns dos considerandos, nomeadamente as comparações entre a violência doméstica e o terrorismo.

» Depois de vários juízes terem colocado objeções a partes da fundamentação da decisão, a relatora do acórdão não compareceu a uma reunião para que tinha sido convocada pelo presidente do T….., JJ, que serviria para alterar a fundamentação do seu relatório. E chegou a haver uma discussão entre os dois, presenciada por várias pessoas. Em face disso, JJ ameaçou-a com um processo disciplinar e AA decidiu renunciar ao cargo.   

» Segundo fonte conhecedora do processo, a relatora temia que lhe fossem propostas alterações substanciais aos fundamentos que tinha escrito no documento, e entendia que não tinha que o fazer. Por seu lado, o presidente do T…. terá entendido que deveriam ser feitas algumas pequenas correções ao texto, para ir ao encontro de objeções de alguns outros juízes.

» Mas a falta de AA à reunião solicitada foi a gota de água para um desentendimento que já vinha de trás. E acabou por precipitar a renúncia da juíza, inédita nestas condições — até agora, só tinha havido abandonos do cargo por doença ou saída para outros cargos»

08 - No dia … de julho de 2019, na coluna de opinião do jornal «……», onde publica artigos ………., o Exmº Desembargador BB na qualidade …… da Associação Sindical dos Juízes Portugueses publicou um artigo alusivo à renúncia da Participante às funções que exercia no Tribunal …...

09  - Tal artigo é do teor que, data venia, aqui nos permitimos reproduzir na íntegra, por forma a permitir a cabal apreciação do mesmo pelo Venerando Conselho:

«Militâncias e Justiça

» Ê lícito que o juiz se envolva ativamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam?

» A renúncia da juíza do Tribunal …… (…..) AA suscita perplexidades que merecem reflexão. Segundo veio a público, ter-se-á recusado a retirar do projeto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei ...... uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo. Não é fácil ver a relação entre o acesso dos serviços de informações aos dados das comunicações privadas e a violência doméstica, ao ponto de se perceber a necessidade de incluir na decisão aqueia discutível equiparação conceptual. O facto é que, horas depois da renúncia, a propósito de um artigo da organização….., a mesma juíza proclamou no ….. aquilo que tinha tentado pôr no acórdão: “A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados atuem.”

» Chegamos assim à primeira perplexidade: é lícito que o juiz expresse na decisão judicial convicções pessoais laterais à fundamentação? No plano da auto regulação ética, a resposta é clara e está dada há muito tempo no documento Compromisso Ético dos Juízes Portugueses: “a correta interpretação do princípio da reserva impede que o juiz utilize a decisão judicial ou a audiência pública para exprimir opiniões ou considerações pessoais de natureza política, ideológica ou religiosa, que não sejam estritamente necessárias para a respetiva fundamentação e se afastem manifestamente do objeto do caso.” Portanto, sem dúvida, uma “decisão comício” em que o juiz usa o poder de que está investido para forçar a imposição das suas convicções pessoais sobre matérias alheias ao processo, é eticamente ilegítima.

» Questão diferente é saber se essa falha ética deve ter relevância disciplinar. A resposta não é fácil. Depende das variáveis concretas do caso. Mas, em regra, o controlo administrativo-disciplinar do mérito da fundamentação da decisão judicial implicará violação flagrante do princípio da independência. De todo o modo, não quero avançar mais nesta matéria enquanto estiver pendente nos tribunais a apreciação do caso de outro juiz que foi punido pelas expressões que escreveu num acórdão.

» De acordo com os jornais, a juíza que renunciou ao T…. assume-se como ativista de causas feministas. Chegou a declarar que, infelizmente, em Portugal não existe uma teoria feminista do direito! (.……, entrevista de …/11/2015). » Esta é a segunda perplexidade. É lícito que o juiz se envolva ativamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam? O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses dá outra vez uma resposta muito clara: “O juiz é livre de participar em qualquer atividade cívica, desde que a mesma não seja suscetível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da atividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações coletivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objetiva e de boa-fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões suscetíveis de virem a ser submetidas aos tribunais.” Portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam.

» É evidente que nenhum juiz é ideologicamente neutro e que todas as decisões têm efeitos sociais. Aplicar a lei aos casos da vida não é um ato asséptico. Simplesmente, o problema não é esse. O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais - sejam elas quais forem - tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções. E isso é a negação da Justiça, que tem de ser imparcial, objetiva e o mais distanciada possível da personalidade do juiz.

» Se quisermos ver isso com toda a nitidez, fora deste caso da juíza do T……, podemos pensar no que aconteceu em 2001, quando o Tribunal …… foi chamado a decidir sobre os touros…... Se a juíza que julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma ativista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão? A resposta é tão óbvia que dispensa mais justificação. Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa.

» ….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses»

10 - Fê-lo, conforme vem indicado no final do artigo, na qualidade ….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.

11 – Os referidos Magistrados não se conheciam pessoalmente, nem nunca se haviam visto ou falado, salvo uma breve conversa encetada nas redes sociais pela ora Participante em que questionou o ora Participado sobre o artigo que este escreveu no jornal …...

12 -  As notícias publicadas nos ditos jornais sobre a renúncia às suas funções de Juíza Conselheira do Tribunal ……. e do motivo porque o fez, a si atribuído em tais notícias com base apenas em «fontes ligadas ao Tribunal …… que não se quiseram identificar» ou simplesmente «segundo fonte conhecedora do processo» como, por exemplo, os factos nºs 04 e 05 do presente acervo factual, causaram mal estar e indignação na pessoa da Exmª Juíza Conselheira AA, além de comentários inúmeros entre profissionais do Foro que inevitavelmente ocorrem em tais situações.

13 – Nessa conformidade, foi enviado um e-mail pela Exmª Conselheira AA aos Exmºs Senhores Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, datado de 29 de julho de 2019, solicitando uma audiência a propósito da sua renúncia às funções de Juíza Conselheira.

14- No dia 01-08-2019 a mesma Exmª Magistrada deu entrada no Conselho Superior da Magistratura de uma exposição explicativa dos motivos da sua renúncia ao cargo de Juíza Conselheira do Tribunal …….., renovando o pedido de audiência solicitado em 29 de julho de 2019 e acrescentando, na parte inicial da referida exposição, o seguinte: «… vem por este meio apresentar ao Conselho Superior da Magistratura  os motivos de renúncia e solicitar, dado o teor das notícias divulgadas pela comunicação social que põem em causa a sua honra de juíza, autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ» (sublinhados e destaque a negrito nossos).

15- Relativamente ao pedido de audiência e de autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ, recaiu Deliberação do Plenário Ordinário do Conselho Superior da Magistratura, de 3 de setembro de 2019,  do seguinte teor:

«O Conselho Superior da Magistratura tomou conhecimento da exposição da Exmª. Sra. Conselheira Dr.ª AA e, ponderando o teor da mesma, que apenas respeita à organização do Tribunal ……. e ao seu funcionamento, considera que não existem razões para deferir a pretensão da Exma. Senhora Conselheira com o fundamento invocado»

16- Tal deliberação mostra-se notificada à Exmª Magistrada impetrante pelo comprovativo referido no item 14 do acervo documental.

17- No dia … de julho de 2019, às 00.08 horas, foi publicado no Jornal……. um artigo da jornalista II, com o título «“Honra de Juíza”. Violência doméstica nada teve a ver com a saída da juíza AA» a que se refere a alínea b) do número anterior, da autoria da jornalista II, seguindo-se ao título mencionado, o seguinte resumo: «Ao contrário do que tem sido noticiado, a proposta de redação do acórdão sobre a lei ...... de que AA era relatora, não mencionava violência doméstica. Magistrada saiu por considerar estar em causa a sua “honra de juíza”. E já pediu audiência ao Conselho Superior da Magistratura para expor o caso» (Documento referido no acervo documental supra, sob o nº 11)

18 – Neste artigo, publicado no  de … de julho de 2019, a jornalista II começa por afirmar que «AA, cuja renúncia ao lugar de juíza conselheira no Tribunal ……., onde estava desde 2016, por indicação ……, foi conhecida na passada quinta-feira, pediu uma audiência ao Conselho Superior de Magistratura para expor o seu caso perante aquele órgão de governo e fiscalização da judicatura. A magistrada, que tem recusado comentar o assunto e voltou a exprimir essa recusa ao Jornal….., considerará ter de se defender face às versões que foram postas a circular sobre os motivos da sua renúncia e, como está obrigada ao dever de reserva, precisa de autorização do CSM para poder falar do assunto. Estará em causa a defesa da sua “honra de juíza” e da sua independência perante os seus pares».

19 – Seguidamente, a mesma jornalista, autora do artigo, assim escreveu na parte que, por interessar ao presente processo, aqui se transcreve:

«Depois de a sua renúncia ter sido tomada pública pela ….. no próprio dia em que foi apresentada, surgiram nos media várias versões sobre os motivos, nas quais avulta a imputação de que teria, num projeto de acórdão sobre a chamada “lei ......”, feito referência à violência doméstica, imputação essa que tem sido relacionada com o que é descrito como “ativismo feminista”. Teria sido então esse seu “ativismo feminista” a motivar o desacordo dos outros juízes face ao texto por si redigido, com a própria a recusar retirar tais considerandos do texto …»

Mais adiante, sob a epígrafe «Texto não tinha qualquer referência a violência doméstica» lê-se:

«Ora ao Jornal…… foi garantido por fonte judicial que o projeto de acórdão assinado por AA não fazia qualquer referência a violência doméstica e que tudo o que se discutiu em relação ao texto tinha exclusivamente que ver com o assunto em causa - a lei ......».

Ainda mais adiante, o referido artigo acrescenta: «Uma das versões que correram sobre o diferendo entre a juíza e os colegas foi relatada pelo Expresso e coincide com o confirmado ao ……: a juíza defenderia que o seu texto acolhia o que fora discutido e votado em plenário, e não aceitava alterações que lhe haviam sido comunicadas fora do plenário».

20 – Na exposição explicativa dos motivos da sua renúncia ao cargo de Juíza Conselheira do Tribunal ……, renovando o pedido de audiência solicitado em 29 de julho de 2019  e pedindo autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ, a que se refere o facto 14.º do presente acervo factual – exposição essa que foi dirigida aos Exmºs Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura – a Exmª Juíza Conselheira explicou, com algum detalhe, o que se passou relativamente aos motivos que a levaram à renúncia das suas funções no Tribunal …….

21- Dado que a referida exposição se mostra junta aos presentes autos, por fotocópia, afigura-se-nos relevante, para o apuramento dos factos, objeto do presente Inquérito, transcrever aqui e agora o item 12 do mesmo documento do seguinte teor: «É importante esclarecer que, por força de sucessivas alterações nas posições de alguns juízes, se tornava muito difícil elaborar um projeto de acórdão. E que, em cada projeto que fiz, eu respeitei essas posições, cumprindo a função do Relator no Tribunal Constitucional que é a de espelhar o mínimo denominador comum à diversidade de posições existentes, abdicando de visões pessoais nas quais os restantes membros da maioria não se revissem. Nunca, em nenhum dos projetos de acórdão por mim apresentados, fiz qualquer comparação entre violência doméstica e terrorismo. Nas divergências quanto à fundamentação estavam em causa questões essenciais e não de mera redação ou correção formal»  ( destaque a negrito nosso).

22- No dia … de dezembro de 2019, a Exmª Magistrada em referência escreveu no jornal «…..», o artigo, com o título «É a minha honra de Juíza» onde, logo a seguir, consta um breve «abstract» do seguinte teor: «o acórdão ...... resultou da violação de regras básicas da colegialidade, e eu não me revia no seu conteúdo», conforme tudo melhor se colhe do citado artigo, junto por cópia ao presente processo a fls. 37 verso.

23- Este artigo foi escrito com o intuito de esclarecimento público das razões da autora quanto às sua discordância em relação à fundamentação do «acórdão ......» (designação cunhada pela C. Social para se referir ao Acórdão nº 464/2019, do Tribunal Constitucional, publicado no DR. Série I de 2019-10-21)  que estiveram na base da sua renúncia a tal cargo, com vista a evitar a continuação de diversas especulações públicas geradas pelas diversificadas e até contraditórias notícias, supra mencionadas.

24- No que tange à questão da sua renúncia às funções que desempenhava como Juíza Conselheira do Tribunal ……., a Exmª Magistrada em referência terá tido, segundo as suas próprias declarações nos presentes autos, 4 (quatro) intervenções, sendo dois artigos, um texto de direito de resposta e uma entrevista.

25-O primeiro texto é o do exercício de direito de resposta, intitulado «AA renuncia ao silêncio», datado de 13/08/2019, sendo o segundo «Quem guarda o guardador» publicado em 23/09/2019 e finalmente um terceiro que é um artigo de opinião intitulado «É a minha honra de juíza», de …/12/2019. E deu ainda uma entrevista ao …… no dia …/12/2019. A entrevista incidiu sobre vários assuntos entre os quais a renúncia ao Tribunal ……….

26- Afirma ainda, nas referidas declarações prestadas neste processo, o que, dado o seu indiscutível relevo para a compreensão do que está em causa no presente processo, importa hic et nunc transcrever: «que teve que escrever o artigo “É minha honra de Juíza” para afastar definitivamente da opinião pública as ideias falsas que foram propagadas de que teria comparado violência doméstica e terrorismo. Porém não bastava a negação anteriormente feita “no direito de resposta” e no artigo “quem guarda o guardador”, pelo que entendeu, pela positiva, explicitar as causas da sua renúncia e das divergências efetivamente verificadas dentro das sessões, em relação à fundamentação do Acórdão, preenchendo o vazio que tinha ficado em relação as reais causas da renúncia. Esclarece que a frase que aparece em subtítulo: “O acórdão ...... resultou da violação de regras básicas de colegialidade e de igualdade interpares, e eu não me revia no seu conteúdo”, não é da sua autoria».

27- Quando foi perguntado à declarante se tinha reagido ou tomado alguma posição sobre a colocação no seu artigo desse subtítulo, disse que não teve qualquer reação porque já estava muito exausta com desmentidos e artigos.

Perfil pessoal e profissional dos Magistrados visados:

A) Juíza Conselheira AA

28- A Exmª Juíza Conselheira AA teve uma carreira académica de elevado mérito e o seu ingresso no Supremo Tribunal de Justiça foi por concurso público, como jurista de reconhecido mérito e idoneidade cívica, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 51.º do EMJ, na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto.

29– É Juíza….., tendo tomado posse do cargo em 26-09-2012.

30– Foi nomeada, em comissão de serviço ordinária, para o Tribunal…., como Juíza Conselheira daquele Tribunal, funções que exerceu entre 22 de julho de 2016 e 25 de julho de 2019, data em que renunciou a estas funções, regressando ao…...

31– A Exmª Juíza Conselheira AA é detentora de um currículo académico extenso, averbado no Conselho Superior da Magistratura e a que se refere o documento n.º 18 do acervo documental supra referido, do qual respigam os seguintes elementos relevantes para o presente processo:

Graus académicos

– Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade, em …. de 1989, com a média final de …. valores.

–Mestre em ………. pela Faculdade de Direito da Universidade…., em …… de 1993, com a classificação final de Muito Bom - … valores.

– Doutoramento em Direito … pela Universidade….., com a classificação final de … valores, por unanimidade

Atividade docente:

-           Docente na Escola de Direito ......... da Universidade ……., desde ….. de 1989, em regime de exclusividade

– Categoria; Professora …..

– Ao longo da sua carreira colaborou nas disciplinas de Introdução ao Direito, ….., …………., …………, …….. e………..

-           Lecionou a disciplina de Direitos….., da qual é coordenadora, e a disciplina de Mestrado de Direito …..

Docência em cursos, pós-graduações e mestrados

-           Docente do Curso de Pós-Graduação de Proteção….., Centro de Direito …….., Faculdade de Direito da Universidade……; Módulo …….

-           Curso de Mestrado de Direito….., Faculdade de Direito da Universidade…….; Módulos: «……….. » e «…… », janeiro de 2000.

-           Curso de Mediação ………, Associação Nacional de Mediação …../Centro de Estudos Judiciários, Módulos:…………, junho de 2000.

Obs: a par dos graus académicos e das atividades  realizadas por esta Exmª Magistrada, enquanto Professora Universitária que foi até â sua nomeação para o …… por via da competente graduação como  jurista de mérito, consta da referida peça curricular uma extensa produção doutrinal de que não vemos vantagem em, aqui e agora transcrever, uma vez que tal peça se encontra junta ao presente processo de Inquérito, podendo ser facilmente consultada se o Venerando Conselho assim tiver por conveniente.

32 – Não se mostra registado qualquer antecedente disciplinar em relação a esta Exmª Magistrada, no Conselho Superior da Magistratura.

B) Juiz Desembargador BB

33 – O  Exmº Juiz Desembargador BB está colocado no Tribunal da Relação ........., como efetivo, tendo tomado posse do cargo em 25-09-2016.

34 – Na 1.ª Instância, depois de ter estado colocado em diversos tribunais cuja relação consta do documento n.º 16 do acervo probatório documental supra indicado e que aqui se dá por reproduzido, foi colocado, a seu pedido, como Juiz do Círculo ……(efetivo), cargo em que se manteve até a promoção à 2.ª Instância.

35– Tem averbadas, no seu registo individual, as seguintes classificações de serviço, comprováveis pelo documento n.º 15 do acervo probatório documental deste processo:

Bom, como Juiz de Direito da Comarca de Ponte de Sôr, classificação que foi homologada em 19-12-1996.

Bom com Distinção, como Juiz de Direito do Tribunal de Círculo…., classificação que foi homologada em 25-05-1999.

Bom com Distinção, como Juiz de Direito das Varas Cíveis….., classificação que foi homologada em 06-11-2001.

Muito Bom, como Juiz de Direito da Vara Mista……, classificação que foi homologada em 28-01-2003.

Muito Bom, como Juiz de Direito do Círculo Judicial….., classificação que foi homologada em 17- 02-2009.

Muito Bom, como Juiz de Direito do Círculo Judicial…., classificação que foi homologada em 10-02-2015.

36 – Dos elementos pertinentes existentes no CSM nada consta em matéria disciplinar relativamente a este Exmº Magistrado.

37  –  Foi …. do Conselho Superior da Magistratura entre 2001 e 2004.

38 –  Foi ….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) entre 2006 e 2012.

39 –  É um Magistrado Judicial bem conceituado entre os seus Pares e com quem com ele se relaciona, respeitado e respeitador, empenhado nas atividades que lhe estão cometidas, inteligente, arguto e culto, de trato correto e agradável e discreto quantum satis nada constando em desabono do mesmo.

Fundamentação do apuramento da matéria de facto: os factos apurados emergem da análise circunstanciada e criteriosa dos meios de prova recolhidos nos presentes autos, atrás mencionados, não sendo necessário, pela clareza e linearidade que ressaltam de tais provas, todas constantes dos autos, consignar hic et nunc mais argumentos destinados à demonstração da sua credibilidade.

Os documentos juntos foram essenciais e elucidativos para o apuramento dos factos, sendo de mencionar a prontidão, a eficácia e o atendimento excelente dos serviços do Conselho Superior da Magistratura, mesmo em época do estado de emergência em que vivemos, o que aqui nos apraz registar.

As declarações de ambos os Juízes visados, ouvidos de forma presencial nos presentes autos, embora em datas diferentes, foram relevantes para o apuramento do acervo factual descrito, tendo ambos se pronunciado com serenidade e vontade de esclarecimento do necessário, demonstrando viva memória dos factos, boa expressividade verbal e mostrando-se colaborantes para a descoberta da verdade.

V. Enquadramento Jurídico-Disciplinar

O presente Inquérito teve origem numa participação disciplinar apresentada pela Exmª Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, Doutora AA, contra o Exmº Juiz Desembargador Dr. BB,  colocado no Tribunal da Relação ......... e atualmente também ….. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, na qual a Participante imputa ao Participado a violação do dever profissional de reserva, previsto no n.º 1 do art. 12.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (na redação da Lei n.º 21/85, de 30/07, vigente à data dos factos e substancialmente mantida no n.º 2 do art. 7.º da Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto que alterou a referida Lei 21/85, entrando em vigor no dia 1 de janeiro de 2020) violação essa que alega ter sido cometida no artigo Militâncias e Justiça, supra transcrito – facto n.º 09.

De igual sorte, a Participante imputa ao Participado a violação dos deveres de lealdade e de correção, também cometida através do texto do referido artigo.

Por sua vez, na sua resposta a tal participação disciplinar, que lhe foi notificada pelo CSM, o Exmº. Desembargador BB, apresentando a sua versão dos factos e os motivos que o levaram a escrever o aludido artigo, conclui tal peça processual pela forma seguinte:

«O participado, nas funções associativas de representação que exerce transitoriamente, tem intervenção pública frequente e procura fazer esse trabalho com equilíbrio, sempre expressando o que julga corresponder ao sentimento maioritário dos juízes.

»          A participante também não se abstém de intervir em público sobre todas as matérias que entende, sempre na qualidade de Juíza.

»          É pois vontade do participado que o CSM analise o seu comportamento, mas também o da participante e apure, com rigor, se, em que medida e quem é que violou o dever de reserva».

Em face de todo o exposto, cumpre desde já indagar se a factualidade apurada aponta para a subsunção da mesma na fattispecie das invocadas infrações disciplinares, relativamente à(s) conduta(s) do(s) Exmº(s) Magistrado(s) visados no presente Inquérito, de modo a poder suportar um libelo acusatório consentâneo com a realidade, ainda que, se tal for a proposta a formular, no caso de conversão do presente Inquérito em procedimento disciplinar, haja uma fase destinada a assegurar o contraditório (justamente designada como fase de defesa no procedimento disciplinar) e que constitui a pedra angular dos procedimentos em que esteja em causa a aplicabilidade de qualquer ordenamento jurídico sancionatório nos Estados de Direito Democrático, com a tramitação adequada a um «due process of law».

