Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1517/13.2TJLSB.L1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO PÓS-DIVÓRCIO
PARTILHA DE BENS COMUNS
INADEQUAÇÃO DA FORMA DE PROCESSO
DIVISÃO DE COISA COMUM
Data do Acordão: 10/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO ÀS PESSOAS E AOS BENS DOS CÔNJUGES / PARTILHA DO CASAL, PAGAMENTO DE DÍVIDAS / DÍVIDAS DOS CÔNJUGES / COMPENSAÇÕES DEVIDAS PELO PAGAMENTO DE DÍVIDAS DO CASAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1689.º, N.º 3 E 1697.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL/1961: - ARTIGO 1404.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 27-03-2008, PROCESSOS N.º 08B648, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 01-06-2010, PROCESSOS N.º 2104/09.5TBVFX-A.L1.
Sumário :
I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio.

II. O divórcio entre cônjuges pode despoletar a invocação do direito de compensação de algum dos cônjuges sobre o outro, nos termos dos arts. 1689º, nº 3, e 1697º, nº 1, do CC, sendo a responsabilidade garantida pela meação do outro cônjuge no património comum ou, não existindo este, pelos bens próprios.

III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do art. 1404º do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns.

IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade.

V. O princípio da legalidade das formas processuais não permite que o processo de inventário instaurado na sequência de divórcio sirva para proceder à divisão de um imóvel relativamente ao qual cada cônjuge é titular exclusivo de uma quota-parte, tal como impede que seja apreciado o pedido de condenação do outro no pagamento de uma dívida própria.

VI. Perante a diversidade da natureza, dos objetivos e da tramitação quer do processo especial de inventário, quer do processo especial de divisão de coisa comum, o princípio da legalidade das formas processuais prevalece sobre os princípios da adequação formal ou da economia processual.

Decisão Texto Integral:
Nos autos de inventário, em consequência do divórcio, em que são interessados AA e BB, sendo aquele cabeça de casal, veio esta deduzir reclamação contra a relação de bens.

O cabeça de casal apresentou resposta a tal reclamação.

Foi proferida sentença, na qual se decidiu que, “destinando-se o inventário na sequência de divórcio à partilha de bens comuns, inexistindo bens comuns relacionados nos autos, declaro extinta, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art. 287°, al. e), do CPC de 1961, a presente instância”.

O cabeça de casal apelou e a Relação confirmou a decisão.

Foi interposto recurso de revista que foi admitido como revista excecional, tendo em conta o relevo jurídico da questão de direito.

Suscitou o recorrente, no essencial, as seguintes questões:

- Pese embora o bem imóvel tenha sido adquirido por ambos os cônjuges antes do casamento, pode ser partilhado no processo de inventário pós-divórcio, tendo em conta que o imóvel passou a constituir a casa de morada de família e foi adquirido no intuito do casamento;

- Havendo passivo correspondente à dívida contraída para a aquisição do imóvel que só a verba do imóvel pode garantir, é relevante que a partilha seja feita no processo de inventário para garantia dos interesses do recorrente, além de que tal opção respeita os princípios da boa gestão, celeridade e economia processuais;

- Não existe fundamento para negar a possibilidade de o processo de inventário servir para regular o crédito que o cabeça de casal detém sobre o outro cônjuge.


Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos relevantes:

1) O cabeça de casal e a requerida casaram um com o outro no dia 5-10-06, sem convenção antenupcial, conforme resulta de certidão de assento de casamento junta a fls. 25 a 28;

2) Em 11-12-12, o ora cabeça de casal e a requerida requereram na CRC de … a dissolução do seu casamento, por divórcio por mútuo consentimento, conforme resulta de certidão junta a fls. 42 a 44;

3) Por decisão proferida pela Srª Conservadora do Registo Civil de 4-1-13, transitada em 21-1-13, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento de AA e BB, conforme resulta de certidão de fls. 42 a 44;

