Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA JOÃO VAZ TOMÉ | ||
Descritores: | PEDIDO DE REGISTO PREDIAL DESPACHO DE INDEFERIMENTO RECURSO HIERÁRQUICO RECURSO JUDICIAL LEGITIMIDADE APRESENTANTE TITULAR DO DIREITO E DO INTERESSE | ||
Data do Acordão: | 06/27/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS. DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO – IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES DO CONSERVADOR / PRAZO DO RECURSO. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 2, ALÍNEA D), 635.º, N.ºS 3, 4 E 5 E 639.º, N.º 1. CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGO 141.º, N.º 4. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 15-02-2017, PROCESSO N.º 128/08.9TBMFR.L1; - DE 08-02-2018, PROCESSOS N.º 633/15.0T8VCT.G1.S1; - DE 05-07-2018, PROCESSO N.º 2522/16.2TBBRG.G1.S1; - DE 30-04-2019, PROCESSOS N.º 3755/15.4T8LRA.C2.S1, TODOS DISPONÍVEIS IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : | I - O promitente-comprador que, apesar de ter legitimidade para o fazer, não requer o registo do contrato-promessa de constituição do direito de superfície, e não é, por isso, prima facie, parte da relação registral, pode, ainda assim, impugnar hierárquica ou judicialmente a decisão da Conservatória que recuse o respetivo pedido de registo, efetuado pelo notário que não fez saber, junto da Conservatória, tácita ou expressamente, que agia em nome daquele. II – O recurso aos diversos cânones hermenêuticos permite afirmar este mesmo resultado, III - Não deve dissociar-se a legitimidade para a apresentação do facto a registo da legitimidade para interpor o recurso hierárquico a que se refere o art. 141.º, n.º 4, do CRgP. IV - A titularidade do direito e do interesse confere ao promitente-comprador particular legitimidade - legitimidade per se - para interpor recurso hierárquico da decisão da conservatória de recusa do pedido de registo efetuado pelo notário. V - Está em causa um modo de agir no interesse e por conta de outrem. Um dos titulares do interesse do agir da Senhora Notária é, indiscutivelmente, o promitente-comprador, enquanto sujeito ativo do facto sujeito a registo. O registo predial tem também em vista a defesa dos direitos privados. O promitente-comprador arca igualmente com os custos implicados pela atividade desenvolvida pelo notário, que se possam considerar, naturalmente, decorrentes do seu agir no interesse e por conta dele. VI - Há que atender sempre à pessoa a quem pertence o interesse subjacente ao agir, à pessoa em cuja esfera jurídica se projetam os efeitos do agir. VII - Não faria sentido, por outro lado, que ao promitente-comprador não fosse consentido lançar mão do recurso hierárquico quando sobre o notário – independentemente de se tratar ou não de um ato sujeito a registo obrigatório – não impende qualquer dever legal ou estatutário de o fazer. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, * I - Relatório II – Questões a decidir O objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelos Recorrentes, nos termos dos arts. 635.º, n.ºs 3-5, e 639.º, n.º 1, do CPC. Ressalvando as questões de conhecimento oficioso, o Tribunal apenas se pode ocupar das questões enunciadas nas conclusões do recurso. Coloca-se a questão de se saber se A) o acórdão do Tribunal da Relação do Porto padece – ou não - de lapso ou se encontra ferido – ou não - de nulidade na parte em que declarou a ação “totalmente improcedente” (conclusões A a I); B) se o referido acórdão é nulo na parte em que considerou prejudicado o conhecimento do recurso subordinado (conclusões J a L); C) se o acórdão recorrido, na parte respeitante à alteração da matéria de facto (conclusões O a SS), violou o disposto no art. 662.º, do CPC, (conclusões O a T), o art. 607.º, do CPC, (conclusão U), o previsto no art. 5.º, do CPC, e os princípios do dispositivo, do contraditório e da igualdade, pelo que é nulo (conclusões V a CC); se inobservou os pontos de facto G) e H) e as regras relativas à confissão quanto ao aditamento final feito ao facto S) (conclusões DD a SS); D) se ocorreu – ou não - a inversão do título da posse (conclusões TT a VV)