O artigo 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (doravante designado brevitatis causa pela sigla EMJ) a seguinte definição legal de infração disciplinar dos Magistrados Judiciais:

«Constituem infração disciplinar os atos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos princípios e deveres consagrados no presente Estatuto e os demais atos por si praticados que, pela sua natureza e repercussão, se mostrem incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções.»

Como se colhe da própria definitio legis da previsão normativa de tal conceito – semelhante à versão anterior, mas com algumas alterações para o presente caso irrelevantes – a lei estabelece três pressupostos ou  elementos  estruturais para que se verifique uma infração disciplinar: atos dos magistrados judiciais (ações lato sensu, em que se incluem obviamente as omissões juridicamente relevantes), ilicitude, consistente na violação de lei  (princípios e deveres consagrados no Estatuto ou atos incompatíveis com independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções) e culpa [dolo ou negligência («ainda que meramente culposos» na expressão da norma)], pelo que a averiguação da factualidade relevante não prescinde da aquilatação da ilicitude dos factos apurados e da culpa dos seus agentes documentada nos mesmos ainda que, nesta fase, a título necessariamente indiciário. 

Na falta de um de tais pressupostos, não existe infração disciplinar!

Dito isto, importa dizer que o Exmº Desembargador BB efetivamente escreveu, no seu artigo de opinião Militâncias e Justiça [supra transcrito (facto n.º 09)], acerca do que tinha sido noticiado sobre alegada recusa da Exmª Conselheira AA em  retirar,  do Projeto de Acórdão que havia apresentado, uma «comparação entre terrorismo e violência doméstica», mediante as seguintes palavras que constam da transcrição supra efetuada sob o nº 09 do acervo factual do presente Relatório:

«Segundo veio a público, ter-se-á recusado a retirar do projeto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei ...... uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo. Não é fácil ver a relação entre o acesso dos serviços de informações aos dados das comunicações privadas e a violência doméstica, ao ponto de se perceber a necessidade de incluir na decisão aquela discutível equiparação conceptual. O facto é que, horas depois da renúncia, a propósito de um artigo da organização ….., a mesma juíza proclamou no …….. aquilo que tinha tentado pôr no acórdão: “A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados atuem» (destaque a negrito nosso).

Com base em tais noticias sobre o ocorrido no Tribunal ….., difundidas nos jornais supra mencionados e atribuída a fontes que dizem não querer ser identificadas, o falado artigo do …… da ASJP toma posição sobre duas questões que considera relevantes, que aqui se indicam e cujo destaque e sublinhado são nossos:

a) A sentida (pela autora do projeto do Acórdão) necessidade de incluir naquela decisão a «discutível equiparação conceptual», ou seja, a equiparação da violência doméstica ao terrorismo que, segundo tais notícias,  teria constado do Projeto elaborado pela Relatora assinalada e com que os outros juízes não concordavam e que a autora do projeto se teria recusado a retirar do mesmo.

b) A notícia de que a mesma Magistrada « De acordo com os jornais, assume-se como ativista de causas feministas. Chegou a declarar que, infelizmente, em Portugal não existe uma teoria feminista do direito! (….., entrevista de …../11/2015)», sendo nosso o sublinhado e destaque.

Relativamente ao assunto mencionado na alínea b), levanta a questão seguinte: «É lícito que o juiz se envolva ativamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam?».

A partir daqui, desenvolve várias considerações, que melhor se podem constatar na transcrição do referido artigo, supra efetuada e rematada pela seguinte forma:

«É evidente que nenhum juiz é ideologicamente neutro e que todas as decisões têm efeitos sociais. Aplicar a lei aos casos da vida não é um ato asséptico. Simplesmente, o problema não é esse. O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais - sejam elas quais forem - tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções. E isso é a negação da Justiça, que tem de ser imparcial, objetiva e o mais distanciada possível da personalidade do juiz.

» Se quisermos ver isso com toda a nitidez, fora deste caso da juíza do T…., podemos pensar no que aconteceu em 2001, quando o Tribunal ........ foi chamado a decidir sobre os touros ......... Se a juíza que julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma ativista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão? A resposta é tão óbvia que dispensa mais justificação. Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa» (destaque a negrito nosso).

Vejamos, agora, se os factos apurados são suscetíveis de integrar a fattispecie das apontadas infrações disciplinares.

No que concerne à conduta do Exmº Desembargador BB, desde logo se nos afigura patente que não foi o mesmo que atribuiu à Exmª Juíza Conselheira a menção no projeto do acórdão da falada «equiparação da violência doméstica ao terrorismo», como se diz na participação disciplinar mas, baseado em notícias vindas a público nos jornais, que afirmavam que a Exmª Juíza Conselheira em referência, enquanto Relatora do falado Acórdão do T…., «ter-se-á recusado a retirar do projeto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei ...... uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo» e tendo tais notícias de cuja autenticidade não duvidou, como pressuposto,  criticou a conduta noticiada na qualidade de ……. da Associação Sindical dos Juízes Portugueses ( ASJP), publicando o dito artigo.

Tendo em atenção que a notícia da renúncia da Exmª Juíza do T…. foi amplamente difundida nos artigos do jornal «……», com títulos e «abstracts» chamativos de atenção, a que se referem os factos apurados 04 a 06, do acervo factual supra elaborado, além de outros, tal atribuição e divulgação foi efetuada pelos próprios jornais e por vários outros que propagaram a notícia pois, como  bem reconhece a Exmª Juíza Conselheira AA, no item 18 da sua Participação Disciplinar contra o Exmº Desembargador BB, «a participante foi objeto de uma onda de notícias falsas, que terão sido divulgadas por fontes ligadas ao Tribunal ……. (“fontes judiciais”) que não se quiseram identificar».

 O Exmº Juiz Desembargador teve como pressuposto do seu citado artigo, as notícias supra referidas, não tendo, até ao momento em que publicou o seu artigo Militâncias e Justiça, razões válidas para duvidar da veracidade do que nelas se continha.

Porém, se é difícil apurar com exatidão quantos e quais os jornais e outros meios de Comunicação Social que divulgaram a notícia da renúncia da Exmª Juíza Conselheira às suas funções no Tribunal ……. ligando-a a uma pretensa recusa em retirar do projeto do acórdão referido uma equiparação entre violência doméstica e terrorismo, seria impossível indagar junto daquele Tribunal a verdade do que se passou durante as discussões em conferência de Juízes sobre o que constava dos projetos, designadamente a veracidade sobre a falada «recusa em retirar do projeto a equiparação da violência em mulheres e crianças ao terrorismo ou sobre o imputado «ativismo feminista» de que fizeram eco algumas daquelas notícias.

Com efeito, é consabido que tudo o que se passa na conferência de Juízes dum tribunal coletivo, reunido para discussão e deliberação sobre decisões judiciais, tem carácter sigiloso, sendo vedada a sua transparência para o exterior, contrariamente ao que se passa nas audiências de julgamento que, em princípio são públicas, ressalvadas as exceções previstas na lei.

Tal regime é muito antigo, pois, como escreveu o ilustre Juiz Conselheiro Orlando Afonso, remonta, pelo menos, ao Estatuto Judiciário:  «No domínio do Estatuto Judiciário, havia uma proibição geral de manifestação de opinião dos magistrados, quer fosse através da imprensa ou de quaisquer outro tipo de mensagens, e um dever absoluto de reserva interna e externa. Aos magistrados era proibido manifestarem-se a favor ou contra outros órgãos de soberania ou funcionários e era-lhes proibido, fosse a que título fosse, revelar opiniões deles próprios ou de outros, emitidas durante as conferências, ou fazer quaisquer declarações sobre processos que não constassem já das decisões proferidas» (Orlando Afonso, “Dever de Reserva – o seu Papel na Jurisdição” in Segredo de Justiça e Dever de Reserva, publicação do Conselho Superior da Magistratura  (Encontro Anual de 2004), Coimbra Editora, 2005, pg.151.

Efetivamente, o vetusto Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 278 de 14 de abril de 1962, dispunha de um inciso legal (artigo 102.º), que expressamente determinava:

«Artigo 102º

» 1-As discussões ou seus incidentes e as opiniões e votos emitidos durante as conferências dos juízes constituem segredo de justiça, salvas as exceções expressamente declaradas na lei.

» 2- A violação do segredo de justiça é considerada falta disciplinar.»

O Professor Alberto dos Reis escreveu, a este propósito, o seguinte, no seu comentário ao artigo 653.º do Código de Processo Civil: «a publicidade da audiência e da sessão não se estende a todos os atos; a conferência para a decisão é secreta, como secretos são os atos de discussão e votação realizados na conferência. Declara-o expressamente o Estatuto nos art.ºs, 99.º e 100.º; confirma-o a alínea g) do artº. 653.°, quando diz que o tribunal recolherá à sala das conferências para decidir. O que aí se passa nem pode ser presenciado por pessoas estranhas, nem pode ser revelado» (ALBERTO DOS REIS,  Código de Processo Civil, anotado, vol. IV, pg. 576, Coimbra Editora Limitada, 1962, anotação ao artigo 653).

Na nova Organização Judiciária do regime democrático, o Estatuto Judiciário foi revogado e, em sua substituição, os Magistrados Judiciais passaram a se reger pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais que, inter alia, impôs o dever de reserva no seu artigo 12.º, estando atualmente previsto no art. 7.º-B do mesmo Estatuto, com as alterações introduzidas pela já referida Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto que, na própria epígrafe do preceito legal, refere o dever de sigilo e o dever de reserva.

Na jurisdição criminal, porém, a lei processual continua a proclamar o dever de sigilo no artigo 367.º do Código de Processo Penal, como se pode colher do Acórdão do STJ de 22-03-2006, P.º n.º 4126/05 (Relator Cons. Sousa Fonte), cujo sumário aqui se transcreve, na parte que ora interessa, pelo seu manifesto interesse didático:

«I - A dimensão do grau de segredo imposta ao círculo de participantes no ato e deliberação e votação que precede a confeção da sentença não deixa dúvidas (art. 367.º do CPP): nada do que naqueles atos processuais ocorreu pode ser narrado ou revelado seja endoprocessual ou extraprocessualmente.

» II - Quer-se que a formação da vontade judicial permaneça secreta, à margem de qualquer manifestação de publicidade, não só em relação ao “público” exterior, mas também em relação aos sujeitos processuais e ao próprio pessoal do aparelho judiciário, expressão de um cerrado e universal sigilo.

» III - E essa exigência de segredo é tanto referente às pessoas como ao local, a decisão erige-se a coberto dos olhares do público e a ele inacessível.

» IV - O juiz, escudado no dever de segredo, fica, desde logo, protegido dos eventuais prejuízos que o sentido de voto lhe pode acarretar e livre para decidir unicamente de acordo com a sua convicção e, por outro lado, sem preocupação com a repercussão que o seu ponto de vista possa trazer sobre a opinião pública.

» V - Os autores alemães Eb. Schmidt e Löwe Rosemberg fundam aquele dever de segredo, a proibição de revelação, na defesa do juiz, quer perante os restantes poderes do Estado, quer perante quaisquer grupos da vida pública (lobbies, grupos de pressão, imprensa, rádio e televisão), quer perante a própria administração da justiça» (disponível in www.pgdlisboa.pt/ jure/stj).

Todavia, na jurisdição cível vem sendo entendido que neste conceito mais abrangente de dever de reserva, se contém o próprio dever de sigilo que era imposto pelo falado art. 102.º do antigo Estatuto Judiciário até porque, como afirmou Alberto do Reis, tal sigilo deduz-se da expressão «o tribunal recolherá à sala das conferências para decidir» pressupondo tal recolhimento o inacesso de estranhos à deliberação, de modo a salvaguardar o secretismo dos debates entre os decisores, que ocorre antes da deliberação vencedora ser publicada (o destaque é nosso).

Apenas o que constar do texto do acórdão publicado, das declarações  de voto que nele figurarem e eventualmente de outros documentos não confidenciais, poderá, então, estar acessíveis à generalidade das pessoas.

Deste modo, não seria possível ao Participado, Exmº Desembargador BB, inteirar-se da verdade dos factos noticiados, na única fonte segura e credível para tal, que seria o Tribunal ……… onde os factos tiveram lugar, justamente por se tratar de matéria sigilosa, e também não faria sentido perguntar à Exmª Magistrada referida no seu artigo Militâncias e Justiça sobre tais factos e esta responder-lhe, além do mais porque ambos estão vinculados ao dever de reserva, como Magistrados Judiciais que são.

Do exposto resulta, que não fez declarações ou comentários públicos sobre qualquer processo judicial, antes criticou teoricamente uma conduta da Exmª Juíza Conselheira AA, descrita pela Comunicação Social como tendo ocorrido no T…. durante a fase de elaboração e discussão do projeto de que era Relatora, projeto esse destinado à prolação do Acórdão que decidiu da questão da constitucionalidade da lei vulgarmente denominada lei ...... e, igualmente, a sua alegada (pela imprensa) militância em causas sociais, com os potenciais efeitos negativos que tais militâncias podem produzir na confiança dos cidadãos  nas decisões de juízes militantes em certas causas.

O Exmº Magistrado em referência assentou no pressuposto de que tais notícias corresponderiam à verdade dos acontecimentos e não seria de esperar  que, sem que houvesse motivos válidos para descrédito nas mesmas ou dúvida razoável, se recusasse a dar-lhes crédito, pois, como se lê numa antiga decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 26 de abril de 1979, «Ao direito da imprensa de difundir informações, corresponde o direito do público de as receber»  (Decisão do TEDH, de 26-04-1979, caso Sunday Times, referida pelo Juiz Conselheiro Pinheiro Farinha, na sua Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada, pg. 48), tanto mais que não era apenas um isolado jornal que a divulgou.

E o mesmo se diga em relação a tudo o mais que  Comunicação Social teria publicado sobre a referida Magistrada, destacando-se o propalado «ativismo de causas femininas» e a hipótese adrede congeminada sobre uma ficcionada juíza que teria de julgar um caso sobre touros de morte, sendo aficionada das touradas: «Se a juíza que  julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma ativista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão?»

Recordemos a parte do texto que a tal se refere:

«De acordo com os jornais, a juíza que renunciou ao T… assume-se como ativista de causas feministas. Chegou a declarar que, infelizmente, em. Portugal não existe uma teoria feminista do direito! (……, entrevista de …./11/2015). Esta é a segunda perplexidade. É lícito que o juiz se envolva ativamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam? O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses dá outra vez uma resposta muito clara: “O juiz é livre de participar em qualquer atividade cívica, desde que a mesma não seja suscetível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da atividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações coletivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objetiva e de boa-fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões suscetíveis de virem a ser submetidas aos tribunais.” Portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam.

» É evidente que nenhum juiz é ideologicamente neutro e que todas as decisões têm efeitos sociais. Aplicar a lei aos casos da vida não é um ato asséptico. Simplesmente, o problema não é esse. O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais - sejam elas quais forem - tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções. E isso é a negação da Justiça, que tem de ser imparcial, objetiva e o mais distanciada possível da personalidade do juiz.

» Se quisermos ver isso com toda a nitidez, fora deste caso da juíza do T…., podemos pensar no que aconteceu em 2001, quando o Tribunal ........ foi chamado a decidir sobre os touros ......... Se a juíza que julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma ativista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão? A resposta é tão óbvia que dispensa mais justificação. Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa.»

As considerações tecidas no artigo Militâncias e Justiça a este respeito, não demonstram objetivamente qualquer «animus injuriandi vel difamandi», nem parecem pôr em causa a consideração devida à Exmª Magistrada em questão mas, de forma inequívoca, parecem evidenciar que a participação pública dos Juízes na defesa de causas sociais, especialmente quando há ressonância mediática, é susceptível de comprometer a imagem da independência dos mesmos aos olhos do público que lê ou ouve tais notícias e, por isso, criar dúvidas sobre a justiça das decisões proferidas em processos em que assuntos relativos ou conexos com  tais causas sociais sejam  por eles julgados e ipso facto sobre a credibilidade da própria Justiça e sobre a confiança dos cidadãos nos tribunais.

Isso mesmo, espelha com clareza a expressão aí utilizada «portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam»!

Importa, outrossim, ter sempre no horizonte que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) não tem apenas como função defender os interesses da Magistratura Judicial e dos magistrados associados de tal instituição mas, de acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 1) dos seus Estatutos [publicados no BTE (1.ª Serie, n.º 12, de 29 de março 01)] cabe-lhe também a promoção da constante dignificação da função judiciária pelos modos descritos na alínea a) do referido preceito estatutário e, além do mais, «veicular externamente as posições dos juízes sobre todos os aspetos relevantes para a defesa da imagem, prestígio e dignidade da judicatura» (alínea g) pelo que é no cumprimento deste preceito estatutário que se mostra escrito o artigo em referência e invocado o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses, como expressamente refere o Exmº Desembargador na sua resposta à Participação Disciplinar e confirma nas suas declarações quando ouvido no presente processo.

Por todo o exposto, não se vislumbra no artigo Militâncias e Justiça a  violação do segredo de justiça ou do dever de reserva, até porque estes deveres têm como elemento teleológico, como é sabido, a tutela da imagem da justiça no conceito dos cidadãos, da confiança nos tribunais e nos seus juízes, do prestígio e independência dos juízes que julgam as suas causas e, basta uma leitura atenta do referido artigo, para se ver que o mesmo gravita exatamente à volta da defesa de tais valores caros a todos os Magistrados e, principalmente, a todos os cidadãos que esses mesmos atributos exigem e esperam da Justiça e dos Juízes que julgam as suas causas.

É claramente neste sentido que no referido artigo vem referido e citado o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses – Princípios para a Qualidade Responsabilidade, da iniciativa e responsabilidade institucional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP).

Questão mais espinhosa é a de saber se o mesmo texto revela infração ao dever de correção invocado pela Exmª Participante e que é um conceito de certa fluidez e vacuidade, que reclama densificação casuística.

É meu entendimento – e  neste Relatório é este que me é exigido – que, não obstante o tom enérgico e crítico das considerações tecidas, não se indicia que  tenha exorbitado dos limites conceptuais da urbanidade e correção, pelo que não se vislumbra tal violação e, como é consabido, no direito disciplinar, como em qualquer ramo do ordenamento jurídico sancionatório, tal infração não se presume, desde logo por a isso se opor a presunção de inocência do arguido, constitucionalmente garantida ( art. 32.º, n.º 2 da CRP), pelo que tal princípio constitucional e trave-mestra dos Estados de Direito como é Portugal, cujo axioma antropológico da dignidade de pessoa humana é solenemente proclamado no art. 1.º da Lei Fundamental, tem aplicação em qualquer ramo do direito sancionatório ainda que aos simplesmente visados num processo, embora  não constituídos arguidos.

Depois, porque se nos afigura relevante ter sempre presente o que doutamente afirmou o Ilustre Juiz Conselheiro Dr. António Henriques Gaspar, que foi Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência do cargo, Presidente do Conselho Superior da Magistratura, numa declaração ditada para a ata na sessão do Conselho Plenário do CSM,  presidida por aquele Ilustre Magistrado e realizada no dia 11-09-2018, e da qual aqui nos permitimos data venia transcrever aqui um breve trecho, a título meramente informativo, a partir de um Extrato de Deliberação de que o signatário, como Inspetor Judicial Extraordinário, instrutor do processo então apreciado, foi devida e oportunamente notificado:

«O Exmo. Senhor Presidente, proferiu a seguinte declaração para a ata: “A motivação do sentido de voto está, no essencial, no juízo que formulo ao interpretar, nas circunstâncias do caso, o sentido da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) que, em matéria de liberdade de expressão e de opinião é muito aberta e abrangente, em favor, em formulação muito usada, de uma ‘super-liberdade’, mas que - concordemos ou discordemos - é vinculativa nas obrigações convencionais.      

» “No caso, a ponderação deve ser feita entre o dever de reserva e a adequação da linguagem usada por um juiz em intervenção pública, com a expressão de opiniões no âmbito da participação num debate público, sobre matéria de relevante interesse público, e os limites do uso da linguagem, quando seja considerada ou praticada alguma ingerência (consequência negativa, nomeadamente uma sanção) no direito de expressão, nos termos da ponderação imposta pelo artigo 10.°, n.° 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH)”».

Finalmente, porque para que se verifique, nas declarações verbais ou escritas, a infração disciplinar da violação do dever de correção, não  basta que as mesmas desagradem ao visado, mas antes que objetivamente sejam ofensivas ou desrespeitosas, pois como define a Lei  Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, no seu art. 75.º «o dever de correção consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos e serviços, os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos», sendo que tal definição legal era, na altura dos factos, aplicável aos Magistrados Judiciais ex-vi do art. 171.º do EMJ que vigorou até ao final do ano de 2019.

Ora tal cunho ofensivo, rude ou grosseiro que traduz a falta de respeito disciplinarmente censurável, não transparece do referido artigo.

A aparente contundência crítica do artigo em causa mostra-se dirigida sobretudo às condutas relatadas nas notícias, que verbera no sentido de serem de evitar pelos Juízes em geral.

