Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
469/20.7JAVRL-P.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
NOTIFICAÇÃO
EXCECIONAL COMPLEXIDADE
BURLA QUALIFICADA
FALSIFICAÇÃO OU CONTRAFAÇÃO DE DOCUMENTO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
I - Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual.
II - O requerente fundamenta a providência de habeas corpus, nos termos do art. 222.º, n.º 2, do CPP, em virtude de se encontrar ilegalmente preso – atendendo a que decorreu mais de um ano sobre a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação e dela sido notificado.
III - No caso presente, o arguido encontrava-se indiciado (e já acusado), por acusação pública deduzida no dia 26.05.2022, pela prática, em concurso real e efectivo, de:
- na forma consumada, em co-autoria, cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art. 217.º n.º 1 e 218.º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao art. 202.º al. b), todos do CP (por referência aos factos constantes dos pontos A, B, C, E, G);
- na forma consumada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 217.º n.º 1 e 218.º n.º 1 e n.º 2 al. b), por referência ao art. 202.º al. a), todos do CP (por referência aos factos constantes do ponto D);
- na forma tentada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 217.º n.º 1 e 218.º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao art. 202.º al. b), 22.º, 23.º todos do CP (por referência aos factos constantes do ponto F);
- na forma consumada, em co-autoria, sete crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º n.º 1 al. a) e) por referência ao art. 255.º al. a), todos do CP (por referência aos documentos comprovativos de transferência bancária/termos de responsabilidade dos pontos A a G);
- na forma consumada, em co-autoria, três crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º n.º 1 al. c) e) por referência ao art. 255.º al. a), todos do CP (por referência aos requerimentos de registo automóvel dos pontos A, B, C);
- na forma consumada, em co-autoria, um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256.º n.º 1 al. c) e) e n.º 3 do CP, por referência ao art. 255.º al. a), todos do CP (por referência ao requerimento de registo automóvel onde foi aposta a assinatura de J[…] ponto G);
- na forma tentada, em autoria material, oito crimes de burla qualificada, pelos art. 217.º n.º 1 e 218.º n.º 1 e 2 al. a) b), 22.º e 23.º todos CP (por referência aos pontos H a O).
Nessa sequência, por despacho judicial de 27.05.2022 e nos termos do art. 213.º n.º 1 al. b) do CPP foi mantida a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido.
IV - Atendendo à natureza e moldura penal cabível aos crimes imputados ao requerente, o prazo de duração máxima da prisão preventiva, sem que tenha sido deduzida acusação, seria de seis meses, nos termos do art. 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP.
V - Porém, nos termos do artº 215.º, n.º 3 do CPP, por despacho de 26.03.2021, que não foi objeto de recurso, foi declarada a excepcional complexidade dos autos, nos termos do art. 215.º, n.º 3 e 4, do CPP e, assim, nos termos do art. 215.º, n.º 1, 2, al. d) e 3, do CPP, o prazo máximo da prisão preventiva aplicada ao arguido teria o seu término, no dia 28.05.2022, sem que fosse deduzida acusação.
VI - A peça acusatória foi deduzida em 26.05.2022, ou seja, dentro do referido prazo de um (1) ano.
VII - O termo final do prazo referido na al. a) do n.º 1 do art. 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa, uma vez que a acusação foi prolatada dentro do prazo máximo previsto, sendo certo que foi solicitado ao EP a notificação do arguido quer da acusação, quer do despacho que manteve a medida de coação.
VIII - O motivo aduzido pelo requerente não cabe no elenco contemplado no art. 222.º, n.º 2, do CPP, inexistindo, nomeadamente, o fundamento da al. c), nos termos que invoca.
IX - Por outro lado, na situação presente a prisão do requerente foi ordenada por entidade competente, no caso pelo juiz de instrução criminal com jurisdição na área da Comarca de Viseu, Juízo de Instrução Criminal de Viseu - Juiz 1, e com fundamento na existência de indícios da prática pelo arguido de crime que justifica a aplicação da medida de prisão preventiva, por cair na previsão do art. 202.º, n.º 1, al. a), do CPP, sendo que o requerente foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 28.5.2021, não estando em causa qualquer excesso de prazo, tendo sido já deduzida acusação, que foi notificado ao arguido em 03/06/2022 (conforme informação elaborada por termo electrónico no processo, de 7/06/2022, referência10926023).
X - Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o invocado fundamento da al. c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP, ou qualquer outro, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das al. daquele n.º 2 do art. 222.º do CPP.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 469/20.7JAVRL-P.S1

Providência de Habeas Corpus

Acordam, precedendo audiência, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

1. O arguido AA encontra-se a aguardar julgamento em prisão preventiva, por decisão proferida nos autos em 28.5.2021, por se considerar fortemente indiciada a prática (juntamente com os arguidos BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II), em co-autoria, e em concurso efectivo e real:

 - na forma consumada, de cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a), por referência aos artigos 202º al. b), todos do Código Penal;

 - na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1, por referência aos artigos 202º al. a), todos do Código Penal;

 - na forma tentada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a), por referência aos artigos 202º al. b), todos do Código Penal;

 - na forma consumada, de sete crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. a) e e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal;

 - na forma consumada, de três crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. c) e e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal;

 - na forma consumada, de um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256º n.º 1 al. c) e) e n.º 3 do Código Penal, por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal.

 E pelo arguido AA, em concurso real e efectivo, em autoria material, a prática de oito crimes de burla qualificada, na forma tentada, pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a), 22º e 23º todos Código Penal.

*

2. Veio o arguido AA, nos termos do art. 222º n.º 2 do Código de Processo Penal, requerer providencia de Habeas Corpus, em virtude de se encontrar ilegalmente preso – atendendo a que decorreu mais de um ano sobre a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação e dela sido notificado – nos termos e com os fundamentos seguintes:

Eu, JJ, actualmente preso no Estabelecimento Prisional ..., encontro-me sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde 28/05/2021.

Decorridos mais de 12 meses de prisão preventiva, sem ter conhecimento de nenhuma acusação deduzida, cumprida, formalizada, aguardo torturosamente por uma notificação, sinto-me um refém, por vezes a sufocar, motivo que já me levou a procurar apoio e acompanhamento psicológico.

Aguardei com a exigida paciência pela resolução da minha acusação, suportei mais de 12 meses de uma cela fria e húmida sem justiça atempada.

Venho por este meio, invocar o Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal, ao abrigo dos artigos 222, nº 2 - alínea c do C.P.P.

Acontece nesta situação concreta, não fui ainda notificado de acusação proferida no âmbito do processo nº 469/20…, e no entanto, aguardo em prisão preventiva nos termos dos artigos 202º, 209º, 212º, 213º e 215º do C.P.P.

No entanto, segundo o artigo nº 215 o prazo máximo de prisão preventiva referido no nº 1 é elevado por 1 ano quando o caso se revela de exepcional complexidade.

Escrevo esta carta no dia 30/05/2022, de dentro da prisão, trancado na cela depois das 18 horas.

Aguardei por estes dias pela minha libertação, enquanto arguido sujeito a prisão preventiva, conforme o artigo 217, nº 2, ainda que fosse sujeito a algumas das medidas previstas nos artigos 197º a 200º, como seria expectável.

Tal não tendo acontecido e caminhando para 3ª noite no Estabelecimento Prisional ..., para lá do ano que passei legalmente sujeito a esta medida de coação, urje a necessidade de legitimar a mesma, proferindo a minha acusação, notificar-me da mesma ou então extinguir esta medida de coação.

Temos a requerer a V. Exa. que se digne ordenar revogar a medida de prisão preventiva, naturalmente ainda que substitua a mesma por vigilância electrónica na residência sita na Rua ... – .... de código postal ... ... – ... ou em alternativa na morada de família, sita na avenida ..., Casa ...2 de código postal ... ....

Apelo à vossa sensibilidade e compreensão. Não se trata apenas de mim. Estou longe da minha família, ausente do meu papel de pai, impedido de acompanhar o crescimento e evolução dos meus filhos, para além dos custos inerentes a minha detenção e reclusão que a minha esposa tem que suportar, tudo somado aos custos de deslocação com as minhas visitas. Tudo isto me afecta, pressiona, sufoca a mim e à minha família.

Da decisão da Exma Doutora Juíza, foi justificada, e tenho que assumir que este período foi bom para assentar as ideias e reorganizar as minhas prioridades, até porque tinha apenas à pouco tempo antes da detenção sido toxicodependente. Este período de prisão, ajudou de certa forma a cimentar o trabalho pessoal que já tinha iniciado (ainda livre de amarras)

Não tenho intenções de me eximir a ação da justiça, não tenho nada no estrangeiro, ora bens ora familiares, inseri-me em Portugal, criei uma família, esposa e filhos, nascidos em território nacional, integrados na escola. Sou tido como homem de bem por toda a população da minha zona e estimam-me como tal, logo o alarme social é injustificado.

A decisão de me manter em prisão preventiva por prazo superior a um ano é inexistente juridicamente à luz dos artigos 217 a 200.

A todo o momento, V. Exa pode reparar o erro e a injustiça do cárcere. Roga-lhe que use os seus poderes não para me beneficiar, mas para garantir que se cumpra a lei.

Sem liberdade, nem acusação, sem julgamento à vista, nada me resta, apenas solicitar a Vossa Excelência que ordene todas as diligências necessárias com vista à apreciação da lei (com mente assente nas convenções, cartas e pactos celebrados por Instituições Europeias, como CEDM – artigo 5 – nº 2)

Peço-lhe realidade e celeridade na análise do meu processo.

*

3. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., emitiu parecer nos seguintes termos:

«O arguido AA veio, nos termos do art. 222º n.º 2 do Código de Processo Penal, peticionar o habeas corpus em virtude de se encontrar ilegalmente preso, atendendo a que decorreu mais de um ano sobre a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação e dela sido notificado.

 Dispõe o art. 222º do Código de Processo Penal que:

1- A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. (sublinhado nosso).

Vejamos,

Ao arguido AA, em 28.05.2021, na sequência do 1º interrogatório de arguido detido, foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, sendo-lhe imputado a prática de vários crimes de burla qualificada p. e p. pelo art. 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 ambos do Código Penal e vários crimes de falsificação de documento p. e p. 256º do Código Penal e um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256º n.º 1 e 3 do Código Penal.

Por despacho de 26.03.2021 foi declarada a excepcional complexidade dos autos, nos termos do art. 215º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Assim, nos termos do art. 215º n.º 1, 2 al. d) e 3 do Código de Processo Penal, o prazo máximo da prisão preventiva aplicada ao arguido teria o seu término, no dia 28.05.2022, sem que fosse deduzida acusação.

Por despachos de 19.08.2021, 12.11.2021, 10.02.2022 e 09.05.2022 foi revista e mantida a aludida medida de coacção

Como decorre dos autos, contra o arguido AA foi deduzida acusação pública, no dia 26.05.2022, pela prática, em concurso real e efectivo, de:

- na forma consumada, em co-autoria, cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao artigo 202º al. b), todos do Código Penal (por referência aos factos constantes dos pontos A, B, C, E, G);

- na forma consumada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e n.º 2 al. b), por referência ao artigo 202º al. a), todos do Código Penal (por referência aos factos constantes do ponto D);

- na forma tentada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao artigo 202º al. b), 22º, 23º todos do Código Penal (por referência aos factos constantes do ponto F);

 - na forma consumada, em co-autoria, sete crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. a) e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência aos documentos comprovativos de transferência bancária/termos de responsabilidade dos pontos A a G);

 - na forma consumada, em co-autoria, três crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. c) e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência aos requerimentos de registo automóvel dos pontos A, B, C);

 - na forma consumada, em co-autoria, um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256º n.º 1 al. c) e) e n.º 3 do Código Penal, por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência ao requerimento de registo automóvel onde foi aposta a assinatura de KK ponto G);

- na forma tentada, em autoria material, oito crimes de burla qualificada, pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), 22º e 23º todos Código Penal (por referência aos pontos H a O).

Nessa sequência, por despacho judicial de 27.05.2022 e nos termos do art. 213º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal foi revista e mantida a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido AA.

Relevante para efeitos do prazo máximo da aludida medida de coacção é a data da dedução da acusação e não a sua notificação, conforme decorre do teor do art. 215º do C.P.P.

Neste sentido vejam-se os acórdãos do STJ de 10.02.2022, 09.02.2013, 30.03.2016 e 30.11.2016 in www.dgsi.pt bem como o acórdão do TC N.º 280/2008.

Pelo exposto, é manifesto que não se encontram preenchidos os pressupostos a que alude o art. 222º n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido ordenada por entidade competente, por crimes que permite a mesma (art. 202º n.º 1 al. a) d) do Código de Processo Penal) e no prazo concedido por lei (sendo que nos termos do art. 215º n.º 1 al. b) e 2, 3 o prazo máximo da prisão preventiva na presente fase, havendo lugar a instrução e sem que tenha sido proferida a decisão instrutória, ocorrerá em 28.09.2022), devendo assim improceder a petição apresentada pelo arguido.

Acresce que, conforme decorre dos autos, (ref. ...83 de 08.11.2021) no mês de Novembro de 2021, foi efectuado o desconto de 40 dias relativo à prisão preventiva aplicada nestes autos ao arguido AA ao abrigo do proc. 331/17.... do Juízo Local Criminal ...».

*

4. A Senhora Juiz lavrou despacho, nos termos do disposto no artigo 223.º n.º 1, do CPP, informando o seguinte:

«Veio o arguido AA com a pressente petição de habeas corpus, alegando prisão ilegal, nos termos do artigo 222 do CPP.

Cumpre dar todas as informações sobre as condições em que foi efetuada a prisão preventiva, nos termos do artigo 223, nº 1 do CPP.

Assim:

- Nos presentes autos, por despacho datado de 28.5.2021, proferido na sequência de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi AA sujeito, nomeadamente, à medida de coação de prisão preventiva, indiciando fortemente os autos a prática por parte do mesmo de vários crimes de burla qualificada, p.p artigo 218 do CP e vários crimes de falsificação, p.p artigo 256, nº 1 e 3 do C.P;

- Por despacho datado de 26.03.2021, que não foi objeto de recurso, foi declarada a especial complexidade dos presentes autos.

- Contra o arguido AA foi deduzida acusação pública, no dia 26.05.2022, pela prática, em concurso real e efetivo, de:

na forma consumada, em co-autoria, cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao artigo 202º al. b), todos do Código Penal (por referência aos factos constantes dos pontos A, B, C, E, G);

na forma consumada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e n.º 2 al. b), por referência ao artigo 202º al. a), todos do Código Penal (por referência aos factos constantes do ponto D);

na forma tentada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao artigo 202º al. b), 22º, 23º todos do Código Penal (por referência aos factos constantes do ponto F);

na forma consumada, em co-autoria, sete crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. a) e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência aos documentos comprovativos de transferência bancária/termos de responsabilidade dos pontos A a G);

na forma consumada, em co-autoria, três crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. c) e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência aos requerimentos de registo automóvel dos pontos A, B, C);

na forma consumada, em co-autoria, um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256º n.º 1 al. c) e) e n.º 3 do Código Penal, por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência ao requerimento de registo automóvel onde foi aposta a assinatura de KK – ponto G);

na forma tentada, em autoria material, oito crimes de burla qualificada, pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), 22º e 23º todos Código Penal (por referência aos pontos H a O).

-Por despacho datado de 27.05.2022 foi proferido o despacho a que alude o art. 213º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, tendo sido mantida a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA.

- Foi solicitado ao E.P a notificação do arguido quer da acusação, quer do despacho que manteve a medida de coação.

- Assim, entre a data em que foi decretada a prisão preventiva e a data da acusação, não passou mais de um ano [artigos 215, nº 3 do CPP, por referência ao nº 2, al. b)], sendo irrelevante para efeitos do prazo máximo da prisão preventiva a data em que foi notificada a acusação.

Atento o exposto, mantém-se a prisão preventiva na atualidade, não se encontrando esgotados os prazos do artigo 215, nº 3 do CPP.

Autue a presente petição por apenso, nos termos do artigo 223, nº 1 do CPP e remeta ao Ex.mº Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

O apenso será instruído com cópia da petição do arguido, do presente despacho, do 1º interrogatório judicial de arguido detido, do despacho que decretou a especial complexidade, do despacho de acusação e da promoção que antecede.».

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5. Notificados o Ministério Público e o Ilustre mandatário do arguido, realizou-se a audiência nos termos dos artigos 223.º, n.º 2 e 424.º, do CPP.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. A questão a decidir é a de saber se, no caso presente, estamos perante prisão ilegal, face ao excesso de prazo de prisão preventiva, por o arguido não ter sido notificado da acusação.

Vejamos se a pretensão do requerente se enquadra no disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal – ilegalidade da prisão por se manter para além do prazo fixado pela lei.

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Apreciando:

II.2. O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade (arts. 27.º e 31.º, CRP), uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória art. 31.º/3, CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo. Enquanto nas palavras do legislador do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o acrescento do n.º 2 ao art. 219.º, CPP, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (arts. 219.º/2, 212.º, CPP, no respeitante a medidas de coação).

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão” (Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196).

Tem sublinhado a jurisprudência deste Supremo Tribunal que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade (Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1).

*

II.3. Quanto ao pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o art. 222.º:

«1- A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

*

II.4. Como foi acima referido, o arguido fundamenta a providência em prisão ilegal, invocando ultrapassagem do prazo estatuído pela alínea c) do artigo 222.º do Código de Processo Penal, por não ter sido notificado da acusação.

Porém, não assiste qualquer razão ao requerente.

No caso presente, o arguido encontrava-se indiciado (e já acusado), por acusação pública deduzida no dia 26.05.2022, pela prática, em concurso real e efectivo, de:

- na forma consumada, em co-autoria, cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao artigo 202º al. b), todos do Código Penal (por referência aos factos constantes dos pontos A, B, C, E, G);

- na forma consumada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e n.º 2 al. b), por referência ao artigo 202º al. a), todos do Código Penal (por referência aos factos constantes do ponto D);

- na forma tentada, em co-autoria, um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), por referência ao artigo 202º al. b), 22º, 23º todos do Código Penal (por referência aos factos constantes do ponto F);

 - na forma consumada, em co-autoria, sete crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. a) e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência aos documentos comprovativos de transferência bancária/termos de responsabilidade dos pontos A a G);

 - na forma consumada, em co-autoria, três crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256º n.º 1 al. c) e) por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência aos requerimentos de registo automóvel dos pontos A, B, C);

 - na forma consumada, em co-autoria, um crime de falsificação de documentos p. e p. pelo art. 256º n.º 1 al. c) e) e n.º 3 do Código Penal, por referência ao artigo 255º al. a), todos do Código Penal (por referência ao requerimento de registo automóvel onde foi aposta a assinatura de KK ponto G);

- na forma tentada, em autoria material, oito crimes de burla qualificada, pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 e 2 al. a) b), 22º e 23º todos Código Penal (por referência aos pontos H a O).

Nessa sequência, por despacho judicial de 27.05.2022 e nos termos do art. 213º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal foi mantida a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA.

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II.5. Atendendo à natureza e moldura penal cabível aos crimes imputados ao requerente, o prazo de duração máxima da prisão preventiva, sem que tenha sido deduzida acusação, seria de seis meses, nos termos do artigo 215.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do CPP.

Porém, nos termos do artº 215º, nº 3 do Código de Processo Penal, “Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano (…) quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime”.