III – Fundamentação Na petição inicial, a Autora alegou ser proprietária de um prédio parcialmente ocupado pela Ré – arts 1.º e 2.º da petição inicial – e pediu o reconhecimento do direito de propriedade sobre a totalidade do prédio – al. a) do pedido. Na sentença, não tendo sito previamente suscitada questão processual a propósito do pedido, v.g. relacionada com a falta de interesse em agir quanto à área do prédio não ocupada, foi julgado “parcialmente procedente o pedido formulado pela A declarando que o terreno referido em A) é sua propriedade, exceção feita à parcela referida em L) e decidido julgar por isso improcedentes os pedidos reconvencionais deduzidos”. No recurso de apelação independente interposto pela Ré, concretamente nas respetivas conclusões, não foi posto em causa este segmento específico da sentença que declarou a Autora proprietária do prédio na parte não ocupada pela Ré, ou seja, “o terreno referido em A), excepção feita à parcela referida em L)”. Conforme referido supra, o objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelos Recorrentes (arts. 635.º, n.ºs 3-5, e 639.º, n.º 1, do CPC). Ressalvando as questões de conhecimento oficioso (arts. 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 2, al. d), do CPC), o conhecimento pelo Tribunal de questão não enunciada pela Recorrente e, por isso, a pronúncia sobre tema ou questão subtraída ao seu conhecimento, origina a nulidade da decisão. Assim, ao decidir “julgar totalmente improcedente a ação absolvendo a Ré dos pedidos”, o Tribunal da Relação emitiu também pronúncia sobre o segmento decisório da sentença que havia julgado parcialmente procedente a ação ao reconhecer a Autora como proprietária do prédio na parte não ocupada pela Ré, quando o recurso não incluía e a lei não consentia o conhecimento desse segmento. Por conseguinte, o acórdão é nulo nessa parte - conforme o art. 615.º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC -, devendo ser expurgado do segmento viciado - nos termos do art. 684.º, n.º 1, do CPC - e adequadamente reformulado: Note-se, ainda, que, de um lado, não se trata de mero lapso, pois que o relator não o reconheceu, o contexto do acórdão não o revela e, de outro lado, não sendo esse pretenso lapso qualificável como “manifesto”, nunca permitiria a mera retificação (art. 614.º, do CPC). Recorde-se que enquanto a Ré interpôs recurso de apelação independente, a Autora interpôs recurso de apelação subordinado (art. 633.º, do CPC). O acórdão do Tribunal da Relação do Porto decidiu julgar procedente o recurso independente da Ré, julgando “totalmente improcedente a presente acção, absolvendo a ré dos pedidos, e procedente a reconvenção, declarando que o terreno referido em L), onde foi construída a ampliação do Cemitério Paroquial de BB é propriedade da ré”. No que respeita ao recurso subordinado, o acórdão recorrido justificou, antes da decisão, o seu não conhecimento. Com efeito, de acordo com o Tribunal da Relação, “atendendo à procedência da reconvenção e do recurso da ré, na primeira linha argumentativa, o conhecimento do recurso subordinado fica naturalmente prejudicado”. Tendo o acórdão reconhecido à Ré o direito de propriedade, adquirido por usucapião, sobre a parcela de terreno em litígio, relativamente à qual também a Autora alegara ser titular do direito de propriedade e no qual fundara os pedidos formulados na ação, as questões suscitadas no recurso subordinado (conclusões 1 a 11) – da procedência do pedido de restituição da referida parcela, ao invés do pagamento de indemnização; e, subsidiariamente, em vista do cálculo daquela indemnização, o pedido da reformulação de um facto respeitante ao cálculo do metro quadrado de terreno e o pedido da contagem do desapossamento desde 1986 –, por dependentes do reconhecimento da titularidade do direito de propriedade da Autora sobre a mesma parcela de terreno, ficaram prejudicadas com a declaração dessa mesma titularidade a favor da Ré. A prejudicialidade consiste no facto de a procedência do recurso da Ré implicar, necessariamente, a improcedência daquele da Autora. De resto, considerar “prejudicado” o conhecimento de uma ou de várias questões suscitadas pelas partes em virtude de solução conflituante ou excludente atribuída a outras não configura verdadeira “omissão de pronúncia”, determinante da nulidade do acórdão, ao contrário do que a Recorrente pretende (art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC). Com efeito, segundo o art. 608.º, n.