Quanto à hipótese conjetural da juíza aficionada de touradas, que figura no mesmo texto, parece-nos evidente que a mesma nada tem a ver com a Exmª Conselheira em referência, até porque se constata que houve o cuidado de enfatizar, desde logo, que tal hipótese estaria «fora deste caso da juíza do T….», pelo que se destinava a exemplificar a inconveniência de os Juízes se empenharem na militância pública de causas socias, o que pode potenciar dúvidas sobre a sua necessárias imparcialidade se tiverem que julgar processos relacionados, direta ou reflexamente, com tais causas sociais.

Cremos serem despiciendas mais palavras para se concluir, após a prova produzida no presente Inquérito,  pela inexistência de indícios de violação do dever de correção,  por banda do Exmº Desembargador BB, assim como do dever de lealdade que lhe é imputado e do qual não existe nem o mais leve indício.

***   

Relativamente a uma violação do dever de reserva por parte da Exmª Conselheira AA, sugerida pelo Exmº Desembargador BB na sua Resposta à Participação contra si apresentada por aquela Magistrada, há que reconhecer que, efetivamente, no seu artigo «É minha Honra de Juíza» que se encontra no presente processo de Inquérito a fls. 37 verso,  descreve detalhadamente o que se passou no Tribunal ……durante a discussão do  projeto de que era Relatora, de tal modo que, se mais nada houvesse a considerar, seria suscetível de configurar, efetivamente, a violação de tal dever especial dos Juízes.

Existem, porém, 2 (dois) factos importantes que não podem ser olvidados, os quais merecem ser considerados neste momento com algum detalhe.

Desde logo, importa ter presente – no tangente à Exmª Juíza Conselheira AA – o que consta dos factos constantes dos nºs 14 e 15 do acervo factual e que aqui se recorda:

«14- No dia 01-08-2019 a mesma Exmª Magistrada deu entrada no Conselho Superior da Magistratura de uma exposição explicativa dos motivos da sua renúncia ao cargo de Juíza Conselheira do Tribunal ……, renovando o pedido de audiência solicitado em 29 de julho de 2019 e acrescentando, na parte inicial da referida exposição, o seguinte: “… vem por este meio apresentar ao Conselho Superior da Magistratura  os motivos de renúncia e solicitar, dado o teor das notícias divulgadas pela comunicação social que põem em causa a sua honra de juíza, autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ» (sublinhados e destaque a negrito nossos).

» 15-  Relativamente ao pedido de audiência e de autorização para exercer o seu direito de defesa, ao abrigo do artigo 12.°, n.º 1, do EMJ, recaiu Deliberação do Plenário Ordinário do Conselho Superior da Magistratura, de 3 de setembro de 2019,  do seguinte teor: “O Conselho Superior da Magistratura tomou conhecimento da exposição da Exmª Sra. Conselheira Dr.ª AA e, ponderando o teor da mesma, que apenas respeita à organização do Tribunal ………. e ao seu funcionamento, considera que não existem razões para deferir a pretensão da Exma. Senhora Conselheira com o fundamento invocado”.»

Não tendo sido obtida a peticionada autorização por parte do CSM, pela razão indicada na referida Deliberação do Plenário, a Exmª Juíza Conselheira AA teve de decidir entre manter-se em silêncio imposto pelo cumprimento do dever de reserva ou satisfazer a necessidade de esclarecer os leitores daquele considerável fluxo noticioso e o público em geral, acerca da inveracidade e até contradição das mesmas relativamente às anunciadas causas da sua renúncia e da equiparação de violência doméstica a terrorismo,  relatando, para isso, o que se tinha passado no TC,  para defesa da sua dignidade e prestígio e do seu bom nome e reputação, o que englobou sob a designação de «A minha Honra de Juíza» que considerou atingida por tais notícias que tem por falsas quanto a uma inverídica comparação no projeto do acórdão entre terrorismo e violência doméstica, que se teria recusado a retirar apesar de instada nesse sentido por outros Juízes, sendo que os valores lesados, como é sabido, constituem direitos de personalidade constitucional e legalmente tutelados. Com efeito, não se tratou de uma notícia isolada, mas de várias e de considerável ressonância social.

Nas suas declarações prestadas no presente Inquérito (fls. 297) a declarante  expressamente afirma que «teve que escrever o artigo “É a minha honra de Juíza” para afastar definitivamente da opinião pública as ideias falsas que foram propagadas de que teria comparado violação doméstica e terrorismo». Porém não bastava a negação anteriormente feita no «direito de resposta» e no artigo «quem guarda o guardador», pelo que entendeu, pela positiva, explicitar as causas da sua renúncia e das divergências efetivamente verificadas dentro das sessões, em relação à fundamentação do Acórdão, preenchendo o vazio que tinha ficado em relação as reais causas da renúncia. Esclarece que a frase que aparece em subtítulo: «O acórdão ...... resultou da violação de regras básicas de colegialidade e de igualdade interpares, e eu não me revia no seu conteúdo», não é da sua autoria.

Perante tal dilema, não podendo permanecer em silêncio, não obstante o Conselho Superior da Magistratura não ter deferido o pedido de autorização que havia formulado com o fundamento constante da Deliberação a que se referem os sobreditos factos 14 e 15, viu-se na necessidade de, para a defesa da sua dignidade e prestígio e do seu bom nome e reputação,  repor a verdade dos acontecimentos ocorridos no Tribunal …… que a levaram à renúncia às funções de Juíza Conselheira daquele Tribunal.

Torna-se claro que, assim sendo, ainda que o facto de ter escrito o artigo «É minha Honra de Juíza» relatando de forma detalhada as vicissitudes ocorridas, se configure subsumível na previsão normativa do então art. 12.º do EMJ (dever de reserva) como violação de tal dever, menos claro não é que à Exmª Magistrada assistia todo o direito de se defender das notícias que reputava falsas e que, na verdade, seriam suscetíveis de lesar os seus direitos constitucionais e legais ao bom nome e reputação (art. 26.º da CRP) e a dignidade pessoal e profissional com o inerente prestígio.

O exercício de tal direito de defesa constituiu uma causa de exclusão da ilicitude ( causa de justificação), como meio adequado para afastar o perigo de ver danificada – porventura irreversivelmente – a sua imagem e prestígio, e assenta no próprio  direito de necessidade (também referido como estado de necessidade justificante)  previsto no art. 34.º do  Código Penal, subsidiariamente aplicável in casu, pois a manter-se em silêncio, a onda das noticias e comentários muito previsivelmente continuaria com os  previsíveis efeitos perniciosos, até porque a sociedade não entenderia tão insólito e prolongado silêncio da Magistrada já que como é sabido, é vox populi que quem cala consente ou como diriam os Romanos «quis tacet cum loqui potest et debet, consentire videtur».

Verificando-se o exercício do referido direito de defesa, estribado no estado de necessidade justificante, a eventual violação do dever de reserva estará justificada face ao disposto no artigo 84.º- A alínea e) do EMJ ( exercício de um direito)  com a redação atual.

Caso se entenda não se verificar uma causa de exclusão da ilicitude, então verificar-se-á, no limite, o estado de necessidade desculpante o que exclui a culpa (não exigibilidade de conduta diversa) nos termos da alínea d) do referido art. 84.º do EMJ, pois a ninguém é exigível que não se defenda de noticias falsas e comentários de que frequentemente está a ser alvo e também, nesta perspetiva, não haverá infração disciplinar, que exige sempre a culpa do agente, a titulo de dolo ou de negligência (mera culpa). 

Nesta conformidade, não se vislumbram, nos presentes autos de Inquérito, indícios suficientes para responsabilização disciplinar dos Exmºs Magistrados Judiciais, Juíza Conselheira AA e Juiz Desembargador BB não se justificando a sua prossecução mediante instauração de processo disciplinar.

Tudo visto e face ao quanto amplamente exposto se deixa, cumpre-me propor ao Venerando Conselho Superior da Magistratura o arquivamento dos presentes autos de Inquérito.

*** *** ***

Pelo seguro do correio ou por protocolo remeta o presente processo de Inquérito ao Venerando Conselho Superior da Magistratura.

Lisboa, 5 de Junho de 2020

O Instrutor do Inquérito

DD

Juiz Conselheiro Jubilado

Doutor em Direito

(cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 369-399 do processo administrativo instrutor)

19)      A 07-07-2020 a entidade demandada, em reunião do Conselho Plenário, apreciando o relatório referido em 18), no âmbito do procedimento referido em 16), proferiu e consignou em ata deliberação com o seguinte teor:

2.4.1 - Proc. ……..06 - Inquérito - Juíza Conselheira Dra. AA, e o Juiz Desembargador Dr. BB.

Apreciada a proposta de arquivamento formulado pelo Exmo. Senhor Inspetor Judicial Extraordinário, Juiz Conselheiro Dr. DD, após ampla discussão entre todos os Exmos. Senhores Conselheiros presentes, foi deliberado proceder a votação, tendo-se obtido o seguinte resultado, a favor da proposta de arquivamento, 11 (onze), dos Exmos. Senhores Conselheiros, Presidente (vota o arquivamento das queixas recíprocas apresentadas), Vice- Presidente, Dr. AAA, Dr. BBB, Dra. CCC, Dra. DDD, Dra. EEE, Dr. FFF, Dr. GGG, Prof. Doutor HHH e Prof. III, contra, 1 (um) voto, da Exma. Sra. Conselheira Dra. JJJ. 

Atento o resultado da votação, foi deliberado por maioria arquivar os presentes autos de inquérito em que são visados os Exmos. Senhores, Juíza Conselheira Dra. AA, e o Juiz Desembargador Dr. BB.        

A Exma. Sra. Dra. CCC proferiu a seguinte declaração para a ata: «Voto favoravelmente a proposta de arquivamento, não acompanhando, no entanto, a fundamentação da mesma quanto à Exma. Senhora Juiz Conselheira por entender que a conduta em causa se reporta a factos ocorridos no Tribunal …… estando fora do âmbito de atuação do Conselho Superior da Magistratura.»

A Exma. Sra. Dra. JJJ proferiu a seguinte declaração para a ata: «Votei contra a proposta de arquivamento por considerar que apenas quanto à senhora Conselheira AA se apresentam motivos para arquivamento, aliás já anteriormente apreciados pelo CSM. Em contrapartida, considero que as declarações do senhor Desembargador BB no artigo “Militâncias e Justiça”, embora revelem uma noção peculiar, e talvez menos informada, de temas que coloca sob uma designação de “militância” e de “ativismo”, foram objetivamente nocivos para a confiança dos cidadãos na Justiça, para além de perpetrarem uma forma incorreta, inapropriadamente enviesada e altiva de se referir a uma juíza do…….»

(cf. doc. 1 junto à petição inicial e fls. 410-411 do processo administrativo instrutor)

B) Fundamentação de direito 

As questões a decidir dizem respeito a:

(i). Ilegitimidade activa;

(ii). Violação pelo participado/contra-interessado dos deveres de boa fé, lealdade e correcção e ainda do dever de reserva.

(iii). Ausência de infracção disciplinar e prevalência do direito à liberdade de expressão.

DA ILEGITIMIDADE ACTIVA

Nos presentes autos, a autora, participante disciplinar, pretende a anulação da deliberação da entidade demandada que arquivou a sua participação, optando por não promover perseguição disciplinar ao Juiz Desembargador participado. A esta pretensão anulatória a demandante associa uma pretensão condenatória, no sentido de condenar a entidade demandada a instaurar procedimento disciplinar ao Juiz Desembargador participado.

A entidade demandada suscitou a excepção de ilegitimidade activa na sua contestação, tendo a autora replicado.

Cumpre decidir.

É, não só muitíssimo discutível, como efectivamente debatido em sede jurisprudencial, que ao participante disciplinar não assista a legitimidade para impugnar a decisão de arquivamento disciplinar, maxime quando, além de (ou mais do que) sustentar a omissão do dever de perseguição disciplinar pela autoridade administrativa, também alegue a lesão directa, actual e imediata de interesses pessoais (honra, património, integridade física). Este, de resto, é um dos campos em que a jurisprudência do STJ e do STA (ainda) divergem pontualmente.

Não desconhecemos a já longa jurisprudência da Secção de Contencioso do STJ, no sentido de que no procedimento desencadeado pela participação de alegada infração, a legitimidade do participante esgota-se no acto de participar, não podendo o participante de certa infracção, alegadamente cometida pelo participado, considerar-se titular do interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da decisão que determinou o arquivamento da participação apresentada para fins disciplinares. Esta orientação jurisprudencial encontra respaldo em duas premissas fundamentais.

Por um lado, a possibilidade de participação disciplinar visa predominantemente suscitar à entidade detentora da acção disciplinar a necessidade de apreciar a dignidade disciplinar dos factos participados, não lhe impondo qualquer dever de determinar a instauração de processo disciplinar, de inquérito ou de averiguações ou de exercer a acção disciplinar correspondente. E, como tal, os cidadãos em geral, pela simples circunstância serem titulares do poder jurídico de participação disciplinar, não têm legitimidade para a impugnação do acto que determina o arquivamento ou a não instauração de qualquer procedimento disciplinar, de inquérito ou de averiguações instaurados com base nos factos denunciados.

Por outro lado, o participante disciplinar não tende a retirar qualquer utilidade ou vantagem pessoal, quer do arquivamento do processo resultante da sua participação disciplinar, quer do seu não arquivamento, pelo que não lhe deve ser assegurada legitimidade recursiva. Sentindo-se o(a) participante lesado(a) com o acto que determinou a sua participação, sempre pode recorrer a uma queixa-crime contra o(s) participado(s), sem prejuízo da possibilidade de intentar acção de responsabilidade civil contra o(s) mesmo(s).

No sentido exposto, podem ser arrolados, a título meramente exemplificativo, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso do STJ, todos acessíveis online in http://www.dgsi.pt/jstj: 

— Acórdão de 27-05-2003 (proc. n.º 01B1639);

— Acórdão de 18-12-2003 (proc. n.º 03A4095);

— Acórdão de 21-11-2012 (proc. n.º 75/12.0YFLSB);

— Acórdão de 10-12-2019 (proc. n.º 3/19.1YFLSB).

É também esse o sentido geral da jurisprudência do STA e dos tribunais superiores da jurisdição administrativa, embora apenas quando o participante alegue tão-somente que o arquivamento traduz uma omissão ilícita do dever de perseguir disciplinarmente.

Sintetizando a já antiga orientação jurisprudencial que o STA acolheu nos seus acórdãos de 07-07-1998 (proc. nº 41 141), de 15-10-1999 (proc. nº 41 897 — Pleno) e de 08-06-2000 (proc. nº 41.879), e que desde então vem sendo seguida, predomina também na jurisdição administrativa o entendimento de que, não obstante serem titulares do poder jurídico de participação disciplinar – enquanto colaboradores na vigilância e fiscalização do correcto e legal desenvolvimento da actividade administrativa e da actuação dos seus órgãos e agentes –, os funcionários públicos ou trabalhadores em funções públicas que sejam participantes de infracções disciplinares não têm, em princípio, legitimidade para impugnar contenciosamente o acto que determina o arquivamento ou a não instauração de procedimento disciplinar ou outro, na medida em que não podem licitamente invocar, com fundamento naquele poder de participação, a preexistência no seu património de um direito subjectivo ou interesse legítimo susceptível de ser lesado por aquele acto.

Contudo, o STA também entendeu que, se, dos termos em que se mostra elaborada a petição de recurso, se concluir que o participante não se limita a invocar interesses colectivos, antes visa obter a reparação, ainda que reflexa, de valores eminentemente pessoais que hajam sido lesados com a conduta denunciada, como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação, então já dispõe de legitimidade activa.

Vide, neste sentido, os Acs. de 14-05-2003 (proc. n.º 01681/02), de 22-10-2003 (proc. n.º 0136/03), de 26-11-2003 (proc. n.º 046/02) e de 07-06-2006 (proc. n.º 01089/05).

Muito recentemente, o mesmo STA, por acórdão de 21-05-2020, admitiu recurso de revista no processo n.º 0634/17.4BEPRT, esclarecendo que a questão deveria ser revisitada porque “[…] está em causa uma questão que “pela sua relevância jurídica ou social” assume “importância fundamental sendo a sua apreciação, por este Supremo Tribunal, […] “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”. E entrando nessa análise temos que a “quaestio juris” envolve análise de questões de algum melindre e dificuldade e revela-se complexa, disso sendo indício não apenas a divergência entre as instâncias, mas, também, o próprio voto de vencido, constituindo temática cuja elucidação assume relevo jurídico e é susceptível de ser repetível e recolocada em casos futuros, reclamando a necessária intervenção deste Tribunal. Por outro lado, o entendimento firmado no acórdão recorrido mostra-se, “primo conspecto”, em sentido dissonante com a jurisprudência convocada no voto de vencido, sendo que a jurisprudência produzida sobre a problemática por este Supremo Tribunal foi-o no quadro do anterior regime contencioso administrativo [LPTA/RSTA] […] entendimento jurisprudencial este que importará ser revisitado e reanalisado, à luz do actual regime do contencioso administrativo, com vista a uma melhor interpretação e aplicação do Direito”.

E, tendo apreciado a questão, o mesmo STA, ainda no âmbito do mesmo proc. n.º 0634/17.4BEPRT, decidiu, por acórdão de 15-10-2020, não inflectir a orientação prosseguida anteriormente. Deixou-se consignado no citado aresto o seguinte:

“A questão da legitimidade do participante de processo disciplinar para impugnar o acto de arquivamento desse processo que desencadeara foi, na vigência da LPTA (aprovada pelo DL n.º 267/85, de 26/7), objecto de numerosa jurisprudência deste STA, onde, maioritariamente, se perfilhou o entendimento que ela cabia ao participante que fosse simultaneamente ofendido pela conduta do denunciado, distinguindo, assim, as situações em que actuava exclusivamente por dever de ofício daquelas em que ele próprio também era ofendido pelo comportamento denunciado, tendo, por isso, um interesse legítimo que lhe conferia o poder de obter a anulação do acto pelo qual a Administração prejudicou esse interesse (cf. os Acs. do Pleno de 15/1/97 in BMJ 463 – 337 e CJA, n.º 9, pág. 25 e de 15/10/99 in BMJ 490 - 104 e da Secção de 1/6/94 – Rec. n.º 31127, de 8/6/95 – Rec. nº 32440, de 8/6/2000 – Rec. n.º 041879, de 22/10/2003 – Rec. n.º 136/13, de 26/11/2003 – Rec. n.º 046/02 e de 7/6/2006 – Rec. n.º 01089/05).

É que se “o conceito de interesse na anulação do acto, a que se refere o art.º 46.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, tem de entender-se, hoje, como vantagem ou utilidade na anulação do acto repercutida na protecção de um bem jurídico preexistente no património jurídico do recorrente”, será titular desse interesse “aquele que, com verosimilhança, aferida pelos termos peticionados, materialmente bem ou mal fundada, invoque a titularidade no seu património jurídico, de um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido lesado com a prática do acto, retirando da anulação pretendida uma qualquer utilidade ou vantagem, dignas de tutela jurisdicional, no aproveitamento do bem a que aquele direito ou interesse inerem” (citado Ac. do Pleno de 15/1/97).

Por isso – como se escreveu no referido Ac. do Pleno de 15/10/99 – “o facto de os arguidos, com a sua conduta disciplinar ilícita, terem afectado, para além do bom funcionamento do serviço, valores pessoais do participante faz com que a punição disciplinar a aplicar, para além dos fins de interesse público que directamente persegue, tenha também, embora apenas reflexamente, efeitos de compensação moral para a pessoa atingida, pois ninguém negará que os danos morais sofridos pelo participante serão atenuados pelo facto de ter sido disciplinarmente censurada a conduta dos infractores e, ao invés, serão exacerbados se a conduta lesiva ficar, ilegal e injustamente, impune e de que, embora seja certo que o interesse próprio do participante na justa punição dos infractores não seja directamente protegido pela lei, «não é menos certo que a lei protege um interesse público (no caso, a disciplina), que, se for correctamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual referido», casos em que «o titular do interesse privado não pode legalmente exigir da Administração que satisfaça o seu interesse, mas pode exigir-lhe que não prejudique esse interesse ilegalmente», e, assim, «estamos perante um interesse legítimo, que confere ao seu titular o poder de obter a anulação dos actos pelos quais a Administração tenha prejudicado ilegalmente esse interesse» (excertos do citado acórdão de 8 de Junho de 1995)”.

» Portanto, de acordo com a mencionada posição jurisprudencial, a legitimidade do participante para impugnar contenciosamente o acto de arquivamento do processo disciplinar instaurado em resultado da sua denúncia, na falta de lei que a conferisse, deveria ser aferida casuisticamente face aos termos peticionados, devendo entender-se que ele tinha interesse na anulação desse acto quando obtivesse uma vantagem ou utilidade nessa anulação repercutida na proteção de um bem jurídico preexistente no seu património jurídico, ou seja, quando as infrações disciplinares participadas fossem susceptíveis de ofender os seus valores pessoais, como a integridade física e moral ou a honra, bom nome e reputação.

Não há motivo para alterar esta orientação, em face do que dispõe atualmente o CPTA em matéria de legitimidade para impugnação de ato administrativo que a faz depender da alegação da titularidade de um interesse directo e pessoal na sua anulação, estabelecendo uma presunção “juris tantum” de legitimidade a favor do interveniente no procedimento administrativo em que tenha sido praticado esse acto [art.º 55.º, nºs. 1, al. a) e 3].

» Importa, pois, apreciar se, de acordo com as circunstâncias factuais alegadas pela A., se deve entender que a infracção disciplinar que participou é suscetível de ofender os seus valores pessoais, como a integridade física e moral.