4) Encontra-se inscrita na CRP de …, freguesia de …, por apresentação datada de 2005/08/26, a aquisição, por compra, a favor de AA e BB, da fração autónoma correspondente à letra E do prédio urbano, descrito na CRP de …, freguesia de …, sob o n° 8… e inscrito na matriz sob o art. 0.16….0, correspondente ao 1º andar B e estacionamento nos 15 e 16 da sub-cave (piso menos três) do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na R. do …, lote …, …, conforme resulta de certidão permanente junta a fls. 101 a 105;

5) No dia 7-9-05, no Cart. Not. de Lisboa da Notária CC, AA e BB outorgaram a escritura pública denominada de "COMPRA E VENDA MÚTUO COM HIPOTECA", que se mostra reproduzida a fls. 106 a 112, nos termos da qual a sociedade DD - Soc. de Construções e Imobiliária, Lda, declarou vender a AA e BB, que aceitaram a referida venda, pelo preço de € 210.000,00 a fração autónoma designada pela letra "E", correspondente ao 1º andar B (piso um), destinado a habitação, com estacionamentos nºs 15 e 16 na sub cave (piso menos três) do prédio urbano sito na R. …, lote …, …;

6) Na mesma ocasião, pelo Banco EE (Portugal), S.A. foi declarado conceder a AA e BB um empréstimo no montante de € 160.000,00 e por estes declarado aceitar tal empréstimo e se confessarem e constituírem devedores solidários a este mesmo Banco da quantia mutuada, respetivos juros, despesas e demais encargos;

7) Mostra-se registada, por apresentação datada de 2005/08/26, hipoteca sob o imóvel descrito em 4., a favor do Banco EE (Portugal), S.A., para garantia do montante máximo de € 201.305,00.


III – Decidindo:

1. Importa apreciar se no processo de inventário pós-divórcio cabe a divisão de um bem imóvel que por ambos os cônjuges foi adquirido antes do casamento em regime de compropriedade ou se o mesmo está circunscrito à partilha de bens que integram o acervo comum de ambos os cônjuges.

Por outro lado, cabe apurar se, na falta de bens que integrem o acervo comum do casal, o processo de inventário pode servir para resolver o diferendo entre ambos os cônjuges acerca de um crédito que uma alega sobre o outro.


2. A primeira questão obtém do ordenamento jurídico uma resposta clara: o processo de inventário destina-se a regular a partilha de bens comuns, incluindo o passivo, não servindo para fazer valer o direito de qualquer dos cônjuges que não encontre reflexo no acervo comum do casal.

Assim acontece com os direitos que são próprios de cada cônjuge, como os que incidem sobre bens que cada um levou para o casamento no regime de comunhão de adquiridos. E é nesta categoria que se inscrevem as quotas na compropriedade relativo a um bem imóvel de que cada um dos cônjuges era titular antes da realização do casamento, ainda que a aquisição desse imóvel tivesse sido perspetivada tendo em conta o futuro casamento.

Na realidade, no regime supletivo de comunhão de adquiridos, constituem bens próprios de cada cônjuge os que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento (art. 1722º, nº 1, al. a), do CC). Não existe qualquer dúvida a este respeito, tanto mais que a situação dos autos não se inscreve em qualquer das previsões especiais dos arts. 1723º e ss.

O facto de a aquisição do bem imóvel ter sido feita no regime de compropriedade antes da realização do casamento não transforma o imóvel num bem que integre o acervo comum de ambos os cônjuges, mantendo cada um deles a exclusiva titularidade sobre a sua quota-parte.

Nestas circunstâncias, não encontra fundamento a pretensão do recorrente no sentido de o processo de inventário prosseguir para um efeito diverso: o de fazer operar a divisão da coisa comum, ou seja, a divisão do imóvel relativamente ao qual cada um dos cônjuges é exclusivo titular de uma quota-parte correspondente a metade.

A compropriedade não se confunde com a contitularidade de direitos que, por exemplo, é visível na herança indivisa e que igualmente se manifesta quando estão em causa bens comuns do casal. Mais concretamente, o acervo comum do casal é integrado por bens que, sem distinção entre eles, pertencem em comum a ambos os cônjuges, não sendo essa a qualificação quando se constata que cada cônjuge é titular de um direito autónomo, ainda que tal direito se traduza para cada um deles na titularidade de uma quota direito de propriedade sobre uma fração autónoma. 