º 2, do CPC, ao juiz compete obrigatoriamente conhecer de todas as questões submetidas pelas partes à sua apreciação, “excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. A lei não pode simultaneamente legitimar e sancionar com a nulidade o não conhecimento de questões prejudicadas com a solução de outras. E não pode porque a nulidade por omissão de pronúncia tem em vista os casos manifestos de total ausência de justificação para o não conhecimento de questão ou questões oportunamente colocadas perante o tribunal de recurso, e não também aqueles em que alguma razão enunciada justifica o seu não conhecimento (refiram-se, inter alia, as questões suscitadas no recurso que se não conhecem com fundamento na sua novidade). Entende a Recorrente que o Tribunal das Relação do Porto alterou a matéria de facto com base em novo julgamento ou nova convicção, o que a lei não consente, violando-se, assim, o disposto no art. 662.º, do CPC. Na verdade, nos termos do art. 662.º, n.º 1, do CPC, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Essa alteração da matéria de facto traduz-se, no acórdão recorrido, na declaração dos factos que julga provados e dos factos que não julga provados (entre aqueles referidos na impugnação recursiva) e na “análise crítica das provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção” (art 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável aos acórdãos do Tribunal da Relação ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas). Na densificação do conceito de “análise crítica das provas”, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem unanimemente entendido que está em causa um juízo valorativo sobre os meios de prova produzidos, próprio e autónomo da 1.ª Instância, como se se tratasse, efetivamente, de um “novo julgamento”, juízo esse manifestado no texto do acórdão. Com efeito, apenas deste modo se assegura, em termos práticos, o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto[1]. É que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se basta nem com uma apreciação genérica e abstrata realizada pelo Tribunal da Relação e nem com um juízo meramente conclusivo ou inconcludente, genérico e abstrato, sem nada dizer sobre a reponderação concreta a que se terá efetivamente procedido. Não merece, por isso, censura o julgamento de facto feito pelo Tribunal recorrido, que apenas observou os preceitos legais convocados em sede de reapreciação da matéria de facto, havendo procedido ao “exame crítico das provas”. O acórdão recorrido alterou o ponto de facto vertido na al. S) (“A Ré, Junta de Freguesia de BB, sempre utilizou a parcela de terreno referida em L), limpando-a e conservando-a, construindo e autorizando a construção de sepulturas, jazigos e ossários, realizando inumações, exumações e procedendo à cobrança das respectivas taxas, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição”), acrescentando o segmento “na convicção de ser a dona desse terreno”. Entende a Recorrente que o segmento adicionado não foi alegado e que é conclusivo ou encerra matéria de direito, pelo que, por violação do art. 607.º, do CPC, deve ter-se por não escrito. Na contestação-reconvenção, a Ré alegou expressamente, nos arts. 27.º e 28.º, os atos materiais praticados na parcela de terreno em litígio “na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence”, matéria que deu por reproduzida na parte dedicada à reconvenção (art. 52.º) e que reiterou no art. 56.º com a mesma expressão “na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence”. Esta fórmula verbal (“na intenção e convicção de que o mesmo lhe pertence”) é portadora do mesmo sentido que aquela aditada pelo Tribunal da Relação do Porto (“na convicção de ser a dona”). Não pode, por conseguinte, dizer-se que o facto não foi alegado. Depois, a expressão usada não configura um facto conclusivo ou jurídico, mas antes um facto de natureza psicológica, suscetível de prova, constitutivo do elemento subjetivo da posse (animus), na sua conceção subjetivista[2] A consideração deste facto como provado não se consubstancia, consequentemente, numa violação do disposto no art. 607.