Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
415/20.8SFLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ADELAIDE MAGALHÃES SEQUEIRA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
ERRO DE JULGAMENTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - O art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, admite recurso para este STJ de acórdão proferido em recurso pelo tribunal da Relação, que aplique pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, em caso de decisão absolutória em 1.ª instância. Estando-se perante um recurso de um acórdão condenatório proferido pelo tribunal da Relação que alterou uma decisão absolutória proferida em 1.ª instância e aplicou uma pena de 3 (três) anos de prisão efectiva, este STJ é competente para o conhecimento do recurso (art. 432.º, n.º 2, al. b), do CPP).
II - O tribunal recorrido procedeu a uma redução da matéria de facto constante da acusação que deu como provada, na sequência dos recursos interpostos pelo MP e pela assistente de decisão absolutória proferida em 1.ª instância, nos quais os mesmos procederam à impugnação da matéria de facto e condenou o arguido pelo mesmo crime pelo qual foi acusado e pronunciado, não tendo o acórdão recorrido incorrido na nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), aplicável, ex vi, art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP, por não ter dado oportunidade ao arguido para, querendo, solicitar prazo para apresentação da sua defesa, por não se verificar uma situação que determinasse o cumprimento do art. 358.º, n.º 1, do CPP.
III - O arguido utilizou o recurso para querer demonstrar a existência de um erro de julgamento cujo conhecimento está fora do alcance das competências deste STJ por estar impedido de avaliar se o juízo de análise probatória do tribunal da Relação foi correcto ou incorrecto, uma vez que o seu espaço cognitivo está reservado para o erro vício, no caso, o do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, que se verifica quando o julgador ao analisar o respectivo texto constata que a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal recorrido atenta, de forma notória e evidente, contra as regras da experiência comum, concluindo-se que nunca se poderia ter dado como provado determinado facto material, revelando-se essa decisão como ilógica e arbitrária, que evidencia um lapso manifesto, de tal modo patente, que é facilmente percepcionado pelo cidadão comum, e por isso, manifestamente insustentável, não podendo manter-se tal decisão por ferir o elementar sentido de justiça e inviabilizar a cabal aplicação do direito.
IV - Da leitura do acórdão recorrido e sem uma reanálise da prova nos pontos alegados pelos recorrentes, não se vislumbra que a respectiva fundamentação afronte as regras de experiência comum, nem que tenha sido proferida uma decisão ilógica e arbitrária, que evidencie um lapso manifesto, facilmente percepcionado pelo cidadão comum, e por isso, manifestamente insustentável, ferindo o elementar sentido de justiça e inviabilizando a cabal aplicação do direito. Ao invés, resulta da leitura do acórdão recorrido que o tribunal da Relação procedeu a um raciocínio lógico e coerente quanto a toda a matéria de facto que deu como provada, tendo explicado porque é que a partir da prova produzida, e em particular daquela que enunciou, tinha um entendimento diverso do decidido em 1.ª instância, não se verificando um qualquer erro que justifique o seu conhecimento.
V - O arguido invoca a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, referindo que, nem o tribunal em 1.ª instância, nem o tribunal da Relação, se pronunciaram relativamente a todo um rol de factos por si invocados em sede de contestação e que considera relevantes para a boa decisão da causa, dando-os por provados ou por não provados. Contudo, o arguido não respondeu aos recursos interpostos pelo Ministério Publico, e pela assistente para o tribunal da Relação, sendo esta a oportunidade processual que tinha para suscitar o invocado vício de omissão de pronúncia por parte do tribunal em 1.ª instância, porquanto não tinha legitimidade para interpor recurso da decisão absolutória proferida em 1.ª instância (art. 401.º, n.º 1, al. b), do CPP), não podendo agora alegar em sede de recurso para este STJ que o acórdão recorrido não conheceu de matéria por si invocada na contestação, por tal matéria ter já sido objecto de caso julgado.
VI - O acórdão recorrido atendeu às elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente ao crime de violência doméstica praticado pelo arguido, o qual se encontra inserido no CP, no capítulo dos crimes contra a integridade física, e cuja teleologia assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo as condutas que lesam esta dignidade, na vertente física e psíquica.
VII - O acórdão recorrido também atendeu e enunciou as elevadas necessidades de prevenção especial que se fazem sentir face ao elevado grau de culpa do arguido, não se retirando quaisquer circunstâncias que possam diminuir a ilicitude dos factos por si praticados ao longo do relacionamento que manteve com a assistente, face ao seu modo de execução, com recurso a violência física e psicológica e revelando uma acentuada desconsideração para com esta.
VIII - O arguido demanda elevadas necessidades de prevenção especial de ressocialização, já que agiu com plena consciência da ilicitude e censurabilidade da sua conduta, não confessou os factos, nem interiorizou a censurabilidade dos seus actos, já sofreu várias condenações pela prática de crimes estradais, de crimes de dano, de crime de profanação de cadáver e de crime de introdução em lugar vedado ao público, já foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica (decisão de 2014), e pela prática de crimes de ofensa à integridade física qualificada, de discriminação racial e detenção de arma proibida (decisão de 2011) e pela prática do crime de abuso sexual de crianças (em 2011), em penas de prisão que foram sempre suspensas na sua execução, mas que não surtiram qualquer efeito no sentido de o arredar da prática de crimes.
IX - A pena de 3 anos de prisão efectiva aplicada ao arguido pela prática de um crime de violência doméstica é justa e adequada e não afronta os princípios da necessidade, da proibição do excesso, e da proporcionalidade das penas, a que alude o art. 18.º, n.º 2, da CRP, nem ultrapassa a medida da sua culpa, revelando-se adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, sendo que a sua redução iria comprometer a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas.
X - O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão determina que a medida concreta da pena aplicada não possa ser superior a 5 anos. O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão determina que o tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão possam realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XI - No caso, mostra- se preenchido o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão, contudo entende-se, tal com o fez o acórdão recorrido, que o pressuposto material não se mostra preenchido, no sentido de considerar que a pena de substituição é adequada e suficiente para prevenir a reincidência, face à natureza dos factos praticados pelo arguido, às circunstâncias em que os mesmos foram cometidos, à personalidade neles revelada, à postura assumida perante os factos cometidos, e ao facto de já ter sofrido condenações em penas de prisão suspensas na sua execução não se podendo prever, fundamentadamente, que a ameaça de execução da pena de prisão a aplicar, seja suficiente para que este possa adequar a sua conduta de modo a respeitar o direito.
Decisão Texto Integral:


Proc. nº 415/20.8SFLSB.L1.S1
5ª Secção Criminal
Supremo Tribunal Justiça

Recurso Penal de Acórdão do Tribunal da Relação
(crime de violência doméstica; nulidade do acórdão; violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio da oralidade e da imediação; medida da pena)

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça:

I - RELATÓRIO

1. O arguido AA foi julgado no Proc. Comum Singular nº 415/20.8SFLSB, do Juízo Local Criminal de Almada - Juiz 1, da Comarca de Lisboa, e foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica p. p. pelo art. 152º, nº 1, al. b), e nº 4, e nº 5, do Cod. Penal, por decisão proferida em 18/06/2021:

2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão absolutória para o Tribunal da Relação de Lisboa no qual procedeu à impugnação da matéria de facto dada como provada, pugnando pela condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, pelo qual vinha acusado.


3. A assistente BB também interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa concluindo que a prova testemunhal e documental produzida em audiência de julgamento não permitia fundamentar uma decisão de absolvição do arguido com base no princípio in dúbio pro reo, que os critérios do art. 127º do Cod. Proc. Penal foram indevidamente aplicados, pugnando pela condenação do arguido no que diz respeito à matéria penal e à matéria cível.

4. Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo - cfr. despacho judicial de 26/07/2021.

5. O Ministério Público em 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pela assistente BB entendendo quem o mesmo merecia provimento.

6. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa aderiu à motivação de ambos os recursos apresentados.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão em 12/01/2022, que julgou parcialmente procedentes os recursos interpostos, alterou a matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida, e condenou o arguido na pena de 3 (três) anos de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art. 152°, n° 1, do Cod. Penal.[1]

8. O arguido AA interpôs recurso deste acórdão condenatório para o Supremo Tribunal, concluindo nos seguintes termos:
1ª) – No âmbito dos presentes autos, encerrada a fase de inquérito, veio a ser deduzida contra o arguido, acusação pública – que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais -, nos termos da qual lhes foi imputada, em coautoria e na forma consumada, a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 do Código Penal.
2ª) – Crime este do qual foi – e bem – absolvidos pelo Doutro Tribunal a quo.
3ª) Não se conformando com a absolvição do arguido recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, essencialmente, por um lado, não se encontrarem preenchidos nem os elementos objectivos do tipo de crime pelo qual fora absolvido.
4ª) – Nesta parte e nesta medida reconheceu o Tribunal da Relação de Lisboa inteira razão ao Recorrente – cfr. Fls... tendo, para tanto, alterado a matéria de facto dada como não provada (do ponto A9 a U) da sentença de primeira instância) para matéria de facto provada (com base na análise de um segmento de prova testemunhal) e, consequentemente, revogado a decisão e condenando o arguido a pena de prisão de 3 anos não suspendo a execução da mesma.
I – DA NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ART. 358º, Nº 1 DO CPP
5ª) –O Tribunal da Relação de Lisboa procedeu à ALTERAÇÃO DOS FACTOS CONSTANTES DA SENTENÇA DE PRIMEIRA INSTÂNCIA, fora das circunstâncias previstas no art. 431º do CPP.
6) - Toda a factualidade acima referida constitui uma novidade relativamente aquela dada como provada pelo Tribunal de Primeira Instância, é, toda ela, relevante para a boa decisão da causa – pois que, de outra forma, não a teria incluído o Tribunal a quo no rol dos factos provados – não resulta de factos alegados pela defesa e configura, indiscutivelmente, uma alteração não substancial aos factos constantes do acórdão de primeira instância.
7ª) – Como tal, deveria ter sido oportunamente comunicada aos arguidos, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 424º, nº 3 e 358º, nº 1 do CPP para que estes, querendo, solicitassem ao Tribunal prazo para, quanto à mesma (quanto às mesmas) solicitassem prazo para a apresentação da sua defesa.
8ª) – Não tendo procedido deste modo, violou o Tribunal a quo o disposto nas citadas normas legais e, com isso, incorreu na nulidade prevista no art. 379º, nº 1, alínea b), que aqui se deixa expressamente arguida nos termos do nº 2 do mesmo art. 379º, aplicável in casu ex vi do art. 425º, nº 4 do CPP.
Aliás
9ª) – As disposições conjugadas dos arts. 424º, nº 3, 358º, nº 1, 425º, nº 4 e 379º, nº 1, alínea b) e nº 2 do CPP conjugadas entre si e interpretadas e aplicadas no sentido de que, procedendo o Tribunal de Segunda Instância a uma alteração não substancial da factualidade dada por provada pelo Tribunal de Primeira Instância fora do circunstancialismo do art. 431º do mesmo diploma legal não tem de ser comunicada aos arguidos por forma a que estes, querendo, possam solicitar prazo para apresentar a sua defesa é materialmente inconstitucional, por violação, designadamente, do disposto no arts. 32º, nº 1 e nº 5 da CRP, ou seja, dos Princípios das Garantias de Defesa e do Contraditório.
II – DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA E DO PRINCÍPIO DA ORALIDADE E DA IMEDIAÇÃO
10ª) – Respaldado no recurso do Ministério Público procedeu o tribunal a quo a uma profunda alteração da matéria de facto, dando agora por provados factos que o Tribunal de Primeira Instância havia considerado por não provados, aditando à factualidade provada novos factos, não constantes da acusação ou da defesa dos arguidos, etc.
11ª) – E fá-lo apesar das doutas considerações vertidas nos pontos A) a U) da fundamentação do acórdão recorrido, que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais, designadamente no ponto 5.xi do acórdão recorrido onde vem dito que “ havendo duas (ou mais) possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei ( art. 127º e 374º, nº 2 do C.P.Penal ), inexistindo assim violação destes preceitos legais.
Sucede que
12ª) – Afirmando uma coisa, procede o Tribunal a quo em sentido diametralmente oposto, substituindo o seu juízo quanto à credibilidade de determinadas testemunhas ao juízo do Tribunal de Primeira Instância, no que se afigura uma flagrante violação do cerne dos Princípios da Livre Apreciação da Prova, da Oralidade e da Imediação, ínsitos aos arts. 127º e 355º do Código de Processo Penal.
Na verdade
13ª) – A alteração da matéria de facto a que procede o Tribunal a quo funda-se, essencialmente na credibilidade que este tribunal atribui a parte do depoimento da assistente isolando da mais prova e as contradições evidentes e notórias em tal depoimento.
14ª) – Testemunhas relativamente às quais o Tribunal de Primeira Instância, no exercício do Princípio da Livre Apreciação da Prova, não só não atribuiu – e bem – qualquer credibilidade como registou as contradições evidentes.
15ª) – Salvo o devido respeito por melhor opinião o Tribunal Superior não pode sindicar as convicções do Tribunal a quo, no que respeita ao extracto da oralidade que se contém na decisão, justamente porque lhe falta a necessária imediação.
O mesmo vale por dizer que
16ª) – Regra geral o Tribunal ad quem não pode sindicar a valoração das provas comuns, sobretudo as testemunhais, feitas pelo Tribunal, em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra.
De facto
17ª) – De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 6 de Dezembro de 2017, disponível para consulta in www.dgsi.pt “na tarefa de apreciação da prova é manifesta a diferença entre a 1ª Instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquele da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e pericial e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova (…) confere ao julgador em 1ª Instância meios de apreciação da prova pessoal que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1ª Instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum “– como in casu o faz, e bem, o Tribunal de Primeira Instância.
18ª) – Quer isto dizer que a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade (e nessa medida), o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Abril de 2004, disponível para consulta in www.dgsi.pt),
19ª) – O que, no caso dos autos, o Tribunal a quo não logra fazer, não demonstrando serem as decisões em matéria de facto do tribunal de primeira instância por si alteradas impossíveis ou desprovidas de razoabilidade, violando assim o Princípio da Livre Apreciação da Prova bem o Princípio da Oralidade e da Imediação, ínsitos aos arts. 127º e 355º do CPP e extravasando em muito a faculdade que lhe é atribuída pelo art. 431º do mesmo diploma legal.
20ª) – Termos em que se mostra o Tribunal a quo impedido de proceder à alteração da matéria de facto com base no depoimento das mencionadas testemunhas.
III – DA NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
21ª) – Estas e outras questões reportadas à matéria de facto teriam sido integral e devidamente esclarecidas caso o Tribunal a quo, reconhecendo a nulidade por omissão de pronúncia invocada pelo Recorrente no seu recurso do acórdão de primeira Instância, tivesse determinado o reenvio do processo para que a primeira instância, ou, entendendo ser esse o caso, tivesse dado a factualidade relativamente à qual se verificava (e verifica) tal omissão, por provada ou não provada.
22ª) – Não o tendo feito cometeu o Tribunal a quo, de novo – isto é, à semelhança do que já havia feito o Tribunal de Primeira Instância - uma nulidade por omissão de pronúncia, a qual expressamente aqui se deixa invocada, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 425º, nº 4, e 379º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2 do CPP.
Com efeito
23ª) – Tanto a doutrina como a jurisprudência são unânimes quanto à necessidade de fundamentação de qualquer sentença.
24ª) – A este propósito veja-se, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Dezembro de 2017, disponível para consulta in www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte:
- o art. 95, nº 5 do CPP prescreve, em relação aos actos decisórios em geral, que “são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito na decisão “
- o acto da sentença, nos termos do art. 374 do CPP exige uma fundamentação especial
- a exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático. Como refere Germano Marques da Silva, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos tendo em vista diversas finalidades. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio de obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina (curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Verbo, p 294
