Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1736/15.9TYLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: REMISSÃO ABDICATIVA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Data do Acordão: 07/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / MODALIDADES DA DECLARAÇÃO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO / REMISSÃO.
DIREITO DAS SOCIEDADES – ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO / DEVERES FUNDAMENTAIS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II Volume, 4.ª edição, p. 236;
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, p. 447 e 448;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 1968, p. 108.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, 218.º E 863.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 64.º.
Sumário :

I - O efeito extintivo da obrigação produzido pela remissão abdicativa pressupõe a intervenção dos dois titulares da relação creditória, sendo insuficiente a mera declaração por parte do credor.

II - A doutrina da impressão do destinatário reclama que se atendam a todas as circunstâncias relacionadas com os termos do negócio, às finalidades prosseguidas pelo declarante, às negociações prévias e às relações negociais anteriormente estabelecidas.

III - Emergindo do acordo celebrado que as partes quiseram colocar termo a uma situação insustentável para ambas e que, naturalmente, aquele foi precedido conversas e negociações complexas sobre os múltiplos aspectos nele regulados, a expressão “declarando ambas que nada mais têm a haver de M.. seja a que título for” deve ser interpretada como abarcando todas as situações futuras que não foram especificamente contempladas, como seja a responsabilidade do recorrido pelo cumprimento dos deveres de cuidado e de lealdade como administrador da recorrente.

Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 1736/12.9TYLSB.L1.S1

REVISTA EXCEPCIONAL

REL. 85[1]

                                                                       *

                      ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

“AA, Lda.”, com sede no ... - ... - ..., Lisboa, que incorporou, por fusão a sociedade “BB, S.A.”, intentou contra CC, residente na Rua ..., Torre … - …, em Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de 181.754,90 €, a título de indemnização por danos causados à sociedade BB, SA, enquanto seu administrador e accionista, por violação  dos deveres de cuidado e lealdade a que estava adstrito.

O Réu deduziu contestação, tendo oposto, em síntese e para o que ora interessa, o seguinte:

- Com a presente acção, a Autora faz tábua rasa do acordado no contrato celebrado em 27.04.2009, através do qual o Réu vendeu a participação de 49% que ainda detinha na BB, cuja cláusula 10ª, n.º 3, traduzida para a língua portuguesa, tem o seguinte sentido: “A ER, enquanto parte neste contrato e na qualidade de cessionária da posição contratual da DD no contrato inicial da compra de acções, e a BB, pelo presente libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for”;

Depois de realizado o julgamento, foi proferida a sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo o Réu do pedido.

           No essencial foi entendido que a cláusula 10ª, n.º 3 do acordo celebrado entre as partes, no dia 27.04.2009, constituía um contrato de remissão abdicativa que, sendo válido, era causa extintiva da obrigação de indemnização que a Autora pretendia ver reconhecida na presente acção.

           A Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas veria o seu recurso ser julgado improcedente, por decisão unânime.

           Ainda inconformada, interpôs recurso de revista excepcional, com fundamento na previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º do CPC.

           

            A Formação admitiu a revista excepcional, com base no disposto na alínea a) do citado artigo.

            As conclusões da revista da Autora são do seguinte teor:

(…)[2]

25.       (…) está em causa nos presente autos o teor literal da cláusula 10.3 do contrato celebrado entre as partes em 27 de Abril de 2009, aquando da saída do recorrido da BB, onde se lê: “A ER, enquanto parte neste contrato e na qualidade de cessionária da posição contratual da DD no contrato inicial da compra de acções, e a BB, pelo presente libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas as partes que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for”.

26.       O teor literal da cláusula transcrita não especifica se o mesmo abrange ou não a relação de administração que existiu entre a recorrente e o recorrido.

27.      O tribunal a quo considerou que: “A declaração em causa abrangeu, expressamente, todos os deveres e obrigações que subsistissem naquela data, qualquer que fosse o título que lhes deu causa”.

28.      Ora, com base na vaguidade da literalidade da cláusula transcrita, o tribunal a quo conclui sem mais que houve uma remissão abdicativa por parte da recorrente, determinante da liberação do recorrido de toda e qualquer responsabilidade futura, máxime da que é pedida na acção.

29.      Mais alicerça sua convicção no facto do contrato ter sido celebrado em data posterior ao conhecimento pela recorrente do conteúdo de um e-mail anónimo (alertando para o facto de existirem trabalhadores na BB que estavam a trabalhar na empresa no seu próprio interesse e proveito) aderindo e transcrevendo sem mais a fundamentação do recorrido.

30.       Não poderia ter havido qualquer remissão abdicativa, atentas as circunstâncias subjacentes à saída do recorrido da BB e às suspeitas de que já era alvo após recepção do mencionado e-mail.

31.      Contrariamente à interpretação pelo tribunal a quo da mencionada cláusula, não há, relativamente às obrigações cuja violação são a causa de pedir nesta acção, qualquer remissão abdicativa.