º, do CPC. No recurso de apelação, a Recorrente (Ré) peticionou o aditamento de novos factos à matéria de facto, como decorre da conclusão 24 – fls. 1904 a 1906. Tendo a sua pretensão sido deferida, o Tribunal da Relação aditou os seguintes factos – fls. 2224 a 2228: Entende a Recorrente de revista que tais factos (1) não foram alegados pela Ré, (2) não são complementares ou concretizadores de factos alegados e que (3) não foram respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes. Importa, desde logo, mencionar que, conforme resulta da constestação-reconvenção, os factos não foram alegados pela Ré. Esta ausência de alegação traduz-se num pressuposto do aditamento de matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC. Com efeito, como refere o Tribunal da Relação do Porto, de acordo com este preceito, o juiz pode considerar tanto os “factos instrumentais que resultem da instrução da causa” como os “factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa”. Muito diferentemente, nos termos do art. 5.º, n.º 1, do CPC, no que respeita aos factos essenciais, o juiz apenas pode apreciar os que forem alegados pelas partes. Não se afigura, por isso, estranho que os referidos factos não tenham sido alegados pelas partes quando o seu aditamento foi feito, precisamente, ao abrigo do preceito que o prevê e consente. O acórdão recorrido justificou o aditamento nos seguintes termos: “No que respeita à questão do pretendido aditamento, cumpre notar que parte da matéria de facto descrita permite compreender melhor os antecedentes da ocupação do terreno pela Ré (factos instrumentais) e existem outros factos que constituem uma concretização da matéria relativa a essa actuação da Ré, pelo que, ao abrigo do art. 5.º, n.º 2, al. a) e b) do C.P.Civil, é admissível e justificada essa alteração. Assim, à excepção do n.º 1 (irrelevante pois resulta da confrontação constante da alínea C)), do n.º 6 (repetido), do n.º 12 (parte), do n.º 13 (parte), e n.º 15 (a prova dos factos contrários incumbia à Autora), decide-se aditar a referida matéria de facto, que ficou manifestamente provada através do depoimento da testemunha NN, Presidente da Junta de Freguesia de BB nos mandatos de 1982 a 1993, pessoa que liderou as negociações e subsequentes comunicações com o Município do ..., acompanhou as obras de ampliação e assistiu aos actos praticados no terreno em causa”. O Tribunal da Relação aditou os factos mencionados supra por os qualificar como instrumentais ou como concretizadores. Embora não tenha identificado os que considerou como instrumentais e aqueles que entendeu como concretizadores, o Tribunal da Relação qualificou como instrumentais os que permitem compreender melhor “os antecedentes da ocupação do terreno pela ré”, o que aponta inequivocamente para os factos vertidos nas als T) a AA). Não se pode dizer, a propósito destes factos, que a Recorrente mencione qualquer razão geradora de controvérsia, pois que nas conclusões V) e Z) restringe o dissenso aos “factos complementares ou concretizadores” – descurando os “factos instrumentais”. Deste modo, a racionalidade subjacente ao recurso em apreço conduz a situar a questão no (in)devido alargamento da matéria de factos aos factos BB), CC), DD) e EE), entendidos no acórdão recorrido como complementares/concretizadores. De acordo com jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça[3], “A complementaridade cobrirá as situações em que a pretensão do autor assenta em causa de pedir complexa, relativamente à qual se tenham alegado determinados factos, omitindo-se outros cuja prova se mostre necessária para a procedência da acção; a concretização abrangerá os factos que melhor traduzam certas afirmações de cariz conclusivo, desde que tenham algum conteúdo fáctico, e também aqueles que sirvam para clarificar determinadas afirmações imprecisas ou dubitativas”. Observando este critério, e tendo por certo – tanto para o Supremo Tribunal de Justiça como para a Recorrente, que não suscita dúvidas a este respeito – que a matéria de facto considerada como provada na 1.ª Instância – e, portanto, antes do aditamento efetuado pelo Tribunal da Relação - resulta do que foi oportunamente alegado pelas partes, não restam dúvidas sobre o carácter concretizador dos factos em apreço. Assim, os factos BB), DD) e EE), relativos às datas da deliberação de venda de sepulturas e jazigos, da emissão das guias para pagamento de sisa, do primeiro alvará para concessão de jazigos, da construção dos jazigos, do primeiro enterramento, e, ao tempo em que perdurou a realização de funerais, inumações e exumações, especificaram ou concretizaram a matéria alegada no art. 27.