- a fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da colectividade, constituindo entendimento dominante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que o direito ao processo equitativo pressupõe a exigência de motivação das decisões judiciais (cfr. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, Coimbra Editora, p.137)
- de harmonia com o disposto no art. 374º, nº 2 do CPP, ao relatório da sentença segue-se a fundamentação, que consta da “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal “
- por sua vez, estabelece o art. 379º, nº 1, alínea a) do CPP que é nula a sentença que não tiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do referido artigo 374º
- a enumeração dos factos provados e não provados reporta-se, a nosso ver, a todos os factos submetidos à apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão deverá incidir, isto é, os constantes da acusação ou da pronúncia, do pedido de indemnização civil, da contestação penal e da contestação civil, quer sejam substanciais, quer circunstanciais ou instrumentais com relevo para a decisão. Acrescerá, sendo caso disso, o dever de se pronunciar quanto aos factos que resultem da discussão da causa, no respeito do princípio da vinculação temática e sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos.
Na verdade
25ª) – Como resulta das disposições conjugadas dos arts. 339º, nº 4, 368º, nº 2 e 374º, nº 2, todos do Código de Processo Penal, deve o tribunal “indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão “– cfr. Sérgio Poças, “ Da sentença Penal – Fundamentação de Facto “,in Revista Julgar, nº 3 – 2007. 26ª) - Termos em que, se factos há, com relevância para decisão, que
tenham sido alegados pelo(s) arguido(s) em sede de contestação e/ou que resultem da discussão da causa, deve o tribunal pronunciar-se expressamente sobre eles, enumerando-os ou em sede de factos provados ou em sede de factos não provados, isto independentemente de dar como não provados os factos da acusação.
27ª) – Tal obrigação de pronúncia – no sentido de os considerar por provados ou não provados - só cede perante factos inócuos, cuja irrelevância seja manifesta.
Sucede que
28ª) – Notificados para o efeito apresentaram os arguidos, a seu tempo, as suas contestações penal – as quais aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais – nas quais alegavam toda uma série de FACTOS – todos eles relevantes para a decisão da causa - em sua defesa.
29ª) – Tanto eram tais factos relevantes para a boa decisão da causa que o Tribunal de Primeira Instância, louvando-se em tal contestação, deu parte deles como provados, integrando-os no acórdão que veio a proferir.
Porém
30ª) – Relativamente a todo um outro rol de FACTOS alegados, em sua defesa, pelo arguido, ora Recorrente – e indiscutivelmente relevantes para a boa decisão da causa -não se pronunciou o Tribunal de Primeira Instância, não os dando nem por provados nem por não provados.
31ª) – Agindo desta forma incorreu aquele Tribunal na nulidade por insuficiente fundamentação e/ou omissão de pronúncia – a qual se deixou expressamente e para todos efeitos arguida em sede de recurso para o Tribunal da Relação, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas do art. 379º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2 do Código de Processo Penal.
32ª) – De igual forma incorreu agora o tribunal recorrido na mesma nulidade, ao não dar por provados factos alegados em sede de contestação ou decorrentes da discussão, manifestamente relevantes para a boa decisão da causa, factos estes reproduzidos em sede de fundamentação do recurso da primeira instância para a relação e elencados supra, em sede de fundamentação, nos pontos A9 a U) , que aqui se deixam expressamente reproduzidos, para todos os efeitos legais – nulidade esta que, de igual modo expressamente e para todos os efeitos aqui se deixa arguida, nos termos e ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos arts. 425º, nº 4, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2 do CPP, a qual só poderá ser reparada mediante o reenvio dos presentes autos para o Tribunal da Relação de Lisboa e deste para o Tribunal de Primeira Instância, por forma a que, aqui, se pronuncie expressamente sobre tal factualidade este tribunal, dando-a por provada ou não provada.
IV – DA MEDIDA CONCRETA DA PENA APLICADA AO ARGUIDO, ORA RECORRENTE
33ª) – As disposições conjugadas dos arts. 40º, nº 1 e 2 e 71º do Código Penal, interpretadas e aplicadas no sentido em que, tendo vários arguidos cometido o mesmo tipo de crime em co-autoria material, lhes possam ser aplicadas penas distintas, inexistindo qualquer circunstância, quer em termos de culpa, quer em termos de exigências de prevenção, geral ou especial, positiva ou negativa, que o justifique são materialmente inconstitucionais, porque violadoras do Princípio da Igualdade, ínsito ao art. 13º da CRP.
Sem conceder, com efeito
34ª) – No nosso ordenamento jurídico-penal as penas têm como finalidade a protecção de bens jurídicos e a reintegração dos agentes na sociedade, e, assim sendo, finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, essencialmente positiva (cfr. art. 71º, nº 1 do Código Penal).
35ª) - Têm, também, como limite inultrapassável, a culpa do agente (cfr. art. 40º, nº 1 e 2 do Código Penal), sendo o Princípio da Culpa um princípio que a doutrina e a jurisprudência constitucional fazem decorrer dos arts. 1º, 13º e 25º, nº 1 da CRP, na medida em que estes consagram o princípio da inviolabilidade da dignidade penal.
36ª) – E já que de princípios constitucionais falamos, em matéria de penas, não é demais lembrar o Princípio da Proporcionalidade das Sanções Penais, um outro princípio que a jurisprudência constitucional tem feito decorrer do art. 18º, nº 2 da CRP, e ainda o Princípio da Insusceptibilidade de Transmissão da Responsabilidade Penal, decorrendo este do art. 30º, nº 3 da CRP.
37ª) – É a prevenção geral preventiva que vai, assim, fornecer uma moldura penal, cujo limite máximo vai corresponder à medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e o limite mínimo ao ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico, mas A CULPA constituirá sempre o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas, fornecendo ao aplicador da lei o limite máximo da pena (cfr. art. 40º, nº 2 do Código Penal).
Acresce que
37ª) – Nos termos e ao abrigo do disposto no art. 71º, nº 2 do Código Penal, na determinação concreta da pena o tribunal deverá ainda atender a todas as circunstâncias – anteriores ou posteriores ao facto – que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias estas que, ostensivamente, o Tribunal a quo, pura e simplesmente, ignora.
38ª) – Termos em que, compulsando o acórdão recorrido –- não pode deixar de se concluir que, ao fixar em 9 (nove) anos de prisão a pena concreta aplicada ao arguido, ora Recorrente, viola o Tribunal a quo todos os supra citados princípios constitucionais e normas legais – a saber: o Princípio da Culpa, ínsito aos arts. 1º, 13º e 25º, nº 1 da CRP, o Princípio da Proporcionalidade da Pena, ínsito ao arts. 18º, nº 2 daquele diploma fundamental e ainda o Princípio da Insusceptibilidade de Transmissão da Responsabilidade Penal, decorrente do art. 30º, nº do mesmo diploma, bem como os arts. 71º, nº 1 e 2 e 40, nº 1 e 2, estes do Código Penal.
De resto
39ª) – Na determinação da medida concreta da pena aplicada aos arguidos alude o Tribunal a quo à existência de elevadas exigências de prevenção geral, na medida em que a conduta do arguido teve graves repercussões, reconhecendo, porém, serem diminutas as necessidades de prevenção especial.
40ª) – Termos em que, atento tudo quanto nesta peça processual se deixa alegado, a ser condenado pelo tipo de crime pelo qual foi, efectivamente – o que não se concede -, então sempre deveria o arguido, ora Recorrente, ter sido condenado numa pena o mais próximo possível do mínimo legal
Acresce que
41ª) – Atento tudo quanto se apurou nos autos relativamente às suas condições pessoais e conduta anterior e posterior ao facto, designadamente ao facto de o arguido ter a sua vida familiar estabilizada, organizada e sem reporte de quaisquer problemas, não é possível deixar de fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao arguido ora Recorrente, e pela conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – de onde dever tal pena concreta, aplicada ao arguido, sempre inferior a 5 anos de prisão, ser substituída, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 50º e ss do Código Penal, determinando-se a suspensão da sua execução, subordinada ou não ao cumprimento de deveres ou regras de conduta que o Tribunal ad quem entenda necessárias.
42ª) – Ao condenar o arguido, ora Recorrente numa pena de 3 (três) anos de prisão, violou o Tribunal a quo, pelas razões acima expostas todos os supra citados princípios constitucionais e normas legais – a saber: o Princípio da Culpa, ínsito aos arts. 1º, 13º e 25º, nº 1 da CRP, o Princípio da Proporcionalidade da Pena, ínsito ao arts. 18º, nº 2 daquele diploma fundamental e ainda o Princípio da Insusceptibilidade de Transmissão da Responsabilidade Penal, decorrente do art. 30º, nº do mesmo diploma, bem como os arts. 71º, nº 1 e 2 e 40, nº 1 e 2 e ainda o art. 50º e seguintes, estes do Código Penal.
Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso com as legais consequências, assim, se fazendo
JUSTIÇA!”

9. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso interposto pelo arguido AA considerando que o mesmo deverá ser julgado improcedente, concluindo que: (i) o acórdão recorrido fundamentou exaustivamente as razões porque reverteu a sentença proferida em 1ª Instância; (ii) quanto à matéria de facto as divergências no que concerne ao que foi dado como provado consubstancia uma questão de convicção do julgador que no caso não se mostra abalada por qualquer meio de prova apresentada que imponha decisão diversa, em cumprimento do disposto na al. b), do nº 3, do art. 412º, do Cod. Proc. Penal; (iii) não se vislumbra no texto decisório qualquer dos vícios a que se reporta o nº 2, do artigo 410º, deste preceito legal que possam ser conhecidos oficiosamente, nem se mostram violadas nenhumas das normas legais e constitucionais indicadas.

10. O Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer, nos termos do art. 416º, nº 1, do Cod. Proc. Penal, e pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, fazendo constar designadamente que:[2]
“(…) o Tribunal da Relação de Lisboa não incorreu em nulidade por inobservância do disposto no art.º 358º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pois não alterou a qualificação jurídica dos factos pelos quais o arguido fora, inicialmente, acusado. Reverteu a absolvição, é certo, mas condenou-o pelo crime previsto e punido pelo art.º 152º, n.º 1 do Código Penal imputado pelo Ministério Público, pelo que não havia quaisquer comunicações a fazer-lhe previamente.
De resto, o arguido teve conhecimento do teor dos recursos interpostos, pelo que poderia ter-lhes contraposto os argumentos que entendesse. Se, porventura, o não fez… sibi imputet!
Assim, a decisão recorrida parece ter cumprido todos os requisitos legalmente exigíveis, evidenciando capacidade de síntese e de concisão na descrição dos factos e sua qualificação jurídica, bem como na indicação dos meios de prova que serviram para fundamentar a convicção do Colectivo.
Na verdade, o Tribunal procedeu à audição da prova e chegou a conclusões diferentes da 1ª Instância.
Recorde-se, aliás, que, nos termos do disposto no art.º 127º do Código de Processo Penal –disposição que tem a sugestiva epígrafe Livre apreciação da prova –, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, in casu, os juízes que compunham o Colectivo.
Aqueles são assim livres – obviamente, com as condicionantes resultantes da necessária coerência da própria decisão, da conformidade desta com a prova produzida em julgamento e em obediência às regras normais da experiência – de apreciar e valorar a prova, dando credibilidade, ou não, ao que no decurso das sessões é dito por arguidos e testemunhas.
E foi, justamente, o que o Tribunal fez, decidindo de acordo com a percepção que teve da prova produzida em julgamento, sem qualquer insuficiência, erro, contradição ou outra nulidade, fazendo um correcto enquadramento jurídico-penal dos factos dados como assentes, fixados estes em conformidade com os depoimentos ouvidos e demais prova constante dos autos.
Cumpriu-se, pois, a imediação possível em tais circunstâncias. Sustentar o contrário seria impedir os Tribunais Superiores de sindicar as opções da 1ª Instância em matéria de facto (…)
E, quanto à medida da pena (…) parece-nos que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal.
Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes.
Em suma, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade do comportamento do arguido tinham, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o Tribunal recorrido conseguiu de forma justa e que respeita as finalidades visadas pela punição (…) dir-se-á que o douto acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica que correctamente fixou, pelo que o recurso deverá improceder.”

11. O arguido AA foi notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Cod. Proc. Penal, e nada disse.

12. Colhidos os vistos, e atendendo a que não foi requerida a realização de audiência, o processo foi presente à conferência para a emissão de decisão.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A. Da Matéria de Facto