32.      Não destacando a lei quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação, deverão ser havidas como tal todas aquelas que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz teria efectivamente considerado. Entre elas, salienta Vaz Serra, “os termos do negócio, os interesses nele compreendidos, o seu mais razoável tratamento, o objectivo do declarante, as negociações preliminares e os usos” (RLJ, Ano 111º, p. 120).

33.      Atento o contexto em que foi celebrado o contrato e considerado o seu conteúdo, desde logo em termos de literalidade, o mesmo não tinha em vista renunciar em concreto aos eventuais futuros direitos que a recorrente teria por violação dos deveres de cuidado, zelo e lealdade, que sobre o recorrido impendiam, nos termos do artigo 64º do CSC.

34.      Ora, no caso vertente, não resulta do contrato subscrito pelas partes que tenha sido vontade da recorrente renunciar sem mais a um qualquer direito de que entenda ser titular, mas liquidar contas com o recorrido no contexto da cessação dos seus vínculos contratuais/comerciais – foi APENAS essa a vontade real do recorrente.

35.      A recorrente abdicou de direitos emergentes de vínculos laborais, mas não da eventual possibilidade de ser ressarcida por ‘má gestão’ por parte do recorrido na sua qualidade de administrador da BB.

36.      De uma relação jurídica complexa podem emergir diversas relações conexas, razão pela qual, não se deverá ‘generalizar’ in casu que a remissão é aplicável a todas elas, pondo assim em causa as expectativas dos contraentes, i.e., da recorrente, como erradamente faz o douto acórdão recorrido.

37.       Em face do referido e à luz da factualidade apurada, o tribunal a quo ao interpretar como remissão abdicativa a cláusula 10.3. frustrou as expectativas jurídicas (legítimas) da recorrente bem como o princípio da tutela da confiança.

38.      A recorrente não emitiu qualquer declaração de remissão abdicativa relativamente à renúncia do recorrido, enquanto administrador da BB, fê-lo expressamente, e em detalhe, no que toca a outros vínculos existentes (laboral, accionista, compra e venda),

39.       Se tivesse havido – como incorrectamente é considerado no douto acórdão recorrido –, as partes tê-lo-iam consignado de forma expressa, como fizeram com as restantes obrigações.

40.      Logo, não houve remissão abdicativa, nem faz sentido que houvesse, atentas as circunstâncias subjacentes à saída do recorrido da BB e aos resultados prejudiciais da sua conduta no que diz respeito aos rendimentos da empresa, o que tornou a recorrente a parte mais fraca da relação contratual, a qual não podia abdicar sem mais de todos os seus direitos.

41.       Nos termos do n.º 1 do artigo 72º do CSC, os administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres contratuais.

42.       Foi, pois, esse contexto particular de negociação, e face à longa antiguidade que ligava o recorrido à recorrente nas ditas funções de administrador e o seu ‘desleixo’ flagrante no desempenho das mesmas que nos permite concluir com segurança que a recorrente, face às circunstâncias em que se encontrava, do ambiente de desconfiança gerado em que se desenrolou o dito processo negocial, não podia nem aceitou prescindir dos eventuais direitos que tinha.

43.       A dita cláusula não pode prejudicar a recorrente ao ponto de ter de renunciar a vir futuramente interpor acção a reivindicar outros créditos que lhe são devidos por violação de deveres a que o recorrido estava adstrito enquanto administrador.

44.       A celebração do acordo teve apenas em vista uma perspectiva de pacificação e de finalização dos vínculos existentes – laboral, accionista, compra e venda – e foi quanto a estes que a recorrente emitiu uma real declaração de remissão abdicativa – apenas quanto a estes – já que, estes sim, foram expressamente plasmados.

45.       Entre os quais não se incluía a relação de administração.

46.       Por todo o exposto, e respeitando os fiéis limites da vontade real da recorrente e do circunstancialismo concreto, à luz do processo interpretativo que consagra a ‘teoria da impressão do destinatário’, acolhido no n.º 1 do artigo 236º do CC, leva a concluir que, relativamente às obrigações cuja violação é causa de pedir nos autos, não houve remissão por parte da recorrente.

47.       Não ocorrendo remissão abdicativa por parte da recorrente das obrigações do recorrido para com a BB, enquanto administrador desta, e tendo sido apurada uma grave violação dos deveres de vigilância e lealdade, determinante de prejuízos, o douto acórdão recorrido violou os artigos 9º, 236º, 863º, 483º, 562º, 564º e 566º do CC, 413º e 414º do CPC, 64º e 72º, n.º 1, do CSC.

