Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3622/17.7JAPRT.P1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA DE PRISÃO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
DIREITO AO SILÊNCIO
Data do Acordão: 10/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / ARGUIDO E DEFENSOR – JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / PODERES DE COGNIÇÃO.
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
Doutrina:
- Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, p. 611-678;
- Augusto Silva Dias, Direito Penal, Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005;
- Castanheira Neves, A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”, Digesta, Coimbra Editora, 1995, p. 523 e ss.;
- Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, p. 72 e ss.;
- Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., 2012, p. 59-60;
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234 ; Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º;
- Margarida Silva Pereira, Os Homicídios, p. 40;
- Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, p. 102;
- Teresa Quintela de Brito, O homicídio qualificado (art. 132º), Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, p. 215-6;
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 61.º, N.º 1, ALÍNEA D), 343.º, N.º 1, 428.º E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71.º, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA B) E 152.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º 1.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS: - ARTIGO 6.º, § 1.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 74/16.2JDLSB.L1.S1;
- DE 09-05-2019, PROCESSO N.º 1079/17.1JAPRT.P1.S1;
- DE 26-06-2019, PROCESSO N.º 174/17.1PXLSB.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
- ACÓRDÃO N.º 64/2006;

- ACÓRDÃO N.º 659/2011;
- ACÓRDÃO N.º 290/2014.
Sumário : I. Apesar de o recorrente repetir, nos seus precisos termos, as conclusões do recurso perante o tribunal da Relação, entende-se não ser de rejeitar o recurso por falta de motivação, considerando-se esta, no âmbito dos poderes de conhecimento do STJ, como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância.
II. As questões suscitadas a propósito da matéria de facto inscrevem-se na competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), que sobre elas se pronuncia em última instância, não sendo a decisão recorrível, nesta parte, para o STJ, que apenas conhece de direito (artigo 434.º do CPP).

III. Como tem sido unanimemente afirmado, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração não exaustiva dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.

IV. A revisão do Código Penal de 2007 assumiu o propósito de incluir novas circunstâncias na enumeração do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, nomeadamente a relação conjugal, presente ou passada, ou análoga, sem qualquer modificação de alcance ou de sentido da justificação da construção e definição do tipo qualificado de homicídio previsto neste preceito, incluindo idêntica circunstância no tipo de crime de violência doméstica (artigo 152.º):

V. A criminalização destas condutas insere-se na linha das obrigações posteriormente impostas pela Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica (Istambul, 11.05.2011), ratificada por Portugal (RAR n.º 4/2013, e DPR n.º 13/2013, de 21 de Janeiro), a qual define a «violência doméstica» como abrangendo «todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima». Na acepção da convenção, o conceito de violência doméstica abrange, assim, as situações que podem constituir os crimes de homicídio qualificado [artigo 132.º, n.º 2, al. b)] e de violência doméstica [artigo 152.º, n.º 1, al. b)].

VI. Estando provado que o arguido e a vítima viveram em coabitação, numa situação de comunhão de vida, durante mais de 13 anos, que, por virtude dessa relação, se prolongou uma especial relação pessoal entre os dois e que a morte da vítima resulta dessa vivência pessoal, em quebra brutal, por ciúme, de uma relação de solidariedade e entreajuda criada por aquela relação mantida para além da cessação da coabitação, deve concluir-se que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

VII. Não se encontrando, nas circunstâncias do caso, motivo que lhe retire o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida, deverá também concluir-se que se revela operativo este efeito de agravação da culpa, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito.

VIII. Depõem intensamente contra o arguido as circunstâncias relativas ao elevado grau de ilicitude, ao modo de execução do crime e à elevada intensidade do dolo na sua modalidade mais grave (dolo directo), documentados na determinação e persistência da sua conduta, no domínio e anulação da capacidade de resistência da vítima, neutralizada pela sua força física, causando-lhe a morte por asfixia, não se considerando, neste âmbito, por se opor ao princípio da proibição da dupla valoração, a violação do dever de respeito e solidariedade que se mantinha e se lhe impunha em resultado da relação pessoal, relevando como circunstância de qualificação do crime de homicídio.

IX. O facto de o tribunal ter dado como provado que o arguido não evidenciou qualquer remorso ou arrependimento não comporta uma valoração negativa do seu direito ao silêncio, que constitui um direito fundamental do arguido, integrante da protecção contra a auto-incriminação e compreendido no núcleo essencial das garantias de defesa (artigos 32.º, n.º 1, da Constituição, 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e 61.º, n.º 1, al. d), e 343.º, n.º 1, do CPP).

X. Na adequada ponderação dos factores de determinação da pena previstos no artigo 71.º do Código Penal e tendo em conta o disposto no artigo 40.º, não se encontra fundamento para considerar excessiva a pena de 16 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:





I.  Relatório


1. Por acórdão de 4 de Dezembro de 2018 proferido pelo tribunal colectivo do Tribunal Judicial (Juiz …) da comarca do …, foi o arguido AA, com a identificação dos autos, condenado na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal.


2.  Discordando, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 27 de Fevereiro de 2019, julgou o recurso improcedente, mantendo o acórdão recorrido.


3. Não concordando com o decidido no acórdão da Relação, dele vem agora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação de que extrai as seguintes «conclusões» (transcrição):


«I. O recorrente foi condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º n.º 1 e 2 alínea b) do CP na pena de 16 anos de prisão.


II. Tendo o tribunal a quo fundamentado a condenação nos seguintes meios de prova:


III. A prova pericial (temos o relatório de autópsia de fls. 472 a 475 que não indica uma causa de morte, que se limita a aderir a tese de sufocação – trazida pela policia judiciaria com base em declarações do arguido que não podem ser valoradas - quando estranhamente de toda a análise feita quer à cabeça, quer ao pescoço da vítima resulta na seguinte conclusão “sem evidência de lesões traumáticas” (cfr. Pág. 4 do relatório).


IV. O que, na opinião da defesa, inquina desde logo a afirmação constante do ponto 37 da matéria de facto dada como provada uma vez que analisado este relatório, a única conclusão que se pode retirar é que não foi determinada a causa da morte e muito menos a data em que a mesma ocorreu.


V. Ora, desde logo causa estranheza esta contradição no resultado destes dois últimos exames, sendo que o do IPAC foi iniciado a 20 de novembro de 2017 e o da polícia judiciária a 22 de março de 2018, ou seja, bastante depois da ocorrência dos factos.


VI. Pelo que o Tribunal a quo ao referir que na análise do top foi encontrado um perfil de misturas de mais de um individuo, da qual não pode ser excluído ADN de BB e AA, está a “ignorar” o exame realizado pelo IPAC.


VII. Embora, sempre se diga, que o facto de não se poder excluir um perfil, não significa que esse perfil está presente, pois faltando elementos, não é possível identificar a quem efetivamente pertencem tais vestígios.


VIII. Apoiou-se também o Tribunal a quo na Prova documental (na qual insere a reconstituição feita pelo arguido), designadamente na análise ao telemóvel do arguido, bem como o extrato de listagens de comunicações do cartão Vodafone do telemóvel da vítima.


IX. Dessa análise resulta não ser verdade que o arguido ligava diariamente à vítima (veja-se a titulo de exemplo que lhe liga dia 4 de julho e depois apenas a 12 de julho e a 18 de julho, ou em outubro que lhe liga nos dias 12, 17 e 21 de outubro);


X. Não ser verdade que o arguido apenas mandou um SMS à falecida no dia 5/11/17 (Desde logo no dia 30 de outubro (dia apontado como o da morte da vitima) às 22.13 o arguido enviou a seguinte mensagem: “esqueci-me de te desejar uma boa noite e feliz. LP”);


XI. E não ser verdade que a falecida não “tinha mais ninguém” além dos colegas de trabalho e do arguido, pois analisado o seu extrato de comunicações, há vários números (pelo menos outros 6), para além do arguido que lhe ligam e enviam SMS.


XII. Da analise da prova documental resultou o auto de visionamento de imagens recolhidas pelo sistema de videovigilância do prédio sito na Rua …, nº 369 de fls 316 e seguintes onde efetivamente é visualizado o arguido a passar no passeio, mas em momento algum é o mesmo visto a entrar ou a sair do prédio onde a vitima residia, que era no nº 363 da mesma rua.


XIII. Sem que o Tribunal a quo tenha ponderado o facto de resultar das imagens recolhidas que o arguido passou naquela zona mais duas vezes nessa noite.


XIV. Se foi o arguido o autor dos factos em que momento é que os praticou? E o que é que aconteceu no entretanto dessas passagens?


XV. E porque é que lhe manda uma mensagem nessa noite depois das 22h?


XVI. E não é o recorrente que tem de responder a estas questões… é a investigação que tem de demonstrar com a certeza necessária que o recorrente praticou os factos pelos quais vem acusado.


XVII. Em especial se considerarmos que o acórdão dá como provado que o arguido depois de matar a vítima trouxe o seu telemóvel e que só no dia a seguir à noite o deitou fora.


XVIII. A verdade é que nada na envolvência do crime leva a crer que se tratou de um crime premeditado, sendo que os factos acima descritos apenas se coadunam com um crime premeditado e assim temos de concluir que esta atitude do arguido é a prova da sua inocência.


XIX. Se tivesse sido praticado pelo arguido no dia 30 de Outubro como é afirmado, o mesmo teria tido tempo e oportunidade de voltar a casa da vítima e retirar todos os objectos que de alguma forma o pudessem ligar ao crime, bem como teria continuado a enviar-lhe mensagens.


XX. Não se esqueça que é o arguido que livremente consente na busca à sua residência, bem como na leitura do seu telemóvel.