A.1. Da matéria de facto fixada em 1ª Instância

O acórdão recorrido fez alusão à matéria de facto dada como provada e não provada na decisão absolutória proferida em 1ª Instância, bem como à respectiva fundamentação, nos seguintes termos que se transcrevem:
“Matéria de facto e respectiva fundamentação constantes da sentença recorrida”
"Discutida a causa e abstendo-se o Tribunal de se pronunciar sobre "factos" conclusivos, de natureza jurídica ou repetidos, apurou-se a seguinte factualidade:
1. O arguido AA e a ofendida BB mantiveram uma relação de namoro, com alguns períodos curtos de interrupção, pelo menos, desde o início do ano de 2018 até Abril de 2020.
2. Durante o relacionamento referido em 1), o arguido apelidou a assistente de "monga do caralho ".
3. Ao dirigir à assistente as expressões referidas em 2), o arguido agiu com a intenção de ofender a honra, consideração e dignidade da assistente, humilhando-a, o que conseguiu.
4. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5. O arguido foi consumidor de heroína e de cocaína.
6. No dia 21/4/2020, o arguido transportou a assistente até à esquadra da Polícia de Segurança Pública do ....
7. A acção do arguido descrita em 2) deixou a assistente desgostosa, triste, humilhada e perturbada.
8. O arguido tem antecedentes criminais:
a) Por decisão transitada em julgado em 5/11/2008, foi o arguido condenado pela prática, em 2004, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, um crime de discriminação racial ou religiosa e dois crimes de detenção de arma proibida, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa por cinco anos [extinta];
b) Por decisão transitada em julgado em 7/1/ 2019, foi o arguido condenado pela prática, em 12/1/2016, de um crime de desobediência, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5 €;
c) Por decisão transitada em julgado em 9/5/2011, foi o arguido condenado pela prática, em 2006, de um crime de abuso sexual de crianças, na pena de um ano e seis meses de prisão,
d) Por decisão transitada em julgado em 21/6/2011, foi o arguido condenado pela prática, em 7/5/2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 160 dias de multa [extinta];
e) Por decisão transitada em julgado em 14/9/2012, foi o arguido condenado pela prática, em 25/8/2007 e 25/9/2007, de dezassete crimes de dano simples, dezassete crimes de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre e de um crime de introdução em lugar vedado ao público, na pena única de quatro anos e nove meses de prisão, suspensa por igual período [extinta];
f) Por decisão transitada em julgado em 15/10/2014, foi o arguido condenado pela prática, em 5/3/2013, de um crime de violência doméstica, na pena de três anos de prisão, suspensa por igual período [extinta];
g) Por decisão transitada em julgado em 12/1/2016, foi o arguido condenado pela prática, em 21/2/2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5,50 € [extinta];
h) Por decisão transitada em julgado em 2/5/2016, foi o arguido condenado pela prática, em 10/3/2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de cinco meses de prisão, substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade [extinta];
i) Por decisão transitada em julgado em 7/2/2020, foi o arguido condenado pela prática, em 25/12/2019, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de três meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de 5,50 € [extinta].
9. O arguido integrou o agregado familiar do pai, com a madrasta, tendo esta falecido quando o arguido tinha quatro anos de idade.
10. O arguido concluiu o 6." ano de escolaridade, aos 14 anos, estando a frequentar um curso no Estabelecimento Prisional que lhe dará equivalência ao 9. ° ano de escolaridade.
11. Antes de ser detido, em 26/5/2020, à ordem dos presentes autos, o arguido vivia com a companheira, com afilha do casal, nascida em 2014 e com o pai da companheira, que depende do auxílio de terceiros em virtude de ter sofrido um A VC.
12. No Estabelecimento Prisional, beneficia de visitas dopai, da irmã, da companheira e de amigos.
13. No Estabelecimento Prisional trabalha nas limpezas.
14. Tem dois filhos de outro relacionamento, que moram com a mãe.
15. Até 26/5/2020, o arguido trabalhava no ramo de distribuição de publicidade, auferindo em média cerca de 400€ mensalmente.
16. A companheira do arguido encontra-se desempregada, auferindo cerca de 528€ a título de subsídio de desemprego.
17. O pai da companheira aufere cerca de 538€ a título de pensão por invalidez.
18. Afilha mais nova do arguido recebe 91€ a título de abono de família.
19. O agregado familiar do arguido reside em casa arrendada, cifrando-se o valor da renda em 360€.
2.1. Matéria de facto não provada:
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente não se provou que:
A. Na primeira ocasião, depois de confrontado pela ofendida por continuar a viver com a sua companheira e com a sua filha, o arguido discutiu com aquela, partiu-lhe um telemóvel e bateu-lhe em várias zonas do corpo com um bastão.
B. Desde então, a maioria das agressões físicas sofridas pela ofendida têm ocorrido no interior do veículo automóvel do arguido, consistindo, sobretudo, em estrangulamentos, socos e bofetadas, as quais, por mais do que uma vez, em datas não concretizadas, tiveram como consequência o deslocamento do maxilar da ofendida.
C. Em data não concretizada, o arguido, com as mãos, apertou o pescoço da ofendida, impedindo-a de respirar até a mesma desmaiar.
D. O arguido, frequentemente, intimida a ofendida com ameaças de morte, presencialmente ou através de mensagens de telemóvel, e com perguntas relativamente às quais lhe exige resposta imediata, independentemente do assunto, enquanto efectua uma contagem decrescente e mantém um braço esticado e o respectivo punho fechado junto ao corpo daquela, com a intenção de atingir fisicamente caso não obtenha uma resposta dentro do prazo por ele determinado.
E. Em data não concretizada, durante a relação, na residência do arguido sita na …, ..., o mesmo apontou uma caçadeira na direcção do corpo da ofendida, manifestando a intenção de a matar.
F. Em várias datas não concretizadas, na sequência de a ofendida ter revelado ao arguido a intenção de terminar a relação, este enviou-lhe fotografias em que aparece na posse de aparentes, armas de fogo
G. Durante o namoro, o arguido, frequentemente, tem dito à ofendida: "Mongolóide do caralho. Puta do caralho ".
H. Ao longo da relação, o arguido tem exigido à ofendida que lhe dê conhecimento das palavras-passe que ela utiliza para aceder ao seu telemóvel, ao seu correio electrónico e às redes sociais (facebook e Instagram), o que lhe tem sido, sempre, facultado, devido à certeza que aquela tem de que seria fisicamente agredida caso não fizesse.
I. O arguido, por várias vezes, alterou e apagou conteúdos das contas das redes sociais da ofendida.
J. Durante a relação, por várias vezes, o arguido adquiriu e consumiu heroína e cocaína na presença da ofendida, ignorando os pedidos da mesma para que não o fizesse, pois a mesma já fez vários tratamentos de desintoxicação a produto estupefaciente e o contacto com estes coloca-a numa situação de risco de regresso ao consumo.
K. No dia 20 de Abril de 2020, no interior de uma residência sita no ..., imóvel onde a ofendida se encontrava a trabalhar nas limpezas e o arguido a trabalhar nas mudanças, este atingiu-a na cabeça, na cara, nas costas e nos pés com várias peças de madeira e com vários tacos de golfe.
L. A seguir, o arguido estrangulou a ofendida com as mãos, impedindo-a, momentaneamente, de respirar.
M. Durante a madrugada do dia 21 de Abril de 2020, naquela residência, o arguido, propositadamente, pisou a cabeça da ofendida e impediu-a de voltar a dormir.
N. No mesmo período, o arguido queimou a mão esquerda da ofendida com um cigarro aceso.
O. A assistente acedeu ao descrito em 6) por ter receio de voltar a ser agredida fisicamente.
P. Esquadra ... da P.S.P., e, quando a ofendida se preparava para sair, o arguido apertou-lhe o pescoço com as mãos, puxou-lhe os cabelos e atingiu-a com um soco na boca.
Q. A ofendida conseguiu sair do veículo, no entanto, devido ao medo que sente do arguido, o qual se manteve no local a olhar para ela e a ligar-lhe para o telemóvel, não entrou naquela esquadra.
R. Como consequência directa e necessária das condutas do arguido nos dias 20 e 21 de Abril de 2020, a ofendida sofreu no crânio, uma equimose rosada com 3cm x lcm, localizada na região frontal à esquerda, e ligeiro edema na região temporal esquerda; na face, sofreu uma equimose rosada na região malar esquerda com 5cm x 3cm, equimose arroxeada com lcm x lcm na região mandibular à direita, equimose arroxeada com 0,2cm x 0,2cm na mucosa interna do lábio superior à esquerda; no pescoço, uma equimose arroxeada com lcm x lcm na face anterior esquerda do um terço médio do pescoço; no tórax, uma equimose arroxeada-rosada com 3cm x lcm na face anterior do ombro direito; no membro superior direito, uma equimose arroxeada-esverdeada com 3cm x 3cm na face posterior do um terço distai do antebraço e equimose arroxeada-esverdeada com 3cm x lcm na face dorsal da mão entre D2 e D3; no membro superior esquerdo, uma equimose arroxeada-esverdeada com 3cm x lcm na face posterior do um terço médio do antebraço, equimose arroxeada-esverdeada com 5cm x 3cm na face posterior do um terço distai do antebraço, flictenas de queimaduras com 0,2cm x 0,2cm localizadas na região dorsal, uma entre Dl e D2 e a outra entre D2 e D3; no membro inferior esquerdo, uma equimose arroxeada-esverdeada com 7cm x 5cm no dorso do pé, lesões que lhe causaram dez dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
S. Ao agir das formas acima descritas, o arguido AA, aproveitando-se da sua superioridade física, quis ofender o corpo e a saúde de BB, sua namorada, com o propósito conseguido de lhe causar fortes dores e lesões e de a subjugar à sua vontade.
T. O arguido AA, ao dirigir-se à ofendida BB, sua namorada, nos sobreditos termos e ao ameaçá-la das formas acima descritas, quis limitá-la na sua liberdade de movimentos, subjugá-la à sua vontade efazê-la temer pela sua integridade física e pela sua vida, com o propósito de lhe causar sofrimento emocional e de diminuí-la como pessoa, o que concretizou.
U. A conduta do arguido causou à assistente forte abalo psíquico pela vergonha, perturbação, desgosto, dissabores e tristeza por que passou”.

A.2. Da matéria de facto fixada em 2ª Instância

O Tribunal da Relação concluiu ter sido produzida prova testemunhal e documental que atesta que o arguido AA, ao longo do relacionamento que manteve com a assistente, a agrediu por diversas vezes, fazendo-o em concreto no dia 20 de Abril de 2020, tendo modificado a matéria de facto fixada em 1ª Instância, nos termos permitidos pelo art. 431° do Cod. Proc. Penal, eliminando dos factos não provados e levando à matéria de facto provada o seguinte[3]:
“Durante o relacionamento referido em 1), o arguido desferiu por diversas vezes pancadas, socos e bofetadas na cabeça, rosto e corpo;
No dia 20 de Abril de 2020, no interior de uma residência sita no ..., imóvel onde a ofendida se encontrava a trabalhar nas limpezas e o arguido a trabalhar nas mudanças, este atingiu-a na cabeça, na cara, nas costas e nos pés com várias peças de madeira e com vários tacos de golfe.
Nesse dia o arguido apertou o pescoço à ofendida com as mãos, impedindo-a, momentaneamente, de respirar.
No mesmo período, o arguido queimou a mão esquerda da ofendida com um cigarro aceso.
A ofendida não entrou na Esquadra ..., devido ao medo que sentiu do arguido, o qual se manteve no local a olhar.
Como consequência directa e necessária das condutas do arguido nos dias 20 e 21 de Abril de 2020, a ofendida sofreu no crânio, uma equimose rosada com 3cm x lcm, localizada na região frontal à esquerda, e ligeiro edema na região temporal esquerda; na face, sofreu uma equimose rosada na região malar esquerda com 5cm x Sem, equimose arroxeada com lem x lem na região mandibular à direita, equimose arroxeada com 0,2cm x 0,2cm na mucosa interna do lábio superior à esquerda; no pescoço, uma equimose arroxeada com lem x lem na face anterior esquerda do um terço médio do pescoço; no tórax, uma equimose arroxeada-rosada com Sem x lem na face anterior do ombro direito; no membro superior direito, uma equimose arroxeada-esverdeada com Sem x Sem na face posterior do um terço distai do antebraço e equimose arroxeada-esverdeada com Sem x lem na face dorsal da mão entre D2 e DS; no membro superior esquerdo, uma equimose arroxeada-esverdeada com Sem x lem na face posterior do um terço médio do antebraço, equimose arroxeada-esverdeada com 5cm x Sem na face posterior do um terço distai do antebraço, flictenas de queimaduras com 0,2cm x 0,2cm localizadas na região dorsal, uma entre Dl e D2 e a outra entre D2 e DS; no membro inferior esquerdo, uma equimose arroxeada-esverdeada com 7cm x 5cm no dorso do pé, lesões que lhe causaram dez dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
Ao agir das formas acima descritas, o arguido AA, aproveitando-se da sua superioridade física, quis ofender o corpo e a saúde de BB, com quem manteve relacionamento de namoro, com o propósito conseguido de lhe causar fortes dores e lesões e de a subjugar à sua vontade.
A conduta do arguido causou à assistente forte abalo psíquico, perturbação, desgosto, dissabores e tristeza.
Entende-se, ainda, de alterar o ponto 1 da matéria de facto provada, fazendo coincidir a data do termo do relacionamento entre o arguido e a ofendida, com o mês em que esta apresentou queixa contra aquele, Abril de 2020”.

A.3. Da fundamentação para a fixação da matéria de facto em 2ª Instância

O Tribunal da Relação considerou não merecer censura a demais factualidade dada como não provada em 1ª Instância, entendendo “(…) que na ausência de outros elementos de prova que possam corroborar as declarações da assistente, não é de acolher o relato feito por esta que, como referido pelo tribunal a quo, se apresentou por vezes inconsistente, particularmente se conjugado com o teor das mensagens juntas aos autos e com os depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, dos quais resulta ter sido a ofendida quem procurava e insistia em manter relacionamento com o arguido, como aconteceu no dia em que se dirigiu à residência onde este vivia com CC. Note-se que isso mesmo é de algum modo admitido pela própria ofendida que, entre o mais, referiu que "Ele não queria que eu estivesse perto da casa dele". Da análise das suas declarações e do teor das mensagens juntas aos autos e que admitiu serem da sua autoria, resulta que todo o seu ressentimento é mais centrado no facto do arguido ter continuado com a companheira e de a ter "'traído" com outras mulheres, do que no facto de ter sido agredida pelo arguido.
Não há prova suficiente de que tenha sido agredida com um bastão no dia em que se dirigiu à residência do arguido. Nenhuma prova existe de que tenha sido o arguido a proporcionar produto estupefaciente à assistente, sendo que ambos consumiam, nem de que lhe tenha apontado uma caçadeira, sendo que também não há prova de que detivesse outras armas.
Com as excepções referidas supra e pelos fundamentos expendidos na sentença recorrida em sede de motivação, entende-se não existir prova dos demais factos considerados como não provados”[4].

B. Do Direito

O objecto do recurso e os limites cognitivos deste Supremo Tribunal são delimitados pelas conclusões que os recorrentes extraem da respectiva motivação, nas quais os mesmos sintetizam as razões de discordância com o decidido e resumem o pedido por si formulado (art. 412º, nº 1, do Cod. Proc. Penal)[5], sem prejuízo da pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso.

O art. 434º, do Cod. Proc. Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 94/2021, de 21/12, refere que o recurso interposto para este Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas als. a) e c), do nº 1, do art. 432º do Cod. Proc. Penal, respeitante a recursos de decisões das relações proferidas em 1ª Instância e a recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, os quais, por força desta alteração legislativa, passam a ser admitidos para o STJ com os fundamentos previstos nos nº 2 e nº 3, do art. 410º do Cod. Proc. Penal[6].

E, face ao disposto no art. 400º, nº 1, al. e), na redacção também introduzida pela citada Lei nº 94/2021, de 21/12, é admissível recurso para este Supremo Tribunal de acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação que aplique pena não privativa da liberdade ou pena dc prisão não superior a 5 anos, em caso de decisão absolutória em 1ª Instância.

Posto isto, estando-se perante um recurso de um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação que alterou uma decisão absolutória proferida em 1ª Instância, e que aplicou uma pena de 3 (três) anos de prisão efectiva, este Supremo Tribunal é competente para o conhecimento do recurso (art. 432º, nº 2, al. b), do Cod. Proc. Penal).

Passando ao enquadramento do recurso do arguido apresentado pelo arguido AA, o mesmo coloca as seguintes questões, que se ordenam conforme as conclusões apresentadas, sintetizadas nos seguintes termos:
B.1. Nulidade do acórdão, por inobservância do art. 358º, nº 1, do Cod. Proc. Penal, por se ter procedido a uma alteração dos factos constantes na sentença proferida em 1ª Instância, fora das circunstâncias previstas no art. 431º do Cod. Proc. Penal e sem que tenha tido oportunidade para se pronunciar o que substancia a nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. b), do Cod. Proc. Penal, aplicável, ex vi, art. 425º, nº 4 igualmente do Cod. Proc. Penal;
B.2. Violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio da oralidade e da imediação;
B.3. Nulidade por omissão de pronúncia (arts. 425º, nº 4, e 379º, nº 1, als. a), e c), e nº 2, do Cod. Proc. Penal);
B.4. A medida da pena aplicada.

Apreciemos:

B.1. Da Nulidade do acórdão, por inobservância do art. 358º, nº 1, do Cod. Proc. Penal.

O arguido AA alega que o acórdão recorrido é nulo por ter procedido a uma alteração dos factos constantes na acusação, e na sentença proferida em 1ª Instância, fora das circunstâncias previstas no art. 431º do Cod. Proc. Penal, uma vez que não deu cumprimento ao disposto no art. 358º, nº 1 do Cod, Proc. penal

O art. 379º, nº 1, al. b), do Cod. Proc. Penal, refere que a sentença é nula quando tenha havido uma condenação por factos diversos dos descritos na acusação e no despacho de pronúncia, quando a este tenha havido lugar, fora dos casos e condições estabelecidas nos arts. 358º e 359º.

Por seu lado, o art. 358º do Cod. Proc. Penal, sob a epígrafe “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, refere que: 
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

Quanto à definição de alteração não substancial dos factos e à obrigatoriedade da sua comunicação ao arguido, de forma a assegurar as suas garantias de defesa, a doutrina e a jurisprudência têm considerado que:

Alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”[7]

“II - Constitui jurisprudência corrente deste STJ a orientação interpretativa dos arts. 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença melhor se concretizam os factos ali descritos, ou seja, quando os factos aditados se traduzem em meros factos concretizantes da actividade imputada sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa do arguido[8].

“XIII - “Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal. A alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa[9].

E, que, “XIV - Para ocorrer uma alteração dos factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. Não ocorre uma alteração dos factos quando o tribunal qualifique de maneira diversa, sem os modificar, os factos descritos na acusação”[10].

Temos por assente que a acusação do Ministério Público delimita o objecto do processo, mas não o objecto da discussão, conforme dispõe o nº 4, do art. 339º do Cod. Proc. Penal, que refere que:” Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º”

No caso, o Tribunal recorrido atendeu ao objecto do processo, tal como definido pela acusação[11], e procedeu a uma apreciação de toda a prova testemunhal e documental produzida tendo feito constar que, embora não se tratasse de matéria concretizada na acusação, a “(…) descrição feita por parte das testemunhas corroborava a versão da ofendida e constante da acusação de que ao longo do relacionamento mantido com o arguido o mesmo desferiu-lhe pancadas e socos em diversas partes do corpo e lhe apertou o pescoço com as mãos (…)”[12] (sublinhado nosso).

Desta forma, a multiplicidade de factos singulares relatados pelas testemunhas teve a sua relevância do ponto de vista jurídico-penal, uma vez que deu credibilidade ao depoimento da assistente BB, e permitiu ao Tribunal recorrido ajuizar do comportamento que o arguido AA manteve para com esta, desde o início de 2018 até ao mês de Abril de 2020.

Ora, da comparação do texto da acusação[13] com toda a factualidade dada como provada, dúvidas não restam que o acórdão recorrido procedeu a uma melhor concretização dos factos descritos na acusação não tendo procedido a uma alteração não substancial dos factos constantes desta peça processual.

Na verdade, entende-se que nem sequer houve uma outra maneira de encarar os factos constantes da acusação, uma vez que o acórdão recorrido atendeu aos factos aí descritos, à prova testemunhal e documental em concreto produzida, e ao respectivo enquadramento legal, e apreciou e decidiu com total independência (conforme art. 203º da Constituição da República), como se lhe impunha, na sequência dos recursos interpostos pelo Ministério Público em 1ª Instância, e pela assistente BB.

O arguido AA alega também que o acórdão recorrido incorreu na nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. b), aplicável, ex vi, art. 425º, nº 4, ambos do Cod. Proc. Penal, por não lhe ter sido oportunamente comunicada a oportunidade para, querendo, solicitar ao Tribunal prazo para apresentação da sua defesa quanto à alteração não substancial dos factos operada, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 424º, nº 3 e 358º, nº 1, do Cod. Proc. Penal.

Tendo presente que o Tribunal recorrido não procedeu a uma alteração dos factos constantes da acusação face a toda a matéria de facto que deu como provada, não havia lugar ao cumprimento do disposto no art. 358º, nº 1, do Cod. Proc. Penal.

Com efeito, só numa situação de alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia é que esta se poderá reflectir nas garantias de defesa, justificando-se assim o cumprimento o cumprimento do nº 1, do art. 358º do Cod. Proc. Penal. Na verdade, “(…) o que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio dom acusatório, sem quer haja tido a possibilidade de adequadamente se defender”[14]

No caso, para além do arguido AA ter tido conhecimento das alegações de recurso do Ministério Público e da assistente nos quais os mesmos procederam à impugnação da matéria de facto e ter tido aí a oportunidade de se pronunciar, o Tribunal da Relação a partir da prova produzida, e, em particular, da prova referida pelos recorrentes procedeu a uma interpretação diversa dos factos daquela que o fez o tribunal de 1ª Instância, e respondeu ao recurso da matéria de facto apresentado e aos concretos pontos elencados, já que considerou que o ónus de impugnação estava cumprido, viabilizado o recurso em matéria de facto.

E, uma vez que se considera que o arguido AA foi condenado pela mesmo crime pelo qual foi acusado e pronunciado, após se ter procedido a uma redução da matéria de facto constante da acusação pelo tribunal recorrido, na sequência de recurso devidamente interposto pelos recorrentes Ministério Público e assistente de uma decisão proferida em 1ª Instância nos quais os mesmos procederam à impugnação da matéria de facto, não havendo assim lugar ao cumprimento do citado art. 358º, nº 1, do Cod. Proc. Penal, o acórdão recorrido não incorreu na invocada nulidade prevista no art. 379º, nº 1, al. b), aplicável, ex vi, art. 425º, nº 4, ambos do Cod. Proc. Penal, por não lhe ter dado oportunidade para, querendo, solicitar prazo para apresentação da sua defesa.

Termos em que improcede nesta parte o recurso.

B.2. Da violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio da oralidade e da imediação.

O arguido AA alega que o Tribunal da Relação: (i) violou o princípio da livre apreciação da prova e o princípio da oralidade e da imediação (invocando para o efeito um Ac. do TRL de 06/12/2017); (ii) só poderia criticar a decisão proferia em 1ª Instância relativamente à fixação da matéria de facto demonstrando que a mesma era impossível ou desprovida de razoabilidade, face às regras da experiência comum, (invocando um Ac. do TRP de 21/04/2004), o que não conseguiu demonstrar; (iii) ao alterar a decisão proferida em 1ª Instância quanto à fixação da matéria de facto, extravasou em muito a faculdade que lhe é atribuída pelo art. 431º do Cod. Proc. Penal.