48.       Razão pela qual deverá proceder o pedido da recorrente com as devidas consequências legais.

49.      Assim, deve o presente recurso ser admitido nos termos das alíneas a) e b), do n.º 1 do artigo 672º do CPC e, a final, julgado procedente, sendo em consequência alterada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente e em consequência ser o recorrido condenado a pagar à recorrente a importância de € 181.754,90.

O recorrido contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

                                                           *

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões, a única questão a apreciar é saber se, no acordo celebrado 27.04.2009, houve remissão abdicativa da Autora no que concerne à matéria em que esta fundamenta o pedido desta acção.


*


II. FUNDAMENTAÇÃO

Vêm provados das instâncias os seguintes factos:


1. A Autora incorporou por fusão a sociedade BB – Comunicação, SA, sucedendo-lhe nos respectivos direitos - cfr. doc. fls. 53-57, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2.        O Réu foi Presidente do Conselho de Administração da BB, ininterruptamente, desde 4 de Setembro de 2000 até 27 de Abril de 2009.

3.        Nessa altura, o Réu vendeu à accionista da Autora 49% do capital que possuía na BB – cfr. doc. fls. 58-72, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4.        O Réu era accionista único em 22 de Maio de 2000, altura em que vendeu 51% do capital da BB à sociedade DD, pertencente ao mesmo grupo internacional que a Autora, pelo preço, na altura, de 120.000.000$00.

5.        O preço de compra das ações do Réu na BB, em 2009, foi calculado segundo uma fórmula pré-determinada, que tinha em conta os resultados da sociedade nos últimos três anos, tendo recebido, a título de preço, a quantia de € 256.051,30.

6.         Enquanto foi Presidente do Conselho de Administração da BB, o Réu geriu a sociedade com grande autonomia, como estabelecido em “Acordo Parassocial” – cfr. doc. de fls. 73-77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7.         Em 14 de Novembro de 2008, o Réu enviou um e-mail aos seus colaboradores EE, FF, GG, HH e II, pedindo a cada um deles, os seguintes dados:

* Nome completo

* Número do bilhete de identidade

* Número de identificação fiscal

* Identificação do cônjuge

*Morada

cfr. doc. de fls. 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

8.         Os referidos elementos foram pedidos apenas aos futuros sócios da JJ, Lda., e não a outros trabalhadores da BB.

9.         Para além dos filhos do Réu, os restantes sócios da JJ, Lda., desempenhavam as seguintes funções de relevo na BB:

(i) EE - diretor criativo;

(ii) da HH, que controlava as contas dos clientes;

(iii) de II, empregado antigo da BB, muito ao par da respectiva actividade.

cfr. docs. de fls. 387-397, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10.      Os referidos trabalhadores da BB e sócios da JJ, Lda., conheciam todos os clientes da BB, os trabalhos que esta estava a desenvolver, os trabalhos que no passado tinha feito, as condições financeiras e preço dos serviços e ainda as pessoas, dentro de cada cliente, que se ocupavam dos temas de marketing e comunicação.

11.       Após a constituição da JJ, Lda., os sócios desta mantiveram-se a trabalhar para a BB.

12.      Em 15 de Dezembro de 2008, o Réu comunicou ao Sr. KK, administrador delegado da outra accionista da BB, a LL SGPS, SA, que iria abandonar a BB, exercendo o seu direito potestativo de venda das acções (put option) no final do exercício.

13.      Mediante apresentação 2/20081222 16:41:31 UTC é registada a constituição de sociedade JJ, Lda., NIPC ..., com o objeto “Exercício de actividade de publicidade, marketing, serviços, publicações e comunicação, com o capital social de 5 000,00€ distribuído pelos sócios nos seguintes termos:

- QUOTA 1.400,00€: GG;

- QUOTA 1.400,00€: FF;

- QUOTA 1.000,00€: EE;

- QUOTA 600,00€: II;

- QUOTA 600,00€: HH”

Cfr. doc. fls. 78-79, cujo teor se dá por integralmente reproduzidos.

14.      No dia 6 de Janeiro de 2009, o Réu envia um e-mail aos colaboradores MM (nome pelo qual na BB era conhecido EE), NN, OO e PP (nome pelo qual na BB era conhecida a HH), tendo como assunto "Ponto de situação de trabalhos em curso - Calendarização", com o seguinte teor:

"Para ver se há alguma moral e responsabilização nos trabalhos e nos compromissos que assumimos, preciso que me digam, hoje ainda sem falta, por favor, quando posso ver, antes de marcar reuniões com os clientes, os seguintes trabalhos:

- Quinta de ...(conceito, imagem, assinatura, aplicação em 2/3 exemplos / peças de comunicação)

- Directório ...

- Stand …

- Nova imagem Projecto

- Camara Municipal de ... (tudo o que pedi no mail anterior sobre este assunto)

- Newslwtter da ACAP

- Nova brochura da Imocom".