º (I Vol. fls. 29) - “A ampliação do cemitério de BB concretizou-se em Dezembro de 1986, sendo desde essa altura, a parcela de terreno tratada como parte integrante da Freguesia de BB, que sempre tratou como seu, procedendo a enterramentos e funerais, aos actos normais praticados num cemitério, construção de jazigos e sepulturas, exumações e inumações, lavagem e limpeza do cemitério e, isto sucedee desde essa altura,” - no art. 31.º (I Vol. fls. 30) –“E já desde essa altura o cemitério estava edificado e em pleno funcionamento, com jazigos e sepulturas construídas, e se procediam a inumações ou exumações (…)” – e nos arts. 53.º e 54.º, “a ré por si sempre tratou a referida parcela do prédio como seu, limpando-o e conservando, construindo e autorizando a construção de sepulturas, jazigos e ossários, realizando exumações e inumações, vendendo parcelas de terreno para as sepulturas, procedente à cobrança de taxas de inumação e exumação” (…) “o que sucede (h)à mais de 20 anos”. O facto CC), por seu turno, respeitante à conclusão das obras de execução e ampliação do cemitério de BB em 1987, concretizou o que havia sido alegado no art. 7.º (I Vol., fls. 25), da contestação, em que se aludia à ampliação desse mesmo cemitério sem especificar a data, e no art. 27.º (I Vol., fls. 29), também da contestação, referente à data da ampliação. Pode, em suma, dizer-se que os factos entendidos pelo acórdão recorrido como concretizadores de matéria oportunamente alegada (não existindo controvérsia sobre os que são entendidos como instrumentais, porquanto a Recorrente não se lhes refere) se revestem de caráter concretizador, não podendo ser retirados do objeto do processo. A Recorrente invoca ainda a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes. Entende que, ao aditar matéria de facto provada à que já se encontrava plasmada na sentença de 1.ª Instância, o acórdão do Tribunal da Relação agiu oficiosamente, sem que a parte o tenha requerido na fase do julgamento. É verdade que a matéria em questão, resultante da instrução da causa (i.e., da produção da prova em julgamento), não foi aditada em 1.ª Instância quer por requerimento da parte nesse sentido quer oficiosamente, como o permite o regime consagrado no art. 5.º, n.º 2, do CPC. Essa matéria foi acrescentada apenas em sede de recurso de apelação, pelo tribunal de 2.ª Instância. A questão que se coloca é a de se saber se o Tribunal recorrido o podia fazer e se teve lugar a violação de algum desses princípios. De acordo com jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[4], “Quanto à questão da alegada violação do princípio do dispositivo, do princípio do contraditório e do princípio da igualdade de armas, prende-se a mesma com o problema da amplitude dos poderes da Relação na fixação da matéria de facto. Por força das alterações introduzidas no domínio da legislação processual civil vigente, os tribunais de instância passaram a dispor de maior liberdade na definição da matéria de facto que releva para a decisão da causa. Importa ainda não esquecer que os tribunais de instância podem e, aliás, devem, considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, bem como os factos complementares ou concretizadores que provenham dessa actividade e integrem a relação jurídica material devidamente individualizada pela causa de pedir, conquanto seja observado o contraditório (cfr. alíneas a) e b), do nº 2, do art. 5º, do CPC). Assim, e por contraponto aos factos que integrem a causa de pedir – relativamente aos quais continua a vigorar o princípio do dispositivo contido no nº 1, do mesmo art. 5º –, impende sobre o tribunal, no que toca aos factos probatórios e aos factos complementadores (em sentido lato) e ainda que não hajam sido alegados, o ónus de os tomar em consideração na sentença”. Importa referir que, estando em causa, no acórdão supra mencionado, a mesma questão do aditamento de matéria de facto pelo Tribunal da Relação - faculdade não subtraída ao Tribunal de 2.ª Instância -, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu não ofender esse aditamento um qualquer dos referidos princípios. Note-se ainda que o caso sub judice apresenta uma especificidade não despicienda: é que, muito diferentemente do que a Recorrente inculca, o aditamento foi requerido no recurso de apelação (vide conclusão 24.