Em suma, o processo de inventário destina-se a operar a divisão do acervo comum do casal e não a veicular outra pretensão material autónoma correspondente ao direito de obter a divisão de coisa comum, nos termos do art. 1412º e que deve ser tramitada através do processo especial de divisão de coisa comum regulado nos arts. 925º e ss. do CPC.

A atribuição de bens próprios de que cada cônjuge seja titular é um efeito que emerge diretamente da lei, nos termos do art. 1689º, nº 1, do CC, não carecendo da sua descrição em qualquer processo de inventário que, como se disse, visando a partilha de bens comuns, apenas admite que se relacionem bens comuns com vista à posterior partilha.

Num contexto algo diferenciado, isto mesmo já foi decidido por este mesmo coletivo, com relato do ora relator, no Ac. do STJ 6-4-17, 23567/15, no qual se concluiu, além do mais, que “pretendendo um dos ex-cônjuges o reconhecimento do direito de propriedade exclusivo sobre um imóvel e do direito de exclusividade sobre uma quantia depositada em instituição bancária é adequada a tais pretensões a ação declarativa com processo comum e não o processo de inventário …”.


3. Quanto à adequação do processo de inventário para a resolução do conflito de interesses ligado à alegada existência de um crédito do recorrente sobre a recorrida a resposta acaba por ser semelhante.

Com o divórcio, cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, nos termos do art. 1688º do CC, efeito que retroage, pelo menos, à data da instauração da ação (art. 1789º, nº 1).

Nos termos do art. 1689º do CC:

a) Com a referida cessação das relações patrimoniais cada um dos cônjuges recebe os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património;

b) Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum;

c) Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum e, se não existirem bens comuns, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

Se acaso as operações de partilha e liquidação do património comum não forem realizadas por contrato, qualquer dos cônjuges pode requerer a abertura de processo de inventário para o efeito.

No caso concreto, o inventário foi requerido ainda ao abrigo do regime que estava previsto no art. 1404º do anterior CPC, cuja aplicabilidade foi ressalvada pelo regime do processo de inventário notarial (aprovado pela Lei nº 23/13, de 5-3 e agora de novo revertido em grande parte pela Lei nº 117/19, de 13-9) relativamente aos processos que se encontravam pendentes aquando da sua entrada em vigor.

Daquele preceito resulta que o processo especial de inventário se destina a obter a partilha dos bens, ou mais concretamente, a partilha de bens que formam o acervo comum do casal dissolvido em consequência do divórcio, inexistindo qualquer motivo, quer de ordem material, quer de ordem adjetiva, para integrar na tramitação especial do processo de inventário uma pretensão de natureza puramente declarativa, que se traduza na condenação de um dos cônjuges no pagamento de uma determinada quantia correspondente a uma obrigação própria deste.

Não pode confundir-se esta situação com aquela que estava subjacente ao Ac. da Rel. de Lisboa, de 1-6-10, nº 2104/09.5TBVFX-A.L1, relatado pelo ora relator e sendo adjunto também o ora primeiro adjunto, pois a tal aresto estava subjacente uma dívida perante terceiros que era da responsabilidade de ambos os cônjuges, tendo então sido considerado adequado o aproveitamento do processo de inventário para regular os interesses que eram comuns a ambos os cônjuges.

Assumiu-se então que, embora não existam bens comuns a partilhar (ativo patrimonial), o processo de inventário pode integrar a regulação de outros efeitos patrimoniais do divórcio, desde que se trate de aspetos em que ambos os cônjuges estão envolvidos, por corresponderem designadamente a dívidas que ambos assumiram ou de que ambos são responsáveis.

Tal não se assemelha à realidade com que nos deparamos no caso concreto em que, além de inexistirem bens comuns, o crédito que está em discussão se relaciona com um financiamento que os cônjuges obtiveram ainda antes do casamento e, através do qual cada cônjuge assumiu perante o banco uma obrigação autónoma.