» Ora, invocando ela que os actos médico-dentários a que foi sujeita pelo ora recorrente desrespeitavam as “leges artis”, tendo-lhe causado lesões de ordem patrimonial e não patrimonial, como sejam prejuízos estéticos e vários problemas de saúde que se prolongaram por um período superior a 8 anos e determinarão a realização de uma cirurgia reconstrutiva, não pode deixar de se concluir, como o acórdão recorrido, que foi alegada a referida violação, pela infração participada, de interesses pessoais e que retira da procedência da ação uma vantagem com repercussão na reparação do bem jurídico lesado.

Assim sendo, terá de improceder a presente revista.»

Dito isto, e atenta a controvérsia de que demos conta supra, subscrevemos o entendimento segundo o qual, após participação disciplinar, o interesse primordial que poderá estar em causa é um interesse público no correcto exercício da ação disciplinar — e que esse interesse público é alheio ao interesse do particular participante, que não pode exercer o direito de impugnação contenciosa apenas para fazer valer a tutela da legalidade administrativa disciplinar, por si só e em exclusivo.

Dizemos e reiteramos: primordial, mas não necessariamente exclusivo.

É que, e em contrapartida, também tendemos a reconhecer que nem sempre o exercício da acção de impugnação da decisão de arquivamento de participação disciplinar é ditado apenas pelo interesse da entidade funcional em causa - pelo que, subsequentemente, nem sempre essa impugnação se deve considerar subtraída e alheada dos interesses individuais ofendidos. Nomeadamente, não se vislumbram motivos pelos quais se há de julgar vedada ao participante disciplinar a possibilidade de, mais do que (ou até em vez de) proclamar um interesse na prossecução do interesse público no correcto exercício da perseguição disciplinar, alegar, ao invés, pretender pugnar pela defesa de interesses individuais como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação. E, se assim for, não se divisam motivos para, à luz do critério estabelecido na alínea a) do nº 1 do artigo 55º do CPTA, não lhes reconhecer legitimidade para impugnar a decisão de arquivar uma determinada participação disciplinar.

Sendo esta a orientação acolhida e que delimita o enquadramento em que nos havemos de mover, revistemos a petição inicial, para indagar em que se estriba a autora a sua pretensão. E aí, apesar de se vislumbrarem inúmeras alusões às supostas violações (objectivas) dos deveres funcionais invocados pela demandante, suscita, nos artigos 66.º e 67.º da petição inicial, o seguinte:

66º O contrainteressado, com base em factos falsos e em violação do dever de reserva que lhe está legalmente imposto, ofendeu a honra da autora, como se indica:

 «O facto é que horas depois, da renúncia, a propósito de um artigo da organização ......., a mesma juíza proclamou no ……. aquilo que tinha tentado pôr no acórdão:. “A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados acordem”.

Chegamos assim à primeira perplexidade: é lícito que o juiz expresse na decisão judicial convicções pessoais laterais à fundamentação? No plano da auto-regulação ética, a resposta é clara e está dada há muito tempo no documento Compromisso Ético dos Juízes Portugueses: “a correcta interpretação do princípio da reserva impede que o juiz utilize a decisão judicial ou audiência pública para exprimir opiniões ou considerações pessoais de natureza política, ideológica ou religiosa, que não sejam estritamente necessárias para a respectiva fundamentação e se afastem manifestamente do objecto do caso”. Portanto, sem dúvida, uma “decisão-comício”, em que o juiz usa o poder de que está investido para forçar a imposição das suas convicções pessoais sobre matérias alheias ao processo é eticamente ilegítima”.

67. Tal comentário, para mais provindo da falsidade que acima se referiu, denigre objetivamente a Autora enquanto Juíza, já que, de forma explicita, escreve que a mesma “...proclamou (...) aquilo que tinha tentado pôr no acórdão” (......), imputando-lhe a instrumentalização  do seu  múnus às  convicções  e militância (feminista) que lhe imputa”.

Pois bem, cientes desta alegação e tendo presente a doutrina citada no aresto acima transcrito, a legitimidade processual activa radica no interesse concreto e individual da pessoa lesada, e, porque assim, a legitimidade da autora dependia, não da invocação genérica de que a actuação da entidade demandada era violadora do bloco de legalidade aplicável, mas da alegação especificada da forma como o acto impugnado era lesivo e de que modo o mesmo violava os seus próprios direitos e interesses. E ocorre que, conforme emerge grandemente do que vem de expender, essa alegação especificada foi feita.

Efectivamente, para além da ofensa do bloco de legalidade, traduzido na alegada violação dos deveres deontológicos a que o participado estava adstrito, a autora salientou ser o participado responsável de lesões na sua esfera jurídica pessoal, nomeadamente ao nível da honra e da boa imagem enquanto magistrada. Logo, resulta que a impugnação da deliberação da entidade demandada, que ordenou o arquivamento da participação disciplinar, aqui impugnada, visa, para além da defesa da legalidade em geral, a reparação de valores e interesses eminentemente pessoais, que terão sido lesados com essa decisão.

O que significa que a autora também alegou ser titular de um interesse directo pessoal e legítimo, como prescreve o artigo 55º nº 1, alínea a) do CPTA.

Por conseguinte, merece ser julgada improcedente a excepção suscitada quanto à ilegitimidade activa da autora.

Neste sentido foi decidido pelo acórdão do STJ de 24.02.2021, Procº nº 8/20.0YFLSB

VIOLAÇÃO PELO PARTICIPADO/CONTRA-INTERESSADO DOS DEVERES DE BOA FÉ, LEALDADE E CORRECÇÃO E AINDA DO DEVER DE RESERVA.

A autora suscita a questão da violação do disposto nos artigos 82.º, 110.º e 126.º do EMJ, na medida em que as afirmações feitas pelo participado, invocando a qualidade de Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, fez publicar no jornal Público, na edição de 31 de Julho de 2019  e constantes do artigo “Militâncias e Justiça”, traduzem infracção disciplinar, nomeadamente a violação dos deveres de boa fé, lealdade e correcção, previstos nos artigos 70.º, n.º 1, 73.º, n.º 2, alªs g) e h), da LGTFP, ex vi art.º 32.º do EMJ (na redacção da Lei n.º 21/85, de 30-07, vigente à data dos factos) e, ainda, o dever de reserva previsto no art.º 7.º-B, n.º 2, 3 e 4, do EMJ (na redacção introduzida pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto).

Entidade demandada e contra-interessado contestaram, pugnando pela improcedência da pretensão da autora.

O ponto saliente do dissídio reside na contraposição entre: por um lado, os deveres funcionais alegadamente violados pelo contra-interessado, associados ao direito ao bom nome e honra profissional da autora, que os reputa de igualmente lesados; por outro lado, o respaldo constitucional da actuação do contra-interessado na sua liberdade de expressão e na liberdade sindical, traduzida na sua representatividade da ASJP. É do confronto destas duas vertentes que há de resultar um juízo acerca da censurabilidade da conduta do contra-interessado e da validade do acto impugnado.

Apuremos, portanto: (i) qual o regime disciplinar aplicável ao caso dos autos; (ii) qual a noção de infracção disciplinar e quais os concretos deveres funcionais supostamente violados pela conduta do contra-interessado; (iii) qual o conteúdo dos direitos pessoais que a autora sente terem sido igualmente violados com a conduta “disciplinarmente desviante” do contra-interessado (honra e bom nome; (iv) qual o relevo da liberdade de expressão e da liberdade sindical para mitigar ou suprimir um eventual juízo de censura disciplinar; e (v) munidos destes elementos, qual a resposta a dar ao caso concreto que nos ocupa. Eis o escopo das linhas que se seguem.

Preliminarmente, e tendo em atenção que a autora invoca indiscriminadamente preceitos normativos constantes da LGTFP e preceitos estatutários de redacções distintas do EMJ (anterior e posterior à Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto), importa aqui clarificar qual o concreto regime disciplinar a que teremos de nos ater.

Para tanto, importa ter presentes dois princípios fundamentais: i) o princípio tempus regit actum; e ii) o princípio da tipicidade.

O primeiro dos princípios aludidos, traduzido no brocardo latino tempus regit actum, foi recebido no artigo 12º do Código Civil. Porém, enquanto princípio geral, vale no Direito público e no privado.

Em concreto, é-lhe geralmente imputado, no direito administrativo, o sentido de que os actos administrativos se regem pelas normas em vigor no momento em que são praticados, independentemente da natureza das situações a que se reportam e das circunstâncias que precederam a respectiva adopção. Subjacente a este entendimento está a consideração de que o momento da perfeição do acto fornece, pois, o critério temporal para a determinação da lei aplicável: aplicar-se-á a velha ou nova lei, conforme aquele momento for anterior ou posterior ao começo de vigência desta.

Na verdade, só pelo acto perfeito (válido e eficaz) se concretizam as situações jurídicas abstratas, dando lugar ao nascimento, em proveito dos indivíduos, de interesses actuais e precisos que as novas leis não podem atacar, sem prejuízo da harmonia social e da segurança individual.

Assim, o princípio do tempus regit actum interpretado com este alcance legitima a aplicação do ius superveniens às situações que aguardem a prática de um acto administrativo, independentemente da sua natureza, do momento em que o procedimento se tenha desencadeado e das eventuais contingências por que possa ter passado. Ponto é que a lei nova tenha entrado em vigor em momento anterior àquele em que o acto administrativo vem a ser praticado.

O argumento comummente utilizado para fundamentar esta construção assenta no pressuposto de que a lei nova tutela melhor o interesse público que à Administração cabe prosseguir do que a lei antiga.

Nas palavras de Afonso Queiró, “como as situações administrativas são, regra geral, de trato sucessivo e não instantâneas, resulta daí que, normalmente, as situações jurídicas estão sujeitas à evolução do ordenamento jurídico administrativo, ao direito novo, presumivelmente mais justo e mais progressivo – sem que tal importe retroactividade desse direito[1].

Um dos casos que se tem comummente entendido como estando abrangido pela aplicação da lei nova é o da situação estatutária dos funcionários. Com efeito, efectuando um pequeno excurso pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (http://www.dgsi.pt/jsta), constatamos que os funcionários se encontram numa situação estatutária e objectiva, modificável a todo o tempo pela lei (cf. acórdãos do STA proferidos a 10.01.1980, recurso n.º 12 707, e de 15.02.1996, recurso n.º 33 253).

Por isso, os “direitos e deveres que integram a situação estatutária são em cada momento aqueles que a lei define” (acórdão do STA proferido a 12.06.1996, no recurso n.º 34 437), sendo certo que, por via de regra, os direitos invocáveis são os que decorrem da lei vigente, não havendo ofensa do princípio da confiança, por contra essa aplicação não serem invocáveis direitos ou expectativas fundadas em legislação anterior ou posterior (acórdão do STA de 09.10.1995, recurso n.º 34 439). Isto é assim, desde logo, porque nem a carreira nem a categoria do estatuto profissional do trabalhador da função pública constituem um direito subjectivo dele (acórdão do STA de 21.05.98, recurso n.º 33 305).

Na mesma linha de Afonso Queiró se afirma, pois, que nestes casos não há aplicação retroactiva da norma administrativa, porque ela se aplica, aqui, “a situações de trato sucessivo, ou seja, a situações que não se esgotam instantaneamente” (acórdão de 02.03.1995).

Pois bem, a esta luz, importa ter em atenção que o acto administrativo sindicado, que apreciou a verificação de indícios para efectivação de responsabilidade disciplinar do contra-interessado, é datado de 07-07-2020 (Facto provado nº 19). Ou seja, foi já praticado em plena vigência do EMJ na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, que entrou em vigor a 01-01-2020 (cf. art. 10.º do referido diploma). Eis um primeiro argumento que advoga a aplicação do novo regime disciplinar.

Por seu turno, e mais decisivamente até, o segundo princípio enunciado, traduzido no aforismo nulla poena sine lege (art. 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, aplicável em processo penal), estabelece que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão. Este princípio constitui, de resto, uma decorrência do Estado de Direito democrático e tem como corolários as máximas seguintes: nullum crimen sine lege, reserva de lei; nulla poena sine crimen, princípio da conexão; nulla poena sine lege certa, princípio da tipicidade; e nulla poena sine lege praevia, proibição da retroactividade.

É sabido que, “[…] embora o artigo 29.º da CRP se refira somente à lei criminal, deve considerar-se que parte destes princípios (nomeadamente o da proibição da aplicação da lei retroactiva desfavorável) se aplicam também aos outros dois ramos do chamado direito público sancionatório: o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar […]. No sentido da aplicação do princípio criminal da lei mais favorável também ao […] ilícito disciplinar vai o artigo 282.º, n.º 3, da Constituição[2].

Princípio básico da aplicação da lei no tempo nestas matérias é aquele que se extrai do disposto no n.º 4 do art. 2.º do Código Penal:  aplicação do regime mais favorável em bloco, ou seja, aplicando o conjunto de todas as regras do regime vigente na data da prática dos factos ou, alternativamente, todo o regime ulterior.

Ora, esta Secção de Contencioso pronunciou-se acerca da questão de saber qual o regime em abstrato aplicável no caso de sucessão de leis disciplinares, nomeadamente quando a infracção seja praticada no âmbito do EMJ na redacção anterior àquela que lhe foi atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, mas a decisão disciplinar (punitiva) apenas seja adoptada após a entrada em vigor dessa nova redacção.

Reproduzimos aqui parte do excurso do Acórdão, por nós relatado em 24.02.2021 no proc. n.º 15/20.2YFLSB:

O EMJ introduziu inúmeros preceitos inéditos com relevância disciplinar, embora nem sempre consagrando soluções inovadoras. Destacam-se os artigos 7.º-A a 8.º-A (relativos a deveres que não estavam expressamente previstos estatutariamente na redacção anterior, embora alguns deles já resultassem “mutatis mutandis” da LGTFP, como a imparcialidade, diligência, urbanidade), 83.º-A (que enunciam as vicissitudes extintivas da responsabilidade disciplinar), 83.º-B a 83.º-D (que reproduzem, no essencial, as soluções constantes do art. 178.º da LGTFP em matéria de caducidade e prescrição, que já antes era aplicável aos procedimentos disciplinares de magistrados judiciais ex vi  art. 131.º do EMJ), 83.º-E (que altera o regime subsidiário, deixando de se aplicar subsidiariamente a LGTFP e privilegiando-se antes o CPA, mantendo-se a remissão para o CP, o CPP e os princípios gerais de direito sancionatório), 83.º-F a 83.º-J (estes sim, verdadeiramente inovadores, classificando infracções em muito graves, graves e leves e enunciando condutas susceptíveis de se subsumirem naquelas previsões, como vimos já), os artigos 84.º-A, 85.º-A e 87.º-A (que correspondiam aos artigos 190.º, 191.º e 192.º da LGTFP, que antes era aplicável ex vi art. 131.º do EMJ), o art. 85.º-A (que correspondia ao art. 191.º da LGTFP),  os artigos 110.º-A e 111.º-A (que reproduziam soluções, ao nível de tramitação, que já estavam consagradas na LGTFP e eram, pois, susceptíveis de aplicação na redacção anterior ao abrigo da remissão do art. 131.º), o art. 120.º-A (previsão de audiência pública para apresentação de defesa após elaboração e notificação de relatório final), o art. 121.º-A (impugnação contenciosa da decisão punitiva, que pode abranger também a matéria de facto), os artigos 123.º-A e 123.º-B (processo de averiguação, para apurar se uma dada queixa ou participação é, ela mesma, susceptível de fazer incorrer o apresentante em responsabilidade disciplinar), 123.º-D (prazo do procedimento especial de inquérito), 124.º e 125.º (correspondiam a soluções anteriores da LGTFP quanto à tramitação de inquérito e sindicância e possibilidade de conversão em processo disciplinar), 131.º a 133.º (processo de reabilitação, que já resultava da LGTFP), 134.º e 135.º (registo e cancelamento do registo das sanções).

Além disso, renumeraram-se alguns preceitos, com ligeiras alterações na redacção (mas sem alterações significativas de regime).

Outros preceitos, nomeadamente ao nível da tramitação, viram a sua redacção alterada e com soluções de relevância não despicienda. Alguns exemplos: o art. 115.º, na redacção actual, passou a prever um prazo de instrução de 30 dias (antes era de 15), podendo ser prorrogável por mais 30 dias, em razão da especial complexidade (anteriormente poderia haver extensões do prazo em casos devidamente justificados, sem que se estabelecesse limite para a prorrogação); o actual art. 119.º abandona a necessidade de o arguido apenas oferecer, em sede de defesa, um número limite de 3 testemunhas por cada facto, embora preveja um número máximo global de 20 testemunhas, das quais 5 serão necessariamente ouvidas pelo instrutor.

Dito isto, não é linear descortinar, em termos abstratos, se a actual redação consagra ou não um regime sancionatório mais favorável do que a anterior, embora propendamos para uma resposta afirmativa. E porquê?

Em sede de prescrição não houve alterações, porquanto o EMJ se limitou a consagrar o que já decorria da LGTFP.

Por seu turno, o estabelecimento e consagração de novos deveres poderia indiciar um agravamento. Todavia, em contrapartida a supressão da LGTFP como diploma subsidiário a atender em matéria disciplinar, ex vi atual art. 83.º-E do EMJ (que prevalece, neste ponto, sobre o disposto no art. 188.º do mesmo diploma), indicia a «desoneração» dos magistrados de observância da panóplia de deveres gerais que estão consagrados no art. 73.º daquela LGTFP.

Por outro lado, embora se denote um alargamento do prazo de que dispõe o instrutor em sede de instrução, antes de dedução de acusação ou de proposta de arquivamento, há indícios de que na actual disciplina da tramitação se acautelam mais efectivamente as garantias de defesa do arguido - nomeadamente em sede de defesa e de meios probatórios, como a possibilidade de oferecer testemunhas, ou ainda a possibilidade inovadora de requerer audiência pública. Acresce a consagração normativa da garantia contenciosa de estender à matéria de facto a impugnação judicial da decisão procedimental punitiva.

Por último, mesmo a nova classificação de infracções em muito graves, graves e leves, além de não traduzir uma alteração decisiva no esquema tradicional de previsão de uma cláusula geral seguida de mera enumeração exemplificativa concretizadora, como vimos já, também não permite, por si só, asseverar um agravamento da posição dos arguidos, na medida em que as sanções associadas à punição da infracção são, no essencial, idênticas — embora mereça destaque a supressão da sanção de inactividade e o «desagravamento» da moldura sancionatória da sanção de multa.

Tudo visto e sopesado, fazendo uma ponderação integrada e integral dos regimes antes e depois da alteração ao EMJ pela Lei n.º 67/2019, de 17 de Agosto, há indícios que militam em sentido moderadamente favorável à consideração de que a alteração legislativa poderia ser menos prejudicial à situação do arguido, no caso concreto”.

O aí decidido é de manter, e julga-se aplicável também ao caso em apreço.

Assim, o acto impugnado, caso optasse por julgar verificada uma infracção disciplinar e convertesse o processo de inquérito em processo disciplinar (precisamente o que a autora pretende ver declarado nos presentes autos), teria de se ater, vinculando as subsequentes acusação, relatório final e eventual decisão disciplinar que se seguissem, ao regime sancionatório que resulta da nova redacção do EMJ.

Delimitada a redacção a que temos de nos ater, importa daí extrair os pertinentes corolários.

O mais relevante é o de que o artº 83.º- E do EMJ (que, por razões de especialidade, prevalece, neste ponto, sobre o disposto no artº 188.º do mesmo diploma) altera o regime subsidiário em matéria disciplinar, deixando de se aplicar subsidiariamente a LGTFP. E, porque assim, toda e qualquer referência que se tenha efectuado nos autos à suposta observância da panóplia de deveres gerais que estão consagrados naquela LGTFP deixa de ser pertinente.

Esclareça-se, por pertinente, que nem o facto de, à data dos factos, se prever um dado dever funcional por remissão para a LGTFP permite sustentar a manutenção desse dever à luz da nova redacção do EMJ. Note-se que, ainda seguindo o princípio da não retroactividade de lei sancionatória, consagrado no art. 29.º da CRP, “[s]e é proibida a aplicação retroativa da lei penal desfavorável, já é obrigatória a aplicação retroativa da lei penal mais favorável (n.º 4, 2.ª parte). Se o legislador deixa de considerar criminalmente censurável uma determinada conduta, ou passa a puni-la menos severamente, então essa nova valoração legislativa deve aproveitar a todos, mesmo aos que já tenham cometido tal [infração]. Este princípio compreende também duas vertentes: (a) que deixa de ser considerado [infração] o facto que alei posterior venha despenalizar; e (b) que um crime passa a ser menos severamente punido do que era no momento da sua prática, se lei posterior o sancionar com pena mais leve[3] .

Como tal, deixa de relevar a alegada violação dos deveres de boa fé, lealdade e correcção, previstos que estavam nos artigos 70.º, n.º 1, 73.º, n.º 2, alíneas g) e h), da LGTFP, ex vi art. 32.º do EMJ na redacção vigente à data dos factos, e que deixaram de estar hodiernamente previstos.

Em contrapartida, relevará apenas apurar se a conduta do contra-interessado violou algum dos deveres que (entretanto) ficaram consagrados na versão vigente do EMJ, nomeadamente, nos termos invocados pela aqui autora, os deveres de sigilo e reserva, por um lado, e de urbanidade (correspondente, mutatis mutandis ao dever de correcção consagrado na LGTFP), por outro (cf. artigos 7.º-B e 7.º-D, respectivamente).

Vejamos, pois.

Enquadremos conceptual e normativamente as noções de infracção disciplinar, primeiro, e cada um dos deveres supostamente violados pelo contra-interessado, depois.