XXI. Quanto à prova testemunhal, em especial ao depoimento dos três inspetores da PJ, entende o arguido que a mesma não poderia ter sido valorada, porque se baseia, essencialmente nas declarações do arguido ou no “ouvir dizer”.


XXII. As afirmações das testemunhas baseiam-se nas declarações do arguido ou nas de uma empregada de limpeza cujo nome se desconhece e que não foi indicada como testemunha!


XXIII. Como acima se referiu, as imagens não demonstram que o arguido tenha ido a casa da vítima (nas idas e vindas que constam das imagens), e muito menos que tenha sido a ultima pessoa a vê-la com vida.


XXIV. A verdade é que nem sequer ficou demonstrado que a vítima estivesse em casa aquela hora! Temos um bilhete de autocarro validado na paragem do local de trabalho, mas como é obvio não sabemos onde a vitima se apeou do autocarro, se foi para casa, se foi passear…..


XXV. Até porque não foi determinada o dia e a hora da morte, na autópsia.


XXVI. E quanto à roupa que a vítima tinha vestida quando foi encontrada morta, é referido pelos inspetores CC e DD que é a mesma com que saiu do trabalho, mas a verdade é que as referidas imagens da confeitaria não constam do processo.


XXVII. Ou seja, mesmo em relação à roupa que a vítima trajava quando saiu do trabalho, temos apenas a palavra dos inspetores, não existindo qualquer registo de imagens.


XXVIII. Mas a verdade é que se tratava de uma roupa perfeitamente comum, umas leggins e uma camisola preta, pelo que nem sequer foi apurado se seria o tipo de vestuário com que a vítima normalmente trajava.


XXIX. Uma vez chegados a este ponto, importa referir que, na modesta opinião da defesa, o presente processo foi mal investigado desde o início, concentrando-se todas as diligências probatórias em confirmar que teria sido o arguido o autor dos factos, não se procurando sequer outro/s suspeitos ou outras alternativas para a causa da morte da vítima.


XXX. Desde logo, ficou provado que a vítima tinha uma relação de cariz afetivo/sexual com um dos seus patrões – a testemunha EE, sendo que não se apurou sequer se o mesmo tinha a chave do apartamento da vítima.


XXXI. Ou seja, perante uma afirmação não corroborada por qualquer outro elemento probatório é desde logo considerada a mesma como verdadeira, por encaixar na “história” criada.


XXXII. Outra questão a que é dado enorme relevo quer no julgamento quer no acórdão, prende-se com a questão do dinheiro alegadamente subtraído à vítima pelo arguido, quase que indicando esse motivo como um dos motivos que teriam levado ao homicídio.


XXXIII. Ora, pareceu esquecer-se que na carteira da vítima foram encontrados 50€, além dos 500€ que estavam numa outra carteira.


XXXIV. Ressalte-se que se acha perfeitamente normal que a vítima que ganhava o salário mínimo pudesse ter amealhado 500€ sem qualquer problema e o arguido que ganhava 700€/800€, mesmo com a penhora teve de “roubar” a vítima para ir fazer compras ao Pingo Doce!


XXXV. Também foi ignorado o facto de o arguido ter na sua posse a quantia de 250€, que era um fundo de maneio disponibilizado pelo seu empregador, que se encontrava intacto e foi devolvido ao empregador como resultou da inquirição da testemunha FF.


XXXVI. A verdade é que todo este processo e parte da prova nele constante estão inquinados desde o início, senão vejamos: o arguido é interrogado na qualidade de testemunha a 6/11/2018, conforme depoimento de fls 105 e segs, entre as 22h45 e a 01h15, sendo posteriormente detido a 9/11/2018, e após horas de interrogatório, sem a presença de um defensor, presta as declarações constantes de fls 129 dos autos, cujo auto teve inicio às 21h20 e fim à 22h24, nas quais confessa a autoria do homicídio,


XXXVII. Sendo que na sequência dessas declarações, é feita a reconstituição dos factos, constante de fls. 148 e seguintes, com inicio às 23h e fim às 23h50.


XXXVIII. Importa, desde logo, ir ao cerne da questão de saber se a reconstituição de facto em si, pode ser valorada, assim como os depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre o que viram e ouviram do arguido na reconstituição do facto, nomeadamente através das declarações do arguido prestadas nesse âmbito, ou seja é admissível a valoração da reconstituição pelo tribunal como meio de prova.


XXXIX. No caso sub judice, o tribunal de primeira instância entende que “só podem ser valoradas as declarações do arguido, indispensáveis à reconstituição do facto. Quaisquer declarações do arguido que constem do auto de reconstituição ou de gravações da reconstituição que não sejam indispensáveis à reconstituição do facto merecem o tratamento das 'conversas informais', ou seja, sem validade probatória.”


XL. Não pode, pois, o recorrente rever-se com a posição tomada com o Tribunal a quo, já que entende que a reconstituição de facto, in casu, não é mais do que meras declarações do arguido prestadas perante os órgãos de polícia criminal, no decurso do inquérito, não podendo ser valoradas. Configurando a reconstituição de facto uma situação análoga às denominadas “conversas informais”.


XLI. Nos termos do nº 1 do art.º 150º do Código de Processo Penal “quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.”


XLII. Apesar do artigo 150º do Código de Processo Penal se referir à reconstituição de facto e de exigir pressupostos específicos, a verdade é que este neste âmbito existe muita divergência doutrinal e jurisprudencial, o que não se entende visto que a lei é clara quanto aos seus pressupostos.


XLIII. Compreende o, ora recorrente, que só pode existir uma valoração da reconstituição se se cumprir os pressupostos e o procedimento do artigo 150º do Código de Processo Penal, o que não se verifica no caso em apreço, neste sentido veja-se, entre muitos, o processo nº 6/08.1JACBR.C1 do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.


XLIV. Caso contrário estaremos perante declarações de arguido que devem ser tratadas como declarações de arguido ilustradas por fotografia (artigo 357.º do CPP)!


XLV. Efetivamente, as declarações do arguido prestadas anteriormente no processo, só podem ser valoradas caso o próprio arguido solicite a leitura ou a reprodução das suas declarações, ou então quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária na presença do defensor e caso o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal, isto é de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações prestadas podem ser utilizadas no processo, estando sujeitas à livre apreciação da prova pelo Tribunal.


XLVI. As declarações prestadas pelo arguido no âmbito da reconstituição, dirigida pelo Ministério Público ou pelo órgão de Polícia criminal, não podem ser valoradas por imposição das garantias de defesa do arguido, nomeadamente por imposição do direito ao silêncio e do princípio da não autoincriminação (veja-se Proc 1189/13.4JAPRT.P1 do Tribunal da Relação do Porto do Juiz desembargador Raul Esteves e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra Ac. de 25.09.2013, bem como acórdão proferido no processo nº 1796/01 do Supremo Tribunal de Justiça do Juiz Conselheiro Lourenço Martins).


XLVII. Entendimentos com os quais concordamos na íntegra tendo o Tribunal a quo ficado a meio do caminho, entre valorar a reconstituição de facto e não valorar. Não se entende, portanto, como é que o tribunal de primeira instância defende a valoração das declarações do arguido indispensáveis à reconstituição do facto, sendo que as declarações do arguido que ultrapassem o indispensável para a reconstituição, então são equiparadas às “conversas informais”, ou seja, sem validade probatória.


XLVIII. Pois que naturalmente não é concebível realizar a destrinça entre declarações imprescindíveis das que não são, na medida em que a reconstituição tem de ser vista como um todo, em que o arguido presta a sua contribuição em vista da reprodução fiel e o mais exata possível da realidade e dos factos, alegadamente, praticados.


XLIX. Ora, se realizarmos a destrinça entre as declarações que são e que não indispensáveis, a reconstituição não pode ser vista como um todo e consequentemente o resultado final da reconstituição não será nem de perto nem de longe uma reprodução fiel e exata, podendo no limite nem corresponder à realidade da prática dos factos.


L. E o que acontece se o arguido participar numa reconstituição de facto e prestar declarações ou realizar “ilustrações” erradas (como sucedeu no processo nº 689/12.8JAPRT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga)?


LI. Existindo a valoração da reconstituição de facto, tal como sustenta o tribunal a quo, e caso o arguido contribuía com informações que não são correspondentes com a realidade da prática dos factos e sendo este o principal meio de prova então, nesta perspetiva, a única conclusão possível, seria a absolvição do arguido.


LII. Verificamos, assim, que as declarações prestadas pelo arguido no âmbito da reconstituição perante o órgão de polícia criminal na fase de inquérito não podem ser valoradas sob pena de violar as mais elementares garantias e direitos de defesa do arguido, acrescendo que a reconstituição não pode representar por si só um meio de prova suficiente que permita ao julgador fazer um juízo seguro para com certeza absolta condenar o arguido por este ter participado da mencionada reconstituição.


LIII. Quanto à questão dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal que participaram na reconstituição de facto, refira-se desde logo que o nº 7 do art.º 356º, do Código Processo Penal não permite a inquirição dos órgãos de polícia criminal sobre o conteúdo de declarações cuja leitura seja proibida (veja-se o acórdão proferido no processo nº 04P902 do Supremo Tribunal de Justiça do Juiz Conselheiro Pereira Madeira e acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo 1189/13.4JAPRT.P1 do Juiz conselheiro Raul Esteves, Ac. STJ, de 05/01/2005, in CJ, Acs. Do STJ, XIII, 1, 159, Acórdão do STJ, de 22.4.2004, in CJ, ACs. STJ, XII, 2, 165, acórdão proferido no processo nº 91/04.5PBCTB.C1 do Tribunal da Relação de Coimbra do Juiz Conselheiro Fernando Ventura).