ª do recurso) e não oficiosamente decidido pelo Tribunal da Relação. Tal permitiu à Recorrida (ora Recorrente de revista), uma vez notificada das alegações (motivação e conclusões) do recurso de apelação, exercer plenamente o contraditório, sem violação nem deste princípio e nem do princípio da igualdade de armas, na resposta ao recurso (art. 638.º, n.º 5, do CPC). Foi exatamente o que sucedeu (vide IV das contra-alegações, intitulado “Da ilegalidade da impugnação da decisão relativa à matéria de facto por pretender que sejam julgados – massivamente – provados factos que não são atendíveis nos termos do artigo 5.º do Cod. Proc. Civil – VII Vol., fls. 1974 a 1982). Confirma-se, deste modo, que o contraditório (a que a Recorrente associa a igualdade das partes) de que a lei faz depender o aditamento de factos concretizadores resultantes da instrução da causa – “desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”, conforme o art. 5.º, n.º 2, al. b), in fine, do CPC – foi assegurado e exercido pela Recorrente. Não ocorreu, pois, qualquer violação dos princípios enunciados pela Recorrente. C)4 se (des)respeitou os pontos de facto G) e H) e as regras relativas à confissão quanto ao aditamento final feito ao facto S) (conclusões DD a SS) A Recorrente defende que, sendo a interpretação das declarações negociais e o valor probatório da confissão matérias de direito não subtraídas ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, a interpretação do teor dos documentos referidos nos pontos de facto G) e H) e a confissão produzida no art. 33.º da contestação devem conduzir à revogação do acórdão recorrido na parte em que acrescentou ao ponto de facto S) o segmento final “na convicção de ser a dona”. A Recorrente insurge-se, pois, contra a fixação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação do Porto. O Supremo Tribunal de Justiça é organicamente um tribunal de revista, vocacionado, por isso, para o conhecimento de matéria de direito. De acordo com o art. 674.º, n.º 3, do CPC, “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa” – em que se integra a pretensão da Recorrente de revogação do acórdão quanto ao segmento de facto por ele aditado ao ponto S) – “não pode ser objeto de recurso de revista”, salvo nos casos em que há (1) “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto” ou (2) “que fixe a força de determinado meio de prova”. No aditamento do segmento final ao ponto de facto S), o acórdão recorrido fundou-se, por um lado, na interpretação do processo de loteamento e das declarações das testemunhas – “A conjugação do processo camarário referente ao loteamento urbano com as declarações prestadas pelas testemunhas apontam, com toda a segurança, para uma actuação da Junta de Freguesia de BB, na qualidade de titular do direito de propriedade” (VIII Vol. fls. 2218) – e, por outro lado, na ponderação da atuação material da Ré sobre o terreno – “A intencionalidade da Ré em agir como proprietária do terreno onde foi construída a ampliação do Cemitério Paroquial de BB, resulta, desde logo, da prática reiterada, pública, de actos que são inequívocos nesse sentido, como por exemplo a venda de terrenos para sepulturas e jazigos, atribuição de alvarás e pagamento de sisa devida pelos utentes, enterramentos, inumações, etc, bem como da declaração de cedência da proprietária desse lote 8” (VIII Vol. fls. 2222). Afigura-se indiscutível que a intencionalidade subjacente a determinada atuação constitui um facto de natureza psicológica que não está sujeito a prova vinculada, pelo que não se verifica a primeira hipótese referida (“ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto”). O mesmo se pode dizer a propósito da segunda hipótese (“ofensa de disposição expressa da lei que que fixe a força de determinado meio de prova”). Mesmo concedendo que as comunicações referidas nos pontos de facto G) e H) – que a Recorrente entende haverem sido desconsiderados – integram o processo de loteamento tomado em consideração pelo Tribunal da Relação do Porto, a força probatória plena que poderão encerrar circunscreve-se, no primeiro caso, ao facto histórico de ter sido comunicado pelos proprietários do terreno à Câmara que haviam autorizado “a ocupação e utilização imediata dos terrenos necessários à execução da ampliação do cemitério de BB” – arts., aos 369.º e 371.º, n.