Segundo o art. 82.º do EMJ, “constituem infracção disciplinar os actos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos princípios e deveres consagrados no presente Estatuto e os demais actos por si praticados que, pela sua natureza e repercussão, se mostrem incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções”.

Da própria noção legal resulta que a lei estabelece três pressupostos ou elementos estruturais para que se verifique uma infracção disciplinar. São eles os seguintes: i) actos dos magistrados judiciais (acções lato sensu, em que se incluem obviamente as omissões juridicamente relevantes); ii) ilicitude, consistente na violação de lei (princípios e deveres consagrados no Estatuto ou actos incompatíveis com independência, imparcialidade e dignidade indispensáveis ao exercício das suas funções); e iii) culpa (dolo ou negligência — «ainda que meramente culposos» na expressão da norma).

Assim, “as infracções disciplinares, antes de assumirem uma determinada tipologia [leve, grave ou muito grave], hão-de preencher o conceito que decorre do art. 82.º : têm de ser actos, mesmo que meramente culposos, imputados a (praticados por) magistrados judiciais, violadores dos princípios ou deveres estatutários ou outros actos que, pela sua natureza e repercussão, se revelem em concreto incompatíveis com os requisitos de independência, imparcialidade ou a dignidade que se considera indispensável ao exercício das suas funções[4] .

Integra infracção disciplinar, portanto, a violação de quaisquer dos “deveres gerais” dos magistrados judiciais (inclusive os novos deveres expressamente consagrados nos artigos 6.º-C a 8.º-A do EMJ, na sua redacção actual).

Infringir disciplinarmente é, consequentemente, desrespeitar um dever geral ou especial decorrente da função da judicatura que se exerce. E este desrespeito é ilícito na medida em que consubstancia a negação de “valores” inerentes ao exercício dessa função, isto é, a negação de interesses superiormente protegidos com vista à boa e cabal realização da respetiva actividade pública, que, neste caso, é a de magistrado judicial.

Como se refere no Acórdão do STA de 17-03-2017 (proc. n.º 0343/15.9BALSB), “os “deveres”, para fins disciplinares, colhem relevância e legitimidade sobretudo a nível da sua “causa final”, pois visam assegurar um bom e regular funcionamento dos respectivos serviços. E daí que o direito disciplinar encontre mais uma legitimidade teleológica do que ontológica, isto é, louva-se sobretudo na “protecção da capacidade funcional” dos respetivos serviços públicos e seu “correcto exercício”.

Continua a exigir-se, pois, como elemento indissociável da infracção disciplinar uma violação de um concreto dever funcional, ainda que não reportado a uma conduta especificamente tipificada. Nem poderia ser de outra forma, mesmo ao nível do EMJ, posto que, como adverte o Tribunal Constitucional, «o estatuto disciplinar dos magistrados judiciais […] não pode deixar de pressupor, por parte dos agentes, consciência aguda dos deveres profissionais cujo incumprimento determina a aplicação da sanção […]» (cf. Acs. n.os 351/2011 e 413/2011).

De todo o modo, e isso é que importa reter, a averiguação da factualidade relevante não prescinde da aquilatação da ilicitude dos factos apurados e da culpa dos seus agentes documentada nos mesmos - ainda que, em sede de inquérito, como o foi o procedimento no âmbito do qual foi praticado o acto impugnado, essa indagação seja efectuada a título necessariamente indiciário. Faltando um desses pressupostos, inexiste infracção.

Segundo o art. 7.º-D, subordinado à epígrafe “Dever de urbanidade», «[o]s magistrados judiciais devem adoptar um comportamento correcto para com todos os cidadãos com que contactem no exercício das suas funções, designadamente na relação com os demais magistrados, funcionários, advogados, outros profissionais do foro e intervenientes processuais”.

Seguindo a lição de Ana Fernanda Neves, citada nos Acs. do STJ, de 16-06-2015 (proc. n.º 7/15.3YFLSB) e de 27-01-2016 (proc. n.º 102/15.9YFLSB) - arestos que aqui seguiremos de perto -, o dever de urbanidade é o dever do magistrado se relacionar, no exercício das suas funções, com colegas, demais operadores judiciários e com a comunidade em geral de forma correcta, usando de urbanidade e respeito.

Não se trata da mera observância das regras da boa educação próprias do relacionamento social; tratando-se de um dever estatutário-funcional é na perspetiva funcional que tem que ser analisado.

Concretamente, reclama, no exercício funcional: i) trato correcto, isto é, cordialidade, atenção e objectividade no atendimento e prestação de serviços aos cidadãos, utentes ou destinatários da actividade judiciária; ii) objectividade e colaboração entre colegas e demais operadores judiciários, com um mesmo enquadramento finalístico-institucional; iii) bem assim essa mesma objectividade, colaboração e deferência adequada às relações hierárquicas ou não paritárias.

O dever de correcção ou urbanidade postula também a adopção de comportamento conforme à dignidade das próprias funções ou actividade funcional do trabalhador e o seu posicionamento na organização.

Por sua vez, determina o artigo 7.º-B, n.º 2, do EMJ, (dever de reserva) que «[o]s magistrados judiciais não podem fazer declarações ou comentários públicos sobre quaisquer processos judiciais, salvo quando autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo». Acrescenta o n.º 3 do mesmo artigo que «[n]ão são abrangidas pelo dever de reserva as declarações e informações que, em matéria não coberta por segredo de justiça ou por sigilo profissional, visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente o acesso à informação e a realização de trabalhos técnico-científicos, académicos ou de formação».

O dever de estatutário de reserva imposto aos magistrados judiciais tem como fundamento a defesa e protecção dos valores da imparcialidade, da independência, da dignidade institucional dos tribunais, bem como a como a confiança dos cidadãos na justiça, e do respeito pelos direitos fundamentais, em conjugação com a liberdade de expressão.

A própria entidade demandada, na delimitação do conceito do dever de reserva que então estava consagrado no art. 12.º do EMJ na redacção anterior à que lhe foi entretanto atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto, veiculou, em deliberação de 11-03-2008 (entretanto abordada e «validada» ou confirmada em diversos arestos da Secção de Contencioso do STJ,), o entendimento segundo o qual:

III - O dever de reserva abrange, na sua essência, as declarações ou comentários (positivos ou negativos) feitos por juízes, que envolvam apreciações valorativas sobre processos que têm a seu cargo.

IV – Todos os juízes, mesmo que não sejam titulares dos processos, podem ser agentes da violação do dever de reserva.

V - O dever de reserva tem como objecto todos os processos pendentes e aqueles que embora já decididos de forma definitiva, versem sobre factos ou situações de irrecusável atualidade.

Estas asserções encontram eco na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, reportando-se aos deveres gerais que vinculam os magistrados judiciais, concretamente ao dever de correcção, já teve ocasião de afirmar que “as funções” do juiz também abrangem uma componente fora do exercício do acto processual, que passa por outros vectores, como o relacionamento funcional (cf. Acórdão de 17-04-2008, proc. 07P1521), entendimento que é extensível a todos os deveres estatutários a que estão obrigados os magistrados judiciais, incluindo o dever de reserva (vide o já citado Ac. de 27-01-2016, proc. n.º 102/15.9YFLSB)

A autora associa à conduta do contra-interessado, não só a violação de deveres funcionais, como a lesão de direitos pessoais próprios da demandante, como o sejam o direito ao bom nome, reputação e honra profissionais.

O direito ao bom nome e reputação mostra-se constitucionalmente consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Aí se estatui que «[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar […]».

O direito ao bom nome e reputação consiste, essencialmente, em a pessoa não ser ofendida ou lesada na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a correspondente reparação.

Segundo Maria Paula G. Andrade, “a honra é um bem da personalidade, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português. E enquanto bem da personalidade, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso[5] .

A honra em sentido amplo, segundo Rabindranath Capelo de Sousa[6] , inclui também o bom nome e reputação, enquanto síntese de apreço social pelas qualidades determinantes de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político.

Como ensina Filipe Miguel Cruz de Albuquerque Matos, “por bom nome poder-se-á entender o prestígio, a reputação, o bom conceito associado à pessoa no meio social onde vive ou exerce a sua atividade profissional […] Em relação ao bom nome, está fundamentalmente em causa uma ideia global, formada a partir das convenções sociais vigentes em determinado momento, acerca do perfil ou posição social de uma pessoa”[7].

Como vimos já, a questão fulcral que importa apreciar na presente acção consiste em saber como resolver o conflito que se verifica entre os deveres funcionais supra enunciados e os direitos da autora ao seu bom nome e reputação, por um lado, e os direitos do contra-interessado à liberdade de expressão e informação (eventualmente associado à liberdade de imprensa e meios de comunicação social) e à liberdade sindical, por outro lado.

Importa, pois, apurar e delimitar, antes de mais, o sentido jurídico da liberdade de expressão.

AUSÊNCIA DE INFRACÇÃO DISCIPLINAR E PREVALÊNCIA DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A liberdade de expressão e de informação tem consagração constitucional, dispondo o artigo 37.º, n.º 1, da CRP que «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações».

A liberdade de expressão e opinião encontra-se igualmente consagrada no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10-12-1948, no artigo 19.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (aprovado, para ratificação, pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho) e no artigo 10.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adiante designada por CEDH), aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro. Neste último preceito consagra-se a aludida liberdade nos seguintes termos:
“1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras.
2. Implicando o exercício da liberdade de expressão deveres e responsabilidades, pode o mesmo ser submetido a certas condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, necessárias numa sociedade democrática com vista, além do mais, à protecção da honra ou dos direitos de outrem”.

Segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira[8], o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento é, desde logo e em primeiro lugar, a liberdade de expressão, isto é, o direito de não ser impedido de exprimir-se e de divulgar ideais e opiniões. Neste sentido, enquanto direito negativo ou direito de defesa, a liberdade de expressão é uma componente da clássica liberdade de pensamento.

Os mesmos autores referem ainda que «do n.º 3 do artigo 37.º da CRP se pode concluir que há certos limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a punição criminal ou administrativa. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes que gozam de protecção, inclusive, penal. Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos à sua integridade moral, ao bom nome e reputação (cfr. art. 26.º); a injúria e a difamação ou o incitamento ou instigação ao crime (que não se deve confundir com a defesa da descriminalização de certos factos) não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de expressão ou de informação»[9].

Porém, esta operação hermenêutica de sopesar os diversos direitos em conflito não pode olvidar nem desconsiderar a centralidade axiológica e normativa da liberdade de expressão no contexto jusfundamental. Esta centralidade tem sido afirmada quer pela doutrina, quer pela jurisprudência - tanto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), como do Tribunal Constitucional e deste Supremo Tribunal de Justiça.

Vejamos em que termos.

Na doutrina tem sido asseverado que nunca será demasiada, também (ou até sobretudo) em ordenamentos tradicionalmente pouco favoráveis a liberdades individuais, a exaltação do significado moral e da importância do bem ou interesse da esfera da vida protegido pela liberdade de expressão do pensamento. De tal sorte que muitas sensibilidades doutrinárias têm postulado e advogado um verdadeiro carácter matricial desta liberdade[10], afirmando que “sem a liberdade de expressão do pensamento atinge-se não apenas o pensamento, mas também e imediatamente a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e o desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1)” [11].

Esse carácter matricial tem sido inclusive surpreendido por alguns autores na circunstância, que apodam de significativa, de a liberdade de expressão do pensamento ser o primeiro dos artigos fundamentais referidos no artº 37º das CRP - o que se compreende tendo em conta os antecedentes históricos imediatos (48 anos de censura e período conturbado do PREC em 1975) -, denunciando uma estrutura da nossa Lei Fundamental que organiza a Constituição da comunicação do mais valioso para o mais instrumental[12].

Como forma, aliás, de tutelar essa liberdade de expressão, no sentido de remover quaisquer obstáculos à expressão e divulgação, pelos meios a que um cidadão tenha acesso, de ideias e opiniões, denota-se que a Constituição exclui inequivocamente a existência de qualquer delito de opinião[13] e denuncia-se mesmo, na leitura efectuada do n.º 3 do art. 37.º da CRP (que admite responsabilização penal e contraordenacional por infracções cometidas no exercício das liberdades de expressão e de informação) uma «[…] perniciosa linha de argumentação […] que ainda incorre no vício de sobrepor os limites do direito de informação aos limites da liberdade de expressão [e que] envolve dois momentos: o primeiro é o de, na base do n.º 3, postular os limites da liberdade de expressão (quando esses limites têm de ser evidenciados e justificados); o segundo é o de diminuir o peso da própria liberdade de pensamento e de expressão […]».[14]

Ainda a propósito deste n.º 3 do art. 37.º da CRP, que admite perseguição (penal, contraordenacional, sancionatória) pela prática de ilícitos no exercício ilegítimo da liberdade de expressão, e de acordo com um entendimento que se vem sedimentando na jurisprudência e na doutrina ao longo dos últimos anos, a liberdade de expressão terá de ser considerada logo ao nível do tipo-incriminador e não apenas em sede de causas de justificação.[15] Nesta linha de entendimento, devem, pois, considerar-se atípicos (e, portanto, insuscetíveis de perseguição penal ou sancionatória) os juízos de apreciação e de valoração no âmbito da opinião e da crítica objectivas que recaiam directamente e apenas sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais,  enquanto essa apreciação e valoração não se dirija à pessoa dos seus autores ou criadores, e não atinjam a honra pessoal do cientista, do artista, do desportista, do profissional em geral, nem atinjam a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica. Mais se entende que a exclusão da tipicidade pode e deve estender-se ainda a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo, o Parlamento e os Tribunais.

Por outro lado, entende-se que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas. Isto é, não se exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva. Mais: devem considerar-se atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

No limite, permanecem como comportamentos típicos (e susceptíveis de perseguição sancionatória) apenas as críticas caluniosas, bem como outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e os juízos negativos sobre o visado que não contenham ligação com a matéria em discussão, tendo sempre presente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor e dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.

Ainda encontrando respaldo na CRP, a doutrina nacional tem também asseverado que na liberdade de expressão cabe não só a informação (reportada necessariamente a notícias verdadeiras), como também as ideias, opiniões, juízos, narração de factos ou casos da vida comentários e propaganda[16]. E mais se assevera que na liberdade de expressão, se não pode caber a divulgação de notícias falsas (isto é, o pensamento que resulte subjetivamente falso, nomeadamente a mentira, o dolo ou a fraude), já se compreende como exercício lícito da liberdade de expressão um pensamento objectivamente erróneo, o qual só pode ser combatido ou por manifestações contrárias ou pelo exercício do direito de rectificação.[17]

Aliás, também na senda do labor jurisprudencial do TEDH (que referiremos infra), sedimentou-se finalmente entre nós, quer nos tribunais, quer na doutrina, a noção clara de que […] as opiniões não são verdadeiras nem falsas. Podem ter mais ou menos sustento factual, mas não passam de opiniões, de juízos de valor que variam de pessoa para pessoa, pelo que não faz sentido condenar uma pessoa por ter uma opinião falsa; já os factos serão verdadeiros ou falsos.(…)»[18].

Já se postulou mesmo, conclusivamente, serem “[…] poucos os direitos fundamentais e menos ainda os interesses objectivos que podem legitimar uma afectação da liberdade de expressão […], tanto mais por ser muito difícil demonstrar - como se tem visto no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem […] - que um outro bem goze à partida (ou mesmo no caso concreto) de um peso superior ao da liberdade de expressão […]”.[19].

Salienta a este respeito Jónatas Machado que “[a] posição preferencial da liberdade de expressão, na sua qualidade de pré-condição do funcionamento democrático do sistema político, é uma verdade constitucional incontornável e que a doutrina constitucional sublinha que o princípio democrático tem como sub princípio o princípio da democracia comunicativa, estruturado em torno das noções de opinião pública e comunicação cívica e política democrática. […] Pretende-se, por esta via, sublinhar o facto de que a existência no seio da comunidade política de uma opinião pública autónoma funciona como garantia substantiva da democracia”[20]. E alude, mais à frente, ao “[d]ever de interpretar as normas legais sobre a tutela da honra, do bom nome e da reputação em conformidade com a Constituição, de forma a servir a promoção das finalidades constitucionais substantivas de proteção de uma sociedade livre e democrática, onde as questões de interesse público sejam objeto de informação e discussão livre a aberta”[21].

Prosseguindo a mesma linha de pensamento, mas noutro escrito[22], conclui o autor:
“As normas sobre responsabilidade penal, civil, disciplinar e contraordenacional podem ter um efeito inibidor e de autocensura […] susceptível de gerar uma estrutura de incentivos fortemente restritiva da liberdade de expressão e de informação.
Impõe-se por isso romper definitivamente com um entendimento demasiado restritivo da liberdade de expressão e informação, incompatível com uma cultura verdadeiramente democrática em que a robustez do controlo público é um factor fundamental.
As normas de responsabilidade civil actualmente em vigor entre nós não favorecem esse desiderato, devendo por isso ser interpretadas em conformidade com a Constituição, sob pena de conduzirem a resultados erróneos e absurdos.
A sub-interpretação das liberdades de expressão e de informação dos direitos de personalidade, a uma compreensão alargada e especulativa dos danos morais e patrimoniais, a uma determinação simplista dos nexos de causalidade mediáticos e a uma leitura abrangente do direito de indemnização, constituem um “cocktail” explosivo para a centralidade que as liberdades de expressão, de imprensa e de informação assumem num Estado de direito democrático e para a preservação da esfera de discurso público.
Longe de representar o resultado de um processo de ponderação proporcional e concordância prática, essa combinação deve ser vista como violadora das liberdades de expressão, informação e comunicação social, tal como consagradas nos artigos 37.º e 38.º da Constituição e no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.

Também ao nível jurisprudencial esta questão tem sido abordada.

Nos anos mais recentes vingou e privilegiou-se uma orientação segundo a qual a liberdade de expressão, embora deva ser sempre apreciada em equilíbrio com os direitos ao bom nome, à reputação e à imagem, visando a salvaguarda de uma sociedade democrática e considerando a envolvência de cada caso concreto, numa óptica de proporcionalidade, ainda assim merece tutela mais efectiva e candente, enquanto direito essencial cuja protecção é condição para a existência de uma democracia pluralista necessária ao desenvolvimento do Homem e ao progresso da sociedade. Isto porque a liberdade de expressão assenta e encontra respaldo no pluralismo de ideias e opiniões livremente expressas.

Decisivo para a formação desta orientação tem sido, desde logo, o TEDH. Na verdade, a liberdade de expressão, consagrada igualmente, como vimos já, no art. 10.º do CEDH, tem sido densificada de forma muito relevante pelo TEDH. Para o efeito, remetemos para a recente publicação deste Tribunal Europeu «Guide sur l’article 10 de la Convention européenne des droits de l’homme. Liberté d’expression»”[23], da qual consta uma vastíssima resenha da citada jurisprudência do TEDH sobre a matéria.

Em excurso pela jurisprudência do TEDH recenseada nessa publicação[24] do TEDH, referem-se como cabendo no âmbito do direito de liberdade de expressão diversos casos em que há críticas contundentes e agressivas a figuras públicas, que se entendem como não provocando um «prejuízo importante» atendendo à sua proeminência social. Hoc sensu, v.gr., os casos[25]:

— n.º 2611/10, Eon c. França, de 14-06-2013;

— n.º 155449/09, Margulev c. Rússia, de 08-10-2019;

— n.º 19219/07, Sylka c. Polónia, de 03-06-2014.

Nessa mesma publicação, salienta-se a necessidade de distinguir um juízo de valor gratuito e ofensivo de um juízo de valor alicerçado em factos e proferido no âmbito de um debate de ideias. Neste sentido, aludem-se aos processos[26]:

- n.º 37698/97, Ac. Lopes Gomes da Silva c. Portugal, de 28-09-2000;

- n.º 733/06, Ac. Lombardo e outros c. Malta, de 24-07-2007;

- n.º 25968/02, Ac. Dyuldin e Kislov c Russia, de 31-10-2007.

Mesmo sendo o visado por imputações de factos ou pela formulação de juízos de valor desonrosos, uma figura pública, e estando em causa uma questão de interesse público, o TEDH, ao aplicar o artigo 10.º da CEDH, tem igualmente desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão.[27] Sobre uma maior amplitude na admissão da crítica a políticos e personalidades públicas, é numerosa a jurisprudência referida naquela publicação. Veja-se, a título meramente exemplificativo e entre muitos, os processos[28]:

— n.º 9851/82, Lingens c. Áustria, de 08-07-1986;

— n.º 20834/92, Oberschlick c. Áustria, de 01-07-1997;

— n.º 35839/97, Pakdemirli c. Turquia, de 22-05-2005;

— n.º 48176/99, Turhan c. Turquia, de 19-08-2005;

— n.º 71343/01, Brasilier c. França, de 11-07-2006;

— n.º 15601/02, Kuliœ c. Polónia, de 18-06-2008;

— n.º 17265/05, Brunet Lecomte et Lyon Mag c. França, de 06-08-2010;

— n.º 32131/08 e 41617/08, Tuþalp c. Turquia, de 21-05-2012;

— n.º 20981/10, Mladina DD Ljubljana c. Eslovénia, de 17-04-2014;

— n.º 48311/10, Axel Springer AG c. Alemanha, de 10-10-2014;

— n.º 25217/08, Morar c. Roménia, de 07-10-2015;

— ou n.º 38010/05, Nadtoka c. Rússia, de 17-10-2016. ().

De destacar, igualmente, o Ac. n.º 49418/99, Hrico c. Eslováquia, em que o TEDH discutiu a publicação de críticas relativamente a julgamentos produzidos por um juiz do supremo tribunal e onde considerou que tais críticas correspondiam a juízos de valor que tinham uma base factual suficiente para se considerarem no âmbito da liberdade de expressão[29].

Entre as afirmações que foram consideradas pelo TEDH como ainda cabendo no exercício legítimo e lícito de liberdade de expressão salientam-se, v.gr.:

- a declaração de que um determinado político era «imbecil» (Ac. Oberschlick c. Áustria, de 01-07-1997, proc. n.º 35839/97);

- o apelidar de um titular de um cargo público de «mentiroso completo e sem complexos», ou de «intolerante e perseguidor» (cf. Ac. Almeida Azevedo c. Portugal, de 23-01-2007, proc. n.º 43924/02);

- o apelidar de um titular de um órgão de um clube futebolístico de «patrão dos árbitros» (cf. Ac. do TEDH Colaço Mestre e SIC - Sociedade Independente de Comunicação, SA c. Portugal, de 26-04-2007, proc. n.º 11182/03 e 11319/03);

- a afirmação de que os dirigentes de dois clubes de futebol cometeram um crime de abuso de confiança fiscal (cf. Ac. Público – Comunicação Social, SA. e outros c. Portugal, de 07-12-2010, proc. n.º 39324/07);

- a afirmação de que o presidente de um clube de futebol era «o campeão nacional dos arguidos» e um «inimigo figadal» da selecção (cf. Ac. do TEDH, Ac. Sampaio e Paiva de Melo c. Portugal, de 23-10-2013, proc. n.º 33287/10);

- o apelidar, num artigo de opinião, de um presidente de um instituto público de «mentiroso reles» e «pobre diabo» (tradução nossa, a partir do texto em inglês, do Ac. Do Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, de 04-10-2016, proc. n.º 53139/11);

- o apelidar de um Secretário de Estado da Agricultura e Florestas como «o político mais idiota que conheço» e a referência a um partido político e seus dirigentes como um partido «onde parece que toda a gente competente saiu de férias e só sobraram as galinhas» (tradução nossa, a partir do texto em inglês, do Ac Antunes Emídio and Soares Gomes da Cruz c. Portugal, de 24-09-2019, proc.  n.º 75637/13 e 8114/14).

No aresto supra citado, Ac. Almeida Azevedo c. Portugal, de 23-01-2007, proc. n.º 43924/02, o TEDH consignou, nos §§ de excurso fundamentador, o seguinte:
“23. O Tribunal lembra que, de acordo com a sua jurisprudência constante, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Tal como estabelece o artigo 10.º da Convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente. A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao tribunal averiguar se a ingerência litigiosa correspondia a uma «necessidade social imperiosa». Os Estados Contratantes gozam de uma certa margem de apreciação para determinar se existe uma tal necessidade, mas esta margem anda de par com um controlo europeu que incide tanto na lei como nas decisões que a aplicam, mesmo quando estas emanam de uma jurisdição independente (vide Lopes Gomes da Silva c. Portugal, n.º 37698/97, acima referido, § 30).
24. No exercício do seu poder de controlo, o tribunal aprecia a ingerência litigiosa à luz do caso no seu conjunto, atendendo ao conteúdo das afirmações imputadas ao requerente e ao contexto em que foram proferidas. Incumbe-lhe, em particular, determinar se a restrição à liberdade de expressão dos requerentes era «proporcional ao fim legítimo prosseguido»
[…]
28. Ao examinar, como se deve, o contexto do caso, bem como o conjunto das circunstâncias em que as expressões ofensivas foram proferidas, o Tribunal observa antes de mais que o debate em questão relevava claramente do interesse geral.
[…] os limites da crítica admissível são mais amplos em relação a um homem político que actua na sua qualidade de figura pública do que de um simples particular. O primeiro expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus actos e gestos, tanto pelos seus adversários políticos como pelos jornalistas e a massa dos cidadãos, e deve mostrar uma maior tolerância, sobretudo quando ele próprio faz declarações públicas que podem ser objecto de crítica (Jerusalem c. Autriche, no 26958/95, § 38, TEDH 2001-II)
[…]
30. Ao analisar as referidas expressões, o Tribunal admite que o requerente utilizou uma linguagem provocadora e, no mínimo, deselegante para com o seu adversário político. Todavia, tal como o Tribunal já teve ocasião de assinalar, neste domínio a invectiva política extravasa muitas vezes o plano pessoal: são estes os contratempos do jogo político e do livre debate de ideias, garantes de uma sociedade democrática (Lopes Gomes da Silva supra referenciado, § 34). Lidas globalmente, as expressões em causa dificilmente podem passar por excessivas”.

Importa ainda recuperar o que se consignou no processo Lopes Gomes da Silva c. Portugal, com o n.º 37698/97 (acórdão de 28-09-2000), que poderá constituir um paradigma, até pela influência que revelou nos casos seguintes, ressalvadas as devidas diferenças e apesar de todo o tempo entretanto decorrido, quanto à especial violência e rudeza das palavras utilizadas. No processo aí apreciado, um jornalista, inicialmente absolvido em primeira instância, tinha sido condenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em síntese, por ter escrito e publicado, num jornal diário português de que era director, um editorial, onde apelidou um candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa de «grotesco», «boçal», «grosseiro», «ridículo», «alarve» e «beato». Perante este mesmo circunstancialismo de facto, o TEDH formulou uma valoração bem distinta, ponderando que haveria que dar prevalência à liberdade de expressão, apesar do significado corrente das palavras utilizadas pelo arguido.

Por este raciocínio, assim corrigindo inclusivamente o juízo fáctico-valorativo, o TEDH concluiu que a decisão do Tribunal português constituía uma violação do artigo 10.º da CEDH, considerando além do mais que “os limites da crítica admissível serão mais largos quanto a pessoa visada é um homem político agindo na sua qualidade de personagem pública […]  O homem político expõe-se inevitavelmente e conscientemente a um controlo atento dos seus dizeres e gestos, tanto pelos jornalistas como pela massa dos cidadãos e deve mostrar uma maior tolerância, sobretudo quando faz declarações públicas que se prestam à crítica. Certamente tem direito a ver protegida a sua reputação, mesmo fora do quadro da sua vida privada, mas os imperativos desta protecção devem ser ponderados com o interesse da livre discussão das questões políticas, e as excepções à liberdade de expressão convidam a uma interpretação estreita”.

Por seu turno, no Ac. Do Carmo de Portugal e Castro Câmara c. Portugal, de 04-10-2016, proc. n.º 53139/11, em que o TEDH condenou Portugal, consignou-se no texto do acórdão a necessidade de recordar “[…] que quem participa de um debate em que se discutem assuntos de interesse geral pode recorrer a algum grau de exagero ou de provocação ou, noutras palavras, de fazer declarações um tanto imoderadas (veja-se Marian Maciejewski c. Poland, n.o. 34447/05, § 79, 13 Janeiro 2015, com demais referências). Inexistindo base factual, tais declarações podem, admite-se, apresentar-se como excessivas; mas à luz dos factos apurados, tal não ocorre no caso em apreço (ver, mutatis mutandis, Lopes Gomes da Silva, supracitado, § 34)”[30].

Ainda neste périplo pela jurisprudência do TEDH a propósito da liberdade de expressão, e sempre em casos em que a República Portuguesa foi demandada (e na esmagadora maioria dos casos condenada), importa ainda revisitar o Ac. Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal, de 03-04-2014, proc. n.º 37840/10, em que se discutia uma publicação em que se afirmava que Misericórdia estava “sob o peso da suspeita” e a existência de “privilégios”, que lançava a suspeita de favoritismos ilegais do Estado a interesses particulares. Neste Acórdão o TEDH afirma: “6. Por último, o Tribunal recorda que a natureza e a gravidade das sanções impostas também são factores a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da interferência (Cumpãnã e Mazãre c. Roménia ([GC], no 33348/96, §§ 113-115, ECHR 2004-XI; Kubaszewski c. Polônia, no 571/04, § 46, 2 de fevereiro de 2010)”.[31]

Ainda segundo a jurisprudência do TEDH é importante fazer a distinção entre factos e juízos de valor, considerando que os juízos de valor não se prestam à demonstração da respectiva veracidade, tendo protecção mais ampla do que a difusão de factos. E se “os nossos tribunais, durante muito tempo não faziam a distinção entre afirmação de factos e a afirmação de opiniões ou juízos de valor […] o TEDH […] veio explicitar que as opiniões não são verdadeiras nem falsas. Podem ter mais ou menos sustento factual, mas não passam de opiniões, de juízos de valor que variam de pessoa para pessoa, pelo que não faz sentido condenar uma pessoa por ter uma opinião falsa; já os factos serão verdadeiros ou falsos”[32].

E como foi esta questão decidida entre nós?

Como refere Jónatas Machado[33], verificou-se durante muito tempo uma nítida dessintonia entre o entendimento dos tribunais nacionais e o do TEDH, que tende a afirmar o seu direito de supervisão europeia e a reduzir a margem de apreciação dos Estados, apontando claramente para uma interpretação dos direitos de personalidade de uma forma restritiva, que não comprometa o papel central da liberdade de expressão, de informação e de imprensa numa sociedade democrática.

Seguindo aqui de perto a recensão efectuada no Acórdão da 7ª Secção deste STJ, (por nós relatado), proferido a 10-12-2019 no proc. n.º 16687/16.0T8PRT.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj, apontam-se os seguintes exemplos dessa dessintonia inicial:

- o acórdão do STJ de 26-04-1994[34] decidiu que “o direito ao bom nome e reputação sobrepõe-se ao direito de informação e crítica de imprensa”;

- o acórdão de 08-03-2007, proferido no proc. n.º 07B566, acessível em http://www.dgsi.pt[35], decidiu segundo a orientação tradicional, nos seguintes termos:
“O conflito entre o direito de liberdade de imprensa e de informação e o direito de personalidade - de igual hierarquia constitucional - é resolvido, em regra, por via da prevalência do último em relação ao primeiro.
Ofende o crédito da pessoa colectiva a divulgação jornalística de facto susceptível de diminuir a confiança nela quanto ao cumprimento de obrigações, e o seu bom-nome se for suscetível de abalar o seu prestígio ou merecimento no respectivo meio social de integração”.

Certo é que, sendo o exercício da liberdade de expressão e do direito de informação potencialmente conflituante com o direito ao bom nome e reputação de outrem, e considerando a orientação do TEDH, que resolveu esse conflito de direitos dando particular relevo à liberdade de expressão, em resultado do citado artigo 10.º da CEDH, em detrimento do direito à honra - daí as diversas condenações do Estado Português -, o STJ inflectiu a sua orientação jurisprudencial.

Essa inflexão pode ser justificada pelos seguintes motivos: i) os tribunais superiores em Portugal viram-se confrontados com uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, contrária à que vinha sendo preconizada; ii) o Tribunal Constitucional afirmou entretanto uma “clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição” (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 157/2001, in Diário da República, Série I, de 10-05-2001); iii) “os juízes nacionais estão vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.º da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais, devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional. […] Os tribunais nacionais e, de entre estes, em último grau de intervenção mas no primeiro de responsabilidade, os Supremos Tribunais, são os órgãos de ajustamento do direito nacional à CEDH, tal como interpretada pelo TEDH; as decisões do TEDH têm, pois, e deve ser-lhes reconhecida, uma “autoridade interpretativa”. Aliás, a relevância desta jurisprudência internacional está até espelhada na possibilidade de revisão de decisão transitada em julgado quando “seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português” (art. 696.º, al. f), do CPC)”[36].

Assim, como se diz no sumário do Acórdão do STJ, de 07-02-2008, proc. n.º 07B4403: “Da jurisprudência que vem sendo firmada por este (TEDH), resulta uma imposição no modo de pensar: Não se justifica que se pense, logo à partida, sobre se determinada peça jornalística ofende alguém. Deverá, antes, partir-se da liberdade de que gozam o ou os respectivos autores. Só depois, se deve indagar se se justifica – atentos os critérios referenciais do mesmo tribunal, com inclusão duma margem de apreciação própria por parte dos órgãos internos de cada um dos Estados signatários da Convenção – a ingerência restritiva no campo dessa mesma liberdade e a consequente ida para sanções legais”.

No acórdão do STJ de 30-06-2011 (proc. n.º 272/04.7TBBCL-G1.S1) infere-se que, de acordo com o artigo 10.º do CEDH, o intérprete terá de seguir o caminho consistente, não a partir da tutela do direito à honra e considerar os casos de eventuais ressalvas, mas a partir do direito à livre expressão, e averiguar se têm lugar algumas das excepções do n.º 2 do citado artigo 10.º do CEDH, caminho que saí reforçado pelo texto da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que, no seu artigo 11.º, igualmente consagra a liberdade de expressão e de informação.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça passou a afinar pelo mesmo diapasão, de que é exemplo, entre outros, o acórdão de 06-09-2016 (proc. n.º 60/09.9TCFUN.L1.S1), no qual se consignou, além do mais, o seguinte:
“A Constituição da República Portuguesa não estabelece qualquer hierarquia entre o direito ao bom nome e reputação, e o direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente através da imprensa. Quando em colisão, devem tais direitos considerar-se como princípios susceptíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infra valoração abstrata.
De acordo com a orientação estabelecida pelo TEDH e que os tribunais nacionais terão que seguir, as condicionantes à liberdade de expressão e de imprensa devem ser objecto de uma interpretação restritiva e a sua necessidade deve ser estabelecida de forma convincente.
Tendo sido veiculada informação jornalística que, no essencial, assenta em factos verdadeiros e que incidiu sobre temática com relevância pública, não pode concluir-se, apesar do dano daí advindo para outrem em termos de reputação e bom nome, pelo exercício ilícito do direito à liberdade de expressão e de informação.
Isto não deixa de ser válido pela circunstância dos factos aparecerem misturados com opiniões grosseiras e desprimorosas, quando se trata de informação veiculada por um jornal cujo estatuto editorial aponta expressamente para o uso da irreverência, sarcasmo, caricatura e hipérbole, bem como para o propósito de consciencialização cívica.
[…]
A liberdade de expressão deverá ser vista como constituindo um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e do pluralismo assente na tolerância, sendo que a liberdade de expressão e opinião vale também para as informações ou ideias que «melindram, chocam ou inquietam». E assim, se a afirmação ou difusão de factos falsos deve ser havida como proibida e pura e simplesmente banida e responsabilizada penal e civilmente, já quanto aos factos verdadeiros a sua divulgação poderá ser admitida, desde que tal se efetue para assegurar um direito próprio ou um interesse público legítimo. É, no essencial, o que se passa no caso vertente.
Acrescente-se que, como também se apontou acima, o dever que incide sobre o jornalista de relatar com verdade e rigor não tem por que se cumprir sempre ou necessariamente mediante uma comprovação absoluta dos factos (o que a mais das vezes seria até impossível de concretizar), senão que a informação há-de possuir uma base factual objetiva razoavelmente credível, não sendo de excluir que o próprio jornalista extraia as suas conclusões ou ilações e as apresente como quase-factos. O que não é tolerável é o uso de factos fabricados, equívocos, levianos ou que traduzam meras suspeitas subjetivas ou boatos. Não é esta última, manifestamente, a situação vertente, e aqui divergimos por completo do entendimento da recorrente quando aduz que os réus se limitaram a fazer uso da mentira”.

Por seu turno, no acórdão do STJ de 13-07-2017 (proc. n.° 1405/07.1TCSNT.L1.S1) consignou-se o seguinte:
Como é sabido, a tendência predominante na nossa jurisprudência foi, durante longos anos, a de claramente privilegiar, no caso de conflito de direitos, os direitos fundamentais individuais — à honra, ao bom nome e reputação, vistos como ligados à própria dignidade da pessoa humana - sobre o exercício do direito de liberdade de imprensa - continuando o entendimento, que já vinha de longe, de que, por regra, a ofensa à honra (e usamos esta palavra em sentido lato, abrangendo o que a lei, sem uniformidade terminológica, chama «honra», «honra e bom nome», «reputação», «consideração» e «crédito») integrava um ato ilícito a demandar, consoante os casos, sanção criminal, indemnização ou ambas.
A regra seria a afirmação daquele direito, que só cederia, em casos justificados, que, doutrina e jurisprudência, se encarregaram de ir precisando.
Outrossim, nos casos em que a cedência recíproca não resolvesse a questão, havia que dar preferência à honra porque integrante de direito de personalidade (Ac. De 30/6/2011, proferido por este STJ no P. 1272/04.7TBBCL.G1 .S1)
Simplesmente — como dá nota este mesmo aresto:
Foram, entretanto, proferidas muitas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre a matéria.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem não tutela, no plano geral, o direito à honra.
Não o ignora no artigo 10.º, n.º 2, mas a propósito das restrições à liberdade de expressão.
Esta construção levou aquele Tribunal a seguir um caminho inverso ao que vinham seguindo, habitualmente, os Tribunais Portugueses. Não partia já da tutela da honra, situando-se, depois, nas suas ressalvas, mas partia antes da liberdade de expressão, situando-se, depois, na apreciação das suas restrições, constantes daquele artigo 10.°, n.°2.
E vem proferindo múltiplas decisões cujo entendimento, mantido de forma constante, vem assentando, essencialmente, no seguinte:
- A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa;
- As exceções constantes deste n. ° 2 devem ser interpretadas de modo restrito;
- Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade;
- Os políticos e outras figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum - quanto à comunicação social, o Tribunal vem reiterando mesmo a expressão «cão de guarda» - devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas;
- A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), assinada por Portugal em 22-09-1976 e aprovada pela Assembleia da República pela Lei n.º 65/78 de 13 de outubro, vigora na ordem jurídica portuguesa por força do artigo 8.º n.º 2 da CRP e  assume no nosso ordenamento jurídico uma posição infraconstitucional, ou seja num plano inferior à  Constituição, mas superior ao da legislação ordinária.
[…]
Ocorrendo conflito entre os direitos fundamentais individuais – à honra, ao bom nome e reputação - e a liberdade de imprensa, não deve conferir-se aprioristicamente e em abstrato precedência a qualquer deles, impondo-se a formulação de um juízo de concordância prática que valore adequadamente as circunstâncias do caso e pondere a interpretação feita, de modo qualificado, acerca da norma do art. 10.º da CEDH pelo TEDH - órgão que, nos termos da CEDH, está especificamente vocacionado para uma interpretação qualificada e controlo da aplicação dos preceitos de Direito Internacional convencional que a integram e que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português - e tendo ainda necessariamente em conta a dimensão objectiva e institucional subjacente à liberdade de imprensa, em que o bem ou valor jurídico que, aqui, é constitucionalmente protegido se reporta, em última análise, à formação de uma opinião pública robusta, sem a qual se não concebe o correcto funcionamento da democracia.
Não podem considerar-se ilícitos os artigos de opinião que – embora redigidos de forma mordaz, contundente e desprimorosa, se situam no cerne do debate e crítica à acção política e governativa, traduzindo essencialmente juízos valorativos profundamente negativos sobre a capacidade e idoneidade política do visado, podendo este escrutínio público envolver a formulação de juízos valorativos claramente críticos e negativos e, consequentemente, implicar prejuízo à imagem do político visado como homem de Estado junto dos eleitores, sem que tal configure ilícita violação de direitos de personalidade.
As peças jornalísticas, situadas no âmbito da chamada imprensa cor de rosa, que referenciam e comentam aspectos da vida pessoal e relacionamentos do visado, situadas fora do perímetro da sua atividade política, não envolvem violação do direito à reserva da vida privada quando – como decorre da matéria de facto – o A. sempre tornou públicos aspectos da sua vida privada e familiar, participando abertamente em eventos sociais, concedendo entrevistas, participando em iniciativas e autorizando a publicação de imagens em revistas ditas cor de rosa.
Não geram ilicitude, traduzida em violação ilegítima dos direitos de personalidade, geradora de responsabilidade civil, as notícias, enquadradas em crónica social, em que se referem aspectos factuais que se apurou serem inverídicos ou inexatos – e envolvendo, nessa medida, violação de regras deontológicas do jornalismo - num caso em que, pela natureza dos factos em questão, tal divulgação não é objetivamente suscetível  de afrontar o direito à honra e consideração pessoal do visado.

No acórdão de 31-01-2017 (proc. n.º 1459/09.5TVLSB.L1.S1) deixou-se estabelecido o seguinte:
“A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.
O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.
Perante uma orientação jurisprudencial estabilizada junto do TEDH, como acontece em casos como o dos autos, os tribunais portugueses não poderão deixar de se influenciar pelo paradigma europeu dos direitos humanos.
Em sede de ponderação dos interesses em causa e seguindo-se uma metodologia de balanceamento adaptada à especificidade do caso, é de concluir ser a liberdade de expressão que, no caso concreto, carece de maior proteção.
Sendo que, no caso, atenta a matéria de facto apurada, o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra dos recorrentes”.

Por último, no Acórdão da 7.ª Secção deste STJ, por nós relatado e proferido a 10-12-2019 no proc. n.º 16687/16.0T8PRT.L1.S1 deixou-se consignado no sumário o seguinte:
“I - A Constituição da República Portuguesa não estabelece qualquer hierarquia entre o direito ao bom nome e reputação, e o direito à liberdade de expressão e informação, nomeadamente através da imprensa. Quando em colisão, devem tais direitos considerar-se como princípios susceptíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infra valoração abstracta.
II - A isenção do jornalista não pode significar a narração acrítica e asséptica dos factos, desprovida de uma valoração crítica do seu significado político, social e moral, particularmente quando se trata da conduta de titulares de cargos públicos.
III - É hoje pacífico que os jornalistas não têm apenas uma ampla latitude na formulação de juízos de valor sobre os políticos, como também na escolha do código linguístico empregado. Admite-se que possam recorrer a uma linguagem forte, dura, veemente, provocatória, polémica, metafórica, irónica, cáustica, sarcástica, imoderada e desagradável.
IV - De acordo com a orientação estabelecida pelo TEDH e que os tribunais nacionais terão que seguir, as condicionantes à liberdade de expressão e de imprensa devem ser objecto de uma interpretação restritiva e a sua necessidade deve ser estabelecida de forma convincente.
V - Muito embora o exercício da liberdade de expressão e do direito de informação sejam potencialmente conflituantes com o direito ao crédito e ao bom nome de outrem, tendo em consideração o que decorre da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o Tribunal Europeu dos Direito do Homem (TEDH), tem vindo a dar particular relevo à liberdade de expressão, enquanto fundamento essencial de uma sociedade democrática.
VI - A resolução concreta do conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas, no contexto jurídico europeu, onde nos inserimos, decorre sob a influência do paradigma jurisprudencial europeu dos direitos humanos.
VII - O TEDH, interpretando e aplicando a CEDH, tem defendido e desenvolvido uma doutrina de protecção reforçada da liberdade de expressão, designadamente quando o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral.
VIII - A vinculação dos juízes nacionais à CEDH e à jurisprudência consolidada do TEDH implica uma inflexão da jurisprudência portuguesa, assente no entendimento, até há pouco dominante, de que o direito ao bom nome e reputação se deveria sobrepor ao direito de liberdade de expressão e/ou informação”.

No mesmo aresto, consignou-se, no respectivo excurso fundamentador, além do mais, o seguinte:
“As opiniões manifestadas através de uma linguagem forte e exagerada são protegidas e o âmbito de protecção depende do contexto e do objectivo da crítica, sendo que, em questões de interesse público, num contexto de controvérsia pública sobre determinado assunto, as palavras contundentes poderão ser toleradas.
Importa, pois, tomar em consideração a jurisprudência do TEDH, não podendo os tribunais nacionais deixar de ponderar nas soluções jurisprudenciais decorrentes daquele Tribunal, já que a jurisprudência relativa à liberdade de expressão construída na interpretação e aplicação do artigo 10.º do CEDH oferecem critérios de grande utilidade para os tribunais nacionais”.

A situação concreta em apreço nestes autos é, em rigor, distinta daquelas retratadas na jurisprudência do TEDH e do STJ supra retratadas, se tomarmos em linha de consideração a qualidade política ou administrativa, stricto sensu, dos supostos destinatários lesados pelo exercício da liberdade de expressão. Na verdade, não só aqui não está em causa a apreciação de juízos de valor e de comunicação de factos sobre a acção de um agente “político” em sentido estrito, ou rigoroso, mas de um magistrado judicial, como o próprio declarante ou autor da opinião, no exercício da liberdade de expressão, também é um magistrado, embora não exactamente nas suas vestes de magistrado qua tale, mas sim de presidente de uma associação sindical de magistrados.

Sem que se possa negar pertinência a esta constatação, não podemos olvidar que “o TEDH tem equiparado a actores políticos, para o referido efeito, outras pessoas com influência no sistema político, em sentido amplo. Assim, o TEDH tem estendido aqueles princípios à comunicação de informações e opiniões relativas, nomeadamente, a assessores de políticos, juízes, diplomatas, funcionários públicos, funcionários contratados, dirigentes de entidades financiadas pelo erário público e mesmo familiares de políticos. Acresce que o referido Tribunal tem igualmente equiparado a actores políticos pessoas influentes noutras dimensões da sociedade, designadamente no “mundo do futebol” e considerou mesmo, esse Tribunal que um membro de uma comissão de inquérito sobre violência policial devia ser considerado um actor político, não por virtude de ter feito parte dessa comissão, mas por haver entrado posteriormente num debate público sobre o assunto”.[37]

Como tal, não se vislumbram motivos para não entender aplicável, mutatis mutandis, a orientação jurisprudencial vertida nas decisões supra citadas ao caso dos autos.

Sempre se refira, aprofundando a análise, que a Secção de Contencioso deste Supremo Tribunal, de situações em que esteja em causa a apreciação de conflito entre deveres de reserva de magistrados e liberdade de expressão, já decidiu que “[o] comportamento eventualmente lesivo dos deveres de reserva, correcção e de prossecução do interesse público, deve-se ter por justificado, quando verificado no exercício de um direito (concretamente o direito de denúncia), no enquadramento previsto no artigo 31.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal, designadamente, quando assumido com o propósito de pugnar pelo independente, imparcial e correcto funcionamento dos tribunais, e pelo direito à liberdade de quem dela está privado” (Ac. do STJ de 27-01-2016, proc. n.º 102/15.9YFLSB).

Uma última palavra de enquadramento normativo e exegético dos valores jurídicos contrapostos nos presentes autos, atentos os exactos termos em que autora e contra-interessado redigiram os respectivos instrumentos processuais, é devida a propósito da liberdade sindical, atentas as funções que o contra-interessado exercia e exerce ainda como Presidente da Associação Sindical Juízes Portugueses (ASJP).

Convoque-se, por pertinente e expressamente invocado pelo contra-interessado, o seguinte enquadramento normativo de base:

- art. 55.º, n.º 1, da CRP, que determina que “[é] reconhecida aos trabalhadores a liberdade sindical, condição e garantia da construção da sua unidade para defesa dos seus direitos e interesses”;

- art. 55.º, n.º 6, da CRP, que dispõe que “[o]s representantes eleitos dos trabalhadores gozam do direito à informação e consulta, bem como à protecção legal adequada contra quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções”;

- Convenção n.º 87, relativa à liberdade sindical e à protecção do direito sindical, adoptada pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pela Lei n.º 45/77, de 7 de Julho, aplicável à actividade da ASJP e à gestão também da entidade demandada, com as devidas adaptações, cujo art. 3.º dispõe que as “organizações de trabalhadores […] têm o direito de […]organizar a sua gestão e a sua actividade […]e que as autoridades públicas devem abster-se de qualquer intervenção susceptível de limitar esse direito ou de entravar o seu exercício legal”, sendo que o art. 11.º determina que “os Membros da Organização Internacional do Trabalho para os quais a presente Convenção esteja em vigor comprometem-se a tomar todas as medidas necessárias e apropriadas a assegurar aos trabalhadores e às entidades patronais o livre exercício do direito sindical”.

- art. 2.º dos Estatutos da ASJP, publicados no BTE (1ª Série, nº 12, de 29-03-2001), que estatui que “a ASJP, na representação dos interesses dos Juízes Portugueses, pugna pelo aperfeiçoamento e dignificação da justiça e da função judiciária e rege-se pelos princípios do funcionamento democrático e da independência relativamente ao Estado, às confissões religiosas e aos partidos políticos”;

- art. 3.º, n.º 1, alínea a), dos ditos Estatutos, segundo o qual compete à ASJP “promover a constante dignificação da função judiciária designadamente defendendo e assegurando a real independência dos juízes e fomentando a criação de estruturas ..... de a garantir”;

- art. 3.º, n.º 1, alínea g), dos mesmos Estatutos, segundo o qual compete à ASJP, “veicular externamente as posições dos Juízes sobre todos os aspectos relevantes para a defesa da imagem, prestígio e dignidade da judicatura”.

A propósito desta liberdade, ensinam os tratadistas[38] o seguinte:
A liberdade sindical é uma forma particular de liberdade de associação (art. 46.º), mas constitui um tipo autónomo. Na verdade, o sindicato é uma associação específica de trabalhadores assalariados ou equiparados destinada a defender os seus interesses desde logo e fundamentalmente perante as entidades empregadoras. A “differentia specifica” do sindicato em relação às restantes associações está, pois, no seu carácter de associação de classe, de associação de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores.
Por outro lado, a liberdade sindical é hoje mais que uma simples liberdade de associação perante o Estado. Verdadeiramente, o acento tónico coloca-se no direito à actividade sindical perante o Estado e os empregadores, o que implica, por um lado, o direito de não ser prejudicado pelo Estado ou pelos empregadores, por causa do exercício de direitos sindicatos, e por outro lado, o direito a condições de actividade sindical (direito de informação e de assembleia nos locais de trabalho, dispensa de trabalho para dirigentes e delegados sindicais, etc.).
[…]
O direito de protecção legal adequada dos representantes eleitos dos trabalhadores (n.º 6) desdobra-se em duas dimensões: (a) a dimensão subjectiva, pois trata-se da consagração de um verdadeiro direito de defesa dos representantes eleitos dos trabalhadores no exercício das suas funções; (b) a dimensão objectiva, traduzida na consagração de uma imposição constitucional dirigida ao legislador no sentido de este concretizar as formas de proteção adequadas (cfr. Ac TC n.º 767/96). […] A protecção específica que é conferida aos representantes eleitos dos trabalhadores decorre naturalmente da sua situação de particular «exposição» perante as entidades empregadoras e as entidades públicas, encabeçando e dirigindo as reivindicações para a defesa dos direitos dos restantes trabalhadores, o que os transforma naturalmente em alvos privilegiados de retaliações ou outros abusos de poder privado dessas entidades.

A propósito desta liberdade, apontam-se os seguintes contributos jurisprudenciais:

- Acórdão do STA de 16-01-2014 (proc. n.º 0885/13): «[…] o conteúdo e o tom das afirmações do dirigente hão de ser proporcionais à gravidade do dissídio, sob pena da eficácia do discurso pecar por excesso ou por defeito. Vistas as coisas a esta luz, coarctar-se-ia excessivamente a liberdade de expressão do dirigente sindical se, por ocasião de um conflito sério, lhe fosse negada a possibilidade de se exprimir com severidade, dureza ou contundência. E tudo isto se aproxima ainda de outra ideia, aliás transversal à nossa ordem jurídica: a de que se deve garantir aos dirigentes sindicais alguma imunidade. […] Até porque a relativa imunidade que aos sindicalistas, se deve reconhecer aponta na direcção contrária: a de que as declarações que profiram têm em vista a defesa dos interesses colectivos a cargo do sindicato, e não um qualquer fim subversivo da “legalidade democrática” ou da consideração devida aos órgãos de soberania […]»;

- Acórdãos do TEDH nos casos Wille v. Liechenstein (Ac. de 28-10-1999, proc. n.º 28 396/95), Guja C. Moldova (Ac. de 12-02-2008, proc. n.º 14 277/04), Harabin v. Slováqua (Ac. de 20-02-2013, proc. n.º 58 688/11) e Baca v. Hungary (Ac. de 23-06-2016, proc. n.º 20 261/12), todos acessíveis online in https://hudoc.echr.coe.int/: a liberdade de expressão de juízes, quando actuam em funções de representação, deve merecer proteção especial.

Dito isto, cientes deste enquadramento, do teor do artigo subscrito pelo ora contra-interessado (7º dos factos provados) e do acto impugnado [relatório final e deliberação, reproduzidas respectivamente nos pontos 18º e 19º do probatório], será que podemos julgar que a actuação do contra-interessado violou os deveres funcionais e os direitos de personalidade invocados pela ora autora?

Julgamos que não, pelos motivos que enunciamos de seguida.

Em primeiro lugar, não podemos olvidar a qualidade na qual o contra-interessado subscreveu o artigo de opinião: o de Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), não o de «mero» magistrado. Aliás, esse espaço disponibilizado pelo jornal «Público» é um espaço de opinião concedido e aceite no pressuposto que seria usado precisamente na sua qualidade de Presidente da ASJP.

Ora, essa qualidade postula uma leitura do comando normativo e estatutário do artigo 7.º-B do EMJ com as devidas adaptações, nomeadamente compaginando-o com o decorrente nos artigos 3.º, alíneas a) e g), dos Estatutos da ASJP e 55.º, n.os 1 e 6, da CRP, sob pena de ficar esvaziado do seu conteúdo, e se coarctar o direito à liberdade de expressão do dirigente da ASJP.

E porquê? Precisamente pelos motivos identificados e enunciados no acórdão do STA de 16-01-2014, proferido no âmbito do processo nº 0885/13, já citado: não são assimiláveis e sobreponíveis tout court, ou estritamente equiparáveis, os deveres dos dirigentes da ASJP (assim como também o não são, mutatis mutandis, os magistrados vogais do CSM) com os dos juízes que não actuam legitimados pelas inerentes funções de representação, sob pena de ao fazê-lo se impedir que o dirigente da associação sindical, aqui contra-interessado, possa exercer em pleno uma actividade que tem, além do mais, protecção legal e constitucional.

Tenhamos presente que, tal como se deixou citado na contestação do contra-interessado, “um dirigente sindical judiciário é eleito para defender os interesses colectivos dos seus pares e não pode, por isso, estar de forma simplista reduzido à condição e aos deveres que resultam do seu estatuto de magistrado quando exerce essas funções sindicais, mormente à compressão do tradicional dever de reserva. Esta é, sublinha-se, a única interpretação congruente quer com a Constituição da República (em cujo art. 55.º, n.º 6, se atribui aos representantes dos trabalhadores direito à protecção legal adequada contra quaisquer formas de condicionamento, constrangimento ou limitação do exercício legítimo das suas funções), quer com a Convenção n.º 87 da OIT sobre liberdade sindical, […] quer com o relatório adoptado, acerca das liberdades de expressão e de associação dos magistrados, pela Comissão de Veneza em Junho de 2015, quer com a jurisprudência sedimentada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cfr., entre outros, o acórdão Guja C. Moldova, de 12/2/2008 e o acórdão Koudeskina c. Russia, de 26/2/2008) […]”[39].

A esta luz e in casu, não era despiciendo equacionar a necessidade, utilidade ou conveniência de assumpção da tomada de posição, na qualidade de representante dos Juízes Portugueses, quanto a um assunto que era veiculado na comunicação social, por diversos jornais, e que punha em causa a imagem da justiça.

Não merece, pois, qualquer censura o relatório final, de cuja fundamentação se apropriou a deliberação impugnada, que, aliás, expressamente consignou, a este respeito, o seguinte:
Importa, outrossim, ter sempre no horizonte que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) não tem apenas como função defender os interesses da Magistratura Judicial e dos magistrados associados de tal instituição mas, de acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 1 dos seus Estatutos [publicados no BTE (1.ª Serie, n.º  12, de 29 de Março 01)] cabe-lhes também a promoção da constante dignificação da função judiciária pelos modos descritos na alínea a) do referido preceito estatutário e, além do mais, «veicular externamente as posições dos juízes sobre todos os aspectos relevantes para a defesa da imagem, prestígio e dignidade da judicatura» (alínea g) pelo que é no cumprimento deste preceito estatutário que se mostra escrito o artigo em referência e invocado o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses como expressamente refere o Exmº Desembargador na sua resposta à Participação Disciplinar e confirma nas suas declarações quando ouvido no presente processo.
Por todo o exposto, não se vislumbra no artigo «Militâncias e Justiça» a violação de justiça ou do dever de reserva, até porque estes deveres têm como elemento teleológico, como é sabido, a tutela da imagem da justiça no conceito dos cidadãos, da confiança nos tribunais e nos seus juízes, do prestígio e independência dos juízes que julgam as suas causas e, basta uma leitura atenta do referido artigo, para se ver que o mesmo gravita exactamente à volta da defesa de tais valores caros a todos os Magistrados e, principalmente, a todos os cidadãos que esses mesmos atributos exigem e esperam da Justiça e dos Juízes que julgam as suas causas.

Em segundo lugar, segundo a jurisprudência do TEDH de que demos conta supra, na aferição dos limites ao exercício legítimo da liberdade de expressão há que atender ao contexto em que as declarações são feitas.

No caso dos autos, o contexto é o do debate, veiculado em órgãos de comunicação social, a propósito das opiniões assumidas pelo presidente da ASJP acerca da legitimidade ética de se assumirem publicamente por magistrados judiciais determinadas militâncias em causas sociais, políticas, ideológicas, religiosas ou outras.

Pois bem, o artigo de opinião do contra-interessado foi publicado quando a questão subjacente à emissão da opinião (a suposta renúncia, pela ora autora, ao seu lugar de Juíza Conselheira no Tribunal ……., alegadamente por se ter recusado a retirar do projecto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei dos «……» uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo) já se encontrava em discussão nos jornais. Nesse artigo o contra-interessado expressou a opinião que entendeu ser maioritária dos juízes e tendo sempre em consideração o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses sufragado nos órgãos próprios da ASJP pelos juízes.

Não passa despercebido a este Tribunal que aquilo que a comunicação social afirmava - que a autora tinha renunciado ao Tribunal ………. por razões directa ou indiretamente ligadas à sua militância feminista - era, no momento em que o contra-interessado escreveu (e publicou) o seu artigo, inteiramente plausível, aos olhos de uma pessoa medianamente informada.

Da dinâmica factual apurada resulta, pois e afinal, que a actuação do contra-interessado ocorreu nas vestes de …… da ASJP, tendo por base o que era do conhecimento público por força de diversos artigos escritos e publicados em jornais, o que se tornou inevitavelmente num assunto mediático e por contraponto, na sua perspectiva, não prestigiador da imagem da justiça, sendo esse o seu ponto de partida para a elaboração do artigo de opinião.

A esta luz, não se lobriga de que forma possa a actuação aqui apreciada pôr em causa o dever de reserva decorrente do disposto no artigo 7.º-B do EMJ, uma vez que o contrainteressado: i) agiu na qualidade de presidente e representante de uma associação sindical; ii) comentou assuntos relevantes para o exercício dessa função e incluídos no respectivo objecto estatutário; e, sobretudo, iii) não teceu comentários quanto a um processo judicial em concreto, mas apenas quanto a uma notícia que era veiculada por diversos jornais (de natureza pública), e assim uma conduta em abstrato.

Em terceiro lugar, e como vimos já, é abundante a jurisprudência do TEDH que defende que ainda cai no âmbito do exercício lícito e legítimo do direito à liberdade de expressão a emanação de juízos de valor e opiniões relativamente a figuras públicas, ou conhecidas de um leque alargado de pessoas, proferidas em sede de debate público ou de artigos de opinião dirigidos à sociedade, ainda que configurem uma crítica agressiva, contundente, apaixonada, exagerada e depreciativa, se alicerçada num discurso em que se invocam factos bastantes para aqueles juízos, que são lidos pelo declarante à luz da sua percepção – ainda que tendenciosa - da situação. Como já referimos, o TEDH tem entendido que, estando em causa figuras públicas ou conhecidas de um leque alargado de pessoas - como ocorre com os magistrados, maxime os que tenham maior notoriedade pública - os limites para se considerar que ocorre um ataque à sua honra e consideração têm de ser mais alargados que aqueles que se aplicam a um cidadão comum, relativamente anónimo.

Ora, como vimos já, as afirmações constantes do artigo de opinião são enquadradas pelo seu declarante num determinado contexto de opinião, na qualidade de presidente e representante de uma associação sindical, comentando assuntos relevantes para o exercício dessa função e incluídos no respectivo objecto estatutário, sem comentar nem tecer comentários quanto a um processo judicial em concreto, mas apenas quanto a uma notícia que era veiculada por diversos jornais (de natureza pública). O declarante e ora contra-interessado limitou-se a apreciar aquelas notícias, emitindo uma opinião pessoal (mas também institucional) de discordância relativamente ao que aí vinha relatado.

Portanto, as afirmações em causa não foram feitas em termos gratuitos, visando difamar ou ofender a autora, nem tendo qualquer intuito difamatório. Não há aqui uma crítica caluniosa, gratuita, que tem em vista afectar as qualidades pessoais da autora - na certeza de que, de resto, o direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não se exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva, como vimos supra.

Não é correcta a asserção postulada (mas não demonstrada) pela autora de que o contra-interessado, com a sua conduta, mais do que sugerir, afirmou – com o especial respaldo de autoridade em que está investido e invoca - que a autora instrumentaliza a sua função a tais convicções, nem que a tenha acusado de não saber manter a distância, não cumprir a isenção, nem observar a imparcialidade que são apanágio da elevada função de julgar. Assim como também não há, por conseguinte, nem violação do dever de urbanidade, nem do dever de reserva.

Aliás, em bom rigor, nem se pode afirmar ter-se verificado, nos termos utilizados, que tenha havido sequer uma crítica contundente ou feroz, nem uma oposição frontal às posições assumidas pela autora - crítica essa que, ainda que tivesse sido feita em tais termos, se teria por lícita, sem que mesmo então se pudesse considerar ultrapassado o limite do exercício da liberdade de expressão, seguindo a indicada jurisprudência do TEDH.