4. Neste contexto, tal como também já se decidiu num caso semelhante no Ac. do STJ de 27-3-08, 08B648, em www.dgsi.pt, não vemos como possa operar-se no processo de inventário a divisão de coisa comum, tal como não é adequado a integrar uma pretensão puramente creditícia de um dos cônjuges sobre o outro.

Quanto à divisão de coisa comum, a tramitação que envolve a resolução dessa questão de direito material não tem qualquer semelhança com a tramitação específica de um processo de inventário. Basta reparar nas normas que regulam aquela forma de processo especial (arts. 925º e ss. do CPC) e no facto de se preverem duas fases, uma destinada a apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário, assim como a divisibilidade do bem, e outra, posterior, destinada à divisão do bem em substância (quando seja divisível) e à adjudicação, sem exclusão da venda do bem a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, tudo nos termos dos arts. 925º a 929º do CPC.

A natureza dos processos também é diversa, sendo o de divisão de coisa comum de natureza intrinsecamente contenciosa, ao passo que o processo de inventário não existem propriamente partes contrapostas, antes interessados em bens comuns, promovendo-se através dele a partilha dos bens que sejam relacionados.

Sob qualquer perspetiva, estamos perante tramitações processuais totalmente divergentes, sendo de assinalar em especial que no processo de divisão de coisa comum existe uma fase de articulados para discussão dos aspetos relevantes, ao passo que no processo de inventário a discussão se processa de forma diversa.

Perante tamanha diversidade da tramitação processual correspondente a cada pretensão material que lhes está subjacente, não existe qualquer possibilidade de aproveitar um processo de inventário pendente (acentue-se para partilha de eventuais bens comuns do casal) para proceder à divisão de coisa comum, mesmo que esta coisa em comum pertença a ambos os cônjuges divorciados.

Não estando em causa a validade do princípio da adequação formal, da gestão processual ou da economia processual, o princípio da legalidade das formas processuais não pode ser absolutamente sacrificado em função de um alegado interesse do recorrente no sentido de obter neste inventário um resultado para o qual não existem instrumentos suficientes, tanto mais que se encontra pendente um processo de divisão de coisa comum.

O mesmo se diga da pretensão no sentido da condenação do outro cônjuge no pagamento de uma quantia, a que, nos termos gerais, corresponde o processo declarativo comum.

Também aqui se verificam tramitações totalmente diferenciadas, sendo assinalar na ação declarativa com processo comum a existência de uma fase dos articulados onde pode ser exercido o contraditório em moldes que a tramitação do processo de inventário não assegura em termos convenientes.


5. Contra esta solução que decorre com inequivocidade quer da lei material, quer das normas de direito adjetivo, não valem os argumentos invocados pelo recorrente a partir de princípios gerais do processo civil.

O princípio da legalidade das formas processuais é um dos princípios basilares do CPC e encontra tradução explícita no art. 546º, nº 2, no que respeita aos processos especiais. Através de cada processo especial apenas devem veiculadas as pretensões materiais que estão na génese da sua criação. Aliás, a diversificada tramitação processual de cada um deles tem precisamente em vista integrar os litígios para foram criados.

É verdade que tal não impede que se proceda à adaptação do processado às especificidades de cada causa, nos termos do art. 547º do CPC, em manifestação de outro princípio: o da adequação formal. E também não afasta a possibilidade de, em certos casos, se cumularem pedidos a que correspondam formas processuais diversas, ainda assim, com a forte restrição que emerge da conjugação dos arts. 555º, nº 1, e 37º, nº 2, do CPC.

Porém, não é disso que se trata quando nos confrontamos com a pretensão do recorrente de aproveitar o processo de inventário pendente para obter dois efeitos jurídicos, sendo um deles submetido ao processo especial de divisão de coisa comum e o outro ao processo declarativo comum.

A admitir-se essa pretensão, tal traduziria uma opção de que redundaria a transformação radical de um processo com um determinado objetivo (partilha de bens ou de dívidas comuns do casal) em objetivos diversos, ou seja, o de divisão de um bem imóvel em regime de compropriedade e na condenação do outro no pagamento de uma determinada quantia.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo do recorrente.

Notifique.


Lisboa, 3-10-19


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo