Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1643/19.4PBBRR-G.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO GUERRA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
TRÂNSITO EM JULGADO
PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O requerente encontra-se preso desde Novembro de 2019 e foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, por acórdão proferido em 28-01-2021.
II - Não tendo sido interposto recurso deste acórdão, o trânsito em julgado ocorreu em 11-03-2021. Assim, o requerente encontra-se em cumprimento da pena em que foi condenado por decisão condenatória já transitada em julgado.
III - Na sua petição, o requerente não caracterizou nenhuma situação que permita afirmar o abuso de poder a que se refere o art. 31.º da CRP, limitando-se a afirmar-se inocente e a invocar a sua discordância da decisão que o condenou na pena de prisão que cumpre, decisão essa susceptível de recurso, sem, contudo, extrair dessa discordância, o abuso de poder traduzido numa prisão ilegal.
IV - Deste modo, não se verifica a ilegalidade da prisão do requerente, inexistindo qualquer fundamento previsto no nº. 2 do art. 222.º do CPP, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a alegada violação grave do direito à liberdade que é fundamento da providência de habeas corpus, há-de integrar, necessariamente, alguma das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP.
Decisão Texto Integral:

Processo: 1643/19.4PBBRR

Providência de Habeas Corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1- Requerimento.

Vem o requerente AA, arguido no processo 1643/19.4PBBRR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ......... – Juízo Central Criminal de ......... – Juiz ..., em requerimento dirigido ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, “solicitar a providência de Habeas Corpus”, nos seguintes termos que, em síntese, se indicam e transcrevem:

- “Encontro-me a data actual prisioneiro por acções crime muitíssimo graves efectuadas e exercidas por os vossos Tribunais” e “falsas declarações que foram proferidas”, por Juízes nos Tribunais do Barreiro, de Almada, da Horta e outros, mesmo antes de 11.Outubro.2012;

- Tal acontece porque “há criminalidade organizada por a corrupção dos agentes das autoridades, Juízes, Magistrados e restantes”, como “no Processo 1643/19.4PBBRR referente a uma situação qual não fui eu que cometi esse crime conforme de igual forma a outras situações qual sou eu o lesado ofendido e estou prejudicadíssimo”, e por isso “incorro inclusive  em poder estar em riso de vida 24 sobre 24 horas inclusive aqui onde me encontro”, situação que é “contra a minha vontade e direitos quer de cidadão português referente há Constituição da Républica, Direitos Humanos

- Refere que “Em 24 Novembro 2018 fui alvo de uma tentativa de homicídio qualificado na forma tentada exercida contra mim por o meio de me atropelarem (…) entre todas as outras situações criminosas gravíssimas que efectuaram contra mim e que persistem 24 sobre 24 horas”.

- Pergunta “Qual é que é o fundamento que tem pra comigo perante a Lei Justiça se só ter de forma consecutiva reiterada me prejudicado e inventado situações de falsas declarações criminosas contra mim quando sou eu a estar prejudicadíssimo”.

- Refere encontrar-se “exausto de ser ofendido, agredido de forma sistemática inclusive por estes agentes das vossas forças de segurança pública, guardas prisionais e outrem”, e encontr-se “impossibilitando-me de entrar em contacto com os meus familiares directos, ter acesso a todas as mesmas necessidades de saúde, reabilitação, medicinais, terapêuticas”.

- Refere que é “forçado a trabalhos de tortura, degradantes, a condições inadequadíssimas as minhas necessidades direitos vitais, humanos e restantes”.

Entende o requerente que é da competência deste Tribunal:

- o “dever obrigações fazerem valer os meus [seus] direitos, inclusive até o de emitirem o meu Mandado de Libertação vitalício imediato, manter e preservar a minha vida mesmo posterior a todos os crimes consecutivos que tem sido por vocês Estado Português exercidos a mim aos meus familiares directos e outrem que me são entes queridos”.

- “o dever de accionar todos os meios desde o Habeas Corpus” determinando a sua liberdade imediata.

- e ordenar “em simultâneo” o pagamento “directo” de indemnizações” e “ restituição patrimonial, financeira, empresarial, familiar pessoal e restantes que eu ache necessárias suficientes”.

Deste modo, o requerente, considerando estar inocente, pretende “usar o seu direito de Habeas Corpus”, nos termos “da Constituição e face ao abuso de poder”, porque foram “acionados os métodos proibidos de prova” em virtude dos quais o estão “a manter em prisão”, pede a sua “imediata libertação vitalícia” e a “restituição das indemnizações” indicadas.

2- Informação.

A Senhora Juiz titular do processo proferiu informação, nos termos do artº. 223º, nº. 1, do CPP, com o seguinte teor:

Remeta de imediato a petição de habeas corpus formulada pelo arguido/condenado ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 223º, nº 1 do Código de Processo Penal), juntando certidão do acórdão final com nota de trânsito.

Mais se consigna, nos termos do disposto no artigo 222º, nº 2 do Código de Processo Penal, que o cidadão AA foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 11 de março último, numa pena de prisão de 5 anos e 6 meses de prisão (não tendo interposto recurso) e esteve sujeito a prisão preventiva, cujo prazo máximo terminaria em 14 de maio de 2021, reapreciada e mantida por despachos de 30 de abril de 2020, 23 de julho de 2020, 16 de outubro de 2020 e 08 de janeiro de 2021”.

Conforme consta da informação solicitada, foi realizada a liquidação da pena, já homologada encontrando-se o requerente preso desde 14 de Novembro de 2019.

3- Audiência.

Entrada a petição neste Supremo Tribunal e, notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência nos termos do artº. 223º, nº. 3, do CPP, pelo que cumpre conhecer e decidir.

O requerente tem legitimidade e pode formular, como formulou, a petição – artº. 222º, nº. 2 do CPP.

Mantém-se a prisão, como resulta da informação – artº. 223º do CPP.

 

4- Apreciação:

a) - Factos a considerar:

1- O requerente AA foi condenado por acórdão proferido em 28 de Janeiro de 2021, no Juízo Central Criminal de ......... – Juiz ..., pela prática de um crime de roubo agravado, dois crimes de dano, um crime de ofensa à integridade física, um crime de dano qualificado, um crime de ofensa qualificada e um crime de injúria agravado em penas de prisão parcelares em cujo cúmulo jurídico destas, na pena única  de 5 anos e 6 meses de prisão.

2- O requerente encontra-se preso desde 14 de Novembro de 2019, como resulta da liquidação da pena já homologada.

3- Não tendo sido interposto recurso deste acórdão, o trânsito em julgado ocorreu em 11 de Março de 2021.

4- Tendo transitado em julgado este acórdão condenatório, a situação processual do requerente é de a de condenado em cumprimento de pena de prisão.

b) - O direito aplicável:

O direito à liberdade é um direito fundamental previsto no artº. 27º, nº. 1 da Constituição da República Portuguesa. Por isso, a privação da mesma só poderá ocorrer “pelo tempo e nas condições que a lei determinar” e, apenas, nos casos previstos no nº. 3 deste preceito.

Assim, o habeas corpus traduz-se numa garantia do direito à liberdade, prevista no artº. 31º da Constituição da República Portuguesa – “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente”,  consistindo num instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder em razão de prisão ou detenção ilegal. Trata-se de um direito subjetivo (direito-garantia) reconhecido para a tutela de um outro direito fundamental, dos mais importantes, o direito à liberdade pessoal – cfr. citação de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 1ª edição – 1993, pág. 260.

Deste modo, a  providência de habeas corpus tem a natureza de um remédio excepcional para proteger e assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido, revestindo carácter extraordinário e urgente. É uma medida expedita com a finalidade de rapidamente pôr termo às situações de privação de liberdade decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei. Por detenção ilegal, nos casos previstos no artº. 220º, nº. 1 do CPP e, no caso de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do artº. 222º, nº. 2 do CPP.

Em sede de direito ordinário, como fundamentos, taxativamente enunciadas na lei, a providência de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade da prisão, proveniente de – artº. 222º, nº. 2 do CPP:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por acto pelo qual a lei a não permite ou

c) Manter-se ara além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Posto isto, o artº. 222º, nº. 2, do CPP, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal e do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.

O habeas corpus, processualmente configurado como uma providência excepcional, também não constitui um recurso sobre actos de um processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada e mantida a privação de liberdade de um arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios ordinários e adequados de impugnação das decisões judiciais.

A providência não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade – cfr. o acórdão deste Tribunal de 4.1.2017, no processo nº. 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada.

Deste modo, para a procedência da providência de habeas corpus, “o que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário.” – cfr.  anotação 4 ao artº. 222º, do CPP em “Código de Processo Penal – Comentado”, Almedina, 2014, pág. 909.

Finalmente, de acordo com o princípio da actualidade é necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, sendo a actualidade reportada ao momento em que é necessário apreciar o pedido. É, pois, da legalidade da prisão actual – da que se mantém no momento da apreciação – que se ocupa o habeas corpus.

No caso destes autos, o requerente não indica um fundamento preciso para a sua petição que, no entanto justifica com o pressuposto e o propósito de “emitirem o meu Mandado de Libertação vitalício imediato, manter e preservar a minha vida mesmo posterior a todos os crimes consecutivos que tem sido por vocês Estado Português exercidos a mim aos meus familiares directos e outrem que me são entes queridos”.