Recuperemos aqui o se deixou consignado no relatório final, de cuja fundamentação se apropriou a deliberação impugnada:
“As considerações tecidas no artigo “Militâncias e Justiça” a este respeito, não demonstram objectivamente qualquer «animus injuriandi vel difamandi», nem parecem pôr em causa a consideração devida à Exmª Magistrada em questão mas, de forma inequívoca, parecem evidenciar que a participação pública dos Juízes na defesa de causas sociais, especialmente quando há ressonância mediática, é susceptível de comprometer a imagem da independência dos mesmos aos olhos do público que lê ou ouve tais notícias e, por isso, criar dúvidas sobre a justiça das decisões proferidas em processos em que assuntos relativos ou conexos com tais causas sociais sejam por eles julgados e ipso facto sobre a credibilidade da própria Justiça e sobre a confiança dos cidadãos nos tribunais.
Isso mesmo, espelha com clareza a expressão aí utilizada «portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam»!
[…]
No caso, a ponderação deve ser feita entre o dever de reserva e a adequação da linguagem usada por um juiz em intervenção pública, com a expressão de opiniões no âmbito da participação num debate público, sobre matéria de relevante interesse público, e os limites do uso da linguagem,  quando  seja  considerada  ou  praticada  alguma  ingerência (consequência   negativa,   nomeadamente   uma   sanção) no direito de expressão, nos termos da ponderação imposta pelo artigo 10.°, n.° 2, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
Finalmente, porque para que se verifique, nas declarações verbais ou escritas, a infracção disciplinar da violação do dever de correcção, não basta que as mesmas desagradem ao visado, mas antes que objectivamente sejam ofensivas ou desrespeitosas, pois como define a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, no seu art. 75.º «o dever de correcção consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos e serviços, os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos», sendo que tal definição legal era, na altura dos factos, aplicável aos Magistrados Judiciais ex-vi do art. 171.º do EMJ que vigorou até ao final do ano de 2019.
Ora tal cunho ofensivo, rude ou grosseiro que traduz a falta de respeito disciplinarmente censurável, não transparece do referido artigo.
A aparente contundência crítica do artigo em causa mostra-se dirigida sobretudo às condutas relatadas nas notícias, que verbera no sentido de serem de evitar pelos Juízes em geral.
Quanto à hipótese conjectural da juíza aficionada de touradas, que figura no mesmo texto, parece-nos evidente que a mesma nada tem a ver com a Exmª Conselheira em referência, até porque se constata que houve o cuidado de enfatizar, desde logo, que tal hipótese estaria «fora deste caso da juíza do T….», pelo que se destinava a exemplificar a inconveniência de os Juízes se empenharem na militância pública de causas socias, o que pode potenciar dúvidas sobre a sua necessária imparcialidade se tiverem que julgar processos relacionados, directa ou reflexamente, com tais causas sociais.
Cremos serem despiciendas mais palavras para se concluir, após a prova produzida no presente Inquérito, pela inexistência de indícios de violação do dever de correção, por banda do Exmº Desembargador BB, assim como do dever de lealdade que lhe é imputado e do qual não existe nem o mais leve indício […]

O aí decidido não merece qualquer censura.

Por último, importa abordar as alegações da autora no sentido de que o alegado facto imputado pelo contra-interessado à aqui demandante (recusa em retirar de um Acórdão do Tribunal …… relativo a «…..» uma expressão que fazia equivaler violência doméstica a terrorismo) era falso, tendo a entidade demandada validado a sua posição apenas e tão só por este invocar o que se dizia nos jornais. Alega a autora que, mais e melhor do que ninguém, o contra-interessado sabia que escrevia sobre matéria de natureza secreta, dando eco e amplitude – acrescido e até, legitimado, pela posição que tinha (tem) e expressamente invocava – de supostos factos relativamente aos quais, tampouco lhe era lícito informar-se de forma lícita e cabal junto de quem de direito, pelo facto de escrever sobre matéria secreta, o que constituía razão acrescida para não versar sobre o que supostamente se teria passado no foro interno de um Tribunal e que não podia (legalmente) conhecer, pelo que o conhecimento através do que dizia a imprensa nunca poderia ser validamente invocado como integrando a satisfação do dever de informação que o tornariam lícito.

Pois bem, cumpre ter presente e reiterar que o artigo do contra-interessado traduziu-se e consubstanciou um artigo de opinião.

Ora, como tivemos oportunidade de deixar estabelecido: i) na liberdade de expressão cabe não só a informação (reportada necessariamente a notícias verdadeiras), como também as ideias, opiniões, juízos, narração de factos ou casos da vida comentários e propaganda; ii) na liberdade de expressão, só não pode caber a divulgação de notícias falsas (isto é, o pensamento que resulte subjectivamente falso, nomeadamente a mentira, o dolo ou a fraude), já se compreende como exercício lícito da liberdade de expressão um pensamento objectivamente erróneo, o qual só pode ser combatido ou por manifestações contrárias ou pelo exercício do direito de retificação; iii) «[…] as opiniões não são verdadeiras nem falsas. Podem ter mais ou menos sustento factual, mas não passam de opiniões, de juízos de valor que variam de pessoa para pessoa, pelo que não faz sentido condenar uma pessoa por ter uma opinião falsa; já os factos serão verdadeiros ou falsos.(…)»[40]; iv) ao nível da perseguição disciplinar por exercício ilegítimo (ou abusivo) da liberdade de expressão, devem, pois, considerar-se atípicos (e, portanto, insusceptíveis de perseguição penal ou sancionatória) os juízos de apreciação e de valoração no âmbito da opinião e da crítica objectivas que recaiam directamente e apenas sobre realizações profissionais e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo, o Parlamento e os tribunais; v) essa atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da «verdade» das apreciações subscritas.

Cientes destas asserções, e de regresso já ao caso dos autos, constatamos que, em momento prévio à redacção do referido artigo escrito pelo contra-interessado, havia ocorrido a publicação no jornal ……, a ….-07-2019, do artigo intitulado de «Lei ...... precipitou renúncia de juíza do ……», bem como de inúmeras outras publicações, ocorridas noutros jornais, sites noticiosos e plataformas de comunicação social (jornais impressos e online, televisões e rádios) entre os dias …. e ….-07-2019 [vide pontos 5º e 6º da Fundamentação de facto ].

Resulta, assim, da dinâmica factual apurada que a notícia respeitante à renúncia das funções da autora no Tribunal …… gerou imensa polémica, visto que foi amplamente difundida na imprensa, e que por esse motivo e atendendo aos seus contornos específicos, e no entendimento do contra-interessado, revelou ser negativo e desprestigioso para a imagem da justiça e dos juízes, motivo pelo qual, sendo este ….. da ASJP, no cumprimento dos Estatutos da ASJP, do mandato que lhe foi conferido pelos juízes associados e do programa de acção da direcção a que preside, escreveu um artigo de opinião quanto ao assunto vertente.

Importa ter presente que, à data em que escreveu e remeteu o artigo para publicação, o que era maioritariamente veiculado na comunicação social era que a autora tinha renunciado ao Tribunal ….. por razões directa ou indirectamente ligadas à sua militância feminista, sendo que, até ao momento em que foi pública a opinião do contra-interessado e malgrado a profusão de notícias no sentido exposto, não fora desmentida tal versão, nem pelo Tribunal ……, nem pela autora (ambos abordados pela comunicação social e com fácil acesso aos mesmos). De resto, poucas horas volvidas da renúncia ao Tribunal ……., a autora publicou na sua página do …… um artigo de opinião da organização ......., com o seguinte comentário da sua autoria: «A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados actuem» (facto admitido pela autora no procedimento de inquérito).

Ora, diante destas razões conjugadas (inúmeras notícias sobre o facto, no mesmo sentido; ausência de desmentido da autora; publicação, pela demandante, de comentário consistente com aquelas notícias, quer no conteúdo, quer no momento da publicação; e reputação pública da autora também consistente com a motivação que lhe era imputada, e aliás refirmada já nos presentes autos)[41], e sobretudo considerando a impossibilidade de aceder ao teor do próprio processo do Tribunal …… à data em que escreveu o seu artigo, não se divisam razões para que o contra-interessado, em boa fé, não reputasse como verdadeiro, ou ao menos plausível, o que a imprensa tinha afirmado sobre as razões da renúncia da autora ao Tribunal …….

Aliás, o artigo em questão foi escrito e enviado para publicação ao assessor de comunicação da ASJP em momento necessariamente anterior à sua publicação, sendo que só no próprio dia em que o artigo foi publicado é que o contra-interessado teve conhecimento do artigo publicado no «…… » …. sob o título «Honra de Juíza. Violência doméstica nada teve a ver com saída da juíza AA», assinado pela jornalista II precisamente no dia ….-07-2019 — publicação única que desmentia o que vinha sendo relatado, não assumida pela autora mas reportada a «fontes judiciais» no Tribunal …… e posterior à data da elaboração do artigo de opinião do contrainteressado.

Em rigor, só a ….-12-2019, e através da entrevista à «………», é que a autora terá afirmado ser falso que tivesse colocado no projecto de acórdão qualquer comparação entre violência doméstica e terrorismo, ou sequer feito qualquer referência ao fenómeno da violência doméstica.

Ora, como bem se consignou a este respeito no relatório final de que se apropriou entretanto a deliberação impugnada:
“No que concerne à conduta do Exmº Desembargador BB, desde logo se nos afigura patente que não foi o mesmo que atribuiu à Exmª Juíza Conselheira a menção no projecto do acórdão da falada «equiparação da violência doméstica ao terrorismo», como se diz na participação disciplinar mas, baseado em notícias vindas a público nos jornais, que afirmavam que a Exmª Juíza Conselheira em referência, enquanto Relatora do falado Acórdão do T…., «ter-se-á recusado a retirar do projecto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei ...... uma consideração lateral, com que os outros juízes não concordavam, que equiparava a violência doméstica ao terrorismo» e tendo tais notícias de cuja autenticidade não duvidou, como pressuposto, criticou a conduta noticiada na qualidade de …… da Associação Sindical dos Juízes Portugueses ( ASJP), publicando o dito artigo.
Tendo em atenção que a notícia da renúncia da Exmª Juíza do T….. foi amplamente difundida nos artigos do jornal «……», com títulos e «abstracts» chamativos de atenção, a que se referem os factos apurados 04 a 06, do acervo factual supra elaborado, além de outros, tal atribuição e divulgação foi efetuada pelos próprios jornais e por vários outros que propagaram a notícia pois, como bem reconhece a Exmª Juíza Conselheira AA, no item 18 da sua Participação Disciplinar contra o Exmº Desembargador BB, «a participante foi objecto de uma onda de notícias falsas, que terão sido divulgadas por fontes ligadas ao Tribunal ……… (“fontes judiciais”) que não se quiseram identificar».
O Exmº Juiz Desembargador teve como pressuposto do seu citado artigo, as notícias supra referidas, não tendo, até ao momento em que publicou o seu artigo Militâncias e Justiça, razões válidas para duvidar da veracidade do que nelas se continha.
Porém, se é difícil apurar com exactidão quantos e quais os jornais e outros meios de Comunicação Social que divulgaram a notícia da renúncia da Exmª Juíza Conselheira às suas funções no Tribunal ……. ligando-a a uma pretensa recusa em retirar do projecto do acórdão referido uma equiparação entre violência doméstica e terrorismo, seria impossível indagar junto daquele Tribunal a verdade do que se passou durante as discussões em conferência de Juízes sobre o que constava dos projectos, designadamente a veracidade sobre a falada «recusa em retirar do projecto a equiparação da violência em mulheres e crianças ao terrorismo ou sobre o imputado «activismo feminista» de que fizeram eco algumas daquelas notícias.
Com efeito, é consabido que tudo o que se passa na conferência de Juízes dum tribunal coletivo, reunido para discussão e deliberação sobre decisões judiciais, tem carácter sigiloso, sendo vedada a sua transparência para o exterior, contrariamente  ao que  se  passa  nas  audiências  de julgamento que, em princípio são públicas, ressalvadas as excepções previstas na lei.
[…]
Na nova Organização Judiciária do regime democrático, o Estatuto Judiciário foi revogado e, em sua substituição, os Magistrados Judiciais passaram a reger-se pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais que, inter alia, impôs o dever de reserva no seu artigo 12.º, estando actualmente previsto no art. 7.º-B do mesmo Estatuto, com as alterações introduzidas pela já referida Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto que, na própria epígrafe do preceito legal, refere o dever de sigilo e o dever de reserva. (…) Deste    modo, não    seria    possível ao participado, Exmº Desembargador BB,   inteirar-se   da   verdade   dos   factos noticiados, na única fonte segura e credível para tal, que seria o Tribunal …… onde os factos tiveram lugar, justamente por se tratar de matéria sigilosa, e também não faria sentido perguntar à Exmª Magistrada referida no seu artigo Militâncias e Justiça sobre tais factos e esta responder-lhe, além do mais porque ambos estão vinculados ao dever de reserva, como Magistrados Judiciais que são.
Do exposto resulta, que não fez declarações ou comentários públicos sobre qualquer processo judicial, antes criticou teoricamente uma conduta da Exmª Juíza Conselheira AA, descrita pela Comunicação Social como tendo ocorrido no T…. durante a fase de elaboração e discussão do projecto de que era Relatora, projecto esse destinado à prolação do Acórdão que decidiu da questão da constitucionalidade da lei vulgarmente denominada lei ...... e, igualmente, a sua alegada (pela imprensa) militância em causas sociais, com os potenciais efeitos negativos que tais militâncias podem produzir na confiança dos cidadãos nas decisões de juízes militantes em certas causas.
O Exmº Magistrado em referência assentou no pressuposto de que tais notícias corresponderiam à verdade dos acontecimentos e não seria de esperar que, sem que houvesse motivos válidos para descrédito nas mesmas ou dúvida razoável, se recusasse a dar-lhes crédito, pois, como se lê numa antiga decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 26 de Abril de 1979, «Ao direito da imprensa de difundir informações, corresponde o direito do público de as receber» (Decisão do TEDH, de 26-04-1979, caso Sunday Times, referida pelo Juiz Conselheiro Pinheiro Farinha, na sua Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada, pg. 48), tanto mais que não era apenas um isolado jornal que a divulgou.
E o mesmo se diga em relação a tudo o mais que a Comunicação Social teria  publicado  sobre  a  referida  Magistrada,  destacando-se o propalado «ativismo de causas femininas» e a hipótese adrede congeminada sobre uma ficcionada juíza que teria de julgar um caso sobre touros de morte, sendo aficionada das touradas: «Se a juíza que julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma activista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão?”

Recordemos a parte do texto que a tal se refere:
“De acordo com os jornais, a juíza que renunciou ao T….. assume-se como activista de causas feministas. Chegou a declarar que, infelizmente, em Portugal não existe uma teoria feminista do direito! (....., entrevista de …./11/2015). Esta é a segunda perplexidade. É lícito que o juiz se envolva activamente e se assuma como militante de causas sociais, políticas, ideológicas ou religiosas, quaisquer que elas sejam? O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses dá outra vez uma resposta muito clara: “O juiz é livre de participar em qualquer actividade cívica, desde que a mesma não seja susceptível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da atividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações colectivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objectiva e de boa-fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões susceptíveis de virem a ser submetidas aos tribunais.” Portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam.
É evidente que nenhum juiz é ideologicamente neutro e que todas as decisões têm efeitos sociais. Aplicar a lei aos casos da vida não é um acto asséptico. Simplesmente, o problema não é esse. O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais - sejam elas quais forem - tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções. E isso é a negação da Justiça, que tem de ser imparcial, objectiva e o mais distanciada possível da personalidade do juiz.
Se quisermos ver isso com toda a nitidez, fora deste caso da juíza do T…., podemos pensar no que aconteceu em 2001, quando o Tribunal ........ foi chamado a decidir sobre os touros ......... Se a juíza que   julgou o caso fosse uma conhecida aficionada defensora das touradas de morte, ou, ao contrário, uma activista proibicionista anti touradas, alguém acreditaria na imparcialidade da sua decisão? A resposta é tão óbvia que dispensa mais justificação. Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa».
As considerações tecidas no artigo Militâncias e Justiça a este respeito, não demonstram objectivamente qualquer «animus injuriandi vel difamandi», nem parecem pôr em causa a consideração devida à Exmª Magistrada em questão mas, de forma inequívoca, parecem evidenciar que a participação pública dos Juízes na defesa de causas sociais, especialmente quando há ressonância mediática, é susceptível de comprometer a imagem da independência dos mesmos aos olhos do público que lê ou ouve tais notícias e, por isso, criar dúvidas sobre a justiça das decisões proferidas em processos em que assuntos relativos ou conexos com tais causas sociais sejam por eles julgados e ipso facto sobre a credibilidade da própria Justiça e sobre a confiança dos cidadãos nos tribunais.
Isso mesmo, espelha com clareza a expressão aí utilizada “portanto, no plano da ética, militâncias e Justiça não casam”!
[…]
Por todo o exposto, não se vislumbra no artigo “Militâncias e Justiça” a violação do segredo de justiça ou do dever de reserva, até porque estes deveres têm como elemento teleológico, como é sabido, a tutela da imagem da justiça no conceito dos cidadãos, da confiança nos tribunais e nos seus juízes, do prestígio e independência dos juízes que julgam as suas causas e, basta uma leitura atenta do referido artigo, para se ver que o mesmo gravita exactamente à volta da defesa de tais valores caros a todos os Magistrados e, principalmente, a todos os cidadãos que esses mesmos atributos exigem e esperam da Justiça e dos Juízes que julgam as suas causas.
É claramente neste sentido que no referido artigo vem referido e citado o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses – Princípios para a Qualidade Responsabilidade, da iniciativa e responsabilidade institucional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP)”.

De novo, também neste ponto não merece qualquer censura o acto impugnado.

III - DECISÃO

Atento o exposto, julga-se a acção improcedente, absolvendo a entidade demandada e o contra-interessado dos pedidos.

Custas pela autora – artigo 527º nº 1 do CPC.

**

Valor da acção: € 30.000.01 (artigo 34º nº 2 do CPTA), fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UCs de acordo com a Tabela I-A, anexa ao Regulamento das Custas Processuais e artigo 7º nº 1 do mesmo diploma.

Lisboa, 25 de Março de 2021

Ilídio Sacarrão Martins (Relator) (Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 20/20, de 01 de Maio, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade).

Rosa Tching

Conceição Gomes

Paula Sá Fernandes

Clemente Lima

Maria Olinda Garcia

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Presidente da Secção)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1]  Lições de Direito Administrativo, Volume I, Lições policopiadas, 1976, Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 520
[2] Américo Taipa de Carvalho, «Art. 29.º», Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I, coord. Jorge Miranda / Rui Medeiros, 2.ª edição, 2010, Coimbra Editora, p. 676.
[3] GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, artigos 1.º a 107.º, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra Editora, pp. 495-496.
[4] Carlos Castelo Branco / José Eusébio Almeida, Estatuto dos Magistrados Judiciais Anotado e Comentado, Almedina, 2020, p. 604.
[5] Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome, Contributo para o Estudo do artigo 484º do Código Civil, Tempus Editores, 1996, p. 97.
[6] O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pp. 303-305
[7] Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Almedina, 2011, pp. 115-120.
[8] Op. cit., pp. 572-573.
[9] Op. cit., p. 575.
[10] José de Melo Alexandrino, Estatuto Constitucional da Actividade de Televisão, 1998, Coimbra Editora, pp. 92 ss; idem, «Art. 37.º», in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, cit., p. 848; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais, tomo IV, 3.ª edição, 2000, Coimbra Editora, p. 545; Jónatas E. M. Machado, Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, 2002, Coimbra Editora, pp. 372 ss.
[11] Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., p. 848.

[12] Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., pp. 846-847; Gomes Canotilho / Vital Moreira, cit., p. 575.
[13] Gomes Canotilho / Vital Moreira, cit., p. 575; Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., p. 856.
[14] Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., pp. 856-857.
[15] Neste sentido, Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, pp. 153 e 267 ss.; Iolanda Rodrigues de Brito, Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, 2011, Coimbra Editora, pp. 302-311.
[16] Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., p. 849.
[17] Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., p. 849; iidem, Estatuto Constitucional…, cit., pp. 84 e passim.
[18] Teixeira da Mota, «Liberdade de Expressão – A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses», Revista Julgar, n.° 32, 2017, pp. 181-184.
[19] Melo Alexandrino, «Art. 37.º», cit., p. 851.
[20] «Liberdade de Expressão, Interesse Público e Figuras Públicas ou Equiparadas», Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXXV, 2009, p. 74.
[21] Idem, ibidem, p. 77.
[22] Jónatas E. M. Machado, «A Glória, a Honra e o Poder – Observações sobre a liberdade de imprensa em democracia», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 143.º, n.º 3984, 2014, p. 189.
[23] Conseil de l’Europe/Cour européenne des droits de l’homme. Première édition – 31 mars 2020, integralmente disponível para consulta online na presente data in https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_10_FRA.pdf.
[24] Seguindo aqui de perto a exposição efetuada nos recentes acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul proferidos a 01-10-2020, processos n.os 63/20.2BCBLSB e 50/20.0BCBLESB, ambos disponíveis para consulta em http://www.dgsi.pt/jtca.
[25] Cf. fls. 17 da mencionada publicação.
[26] Cf. pp. 39 e 40 da indicada publicação.
[27] Iolanda Rodrigues de Brito, cit., p. 17.
[28] Cf. p. 43 da publicação indicada na nota 24.
[29] Cf. p. 39 da indicada publicação.
[30] Tradução nossa, a partir do original em inglês.
[31] De novo, tradução nossa, a partir do original em inglês.
[32] Teixeira da Mota, cit.,. 181-184
[33] «Liberdade de Expressão, Interesse Público…», cit., p. 80.
[34] In CJ STJ, II/94 pg. 54.
[35] À semelhança dos demais doravante citados sem indicação expressa de fonte diversa.
[36] Henriques Gaspar, «A Influência do CEDH no diálogo interjurisdicional», Julgar n.º 7, 2009, p. 49.
[37] Renato Lopes Militão, «Idiossincrasias da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Conexas com os Crimes de Expressão, Especialmente com a Difamação», in Revista do CEJ, 2017, I, p. 110.
[38] Gomes Canotilho / Vital Moreira, cit., pp. 730, 731 e 737.
[39] Cf. Deliberação da Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público, proferida no âmbito do processo de inquérito nº 1/2016, consultável em http://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/1_2016-rmp-i_decisao_disc.pdf.
[40] Teixeira da Mota, «Liberdade de Expressão – A Jurisprudência do TEDH e os Tribunais Portugueses», Revista Julgar, n.° 32, 2017, pp. 181-184.
[41] Cf. artigo 68.º da petição inicial.