Cfr. doc. constante de fls. 108, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

15.       No mesmo dia envia aos mesmos colaboradores um e-mail com o mesmo assunto, dizendo:

OK, obrigado. Peço-vos que se alguma destas coisas não acontecerem, que me avisem com tempo para eu tomar medidas.

Entretanto fiz um plano de ações/trabalhos que podemos começar a trabalhar para .... Se se lembrarem de mais alguma coisa, favor acrescentarem ao seu plano."

Cfr. doc. de fls. 109, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

16.      Em anexo ao e-mail vinha em documento em word a especificação de um cronograma de acções/trabalhos, para a Câmara Municipal de ..., designadamente com os dizeres seguintes:

1 - Restyling da logomarca da C. M. ....

2 – Esposição Itinerentes “... …”

- Criar conceito, nome e imagem de exposição

- Fazer guião de filme de 5 minutos.

- Fazer um plano de manutenção da TENDA, equipamentos audiovisuais, limpeza, segurança (durante todos os períodos de exposição abertos ao público).

3 - Inauguração das Obras de Requalificação do Castelo de ..., pelo Sr. Presidente da República.

Cfr. doc. de fls. 110-111, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

17.      No dia 21 de Janeiro de 2009, o Réu escreve um e-mail aos seus colaboradores, entre os quais PP, MM e FF sob assunto: "trabalhos em curso e new business", onde comunica que:

"Estou muito preocupado com o atraso de alguns trabalhos, nomeadamente:

- Câmara Municipal de ..., que já devíamos ter o guião do filme, desenho da tenda, nome e logotipo para a exposição, painéis e outras soluções para expor no interior da tenda, convite, drop mail, etc, etc (... )

- Pergunto: Quando vamos pegar nisto? atendendo que ainda temos para fazer até ao final desta semana R&C …, Forum ..., ...".

Cfr. doc. de fls. 112, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

18.     O cliente Câmara Municipal de ... não foi facturado pela BB, ou pela AA Lisboa, onde esta sociedade posteriormente se incorporou.

19.       A Quinta de ...também não foi facturada pela BB, nem existia folha de cliente com descrição de trabalhos.

20.      A Camara Municipal de ... e a Quinta de ...constam como clientes no site da JJ, Lda., (www.JJ.pt) – cfr. docs. de fls. 114 e 119, certificadas por notário, cujo teor se dá por reproduzido.

21.      GG comunicou à BB, por escrito datado de 16 de Janeiro de 2009, a pretensão de rescindir o contrato de trabalho com a BB com a cessação de funções a partir a 16 de Marco de 2009 – cfr. doc. de fls. 120, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

22.      Por escrito datado de 13 de Fevereiro de 2009, em cumprimento do pré-aviso de 60 dias, FF denunciou o contrato laboral com a BB e acrescentou que gozava nesse período os dias de férias previstos por lei – cfr. doc de fls. 121, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

23.       Em 15 de Abril de 2009 foi remetido para o endereço eletrónico da Dr.ª QQ, que a BB recrutara para substituir o Réu e entrara a 3 Marco de 2009, um e-mail anónimo no qual se refere que faz muito tempo que CC planeia há muito tempo a abertura de uma nova agência com clientes actuais da BB, constituída por MM, HH, FF, RR, II e utilizam descaradamente as instalações BB e toda a sua equipa para fazerem trabalhos para a nova agência – cfr. doc. de fls. 415, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

24.      Confrontado com esta situação, o Réu nada referiu, nem deu conhecimento da existência da JJ, Lda..

25.      Em 20 de abril de 2009, após terem tomado conhecimento da existência do mencionado e-mail, os trabalhadores da BB II, HH e EE subscreveram e entregaram em mão escrito de denúncia de contrato de trabalho, no qual fazem referência que se consideram desvinculados a partir dessa data, como acordado verbalmente – cfr. docs. de fls. 122-124, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

26.      O Réu permaneceu ligado a BB até final do mês de Abril de 2009, e mesmo após a saída dos referidos trabalhadores nada informou quanto a JJ ou a manobras visando o desvio de clientes da BB.

27.       No contrato através do qual as Partes regularam nomeadamente a venda das acções do R. e a sua renúncia enquanto administrador ficou estabelecido:

 Cláusula 5ª (Renúncia)

5.1      Na data da execução, teve lugar uma assembleia geral extraordinária de accionistas, na qual CC e o membro do conselho de administração Sr. SS renunciaram aos seus cargos, com efeito imediato, por via de cartas dirigidas à BB, de acordo com o Anexo II.

5.2       Com o pagamento previsto na cláusula 2ª, CC pela presente e inequivocamente e sem reservas, renuncia e abandona todos e quaisquer direitos, que tenha, possa ter ou venha a ter, decorrentes da relação laboral e de qualquer contrato escrito ou verbal, nomeadamente quaisquer direitos decorrentes da sua posição como accionista, CEO ou membro do Conselho de administração da sociedade ou de qualquer outra sociedade do grupo no qual a BB está incluída".

Cláusula 10.ª - (Acordos revogados)

(….)

10.1    Com a assinatura do presente acordo, CC (o Apelado), considera integralmente revogados os seguintes acordos:

(i) acordo parassocial assinado com a DD relativo à gestão da BB;

(ii) contrato de trabalho com a BB;

(iii) contrato de compra e venda assinado com a DD relativo a 51% das acções do capital da BB;

(iv) qualquer outro contrato escrito ou verbal entre as partes ou qualquer outra sociedade do grupo DD.

10.2     CC declara que nada tem a reclamar, a qualquer título a DD ou BB, resultante da execução dos acordos supramencionados.

10.3     A ER, enquanto parte neste contrato e na qualidade de cessionária da posição contratual da DD no contrato inicial de compra e venda de acções, e a BB, pelo presente libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for.»

28.      À data estava em curso a elaboração das artes finais, nomeadamente para Câmara Municipal de ..., que não estavam no planeamento da empresa, como acontecia com todos os trabalhos em curso e era norma na BB.

29.       Após a saída do Réu e dos referidos trabalhadores da BB/sócios da JJ, passaram da BB para a JJ diversos clientes, entre eles: TT, ACAP, ..., Grupo UU, … Forum, Forum ..., Forum …, ..., EDP, VV e XX– cfr. docs. de fls. 113-119, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

30.      O Réu nunca se mostrou muito interessado em introduzir a referida nova/futura Directora Geral da BB junto dos clientes.

31.      Após a saída do Réu e dos trabalhadores mencionados, a BB começou a receber comunicações de clientes no sentido de cessarem a prestação de serviços que esta até ali vinha realizando – cfr. docs. de fls. 417,v-419, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

32.       Com a diminuição de serviço, a administração da BB promoveu, em Novembro de 2009, o despedimento colectivo dos seus trabalhadores, à excepção da Dr.ª ZZ, que tinha um contrato de mandato e foi indemnizada pela respetiva cessação – cfr. docs. de fls. 419v-436, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

33.       Incapaz de solver autonomamente os seus compromissos, a BB, no final do ano de 2009, fundiu-se, por incorporação, com o seu accionista único, a Euro AA Lisboa – cfr. docs. de fls. 125-130, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

34.       Os trabalhadores da BB, que entre si constituíram a JJ: GG, FF, EE, HH e II, em conjunto e pelas funções que exerciam na BB, conheciam:

a) todos os clientes da BB;

b) os métodos de trabalho da BB;

c) os segredos comerciais da BB;

d) os preços que a BB praticava nos serviços que prestava aos clientes;

e) os contratos que a BB tinha com cada um dos clientes.

35.       O Réu bem sabia que a constituição da JJ, Lda., representava o perigo de os clientes da BB se transferirem para aquela.

36.       Se a Autora tivesse sido alertada para a situação anteriormente, poderia ter reagido antecipadamente por forma a tentar obviar a saída dos clientes e facturação dos trabalhos em elaboração.

37.       O Réu omitiu conscientemente à Autora e aos restantes membros do Conselho de Administração a informação da existência da JJ, Lda., e de trabalhos em elaboração.

38.      A BB pagou em indemnizações no quadro do despedimento coletivo que promoveu, nos termos atrás referidos, a quantia de € 177.936,55

39.       O lucro, líquido de imposto, médio dos últimos três anos, da BB, antecedente à saída do Réu e à constituição da JJ, Lda., foi de € 132.817,00, com base nos seguintes valores:

2006: € 211.225,00

2007: € 133.997,00

2008: € 53.249,00

40.       Na perspetiva da saída do Réu, como Presidente do Conselho de Administração e responsável operacional da BB, foi contratada para o substituir a Dr.ª QQ.

41.       Tratava-se de um quadro categorizado do …, admitida com o intuito de desenvolver o negócio da BB.

42.      A Dr.ª ZZ celebrou com a BB um contrato de mandato, apropriado às funções que ia exercer, com uma cláusula indemnizatória, em caso de cessação antecipada.

43.      A BB gastou com vencimentos e indemnizações da Dr.ª ZZ o montante global de € 215.203,99, sendo a quantia de € 120.996,89€ no ano de 2009 e de € 94.207,10 no ano de 2010.

44.       A BB estava inserida num grupo multinacional de publicidade, o grupo DD, que, em Portugal, tem estado, nos últimos anos, sempre em lugar cimeiro nas empresas de publicidade, media e comunicação.

45.       No mercado da publicidade e comunicação empresarial existe uma intensa concorrência.

46.       O encerramento da BB foi conhecido de todo o mercado.

47.       Perante a saída do fundador e líder dos destinos da BB ao longo de 20 anos, e que era uma figura conhecida no mercado, foi anunciado à imprensa – sem que fosse dado conhecimento prévio aos visados, os Clientes da BB - que esta se passaria a chamar AAA e que estes seriam dispersados por duas outras sociedades do Grupo, a BBB e a CCC - cfr. docs. de fls. 210, 212 e 218, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

48.       Mais foi anunciado na imprensa que a agora denominada AAA ia passar a ser uma “agência de publicidade pura” abandonando o marketing relacional, área preferencial de actuação da BB e que se ia focalizar “em três ou quatro clientes” – cfr. doc. de fls. 220, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

49.       Para substituir o Réu na liderança da BB, a nova direção desta optou por uma pessoa mais jovem, pouco conhecida, vinda do departamento de marketing de um banco e sem experiência prévia naquele tipo de funções.

50.       Além dos fundadores da JJ, Lda., saíram da BB dois gestores de clientes, um membro da produção, outro da equipa criativa, bem como NN (Account Executive), DDD (Designer), e EEE (Designer), sendo estes para trabalharem, respetivamente, na EDP Renováveis, em Madrid, Agência FFF e Agência GGG.

51.       O mercado é livre e concorrencial e os investidores publicitários são disputadas periodicamente entre os diversos operadores no mercado.

52.      Os clientes não têm, normalmente, compromissos de permanência, trabalham simultaneamente com mais de uma agência e mudam frequentemente de agência.

53.      Alguns clientes da BB, em finais de 2008/início de 2009, deixaram de investir em publicidade ou passaram a trabalhar com outras agências ou com free lancers, nomeadamente: III, JJJ, KKK, LLL, MMM e NNN– cfr. docs. de fls. 250-261, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

54.       A XX e a ..., começaram a trabalhar com a JJ, meses depois de terem saído da BB.

55.       Em Setembro de 2009 a BB, já denominada AAA, participou em concursos/apresentações para a ‘…’ da VV e ... 2009’ EDP (ambos anteriores clientes da BB) os quais foram ganhos pela JJ, Lda..

56.      Em Fevereiro de 2010 a JJ ganhou em concurso – em que participaram também a AAA, a EURO AA e a OOO – mais um ex-cliente da BB, a PPP.

            Não ficou provado que:


a) Após a saída do Réu e dos trabalhadores que constituíram a JJ, Lda., a BB deixou praticamente de ter clientes.


b) Quando o Réu saiu, a BB não tinha nenhuma nova OT (ordem de trabalho), quando anteriormente tinha uma média mensal de 30/40.

c) A BB, perante a sangria sofrida, deixou de ter viabilidade ou possibilidades de sobreviver enquanto empresa.

d) A constituição da JJ, Lda., teve como propósito desviar os clientes da BB em seu proveito.

e) O Réu promoveu e dinamizou trabalhos da BB para clientes, bem sabendo que o proveito de tal atividade da BB seria colhido pela JJ, Lda..

f) A BB, teria todas as legítimas expectativas, com a sua carteira de clientes e o apoio do grupo media internacional em que estava enquadrada, a ter, nos dois exercícios seguintes, um nível de lucros idêntico ao dos três exercícios anteriores.

g) O conhecimento do encerramento da BB no mercado reflectiu-se negativamente na imagem da Autora, já que o mercado a entendeu como de um falhanço de natureza empresarial se tratasse.

h) A ... comunicou a sua decisão de deixar de trabalhar com a BB ainda em 2008, mais precisamente em 23 de Dezembro de 2008.

            O DIREITO

A remissão abdicativa encontra assento no artigo 863º do CC.

           Diz-se, no seu n.º 1, que o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor, acrescentando o n.º 2 que, quando tiver o carácter de liberalidade, a remissão por negócio entre vivos é havida como doação, na conformidade dos artigos 940º e seguintes.

           Conforme sublinha Antunes Varela[3], a remissão necessita de revestir a forma de contrato, quer se trate de remissão donativa, quer de remissão puramente abdicativa. Não basta, por conseguinte, a declaração abdicativa ou renunciativa do credor para extinguir a obrigação. Esse efeito só resulta do acordo entre os dois titulares da relação creditória. É importante dizer, no entanto, que a lei não exige que o consentimento do devedor seja manifestado por forma expressa, estando, portanto, sujeito às regras gerais dos artigo 217º e 218º do CC sobre declarações negociais[4].

           Esta figura, muito convocada no domínio dos conflitos laborais (como o atestam os vários acórdãos citados pela recorrente nas alegações da revista), não se presta a grandes controvérsias doutrinais ou jurisprudenciais quanto ao ser recorte, estruturação ou efeitos jurídicos. O que muitas vezes se constata (e a hipótese em causa é mais uma demonstração disso mesmo) é a maior ou menor dificuldade em interpretar como remissão abdicativa a declaração negocial inscrita em contratos com disposições ambíguas ou genéricas.