Ora, sendo a ilegalidade da prisão fundamento da providência de habeas corpus proveniente das seguintes – únicas – causas de ilegalidade da prisão: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial, estaríamos, assim,  perante a situação reportada na alínea c), por ultrapassagem dos prazos fixados pela lei.

Ora, o requerente não invoca especificamente nenhum desses três fundamentos - incompetência da entidade donde partiu a prisão [al. a)], motivação imprópria [al. b)] e excesso de prazos [al. c)].

Também o requerente não caracterizou nenhuma situação que, reunindo as características que se enunciaram, permita afirmar o abuso de poder a que se refere o artº. 31º da Constituição da República, limitando-se a invocar a sua discordância, quer em relação à decisão que o condenou e da qual resultou a aplicação da pena de prisão de que está em cumprimento, decisão susceptível de recurso – que não interpôs –, quer em relação a outras decisões anteriores que o condenaram às quais alude no requerimento sem as especificar. A partir dessa discordância, o requerente não consegue estabelecer o abuso de poder traduzido numa prisão ilegal, como resulta do preceito constitucional supra referido, para além de se afirmar inocente e vítima de perseguição.

Com efeito, para desencadear o exame da situação de prisão em sede da providência de habeas corpus há que, obrigatoriamente apontar os factos concretos em que se apoia tal pretensão,

Ora, por um lado, é da legalidade da prisão actual – da que se mantém no momento da apreciação – que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha eventual e anteriormente tido lugar, como o requerente também traz à sua petição.

Por outro lado, o artº. 222º, nº. 2, do CPP constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.

O habeas corpus, processualmente configurado como uma providência excepcional não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais – vd. artºs. 399º e segs. do CPP. A providência não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade – cfr. o acórdão deste Tribunal de 04.01.2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1 e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt.

Também se pronunciou este Supremo Tribunal no Acórdão de 9.11.2011, no processo 112/07.0GBMFR-A.S1, 3ª SECÇÃO in www.dgsi.pt nos seguintes termos: “Como este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a decidir, a providência não pode ser utilizada para a sindicação de outros motivos ou fundamentos susceptíveis de por em causa a legalidade da prisão, para além dos taxativamente previstos na lei, designadamente para apreciar a correcção das decisões judiciais em que aquela é ordenada – cfr. acórdão de 30-04-2008, processo n.º 1504/08-5.ª e acórdãos desta 3.ª secção, de 26-09-2007, processo n.º 3473/07, de 25-07-2008, nos processos n.ºs 2532/08 e 2526/08, de 10-09-2008, processo n.º 2912/08, de 09-01-2009, no processo n.º 4154/08, de 25-11-2009, processo n.º 694/09.1JDLSB-B.S1, de 31-03-2011, processo n.º 38/11.2YFLSB.S1.

Como se referiu no acórdão de 04-02-2009, processo n.º 325/09-3.ª, o habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários – mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro) enquadrável no disposto nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

O habeas corpus, é assim e, apenas, um meio excepcional de controlo da legalidade da prisão, estritamente vinculado aos pressupostos e limites determinados pela lei”.

c) - Conclusão:

O requerente encontra-se preso desde 14 de Novembro de 2019 e foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, por acórdão proferido em 28 de Janeiro de 2021,

Não tendo sido interposto recurso deste acórdão, o trânsito em julgado ocorreu em 11 de Março de 2021.

Assim, o requerente encontra-se em cumprimento da pena em que foi condenado por decisão condenatória já transitada em julgado.

Na sua petição, o requerente não caracterizou nenhuma situação que permita afirmar o abuso de poder a que se refere o artº. 31.º da Constituição da República, limitando-se a afirmar-se inocente e a invocar a sua discordância da decisão que o condenou na pena de prisão que cumpre, decisão essa susceptível de recurso, sem, contudo, extrair dessa discordância, o abuso de poder traduzido numa prisão ilegal.

Deste modo, não se verifica a ilegalidade da prisão do requerente, inexistindo qualquer fundamento previsto no nº. 2 do artº. 222º do CPP, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a alegada violação grave do direito à liberdade que é fundamento da providência de habeas corpus, há-de integrar, necessariamente, alguma das alíneas do n.º 2 do artº. 222º do CPP.

5- Decisão.

Acordam os Juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus deduzido pelo requerente AA artº. 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.

O requerente pagará taxa de justiça que se fixa em uma UC atenta a simplicidade da causa – artº. 8º, nºs. 7 e 9, com referência à tabela III, do RCJ.

Consigna-se que foi observado o disposto no artº. 92º, nº. 4 do CPP.

João Guerra (Relator)

Helena Moniz

António Clemente Lima – Presidente da 5ª Secção.