º 1, do Cód. Civil – e, no segundo caso, à imputação, aos então proprietários, da autoria (subscrição) da autorização em vista da “imediata ocupação dos lotes de terreno” – art. 376.º, n.º 1, do Cód. Civil. A força probatória dos documentos referidos não foi violada porque, de um lado, em momento algum, discutiu o Tribunal recorrido aquelas comunicações ou autorizações e, de outro, ela não abrange, também, o resultado da interpretação da expressão verbal “autorização concedida para ocupação” do terreno - em conjugação com outros meios de prova, para a fixação da intenção de a Ré agir como dona dos terrenos. Com efeito, se o acórdão recorrido entendeu que as autorizações mencionadas supra, de um lado e, de outro, a atuação material da Ré sustentam aquela intencionalidade ou animus domini, não havendo violação da força probatória plena das primeira, não pode este o Supremo Tribunal de Justiça alterar a resposta de facto dada. Também a confissão feita pela Ré no art. 33.º da contestação, de que foi “autorizada” pelos proprietários a “ocupar” os terrenos em apreço, não foi posta em causa, porquanto a Ré não confessa que entendeu essa autorização como uma concessão, por mera tolerância, do uso dos terrenos. Com efeito, em virtude da ambiguidade das expressões verbais usadas e do caráter duradouro da finalidade subjacente à utilização desses terrenos (cemitério), não se afastou a hipótese de retirar desse enunciado linguístico – ou de a Ré dele o ter retirado – o sentido de verdadeira transferência ou entrega definitiva desses terrenos. Não se descortina, por isso, qualquer violação da força probatória dos documentos considerados em G) e H) ou da confissão produzida no art. 33.º da Contestação. A Recorrente entende, de um lado, que a inversão do título da posse pressupõe oposição expressa àquele em nome do qual possuía, o que in casu não se verificou e, de outro, que a Ré conhecia o caráter precário da ocupação dos terrenos, como decorre da al. I) da matéria de facto. Pode, todavia, dizer-se que a tese preconizada pela Recorrente se funda em dois equívocos. Desde logo, que o Tribunal da Relação do Porto tenha assumido a verificação da inversão do título da posse (interversio possessionis), nos termos do arts. 1263.º, al. d), 1265.º e 1290.º do Cód. Civil, o que pressuporia o reconhecimento de uma situação inicial de mera detenção dos terrenos pela Ré. Depois, que a matéria vertida em I) tenha o alcance por si pretendido. Com efeito, o Tribunal da Relação não lançou mão do instituto da inversão to título da posse, como resulta claramente da fundamentação do respetivo acórdão: “ (…) Suscita-se a questão de saber, neste processo, se a Ré pode ser qualificada como uma verdadeira possuidora do terreno ou se é apenas mera detentora. A importância da distinção neste pleito é fulcral porque se a Ré for considerada mera detentora não é permitida a aquisição do terreno por usucapião, excepto se ocorrer inversão do título da posse (v. art. 1290.º do CC) nem beneficia da presunção da titularidade do direito. (…) A ocupação do terreno pela Ré para proceder ao início das obras de ampliação do cemitério, ao contrário do que poderia resultar da interpretação do termo “autorizar” constante do mencionado requerimento, não pode ser perspectivada como um acto de simples aproveitamento da tolerância dos titulares do direito, previsto na al. b) do art. 1253.º do C.Civil, já que as outras duas hipóteses não são aplicáveis. (…) Conclui-se, assim, que a Ré beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade por ser possuidora do terreno, e não mera detentora, e sendo a sua presunção mais antiga do que aquela que decorre da inscrição no registo predial, prevalece a presunção decorrente da posse. Como esclarece José Alberto Vieira, a presunção assente no registo predial não vale de nada se houver uma posse anterior ao registo, como sucede no caso em apreço. E, acrescenta este autor que, neste caso, o titular inscrito terá de levar a cabo a actividade probatória tendente a demonstrar a titularidade substantiva do direito em causa. De qualquer modo, a presente acção de reivindicação nunca podia ser julgada procedente pois ficou provado, desde logo, que a Ré ocupa o terreno, legitimamente. A Ré, em reconvenção, arroga-se igualmente proprietária do referido terreno, invocando a aquisição originária (usucapião) e