LIV. Entende o recorrente, tal como a jurisprudência citada, que este meio de prova não pode ser devidamente valorizado, porque se viola os princípios mais elementares de processo penal, sendo incompreensível que o tribunal a quo venha valorizar o depoimento de testemunhas sobre factos que o arguido relatou sem estar acompanhado de defensor, às horas tardias que a reconstituição foi realizada e tendo posteriormente na fase de julgamento remetendo-se ao silêncio.


LV. Assim quer a reconstituição, in casu, quer os depoimentos dos órgãos de polícia criminal, enquanto testemunhas, não podem ser valorados como meio de prova válido pelo que deveriam ter sido dados como não provados os seguintes factos: Factos 6, 7, 8, 9, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 37, 38, 39, 40, dos factos provados.


Sem prescindir,


Do crime de homicídio qualificado


LVI. O Tribunal a quo considera que existe crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos art.º 131º e 132º nº 1 e 2, alínea b), ambos do Código Penal, sustentando, portanto, que o facto de o arguido viver em união de facto com a ofendida é um pressuposto essencial para que se verifique a respectiva agravante.


LVII. Porém resultou também provado que o arguido era casado pelo que existe uma impossibilidade de constituir uma união de facto relativamente ao seu estado civil, pois o recorrente não pode de modo algum estar casado e a viver em união de facto, no limite poderia estar a coabitar com a ofendida, mas nunca poderia estar a viver em união de facto (veja-se, entre muitos, o processo nº 3410/11.4TBSXL-B.L1-1 do Tribunal da Relação de Lisboa do Juiz Desembargador Eurico Reis).


LVIII. O recorrente nunca chegou portanto a viver em união de facto com a ofendida e portanto nunca poderíamos preencher a qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º e mesmo que o tribunal viesse a considerar que este é um preceito exemplificativo, sendo que nesses termos a situação concreta em que vivia o arguido com a ofendida caberia nesta alínea a título analógico, tal raciocínio também não seria viável na medida em que nunca seria uma relação análoga a do cônjuge.


LIX. No limite poderia coabitar ou viver em economia comum com a ofendida, mas tal não é, nem nunca seria suficiente para preencher a mencionada qualificativa e recorde-se também que o arguido já não coabitava com a ofendida há cerca de um ano antes da morte da ofendida (veja-se acórdão proferido no processo nº 238/10.2JACBR.S1 do Supremo Tribunal de Justiça do Juiz Conselheiro Raul Borges).


LX. Efetivamente as circunstâncias contempladas no n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal não são taxativas, nem implicam só por si a qualificação do crime e sendo tais circunstâncias elementos da culpa o seu funcionamento e a sua aplicabilidade não podem ser automáticas e é necessário ter sempre em conta as circunstâncias do caso concreto.


LXI. Ora, in casu, não existindo em termos jurídicos uma união de facto, não entende o recorrente a punibilidade agravada pela alínea b) do n.º 2 do artigo Código Penal porque a mesma não se verifica a qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, resta, contudo, abordar a agravação prevista no nº1 do mesmo preceito legal.


LXII. Considerou ainda o tribunal a quo que ponderando todas as circunstâncias, o agente atuou com especial censurabilidade ou perversidade na medida em que no caso concreto, este “tirou a vida à Ana Margarida Estreito, por não aceitar o novo relacionamento amoroso que a ex-companheira mantinha com EE”.


LXIII. Incorreu porém o tribunal a quo em erro notório na avaliação dos indícios probatórios recolhidos e como tal sustentou uma tese desfasada da realidade dos factos que não permitiu a descoberta concreta da verdade material.


LXIV. Analisando os indícios probatórios recolhidos, nunca poderíamos concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do caso concreto, na medida em que, desde logo, não se pode afirmar mormente que o arguido tirou a vida à BB e também porque não resulta da prova recolhida que o relacionamento amoroso que a vítima mantinha com EE constitui um motivo sério para o arguido, alegadamente, tirar a vida à BB.


LXV. Vejamos, da prova recolhida através do telemóvel aprendido ao arguido, como supra mencionamos, não existe sequer inícios que apontem que o foi o arguido que tirou a vida à ofendida, também não decorre das mensagens que o arguido tirou a vida à ofendia por não aceitar o relacionamento que esta tinha com o seu patrão, EE, não entende o recorrente, portanto, qual foi a premissa que levou o tribunal a quo a sustentar esta motivação e esta posição.


LXVI. De igual forma, da prova documental recolhida, nomeadamente a agenda do arguido, não existe indícios que foi o arguido a tirar a vida a ofendida, sendo que também não é plausível o motivo invocado pelo tribunal a quo para justificar a alegada conduta de especial censurabilidade ou perversidade do agente.


LXVII. Aliás o arguido tinha conhecimento que a ofendia mantinha esse relacionamento desde do início de novembro de 2016, cf. fls 243. Ora, facilmente concluímos que o arguido sabia do relacionamento que a ofendida mantinha com o seu patrão há quase um ano antes da ocorrência dos factos pelos quais se mostrou acusado e condenado.


LXVIII. Sendo o arguido uma pessoa bastante preocupada com o bem-estar da ofendida e mesmo estando esta noutro relacionamento, o arguido só queria que a ofendida estivesse bem e contente. Neste contexto, o arguido ainda assim ajudava a ofendida em tudo o que conseguisse, desde lavar a roupa a pagar a renda como intermediário da ofendida.


LXIX. Mantinha efetivamente proximidade com a ofendida, proximidade essa que era saudável, visto que o arguido sempre a tratou bem, também por isso é que a ofendida nunca se afastou totalmente dele e nem nunca teve motivos para tal.


LXX. Assim, e em conclusão, atendendo ao supra exposto, não podemos concluir que o arguido tirou a vida à ofendida BB e que atuou com especial censurabilidade ou perversidade por não aceitar o novo relacionamento amoroso que a ex-companheira mantinha com EE.


Por último,


Da determinação da medida da pena


LXXI. Sem prescindir de tudo o atrás aduzido e por uma questão meramente académica, visto que o arguido pugna pela absolvição, cabe-nos aludir à determinação da medida da pena aplicada, visto que o recorrente não se conforma, na hipótese hipotética de não ser absolvido, com a desproporcionalidade da pena única de 16 (desaseis anos) de prisão que lhe foi determinada.


LXXII. No douto acórdão, no âmbito da determinação da medida concreta da pena, consta a seguinte afirmação: “Também ao longo de todo o julgamento, não evidenciou o arguido qualquer remorso ou arrependimento”.


LXXIII. Efetivamente, o arguido não poderia ter evidenciado qualquer remorso ou arrependimento, na medida em que exerceu o seu direito constitucional, de se remeter ao silêncio desde do início do julgamento.


LXXIV. Ora, extrair conclusões do silêncio do arguido, significa negar-lhe o direito a esse mesmo silêncio, que lhe é reconhecido pois do silêncio do arguido apenas é possível concluir que nada disse e não existindo outra conclusão possível.


LXXV. Não pode, portando, o arguido rever-se na afirmação que consta do douto acórdão e que influência diretamente a determinação concreta da medida da pena, concluindo que a única valoração que se pode retirar do silêncio é única e exclusivamente o facto de não se ter pronunciado sobre os factos que lhe foram imputados.


LXXVI. Atente-se, também em sede de conclusão, ao exemplar relatório Social do arguido que é considerado favoravelmente pelo tribunal a quo mas depois desvalorizado na determinação concreta da pena.


LXXVII. Por tudo o que foi aqui retratado e atendendo à personalidade do arguido, entende, portanto, o recorrente que a pena concreta de 16 (dezasseis) anos é excessiva e desproporcional e no caso hipotético e académico de não ser absolvido, deveria ser-lhe aplicada a moldura penal mínima ou o mais próximo dessa moldura.


Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas:


*   Artigo 32.°da Constituição da República Portuguesa;


*   Artigo 127.° do CPP (princípio da livre apreciação da prova) e 374.° n.° 2 também do CPP;


*   Artigos 132.º n.º 1 e 2, alínea b) do CP;


*   Artigo 150.º e 156.° do CPP;


*   Artigo 324.º n.º 2; 356.° e 357.° do CPP;


*   Artigo 410.º, n.º 2 do CPP;


*   Artigos 40.°, 50.°, 52.°, 53.°, 54.°, 70.°, 71.°, 72.°, 73.° e 77.°do Código Penal».


4. Responde o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto, dizendo em conclusões (transcrição):


«Não se detecta no acórdão recorrido qualquer dos vícios referidos no artigo 410, nº 2, do CPP.


Não se verifica qualquer erro de julgamento no que ao direito concerne.


A reconstituição em que intervém arguido constitui prova autónoma e cindível das declarações deste, sendo livremente valorada e apreciada, nos termos do art.127.º


Mostra-se acertada a qualificação jurídica porque, no caso, existiu uma relação análoga à dos cônjuges, porque viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, e duradouramente, pois persistiu durante 13 anos, e que para efeito de previsão penal é indiferente que já tivesse cessão, porque o inciso valoriza a relação que “o agente mantenha ou tenha mantido.”


A medida da pena não podia ser menor atendendo ao tipo penal em causa e a todas as circunstâncias que rodearam a sua prática.»


5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer de concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, também no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição na parte relevante):


«B. Como é jurisprudência consolidada deste STJ, o mesmo só conhece da existência de vícios do art. 410°. n ° 2, als. a), b) e c) do CPP, quando ex officio e não a pedido do recorrente, entenda verificar-se algum deles e cumulativamente seja imprescindível para a decisão de meritis o seu conhecimento.


Feita esta anotação, concordamos com a posição do MP na 2.ª instância, pelo que também entendemos que o recurso deve ser julgado improcedente.»


6. Notificado nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.


7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.


8. Cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentação


9. O tribunal da Relação manteve inalterados os seguintes factos dados como provados no acórdão de 1.ª instância, que assim se mostram fixados (transcrição):


«1.  No ano de 2000, o arguido AA iniciou um relacionamento amoroso com a vítima BB, natural da … e onde aquele à época trabalhava.


2.    Há cerca de 13 anos, o arguido e a BB instalaram-se no apartamento 12, tipo TO, sito no n.º 406, na Rua …, …, vivendo em união de facto.


3.    A partir de meados do ano 2016, a BB deixou o dito TO e mudou-se, sozinha, para o quarto n.º 3 composto por um quarto muito pequeno e casa de banho, situado no piso -3, no n.º 363 da referida Rua …, …, que arrendou à mesma empresa que geria o TO.


4.    Pagava 150€ de renda mensal, que entregava ao arguido, que por sua vez fazia o pagamento à empresa gestora.


5.    O arguido, pagava mensalmente €325,00 de renda pelo seu TO, acrescidos de €70,00 euros relativos a dívida anterior de rendas.


6.    Não obstante viverem em locais separados, o arguido e a BB mantinham um relacionamento muito próximo, sendo até no TO que as roupas da falecida eram cuidadas (lavar e secar) ou por ela nas suas folgas ou por ele, já que a BB não tinha condições para tal no seu quarto (a máquina de lavar a roupa estava avariado e o espaço era mínimo).


7.    Arguido e vítima tinham a chave da residência um do outro.


8.    O arguido telefonava-lhe muitas vezes e mandava-lhe SMS, embora habitualmente a BB não lhe respondesse.


9.    O arguido chamava a falecida de "…", continuava a nutrir por ela fortes sentimentos amorosos e mantinha a forte vontade de que a relação se reatasse.


10.  A falecida BB, desde 15 de fevereiro de 2015, começou a trabalhar no estabelecimento comercial "GG", sito na Rua …, n.º …, nesta cidade do …, na qualidade de ….


11.  Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde seis meses antes da sua morte, BB passou a manter um relacionamento amoroso, secreto, com EE, patrão do dito estabelecimento.


12.  Desde pelo menos Março de 2017 o arguido, desconfiado da existência de tal relacionamento, começou a seguir a ofendida, deslocando-se muitas vezes até junto da pastelaria GG, fotografando o local e fotografando a viatura automóvel Nissan Micra, matrícula ...-...-PQ pertencente a EE.


13.  Também chegou a entrar na casa da falecida na sua ausência, a consultar a sua agenda - que esta usava como diário - e a fotografar certas páginas com escritos, desenvolvendo sentimento de revolta e impaciência que apontava também na sua agenda.


14.  No dia 30 de Outubro de 2017, pelas 17h40m, a falecida despediu-se do dito EE, uma vez que iria entrar de férias no dia seguinte (até 8 de Novembro de 2017), tendo-lhe este entregue €675,00, relativos ao seu salário mensal acrescidos de €500,00, em numerário, à título de subsídio de férias, tudo entregue dentro de um envelope branco com o nome de BB.


15.  BB chegou ao seu quarto perto das 18h, sendo que nesse dia trajava totalmente de preto, com carteira preta e tendo ao pescoço um colar comprido de missangas.


16.  Nesse dia 30 de Outubro, pelas 19h00m, o arguido dirigiu-se ao quarto n.º 3 da Rua ….


17.  Aí chegado, a ofendida deixou-o entrar e entregou-lhe sacos contendo roupa sua, para lavar, que o arguido colocou à entrada do quarto.


18.  De seguida, o arguido ajudou a falecida a desfazer a cama, retirou os lençóis e a fronha e colocou-os nos referidos sacos.


19.  A falecida ainda retirou de uma gaveta de um móvel, um envelope contendo o dinheiro da renda - 150€ - e entregou-o ao arguido, que o guardou no bolso do colete que vestia.


20.  De seguida, o arguido colocou as mãos no pescoço da ofendida; não conseguiu apertar, porque a ofendida usou os braços para o afastar.


21.  O arguido, então, pegou num top de cor castanho e com ele tapou a boca e o nariz da falecida, pressionado.


22.  A BB ainda se debateu, face à força que o arguido empregava, e acabou por cair para trás no chão, caindo o arguido por cima de si, sempre a pressionar a peça de roupa contra a sua boca e nariz, asfixiando-a, até ela ficar sem vida.


23.  Com ela sem vida, no chão, o arguido pegou no corpo e colocou-o em cima da cama; primeiro pelo tronco e depois pelas pernas; ficando esta deitada em posição decúbito ventral; ligeiramente lateralizado à esquerda; tendo a cabeça levemente inclinada para o lado esquerdo. Deixou o braço esquerdo sob o corpo e a mão assente sobre uma almofada, à direita da cabeça. O braço direito ficou dobrado em rotação interna e ao longo do tronco.


24.  Após, o arguido revirou o quarto da BB à procura de dinheiro.


25.  O arguido tinha o seu salário penhorado e debatia-se com dificuldades económicas.


26.  Assim, o arguido pegou na carteira preta da falecida, virou o seu conteúdo em cima da cama, pegou no envelope branco, que continha no seu interior € 1.175,00 e o telemóvel da falecida e colocou-os no bolso do colete que trazia vestido.


27.  Deixou a carteira sobre as pernas da falecida, assim como diversas peças de roupa em que remexera.


28.  De seguida, pegou nos sacos com a roupa suja e nas chaves do quarto da falecida, que se encontravam na fechadura da parte de dentro da porta, e saiu do quarto fechando aporta à chave e levando consigo a chave dela.


29.  No dia seguinte, pelas 21h00, o arguido atirou o telemóvel e as chaves da ofendida para um depósito de lixo situado numa Praceta, entre a Rua …, Rua do … e Rua …, no ….


30.  Ainda pagou a renda da ofendida com o dinheiro que esta lhe entregara e a sua própria renda de € 325 mais os 70€, com o dinheiro que subtraíra à ofendida, tendo ainda feito compras no valor de €50,50 no Pingo Doce, que pagou com o dinheiro da ofendida.


31.  O remanescente do dinheiro retirado à ofendida (550€) foi encontrado no TO do arguido e 90€ na sua carteira, aquando da detenção ocorrida no dia 10 de Novembro de 2017.


32.  O arguido prosseguiu com a sua vida, normalmente, como se nada se tivesse passado e ainda teve a presença de espírito de mandar mensagem para a falecida, no dia 5 de Novembro, perguntando-lhe se as férias estavam a correr bem.


33.  A falecida ficou no interior do quarto, onde o arguido a deixara, desde o dia 30 de Outubro até ao dia 6 de Novembro de 2017, pelas 14h, altura em que um funcionário da empresa locadora abriu a porta (por ninguém ter respondido aos chamamentos), a pedido de vizinhos que se queixavam de cheiro nauseabundo.


34.  As autoridades policiais e sanitárias foram imediatamente chamadas e pelas 17h30m, o corpo foi removido, já em estado de decomposição.


35.  Sob a cabeça e pescoço da falecida encontrava-se o colar de missangas de vários tamanhos, partido em dois sítios diferentes e um brinco de esfera com o fecho separado e tinha colocado apenas um brinco semelhante na orelha esquerda.


36.  A morte de BB, foi provocada pela forte pressão que o arguido exerceu, através da peça de roupa colocada na boca e no nariz da ofendida, impedindo-a de respirar, até falecer.


37.  Faleceu, pois, por asfixia - relatório de autópsia de fls. 472 a 475, cujo teor se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.


38.  O arguido, ao colocar a peça de roupa sobre a boca e nariz da vítima e ao pressioná-la com toda a força, impedindo a respiração, até causar a morte, agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a BB, sua ex companheira, por não aceitar o novo relacionamento amoroso que a arguido» [devendo ler-se «vítima», por se tratar de evidente lapso de escrita] «mantinha com EE.


39.  O arguido actuou ainda com o propósito de integrar no seu património o dinheiro da falecida, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que actuava contra a vontade da sua legítima herdeira a mãe da vítima.


40.  O arguido AA actuou em todas as ocasiões de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei


41.  O arguido nasceu em … .10.1960.


42.  Do relatório social:


43.  O processo de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu no seu agregado familiar de origem, numa prole de 4, sendo o arguido o mais novo, cuja dinâmica familiar foi referenciada como disfuncional, associada aos episódios de violência doméstica perpetrados pelo seu progenitor.


44.  O processo educativo de AA apresentou significativas lacunas, nomeadamente aos níveis da consistência do investimento afectivo e da estruturação de regras de funcionamento, associadas ao carácter conturbado da dinâmica familiar, conjuntura que condicionou a assunção das respectivas responsabilidades parentais, nomeadamente ao nível da supervisão e gestão do quotidiano dos descendentes.


45.  AA abandonou o sistema de ensino pelos 18 anos de idade, concluindo o 10° ano do curso técnico profissional industrial de … e iniciou-se laboralmente nesta actividade.


46.  Pelos 20 anos de idade contraiu matrimónio, do qual possui três descendentes.


47.  Pelos 23 anos de idade, AA numa perspetiva de melhorar as suas condições laborais e económicas, passa a laborar na empresa HH, como …, tendo nessa altura sido colocado nos …, local onde passou a residir com o respetivo agregado familiar constituído.


48.  Decorridos cerca de 14 anos regressou ao continente, tendo o seu agregado permanecido nos … .


49.  Nos inícios do ano 2000 dá-se o rompimento do casamento.


50.  Desde dessa data AA não possui qualquer tipo de relação/contacto com as descendentes, demitindo-se totalmente das suas obrigações parentais.


51.  Alguns meses mais tarde, ainda no decorrer do ano 2000, após o rompimento do casamento, AA é colocado na Ilha …, através da empresa, tendo aí encetado nova relação afectiva, com a vítima nos autos, regressando passado alguns meses na companhia daquela ao continente.


52.  A relação descrita pelo arguido como conturbada, tendo ocorrido a ruptura em junho de 2015.


53.  Contudo, continuaram a residir na mesma habitação, situação que se alterou em março de 2016, altura em que a vítima abandonou a referida habitação, tendo arrendado um quarto na mesma artéria.


54.  Em 2017, após a restruturação da empresa HH, AA esteve desempregado cerca de 6 meses, altura em que se inicia laboralmente na empresa II, como …, atividade que manteve até à sua reclusão.


55.  À data dos factos constantes no presente processo, AA residia sozinho, na morada indicada nos autos, correspondente a uma habitação arrendada, de tipologia O, com adequadas condições de habitabilidade e conforto, inserida numa zona residencial de características urbanas, habitação que foi restituída ao senhorio após a actual reclusão.


56.  Não obstante viverem separados, AA e a vítima mantinham um relacionamento próximo, sendo no apartamento do arguido que a vítima tratava das roupas, lavava e secava, pelo facto desta se encontrar a residir num quarto na mesma artéria sem condições para tal.


57.  AA encontrava-se ativo laboralmente como …, na empresa II S.A., referindo que auferia o salário de 760€ mensais, usufruindo de uma situação económica estável, referindo contudo que se encontrava a amortizar uma divida, referente ao arrendamento da habitação, do período em que se encontrava desempregado, no valor de 70€ mensais, acrescidos de 325€ de arrendamento da habitação.


58.  Em meio livre, AA é apoiado pela sua irmã JJ residente no … .


59.  AA era conhecido pela rede vicinal onde vivia à data dos factos, que teve conhecimento da ocorrência subjacente aos presentes autos pela comunicação social, sendo caracterizado como um indivíduo calmo e educado.


60.  No meio social onde reside a irmã, morada de família dos falecidos pais, e onde o arguido também residiu, o mesmo é bastante conhecido e beneficia de uma imagem social positiva.


61.  AA encontra-se recluído pela primeira vez, deu entrada no Estabelecimento Prisional do … em 10.11.2017, na situação de preventivo, à ordem dos presentes autos.


62.  Em meio prisional, AA beneficia de visitas semanais da irmã JJ, possui um comportamento adequado com os normativos vigentes intramuros, encontra-se ativo laboralmente no setor … desde 17.04.2018.


63.  O arguido é acompanhado clinicamente nas especialidades de psicologia e psiquiatria, com toma de medicação.


64.  O arguido é primário.»


Âmbito e objecto do recurso


10. O recurso tem por objecto um acórdão proferido em recurso pelo tribunal da Relação que confirma o acórdão da 1.ª instância que aplica uma pena de 16 anos de prisão, admissível nos termos dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. f), a contrario, e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, cujo âmbito, que circunscreve os poderes de cognição deste Tribunal, se delimita pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I de 28.12.1995), os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).


Nos termos do disposto no artigo 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nos citados n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.


11. Como se vê do texto do acórdão recorrido, no presente recurso o recorrente repete, no seus precisos termos, ipsis verbis, as conclusões do recurso perante o tribunal da Relação. Limita-se a eliminar a «conclusão» V do recurso anterior – que se referia aos resultados apresentados nos relatórios de anatomia patológica forense, de perícia criminalística e de perícia científica e a um relatório policial – e a acrescentar a «conclusão» XVI – onde afirma que «não é o recorrente que tem de responder a estas questões… é a investigação que tem de demonstrar com a certeza necessária que o recorrente praticou os factos pelos quais vem acusado».


Entende-se, porém, não ser de rejeitar o recurso por falta de motivação, considerando-se esta como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância, na linha da orientação jurisprudencial dos acórdãos de 41.1.2017, Proc. 2039/14.0JAPRT.P1.S1 (relator Cons. Pires da Graça, em www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/06/criminal_ sumarios_2017 .pdf) e de 29.4.2015, Proc. 791/12.6GAALQ.L2.S1 (relator Cons. Raul Borges), e da demais jurisprudência nele citada (em www.dgsi.pt), retomando o que se deixou expresso na fundamentação dos acórdãos de 12.7.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, e de 09.05.2019, no Proc. 1079/17.1JAPRT.P1.S1 (em www.dgsi.pt).


O recurso será, por conseguinte, apreciado em função do que se mostrar relevante e legalmente admissível para reexame da matéria de direito, no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal quanto à decisão recorrida, que é o acórdão do Tribunal da Relação e não o acórdão de 1.ª instância.


12. Como tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal e na doutrina, os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa. Os recursos constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas, respectivamente, com o fundamento do recurso, com o objecto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, Castanheira Neves, «A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”», in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523ss). O que significa que, verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objecto do conhecimento do recurso se delimita pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso. Como se tem reafirmado [cfr., por todos, o acórdão de 16.12.2015 (Proc. 641/11.0JACBR.C1.S1, rel Cons. Raul Borges), em sumários de acórdãos, www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/ Criminal2015.pdf], o recurso constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objecto de decisão do tribunal de que se recorre (assim, acórdão de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt).


13. O regime de recursos ordinários (artigo 399.ºss do CPP) efectiva a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação de uma decisão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal (cfr. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516), reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas – segundo o qual «qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei» –, e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos, do Conselho da Europa – segundo o qual «qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei»).


Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição», isto é, de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (cfr., por todos, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014).


14. Garantido o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito, dispõem, assim, os sujeitos processuais de duas vias possíveis de exercer o direito ao recurso. Querendo impugnar a decisão em matéria de facto ou arguir os vícios da decisão em matéria de facto a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Supremo Tribunal – cfr., por todos, o acórdão de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, cit. supra, que aqui se segue) e em matéria de direito, devem estes usar a via de recurso para o tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada. Porém, limitando o recurso a matéria de direito (artigo 403.º do CPP), a lei impõe-lhes caminhos distintos, consoante a pena aplicada, que define o critério de competência dos tribunais superiores: se a pena não exceder 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se for superior a 5 anos, tal competência pertence ao Supremo Tribunal de Justiça [artigos 432.º, n.º 1, al. c), e 434.º do CPPà.


Em caso de recurso para o tribunal da Relação, é ainda possível o recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça (supra, 7), limitado, como se viu, a questões de direito (artigo 434.º do CPP). Esta possibilidade de um segundo grau de recurso, justificada pela gravidade das penas, releva, porém, da liberdade do legislador (como tem sublinhado o Tribunal Constitucional – cfr. nomeadamente, o acórdão 64/2006), não limitando, antes reforçando, com esta dimensão, o direito ao recurso garantido pela Constituição.


15. O conhecimento do recurso implica que, no âmbito da sua competência, este Tribunal aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido do recorrente, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso, com vista à boa decisão.


A limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede, porém, este Tribunal de, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, os quais devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito, na dimensão do conhecimento do mérito do recurso, como este Tribunal vem de há muito afirmando em jurisprudência constante (neste sentido, por todos, cfr. o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, relator Cons. Raul Borges, e abundante jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt). Trata-se, como se tem insistido, de vícios da decisão, de «lógica jurídica», de vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir dele, por si só ou em conjugação com as regras da experiência (assim, acórdão de 12-07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt), não de erros de julgamento da matéria de facto, nomeadamente de apreciação das provas, cujo conhecimento se encontra subtraído a este Tribunal.


16. O recorrente termina a sua motivação com um conjunto de afirmações que enumera em 77 artigos, que denomina de «conclusões». Embora, em rigor, pelo seu carácter argumentativo, não satisfaçam as exigências de «resumo das razões do pedido» (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), é possível delas deduzir as indicações previstas no artigo 412.º, n.ºs 2 a 5, do CPP.


Delas se extrai, em síntese, que o recorrente:


(a) Nas conclusões I a LV, dirige a sua crítica à fundamentação da decisão em matéria de facto, expressando a sua discordância quanto à apreciação da prova efectuada pelo tribunal da condenação e concluindo que «deveriam ter sido dados como não provados os seguintes factos: factos 6, 7, 8, 9, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 37, 38, 39, 40, dos factos provados» (conclusão LV).


(b) Nas conclusões LVI a LXX, manifesta a sua discordância quanto à qualificação jurídica dos factos provados, baseando a sua argumentação em dados relativos à prova, para afirmar que «não podemos concluir que o arguido tirou a vida à ofendida BB e que atuou com especial censurabilidade ou perversidade por não aceitar o novo relacionamento amoroso que a ex-companheira mantinha com EE» (conclusão LXX).


(c) Nas conclusões LXXI a LXXVII, manifesta a sua discordância quanto à medida da pena aplicada, afirmando em conclusão, que «atendendo à personalidade do arguido, entende, portanto, o recorrente que a pena concreta de 16 (dezasseis) anos é excessiva e desproporcional e no caso hipotético e académico de não ser absolvido, deveria ser-lhe aplicada a moldura penal mínima ou o mais próximo dessa moldura».