Ora, por despacho de 26.03.2021, que não foi objeto de recurso, foi declarada a excepcional complexidade dos autos, nos termos do art. 215º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Assim, nos termos do art. 215º n.º 1, 2 al. d) e 3 do Código de Processo Penal, o prazo máximo da prisão preventiva aplicada ao arguido teria o seu término, no dia 28.05.2022, sem que fosse deduzida acusação.

Porém, a peça acusatória foi deduzida em 26.05.2022, ou seja, dentro do referido prazo de um (1) ano.

Acresce referir que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual.

Este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no acórdão de 11-10-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 186, que para o efeito previsto no artigo 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual, podendo ver-se neste sentido ainda os acórdãos de 14 e 22 de Março de 2001, in Sumários do Gabinete de Assessores, n.º 49, págs. 62 e 81; de 15-05-2002 e de 11-06-2002, ibid., n.º 61, pág. 84 e n.º 62, pág. 81; de 13-02-2003, processo n.º 599/03-5.ª; de 22-05-2003, processo n.º 2159/03-5.ª; de 18-06-2003, processo n.º 2540/03-3.ª; de 13-11-2003, processo n.º 3943/03-5.ª; de 08-06-2005, processo n.º 2126/05-3.ª; de 19-07-2005, processo n.º 2743/05-3.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1689/07-5.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3977/07-3.ª; de 12-12-2007, processo n.º 4646/07-3.ª; de 13-02-2008 no processo n.º 522/08 -3.ª, infra mencionado; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08-3.ª; de 06-01-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM-B.S1-3.ª e de 30-12-2010, processo n.º 4/09.8ZCLSB-A.S1-3.ª, o mesmo se passando com a decisão instrutória, como decidiu o acórdão de 28-06-1989, processo n.º 18/89-3.ª: “ Os prazos de prisão preventiva referidos no art. 215.º, n.º 1, al. b), do CPP contam-se até ao momento em que é proferida a decisão instrutória, e não até ao momento em que ela é notificada” – Jurisprudência indicada no Acórdão do STJ de 09/02/2011, proc. 25/10.8MAVRS-B.S1, 3ª Secção, Relator: Raul Borges; cfr. também, o recente Ac. do STJ de 04/11/2021, proc. 77/21.5JALSB-C.S1, 5ª Secção, Relator: Helena Moniz, pronunciando-se este Colectivo no mesmo sentido, em recentes acórdão de 10.02.2022, Proc. nº 44/21.9GBCVD-B.S1 e acórdão de 24.11.2021, Proc. nº 856/19.3T9SNT.

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II.6. Em conclusão: o termo final do prazo referido na alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa, uma vez que a acusação foi prolatada dentro do prazo máximo previsto, sendo certo que foi solicitado ao EP a notificação do arguido quer da acusação, quer do despacho que manteve a medida de coação.  

O motivo aduzido pelo requerente não cabe no elenco contemplado no artigo 222.º, n.º 2, do CPP, inexistindo, nomeadamente, o fundamento da alínea c), nos termos que invoca.

Por outro lado, na situação presente a prisão do requerente foi ordenada por entidade competente, no caso pelo juiz de instrução criminal com jurisdição na área da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., e com fundamento na existência de indícios da prática pelo arguido de crime que justifica a aplicação da medida de prisão preventiva, por cair na previsão do artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, sendo que o requerente foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 28.5.2021, não estando em causa qualquer excesso de prazo, tendo sido já deduzida acusação, que foi notificado ao arguido em 03/06/2022 (conforme informação elaborada por termo electrónico no processo, de 7/06/2022, referência10926023).

Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o invocado fundamento da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal, ou qualquer outro, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das alíneas daquele n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Sendo assim, é de indeferir a providência por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.

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III. DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus requerido pelo arguido AA, por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, al. a) do CPP).

Custas pelo requerente, com 2 UC de taxa de justiça, sem prejuízo de apoio judiciário.

Lisboa, 9 de Junho de 2022

Cid Geraldo (Relator)

Leonor Furtado

Eduardo Loureiro (presidente)