           No caso particular dos autos, a recorrente defende que não emitiu qualquer declaração de remissão abdicativa em toda a sua amplitude, fazendo-o apenas no que concerne aos vínculos laboral, accionista e de compra e venda – v. conclusão 3. e página 4 das alegações, a fls. 678. Sustenta, por isso, que nela não está incluída a relação de administração que existiu entre si e o Réu recorrido, especialmente prevista na cláusula 5ª.

           O que aqui se discute é saber se a cláusula 10.3 do acordo descrito no item 27. dos factos provados abrange, ou não, essa relação de administração. Se a resposta for negativa, ficará aberto caminho para a apreciação dos danos reclamados pela recorrente em consequência da alegada violação dos deveres de cuidado e lealdade do recorrido, enquanto administrador, nos termos do artigo 64º do CSC.

           A resposta a essa questão só será encontrada após trabalho de interpretação sobre o sentido das declarações negociais constantes do aludido acordo, com recurso obrigatório às regras gerais da interpretação dos negócios jurídicos. É aliás o que sucede, como se disse, na generalidade dos casos em que o julgador é chamado a perscrutar a vontade das partes nas declarações potencialmente integradoras da figura da remissão abdicativa, variando as soluções consoante a interpretação encontrada para cada caso concreto.

            Pois bem.

A nossa lei civil consagra, no n.º 1 do artigo 236º, a doutrina da impressão do destinatário, aí se definindo o tipo de sentido negocial decisivo para a interpretação, numa perspectiva objectivista: “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

           Por isso, como refere Mota Pinto[5], “releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer”.

           Para o bom desempenho da tarefa interpretativa, deve atender-se, nomeadamente, às circunstâncias relacionadas com os termos do negócio, aos interesses que nele estejam em jogo, à finalidade prosseguida pelo declarante, às negociações prévias e às precedentes relações negociais entre as partes.

            Vejamos, então, como tudo se desenrolou antes da formalização do acordo referido em 27.

            - O Réu era único accionista da BB, em 22.05.2000;

            - Nessa altura, vendeu 51% do capital da BB à sociedade DD;

            - Em 15.04.2009, foi remetido à BB um e-mail anónimo no qual se referia que o Réu planeava a abertura de uma nova agência com clientes actuais da BB, que seria constituída por MM, PP, FF (filho do Réu), GG (filho do Réu) e II;

           - Confrontado com esta situação, o Réu nada referiu, nem deu conhecimento da existência da sociedade “JJ. Lda.”, que havia sido constituída em 22.12.2008, tendo como sócios o GG, o FF, o MM, o II e a PP;

            - Todos eles denunciaram os contratos de trabalho com a BB, fazendo-o, respectivamente, em 16.01.2009, 13.02.2009 e 20.04.2009 (os três últimos);

            - O Réu permaneceu ligado à BB até ao final do mês de Abril de 2009, e mesmo após a saída dos referidos trabalhadores nada informou quanto à JJ ou a manobras visando o desvio de clientes da BB;

            - Em 27.04.2009, o Réu vendeu os restantes 49% da BB;

           - O Réu foi Presidente do Conselho de Administração desde 04.09.2000 a 27.04.2009.

O que desde logo ressuma destes factos é que, a partir dos meados de Abril de 2009, gerou-se um clima de desconfiança entre a BB, por um lado, e o Réu e cinco trabalhadores daquela, por outro, provocado pela informação de que ele, juntamente com esses trabalhadores, estaria a planear abrir uma nova agência que concorreria com a BB. A partir dessa informação, datada de 15.04.2009, os acontecimentos precipitaram-se. Assim, em 20.04.2009, três desses trabalhadores apresentaram cartas de denúncias dos contratos de trabalho (os outros dois já o haviam feito em 16.01.2009 e 13.02.2009) e, em 27.04.2009, o Réu subscreveu com a BB o acordo de que se fala em 27., através do qual procedeu à venda das acções que ainda detinha nessa sociedade, renunciando ainda ao cargo de administrador.

           As cláusulas que desse acordo se destacam, com pertinência para a questão a decidir, são as seguintes:

Cláusula 5ª (Renúncia)

5.1      Na data da execução, teve lugar uma assembleia geral extraordinária de accionistas, na qual CC e o membro do conselho de administração Sr. SS renunciaram aos seus cargos, com efeito imediato, por via de cartas dirigidas à BB, de acordo com o Anexo II.

5.2       Com o pagamento previsto na cláusula 2ª, CC pela presente e inequivocamente e sem reservas, renuncia e abandona todos e quaisquer direitos, que tenha, possa ter ou venha a ter, decorrentes da relação laboral e de qualquer contrato escrito ou verbal, nomeadamente quaisquer direitos decorrentes da sua posição como accionista, CEO ou membro do Conselho de administração da sociedade ou de qualquer outra sociedade do grupo no qual a BB está incluída".