17. Como se vê do texto do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação conheceu de todas as questões suscitadas no recurso perante ele apresentado, de forma circunstanciadamente motivada, em rigoroso cumprimento das exigências de fundamentação decorrentes dos artigos 374.º, n.º 2, e 424.º, n.º 4, do CPP, cuja violação é susceptível de gerar causa de nulidade (artigo 379.º, n.º 1, do CPP), inexistente no presente caso.


Nada há, por conseguinte, a conhecer neste domínio, relativamente ao qual, acrescente-se, nada vem alegado pelo recorrente.


18. Conhecendo do recurso em matéria de facto, em detalhada, profunda e sólida fundamentação, em particular quanto à validade e eficácia da prova pericial e da prova resultante da reconstituição do facto, concluiu o acórdão recorrido pela improcedência do recurso, dizendo: «Assim mostrando-se que a decisão do tribunal recorrido, se mostra devidamente fundamentada, e está de acordo com uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, e se mostra que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção e não se mostra que tenha feito uso de prova proibida, não se pode criticar a opção que o tribunal a quo tomou, pelo que não deve ser alterada a matéria de facto e a decisão tomada no que a ela respeita».


As questões suscitadas a este propósito no presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça inscrevem-se, como se viu, na competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), que sobre elas se pronuncia em última instância, não sendo a decisão recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, que apenas conhece de direito (artigo 434.º do CPP).


Dispõe o artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível.


Impõe-se, assim, concluir pela rejeição do recurso nesta parte.


19. Nesta conformidade, há apenas que apreciar e decidir das questões de direito (artigo 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º do CPP) relacionadas com a qualificação do crime de homicídio e com a pena aplicada (artigo 399.º e 400.º, n.º 1, al. g), a contrario, do CPP). Sendo que, vista a decisão recorrida, não se revela qualquer dos vícios a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, de que este tribunal deva conhecer em vista da decisão de direito.


Quanto à qualificação do crime de homicídio


20. O arguido vem condenado como autor de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, por as instâncias terem concluído, perante a matéria de facto provada, que o arguido e a vítima tinham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Circunstância cuja verificação o arguido continua a questionar.


Dispõe este último preceito que: «2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau».


21. Apreciando esta questão, diz o acórdão do Tribunal da Relação:


«(…) alega que sendo o arguido casado, não existiu uma situação de união de facto com a falecida, por não poder estar casado e viver em união de facto. Cremos que sem razão, desde logo porque:


- A previsão da norma em causa, (n.º 2, al. b) não usa a expressão "união de facto", mas "relação análoga à dos cônjuges" sendo aquela definida pelo art.º 1.º da Lei 7/2001 de 11/5 (Lei de protecção das uniões de facto) como "a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de 2 anos ",


- Relação análoga à dos cônjuges, traduz-se numa denominada comummente comunhão de cama, mesa e habitação, e o facto de uma dessas pessoas ser casada, não impede que ela viva com outra pessoa em condições análogas à dos cônjuges (situação de facto), o que impede é que possa usufruir da protecção jurídica concedida às "uniões de facto" estabelecida pela própria lei 7/2001 (situação jurídica) sendo essa previsão na sequência da "relação de namoro" que constitui uma situação fáctica.


Em conclusão: A norma da (al. b) do n.º 2 do art.º 132.º CP, ao referir-se à "relação análoga à dos cônjuges" tem em vista uma situação de facto e não uma situação jurídica.


Ora resulta, a nosso ver, de modo inequívoco, que o tribunal ao expressar-se no n.º 2 dos factos provados que "Há cerca de 13 anos, o arguido e a BB instalaram-se no apartamento 12, tipo TO, sito no n. ° 406, na Rua …, …, vivendo em união de facto "tem em vista com aquela expressão" vivendo em união de facto" a vivência de ambos em comunhão de cama, mesa e habitação, ou seja numa relação análoga à dos cônjuges, em que o n.º l dos factos provados "l. No ano de 2000, o arguido AA iniciou um relacionamento amoroso com a vítima BB, natural da … e onde aquele à época trabalhava" traduz o início do seu relacionamento amoroso, e o n°3 dos factos provados a separação "3. A partir de meados do ano 2016, a BB deixou o dito TO e mudou-se, sozinha, para o quarto n.º 3 composto por um quarto muito pequeno e casa de banho, situado no piso-3, no n.º 363 da referida Rua …, …, que arrendou à mesma empresa que geria o TO".


Assim, cremos ser manifesto que vivendo o arguido e a vítima em união de facto durante 13 anos, se criou entre eles "uma comunhão de vida duradoura, com um mínimo de estabilidade, em muitíssimos aspectos análoga à dos cônjuges" nos dizeres do ac. STJ de 30/11/2011 citado pelo recorrente e acessível em www.dgsi.pt. sendo que a norma em apreço, é expressa na sua previsão que facto ocorra, quer exista no momento quer já tenha cessado essa relação de vida em comum: "o agente mantenha ou tenha mantido" pelo que quaisquer juízos sobre a cessação dessa relação, como não integrantes daquela previsão, vão contra a norma legal, mais a mais num caso em que, como o presente, separados, se continuavam a relacionar.


Improcede assim esta questão.


Alega ainda o recorrente que não ocorre a especial censurabilidade ou perversidade, por estar extinta a relação entre eles há mais de um ano e não ser verdade que "o relacionamento amoroso que a vitima tinha com EE constitui motivo sério para o arguido tirar a vida à BB" impugnando agora o n.º 38 dos factos provados, onde se diz que "agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a BB, sua ex companheira, por não aceitar o novo relacionamento amoroso que a arguido mantinha com EE".


Indica como prova a agenda do arguido, que refere dizer respeito a 2016, indica o depoimento de FF, por terem trabalhado na mesma empresa antes de Junho de 2017 em face da anotação na agenda, alegando que desde Nov/2016 sabia da relação entre ambos e não mera suspeita, e alega ainda que a relação que mantinham de proximidade era saudável.


Sem razão, pois da prova indicada, não resulta, nem impõe que não se possa dizer que o arguido não aceitava o novo relacionamento, nem o facto provado se resume a uma mera suspeita (mas a uma certeza) que o arguido, adquiriu vigiando a falecida (como se anota na agenda) e as fotos do telemóvel demonstram, nem essa proximidade relacional era saudável, o que (pese embora a lavagem da roupa), é demonstrado pelo facto de a relação ser conturbada (n.º 52 dos factos provados) a falecida (aceitando a lavagem de roupa, por dela necessitar face à ausência de condições do local onde vivia - n.°s 6 e 56 dos factos provados), não responder aos telefonemas e sms que o arguido lhe enviava (n.º8 dos factos provados), o que seria incompreensível numa relação normal, antes se revela de algum modo doentia e fixista por parte do arguido (conclusão a extrair dos n.ºs 9 e 12 dos factos provados, face a comportamento ali descrito) e pelo facto de fotografar a agenda da vitima (onde esta expressava sentimentos e estados de espirito), manifestando qualquer desprezo pelo dever de respeito pela privacidade íntima da falecida, e muito mais pela sua vida privada, frequentemente vigiada, por qualquer um daqueles meios.


Diz-se, na análise crítica da prova, no acórdão recorrido: "Mas de especial interesse probatório para a motivação do arguido pôr termo à vida da sua ex-companheira, foi a agenda de 2016 e um bloco de notas apreendidos na residência, onde o arguido registava episódios da vida e pensamentos, sendo evidente que mantinha por BB um amor, saudades da vítima e um grande desgosto por esta manter uma relação amorosa com o "patrão".


Assim de modo algum se pode considerar que o relacionamento era saudável, antes é revelador de uma personalidade suficientemente deformada, para não aceitar a separação e o novo relacionamento amoroso, e desse modo se mostra preenchida a cláusula geral expressa no n.º l do art.º 132.º CP de o crime haver sido cometido com especial censurabilidade - traduzida nas "circunstâncias causadoras da morte revelarem uma particular reprovabilidade, surgindo as mesmas com uma assinalável gravidade em virtude de traduzirem uma atitude do agente profundamente distanciada dos valores que são, de um modo comum, aceites na convivência em comunidade " ac. STJ de 5/9/2007 Oliveira Mendes, citado no acórdão recorrido, - em face da valoração feita pelo legislador em tal normativo.»


22. Como tem sido repetidamente afirmado na doutrina e na jurisprudência constante deste Tribunal, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente [assim, nomeadamente, o acórdão de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, cit., mencionando os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1 (Rosa Tching), de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1 (Santos Cabral), e de 18.10.2007, Proc. 07P2586 (Santos Carvalho), em www.dgsi.pt, bem como a jurisprudência e doutrina neles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008]. «Exige-se, pois, que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio», como se sublinhou no acórdão de 12.07.2018, cit.


23. A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade” (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se no acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, cit.), citando Teresa Serra (loc. cit., p. 63-65), como se recordou no acórdão de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, cit.):


«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente. Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».


24. E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmo acórdão de 12.07.2018):


«Refere Silva Dias (...) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...)


O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.


Nas palavras de Margarida Silva Pereira ["Os Homicídios" pág. 40] a caracterização do art. 132° do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso à analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. (...)


A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...)


O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação».


25. Está em causa a verificação da circunstância de qualificação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, segundo a qual «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente» «praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.»


Em particular, trata-se de avaliar se dos factos provados resulta que, como julgaram as instâncias, o arguido praticou o facto contra pessoa com quem mantinha ou tinha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.