pede, logicamente, o reconhecimento desse direito. Em primeiro lugar, e como acima se referiu, a Ré beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade por ser possuidora do terreno. Mas ainda que esta perspectiva jurídica não fosse acolhida, não há dúvida de que se chegaria a idêntica conclusão na medida em que ficaram provados factos que consubstanciam a aquisição do terreno por usucapião. Em suma, acção deve ser julgada improcedente e procedente a reconvenção, porquanto a Autora não logrou ilidir a presunção prevalecente decorrente da posse da Ré, tendo ficado demonstrado ser esta última a legítima proprietária, por ter adquirido, por usucapião, esse terreno.” Por seu turno, o ponto de facto I), em que a Recorrente se ancora, não permite concluir que a Ré conhecia o caráter precário da ocupação dos terrenos. Desde logo, porque a matéria nele vertida diz respeito a uma mera comunicação entre o Município do Porto e o Presidente da Junta de Freguesia, não envolvendo a Recorrente. Assim, “I) Por comunicação datada de 5 de Fevereiro de 1987, remetida pelo Município do Porto ao Presidente da junta de freguesia de BB e recebida em 16 de Janeiro de 1987, consta que “Na sequência do ofício nº 107/87/DGS, de 14 de janeiro p. p., em que nos apressamos a comunicar a Vª Exª o teor da declaração dos proprietários dos lotes nºs 7 e 8, destinados ao alargamento do cemitério de BB informamos que a utilização das áreas necessárias ao referido empreendimento, nomeadamente parte do leito do arruamento existente, terá de ser precedida de ratificação pelo atual Executivo das condições de cedência, já provadas para o fim em vista pelo Executivo anterior (deliberação camarária de 20 de junho de 1985) e da desafetação do domínio público do leito do arruamento já referido, processo a que já foi dado início. A efetivação da cedência será concretizada posteriormente, a qual se verificará logo que o Município entre na posse e propriedade das referidas parcelas”. Depois, porque a parte final do facto S) conduz a conclusão contrária. Mantendo-se intocados os fundamentos de facto e de direito do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o recurso deve improceder, ressalvando a supra referida nulidade parcial.
IV – Decisão Julga-se o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, declara-se parcialmente nulo o acórdão do Tribunal da Relação do Porto na parte em que julgou a ação totalmente improcedente, mantendo-se a declaração, constante da decisão, de que o terreno referido em A) é propriedade da Autora, com exceção da parcela referida em L). Mantém-se tudo o mais decidido pelo Tribunal da Relação do Porto. ------------------------------------- [1] Cfr.Acórdão do STJ do 25 de junho de 2009 (Alberto Sobrinho), Proc. n.º 191/07.0TBCBR.C1.S1; Acórdão do STJ de 20 de janeiro de 2010 (Oliveira Vasconcelos), Proc. n.º 56/2000.S1, Acórdão do STJ de 29 de outubro de 2013 (Maria dos Prazeres Beleza), Proc. n.º 1410/05.2TCSNT.L1.S1, Acórdão do STJ de 18 de junho de 2014 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 4742/03.0TBVLG.P1.S1, Acórdão do STJ de 30 de junho de 2016 (António Piçarra), Proc. n.º 875/03.1TBLMG.C1.S1, Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2017 (Salazar Casanova), Proc. n.º 128/08.9TBMFR.L1, Acórdão do STJ de 5 de julho de 2018 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 2522/16.2TBBRG.G1.S1 – disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. [2] No sentido da configuração de tal intenção como facto, vide Acórdão do STJ de 2 de junho de 2009 (Sousa Leite), Proc. n.º 205/09.9YFLSB, Acórdão do STJ de 27 de outubro de 2009 (Silva Salazar), Proc. n.º 454-B/2002.S1, Acórdão do STJ de 3 de dezembro de 2009 (João Camilo), Proc. n.º 3851/03.OTBVLG.P1.S1, Acórdão do STJ de 10 de dezembro de 2009 (Azevedo Ramos), Proc. n.º 313/04.2TBMIR.C1.S1, Acórdão do STJ de 14 de junho de 2012 (Abrantes Geraldes), Proc. n.º 82/06.1TBCCH.E1.S1 – disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. [3] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de abril de 2019 (Henrique Araújo), Proc. n.º 3755/15.4T8LRA.C2.S1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt. [4] Vide Acórdão do STJ de 8 de fevereiro de 2018 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 633/15.0T8VCT.G1.S1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt. |