Cláusula 10.ª - (Acordos revogados)

(….)

10.1    Com a assinatura do presente acordo, CC (o Apelado), considera integralmente revogados os seguintes acordos:

(i) acordo parassocial assinado com a DD relativo à gestão da BB;

(ii) contrato de trabalho com a BB;

(iii) contrato de compra e venda assinado com a DD relativo a 51% das acções do capital da BB;

(iv) qualquer outro contrato escrito ou verbal entre as partes ou qualquer outra sociedade do grupo DD.

10.2     CC declara que nada tem a reclamar, a qualquer título a DD ou BB, resultante da execução dos acordos supramencionados.

10.3     A ER, enquanto parte neste contrato e na qualidade de cessionária da posição contratual da DD no contrato inicial de compra e venda de acções, e a BB, pelo presente libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for.

           O primeiro comentário a fazer, face aos episódios que antecederam o referido acordo, é que não se concebe, na normalidade da vida das empresas e no modo avisado de estas procederem, que tivessem sido excluídos da negociação aspectos tão importantes como o que ora se discute. Não é crível que, no acordo em que o accionista, que foi Presidente do Conselho de Administração até essa altura, procede à venda das acções que ainda detinha e renuncia ao cargo de administrador, não se tivessem sido equacionadas pelas partes envolvidas todas as dimensões de um relacionamento que durou vários anos e que terminou com esse mesmo acordo.

Por isso, afigura-se-nos essencial que se tenha sobre o clausulado do acordo uma visão de conjunto, ou seja, uma visão não compartimentada em função de cada um dos aspectos regulados.

           O conjunto negocial constante do acordo celebrado, fruto dos acontecimentos que o precederam, surge com a nítida finalidade de pôr fim a uma situação que se tornava insustentável para ambas as partes. Dada a variedade dos aspectos a regular (desde a relação laboral até à venda de acções), é natural que tenham existido conversações e negociações preliminares mais ou menos complexas, correspondendo o texto final ao desejo de ambas as partes porem um ponto final no relacionamento que até aí vinham estabelecendo.

Por isso, o ‘saldar de contas’ definitivo entre as partes, nos aspectos não especificamente regulados, emerge com toda a exuberância nas declarações negociais do Réu (CC - CC) e da Autora.

Repare-se no que consta da cláusula 5.2., em que o Réu declara que renuncia e abandona todos e quaisquer direitos, que tenha, possa ter ou venha a ter, decorrentes da relação laboral e de qualquer contrato escrito ou verbal. Ou no contido no ponto iv) da cláusula 10.1, em que o mesmo Réu declara que considera integralmente revogado qualquer outro contrato escrito ou verbal entre as partes ou qualquer outra sociedade do grupo DD[6].

E repare-se no que consta da cláusula 10.3, em que a Autora e a BB, libertam CC de todos os deveres e obrigações entre eles subsistentes nesta data, declarando ambas que nada mais têm a haver de CC, seja a que título for[7].

As expressões sublinhadas, constituindo estipulações genéricas, destinam-se, na economia do contrato, a salvaguardar situações futuras não concretamente contempladas, de modo a ficarem preenchidos os espaços negociais em branco.

No que toca especificamente ao ponto 10.3, as expressões “libertam CC de todos os deveres e obrigações” e ”seja a que título for” colmatam a falta de previsão de aspectos não directamente regulados (designadamente no que respeita à actuação do Réu como administrador da Autora), correspondendo a uma declaração de renúncia da Autora em relação a outros possíveis créditos sobre o Réu, o que este aceitou.

Tem todo o sentido, neste contexto, a afirmação do recorrido de que, terminando a relação accionista/sociedade, razão de ser última de todos os contratos e relações entre as partes, estas quiseram também pôr fim definitivamente a todas as relações, obrigações e deveres entre si, sem distinção – cfr. página 18 das contra-alegações, a fls. 725.

Com efeito, qualquer declaratário normal, colocado na posição concreta do Réu, teria recebido a declaração da cláusula 10.3 com o sentido de que, futuramente, nada mais lhe seria exigido pela Autora, fosse a que título fosse.

Improcedem, assim, as conclusões da revista.

                                                           *


III. DECISÃO


Face ao que ficou exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                                                           *

Custas pela recorrente.

                                                           *


LISBOA, 4 de Julho de 2019

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Raimundo Queirós

           

__________________
[1] Relator:     Henrique Araújo
  Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                      Raimundo Queirós
[2] As conclusões 1. a 24. destinam-se a justificar a admissibilidade da revista excepcional, questão que já se mostra ultrapassada pelo acórdão da Formação.
[3] “Das Obrigações em Geral”, II Volume, 4ª edição, página 236.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume II, 1968, página 108.
[5] “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição, páginas 447/448.
[6] Nossos sublinhados.
[7] Nosso sublinhado.