26. A revisão do Código Penal de 2007 assumiu o propósito de incluir novas circunstâncias na enumeração do n.º 2 do artigo 132.º, nomeadamente a relação conjugal, presente ou passada, ou análoga, sem qualquer modificação de alcance ou de sentido da justificação da construção e definição do tipo qualificado de homicídio previsto neste preceito. Lê-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X (DAR II Série-A, n.º 10, de 18.10.2006, p. 4), que esteve na origem da Lei n.º 59/2007: «no âmbito dos crimes contra as pessoas, são acrescentadas novas circunstâncias ao homicídio qualificado. Assim, a relação conjugal (presente ou passada) ou análoga (incluindo entre pessoas do mesmo sexo), o ódio gerado pela cor, origem étnica ou nacional e pelo sexo ou orientação sexual da vítima, bem como a pertença desta a uma comunidade escolar passam a constar do elenco de circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. No entanto, a técnica utilizada na tipificação do crime mantém-se inalterada. As circunstâncias não são definidas de forma taxativa, correspondendo antes a exemplos padrão, e não são de funcionamento automático, estando sujeitas a uma apreciação em concreto».


Idêntica circunstância se incluiu no tipo de crime de violência doméstica (artigo 152.º): «No crime de violência doméstica é ampliado o âmbito subjectivo do crime, passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges», lê-se no mesmo local.


A criminalização destas condutas insere-se na linha das obrigações posteriormente impostas pela Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica (CETS n.º 210, Istambul, 11.05.2011), ratificada por Portugal (RAR n.º 4/2013, e DPR n.º 13/2013, de 21 de Janeiro), a qual define a «violência doméstica» como abrangendo «todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima». Os actos de violência física, que devem ser criminalizados, incluem os actos de que resulte a morte da vítima (artigo 35.º da Convenção), como se explicita no respectivo relatório explicativo (n.º 188). Na acepção da convenção, o conceito de violência doméstica abrange, assim, as situações que podem constituir os crimes de homicídio qualificado [artigo 132.º, n.º 2, por verificação da especial censurabilidade ou perversidade com base na al. b)] e de violência doméstica [artigo 152.º, n.º 1, al. b)].


27. Escreveu-se a este propósito no acórdão de 05.07.2012, Proc. 2663/10.0GBABF.S1 (Arménio Sottomayor), que agora se segue:


«A alínea b) constituiu um aditamento aos exemplos-padrão introduzido pela reforma do Código Penal de 2007. Até então “só quem tem com a vítima uma relação de parentesco na linha recta pode revelar uma superior energia criminosa por ter ultrapassado particulares contra-motivações éticas à decisão do homicídio” (Teresa Quintela de Brito, «O homicídio qualificado (art. 132º)», Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pág. 215-6). Não estando o conjugicídio contemplado na hipótese da al. a), o legislador mostrou-se “sensível ao problema criminal dos maus-tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente e coerente com a sua incriminação duma forma agravada” (Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II – Os Homicídios, pág. 102), deste modo satisfazendo “as pressões de alguns sectores da opinião pública e de certos grupos sociais, no sentido da especial censura do homicídio doloso perpetrado no quadro da chamada «violência doméstica» ”, como salienta Teresa Quintela de Brito, (op. cit., pág.179-180). Todavia, o legislador não se limitou a prever a agravação do homicídio cometido na pessoa do cônjuge, tendo-o alargado a relações familiares pretéritas e a relações familiares não parentais, ao incluir neste exemplo-padrão o ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.


O exemplo-padrão em causa tem um evidente paralelismo com o da al. a), acerca do qual escreveu Figueiredo Dias: “Não parece exacto (…) que nestes casos «não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima…». Exacto é, pelo contrário, que ainda nestas hipóteses se exige que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente» verificada) por aquele ter vencido «as contra-motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco” (Comentário, I, pág, 29).


Alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à do cônjuges, a especial censurabilidade ou perversidade resulta da “particular energia criminosa revelada na ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de relacionamento” (Teresa Quintela de Brito, op.cit., pág. 215-7). Conforme acentua Fernando Silva (Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 72 seg.): “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe, principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação mútuos. A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um casal que vive em comunhão afectiva. Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contramotivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge.”


Mesmo sem o vínculo formal do casamento, sempre que a mera relação de namoro evolui para uma relação análoga à dos cônjuges, numa vivência de comunhão afectiva potenciadora de uma maior desinibição, criam-se, entre os companheiros, deveres de cooperação, de respeito e de protecção, que se prolongam para além do fim da relação. Mas, como acentua Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, pág. 401) “essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado”».


Em sentido idêntico pode ver-se ainda o acórdão de 21.10.2009, Proc. 589/08.6PBVLG.S1 (Pires da Graça).


28. Como é conhecido, a qualificação, pela revisão de 2007, do crime de homicídio entre ex-cônjuges ou ex-companheiros não é isenta de crítica. Fundando a ratio da qualificação na violação do especial dever de solidariedade que deve conformar a relação conjugal ou análoga, Figueiredo Dias e Nuno Brandão (Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., 2012, pp. 59-60) consideram que «dificilmente poderá justificar-se a qualificação (…) pela mesma ordem de razões que motivam a atribuição de força qualificadora ao homicídio entre cônjuges», notando, no entanto, que «como nos parece, a previsão é supérflua, uma vez que os fenómenos tidos em mente pelo legislador, as mais das vezes determinados por motivações baixas e egoístas, poderiam ser objecto de qualificação em sede de outros exemplos-padrão já anteriormente previstos, como é o caso da morte por motivo torpe ou fútil». O que, a final, embora com fundamentos diferentes, acaba por se reconduzir à aceitação da qualificação do homicídio de ex-cônjuges ou de ex-companheiros por indiciação da especial censurabilidade ou perversidade.


29. Do conjunto dos factos provados extrai-se, com particular relevância para a qualificação, as circunstâncias de o arguido e a vítima terem vivido em união de facto, durante cerca de 13 anos; de, após a separação, mais de um ano antes da morte da vítima, manterem uma relação de solidariedade, confiança e apoio mútuo, com acesso, cada um deles, ao local de habitação do outro; de a vítima ter estabelecido uma relação amorosa com outro homem cerca de, pelo menos, seis meses antes da morte, não aceite pelo arguido, que, passando aceder à agenda (diário) da vítima, foi desenvolvendo sentimentos de «revolta e impaciência»; de este ter agido com intenção de matar «por não aceitar o novo relacionamento amoroso que a vítima mantinha com EE».


Dúvida, pois, não existe de que o arguido e a vítima viveram numa situação análoga à dos cônjuges, numa situação de comunhão de vida, durante mais de 13 anos; de que, por virtude dessa relação, se prolongou uma especial relação pessoal entre os dois e de que a morte da vítima resulta dessa vivência pessoal, em quebra brutal, por ciúme, de uma relação de solidariedade e entreajuda criada por uma longa relação de coabitação e mantida para além da cessação da coabitação.


Dados o sentido e alcance do alargamento do âmbito de protecção penal, por via do tipo de homicídio qualificado, à relação entre ex-companheiros, nos termos anteriormente expostos, deve, assim, concluir-se no sentido de que se mostra preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. E, não se encontrando, nas circunstâncias do caso, motivo que lhe retire o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida, deverá também concluir-se que se revela operativo este efeito de agravação da culpa, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito.


Assim, em concordância com o decidido no Tribunal da Relação, deve o recurso improceder nesta parte.


Quanto à medida da pena


30. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.


31. A determinação da medida da pena pelo tribunal da condenação mostra-se fundamentada nos seguintes termos:


«... para determinar a pena concreta recorre-se ao critério global previsto no n° 1 do art. 71° do Código Penal, o qual dispõe que "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Donde se extrai que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção - especial e geral positiva ou de integração -, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.


Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção, há que atender a "(...) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...)" (art. 71.º n.º 2, do Código Penal).


Passamos a determinar a pena de prisão, tendo em conta que:


O arguido agiu com dolo, que se apresenta na sua forma grave – dolo directo.


O grau de ilicitude do facto é também muito intenso, quer analisado pela perspectiva da acção, quer das consequências.


Quanto ao modo de execução temos que atentar que o arguido evidenciou, para além do mais completo desprezo pela vida humana e insensibilidade em relação ao outro, uma insensibilidade e indiferença pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana.


De facto, não nos podemos abstrair que o arguido, depois de ter imobilizado a sua companheira no chão, colocou-lhe uma peça de roupa nas vidas respiratórias e pressionou-a até que a vítima deixou definitivamente de respirar.


A energia criminosa necessária para alguém tirar a vida por esta forma a um seu semelhante é enorme pois há um contacto directo com a vítima, contacto esse que é persistente e duradouro, completamente diferente de alguém, por exemplo, disparar uma arma de fogo contra pessoa que se encontra a alguns metros de distância.


Também, ao longo de todo o julgamento, não evidenciou o arguido qualquer remorso ou arrependimento.


Em desfavor do arguido alinha-se ainda a sua personalidade, para além do mais, controladora e desconfiada.


A seu favor alinham-se a sua idade, quase 58 anos de idade, e a ausência de passado criminal, não sendo esta circunstância especialmente relevante por ser o comportamento esperado de qualquer cidadão.


Assim, reconhecido que é entre nós, actualmente, o primado do direito penal da culpa, de harmonia com o qual se há-de tomar em consideração, primordialmente, o maior ou menor juízo de censura sobre a personalidade do agente, de algum modo revelada no facto, não esquecendo as necessidades de prevenção, quer geral, que quanto a este tipo de crimes se revelam muito intensas, quer especial, pois "no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial" entende o tribunal como adequada a pena de 16 anos de prisão».


32. Em apreciação do recurso interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação, diz o acórdão recorrido:


«Ora visto o transcrito e o visado pelo arguido recorrente e tendo em conta que apenas podem ser valorados nesta sede os factos provados e não eventuais outros que o arguido pretenderia ver provados, sendo que a impugnação da matéria de facto apenas visa alterar o sentido dos factos provados ou não provados descritos na decisão, e não quaisquer outros dela não constantes vg porque fruto de uma ausência de prova ou da prova apresentada não ter convencido, da sua veracidade, o tribunal que a apreciou, é certo que na fundamentação da medida da pena e nas circunstancias a ponderar para a sua fixação (nos termos do art.º 71.º CP), não constam ali descritos a integração social e profissional, nem a sua situação económica e condição social ou o beneficiar do apoio familiar, nos termos em que resultam dos factos provados descritos no acórdão.


A omissão descritiva dessas circunstâncias será factor a valorizar na determinação da medida da pena no caso concreto?


Cremos que não.


Na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido tem de atender-se nos termos do art.º 71.º CP, à culpa do arguido - suporte axiológico de toda a pena, tendo presente que "A culpa é o pressuposto e fundamento da responsabilidade penal. A responsabilidade é a consequência ou efeito que recai sobre o culpado. (...) Sendo pressuposto e fundamento da responsabilidade deve ser também a sua medida, (...). O domínio do facto pelo agente é o domínio da sua vontade racional e livre, e é esta que constitui o substrato da culpa" - Prof. Cavaleiro Ferreira, Lições de Dto. Penal, I, págs. 184 e 185, sendo que o princípio da culpa é a "consequência da exigência incondicional da defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa" - Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 84, - e às exigências de prevenção, quer em termos gerais quer especiais, como anota a decisão recorrida, e tendo presente (e assim Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e sgt.s) que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer.


Ou como se expressa o STJ Ac. 17/4/2008 in www.dgsi.pt/istj "A norma do artigo 40° condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limite da pena mas não seu fundamento.


Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.


O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40.º determina, por isso, que os critérios do artigo 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.


O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.


O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime ", pág. 227 e segs.).


A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.


Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71°do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.


Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71.º n.º 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente. "


Assim tendo em conta estas indicações, e que no fundo o que resulta daquelas circunstâncias, não descritas e de certo modo favoráveis ao arguido, não traduzem mais do que aquilo que se espera de um qualquer cidadão em termos profissionais e sociais, com apoio familiar (n.º 58 dos factos provados: da irmã), ou seja um cidadão normal, apenas aqui com um senão (não gozar do apoio da sua família nuclear – n.ºs 46, 49 e 50 dos factos provados).


Por outro lado, o ali ponderar-se que "ao longo de todo o julgamento, não evidenciou o arguido qualquer remorso ou arrependimento" não traduz uma valorização negativa do seu direito ao silencio, como alega, mas antes a ausência de uma ponderação positiva, que o beneficiaria, se tais factos tivessem ocorrido, que se podem expressar inclusivamente antes do julgamento, por formas diferentes da fala ou da palavra, nomeadamente atitudes ou gestos de contrição.


Assim tendo em conta todos esses factores, e em especial que observa a medida da culpa do arguido (que agiu com dolo directo e ciente do facto) teve em conta as exigências de prevenção (geral, se calhar em menor conta do que devia, face ao sentir social que reclama uma maior prevenção com vista a uma diminuição dos factos ilícitos dessa natureza emergentes da cessação de relações sentimentais) que apesar da constante punição não se anota uma retracção na sua prática, e as exigências de prevenção especial, que não consiste apenas na averiguação da ausência de antecedentes criminais ou na sua idade, e inserção social e profissional, mas antes como se comportará para o futuro (servir a pena de suficiente advertência para não cometer novos crimes) pois o arguido que não prestou declarações, impediu o tribunal de valorar positivamente o que daí resultasse em seu beneficio de modo a que nos levasse a ponderar estarem plenamente satisfeitas as exigências de prevenção especial, pelo que tendo também em conta a moldura penal para o crime em apreciação de 12 a 25 anos de prisão e sua moldura média (18 anos e meio de prisão), cremos ser fácil constatar que uma pena inferior à aplicada e em especial a proposta no seu recurso, não cumpriria as exigências de prevenção, nem se adequaria à culpa do arguido, e poderia constituir antes um incentivo à delinquência.


Assim, afigura-se-nos justo manter a pena aplicada


33. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, o que deve constar da fundamentação (n.º 3).


Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao genericamente designado princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).


34. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada (finalidade de prevenção; no caso, a vida humana), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado. A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.


Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto – nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm a ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto (alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves), o comportamento anterior e posterior ao crime (alínea e), com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (alínea f)). O comportamento do agente (circunstâncias das alíneas e) e f)) adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, op. cit., pp. 232-357).


35. Em justificação da sua pretensão de ver reduzida a pena, repetindo o que alegou perante o Tribunal da Relação, invoca o arguido, em síntese: que o tribunal, ao dar como provado que «não evidenciou qualquer remorso ou arrependimento», valorou negativamente o seu direito ao silêncio, que exerceu, e que, tendo «considerado favoravelmente» o relatório social, depois o desvalorizou na determinação concreta da pena.


36. Tal como afirma o acórdão recorrido, o facto de o tribunal ter dado como provado que o arguido não evidenciou qualquer remorso ou arrependimento não comporta uma valoração negativa do seu direito ao silêncio. Significa apenas isso, uma não possibilidade de valoração positiva de um elemento, com relevância para o conhecimento da personalidade e para a culpa, que o tribunal teria de considerar na determinação concreta da pena (artigo 71.º do Código Penal), se tivesse ocorrido, o que se situa num âmbito distinto da relevância do direito ao silêncio para a decisão da questão da culpabilidade (cfr., a este propósito, o disposto nos artigos 368.º e 369.º do CPP, que tornam evidente a separação das questões da culpabilidade e da determinação da pena).


O direito ao silêncio constitui um direito fundamental do arguido, integrante da protecção contra a auto-incriminação e compreendido no núcleo essencial das garantias de defesa (artigos 32.º, n.º 1, da Constituição, 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e 61.º, n.º 1, al. d), e 343.º, n.º 1, do CPP), plenamente respeitado, sem que dele tenham sido extraídas consequências negativas para o recorrente.


37. As instâncias levaram em conta os elementos resultantes do relatório social, em particular a idade do arguido (58 anos) e as condições pessoais, nomeadamente a ausência de apoio familiar (na consideração dos factos indicados nos pontos 46, 49 e 50, embora se deva notar o apoio da sua irmã, como consta dos pontos 58 e 62 da matéria de facto), bem como o comportamento anterior ao crime (ausência de antecedentes criminais – ponto 64), não se identificando circunstância que, neste âmbito, tenha sido negativamente valorada na perspectiva das necessidades de prevenção especial.


Depondo intensamente contra o arguido, foram tidas em conta as circunstâncias relativas ao elevado grau de ilicitude, ao modo de execução do crime e à elevada intensidade do dolo na sua modalidade mais grave (dolo directo), documentados na determinação e persistência da sua conduta, no domínio e anulação da capacidade de resistência da vítima, neutralizada pela sua força física, causando-lhe a morte por asfixia, não considerando, neste âmbito, a violação do dever de respeito e solidariedade que se mantinha e se lhe impunha em resultado da relação pessoal, relevando, como se viu, como circunstância de qualificação do crime de homicídio.


De notar também que o arguido, que tinha o seu salário penhorado e se debatia com dificuldades económicas (ponto 25 da matéria de facto), actuou ainda com o propósito de integrar no seu património o dinheiro da falecida (ponto 39), que, após causar a morte da vítima, se apropriou do seu telemóvel, que lançou para um depósito de lixo conjuntamente com as chaves do apartamento em que esta se encontrava, que fechou, aí abandonando o corpo desta, que só veio a ser encontrado cerca de uma semana depois, por acção dos vizinhos que se queixavam do cheiro do cadáver em decomposição (factos 29, 33 e 34), e que, tendo prosseguido com a sua vida normal, como se nada se tivesse passado, «ainda teve presença de espírito de mandar mensagem para a falecida, no dia 5 de Novembro, perguntando-lhe se as férias estavam a correr bem» (facto 32), o que não pode deixar de ser valorado contra o arguido, ao nível da ilicitude, da intenção criminosa e das características de personalidade revelados e projectados na prática do crime.


38. Determinando-se a pena do crime de homicídio qualificado a partir da moldura definida pelo limite mínimo de 12 anos e máximo de 25 anos de prisão, correspondente ao tipo legal de crime da previsão do artigo 132.º do Código Penal, foi esta fixada em 16 anos de prisão.


Tendo em conta as circunstâncias anteriormente enumeradas depondo a favor e contra o arguido, na improcedência dos motivos por este alegados, não se encontram, no quadro descrito, motivos que, justificadamente, permitam fundar um juízo de divergência quanto à medida da pena aplicada, a qual não se afigura desproporcional à gravidade dos factos nem desadequada à realização das finalidades visadas pela sua aplicação.


Nesta conformidade, deve o recurso ser igualmente julgado improcedente nesta parte, mantendo-se as penas aplicadas.


Quanto a custas


39. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra decaimento total em qualquer recurso. 


A taxa de justiça, que é sempre individual, é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Nestes termos, em consideração da complexidade do recurso, considera-se adequada a condenação do recorrente em 6 UC.


III. Decisão


40. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:


a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo a decisão recorrida;


b) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 6 UC.





Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Outubro de 2019.





Lopes da Mota (Relator)


Conceição Gomes