Ora, a discordância do arguido AA prende-se tão-somente quanto ao modo como o Tribunal da Relação valorou a prova produzida e como decidiu a matéria de facto, o que se traduz numa impugnação de matéria de facto apurada, e que se integra em objecto de recurso sobre a matéria de facto, não sendo este Supremo Tribunal o competente para a sua apreciação.
Com efeito, o arguido AA utilizou o recurso para demonstrar um erro de julgamento[15] cujo conhecimento está fora do alcance deste Supremo Tribunal já que está impedido de avaliar se o juízo de análise probatória do Tribunal da Relação está correcto, no sentido de ter feito uma análise da prova correcta ou incorrecta, uma vez que o seu espaço cognitivo está reservado para o erro vício, no caso, o do art. 410º, nº 2, al. c), do Cod. Proc. Penal.

Assim, este Supremo Tribunal só tem competência para analisar da eventual verificação de vícios previstos no art. 410º, nº 2, als. a), b), e c), do Cod. Proc. Penal, cognoscíveis a partir do texto da decisão recorrida, de forma a apurar se houve ou não insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, se houve contradição entre a fundamentação e a decisão, ou se houve erro notório na apreciação da prova, não tendo competência para analisar da eventual verificação de erros de julgamento que consubstanciam verdadeiros recursos em matéria de facto cuja competência cabe, em sede de recurso, em exclusivo ao Tribunal da Relação.

E, não tendo este Supremo Tribunal competência para avaliar se foi violado o princípio da livre apreciação da prova, bem como o princípio da oralidade e da imediação que o arguido AA alega sem, contudo, especificar em que termos tais princípios foram violados[16], resta apreciar se o acórdão recorrido enferma do vício previsto na al. c), do nº 2, do art. 410º, do Cod. Proc. Penal, que se verifica quando o julgador ao analisar o respectivo texto constata que a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal a quo atenta, de forma notória e evidente, contra as regras da experiência comum, concluindo-se que nunca se poderia ter dado como provado determinado facto material, revelando-se essa decisão como ilógica e arbitrária, que evidencia um lapso manifesto, de tal modo patente, que é facilmente percepcionado pelo cidadão comum, e por isso, manifestamente insustentável, não podendo manter-se tal decisão por ferir o elementar sentido de justiça e inviabilizar a cabal aplicação do direito.

O acórdão recorrido justificou a alteração da matéria de facto fixada em 1ª Instância da seguinte forma [17]:
“(…) quer o Ministério Público, quer a assistente impugnaram a decisão proferida sobre matéria de facto, manifestando-se no sentido de que todos os factos constantes da acusação deveriam ter sido dados como provados e, em consequência, deveria o arguido ter sido condenado pela prática do crime de violência doméstica que lhe é imputado. Defenderam, em síntese, que o tribunal a quo não valorou adequadamente e de acordo com as regras da experiência os depoimentos prestados pelas testemunhas da acusação, dando relevo apenas aos depoimentos das testemunhas de defesa e às declarações do arguido e, ainda, às mensagens constantes dos autos, desvalorizando de forma incompreensível as declarações da assistente. Daqui resulta que o que esta em causa é, na perspectiva dos recorrentes, uma "errada" apreciação e valoração da prova produzida em julgamento e não, como invocado pela assistente, a existência de "erro notório na apreciação da prova", vício previsto na alínea c) do n.° 2 do artigo 410° do Código de Processo Penal. Este, como os demais vícios decisórios previstos no n.° 2 do mesmo artigo 410°, devem resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem recurso a outros elementos processuais, o que não é o caso da sentença proferida pelo tribunal a quo, sendo que, como referido, também não é com esse sentido que vem invocado.
Os recorrentes consideram que a matéria de facto foi incorretamente julgada, entendendo existir prova de o arguido ter praticado os factos imputados e cumpriram com as exigências do artigo 412°, n.°s 3 e 4 do Código Processo Penal.
Após a audição de toda a prova gravada (artigo 412°, n.° 6 do Código de Processo Penal) e análise da prova documental junta aos autos reconhece-se assistir razão aos recorrentes no que respeita à necessidade de alterar a decisão da matéria de facto, dando como provados alguns dos factos que a sentença recorrida considerou como não provados.
Não obstante as incoerências e contradições apontadas à versão da assistente e que também se reconhecem, bem como a circunstância de nenhuma das testemunhas ter presenciado as agressões invocadas e, ainda, o facto da mesma nunca ter recorrido a tratamento médico ou hospitalar para tratar as lesões sofridas, afigura-se-nos existir prova segura de que o arguido molestou fisicamente a ofendida de forma reiterada e em particular, no dia anterior ao da apresentação da queixa que deu origem aos presentes autos. Vejamos.
As testemunhas FF e GG, respectivamente filho e mãe da ofendida e que afirmaram tê-la visto, por diversas vezes, com hematomas no corpo, no pescoço e no rosto compatíveis com as agressões descritas na acusação, afirmaram também não ter presenciado os factos e sobre eles saber apenas o que aquela lhes ia dizendo. Se em geral foi assim, ambas estas descreveram factos concretos, ocorridos junto à sua residência, referentes a HH[18] e que, estes sim, presenciaram. Afirmaram também que no dia em que ocorreram esses factos, a ofendida, manifestando preocupação com o bem estar do arguido, foi ter com ele, regressando "toda negra", com golpes na cabeça e com o casaco ensanguentado. Afirmaram ainda, tal como II[19], terem insistido com esta para que fosse ao Hospital o que a mesma recusou, ora invocando não pretender prejudicar o arguido, ora invocando receio de que este exercesse represálias sobre si e sobre os seus filhos. É certo que nesse dia também não presenciaram as agressões à ofendida não as podendo descrever. No entanto, não existe dúvida razoável do destino que a mesma tomou quando saiu de casa, tal como, no contexto, também não existe dúvida razoável do autor das lesões que apresentava. E, embora se trate de matéria não concretizada na acusação, a descrição feita por parte das testemunhas referidas, corrobora a versão da ofendida e constante da acusação, de que ao longo do relacionamento mantido com o arguido, o mesmo lhe desferiu pancadas e socos em diversas partes do corpo e lhe apertou o pescoço com as mãos.
Quanto aos factos de Abril de 2020.
As fotografias juntas aos autos e o exame médico a que foi submetida demonstram a existência e gravidade das lesões sofridas compatíveis com as agressões descritas pela ofendida. Entendeu o tribunal a quo inexistir prova segura de ter sido o arguido a provocar essas lesões. Ora, conforme referido pelo arguido e pela ofendida, no dia 20 e 21 de Abril de 2020 encontravam-se ambos na residência sita no ..., ela a trabalhar nas limpezas e ele a proceder a mudanças por conta da testemunha JJ. A circunstância desta testemunha não se ter apercebido das lesões não assume particular relevo uma vez que, mesmo considerando a versão do arguido, estas ocorreram no dia em causa. Na verdade, o próprio arguido fez referência a elas dizendo que a ofendida saiu para comprar produto estupefaciente e regressou apresentando aquelas lesões, o que nas circunstâncias não merece qualquer credibilidade. Mais uma vez, no contexto e atento o tipo de relacionamento tumultuoso existente entre ambos, não se nos oferecem dúvidas quanto a ter sido o arguido a molestar fisicamente a ofendida no dia em causa, nos moldes referidos por esta e descritos na acusação, encontrando-se as lesões documentadas em fotografias e descritas em exame médico.
O que também não mereceu qualquer credibilidade foi a versão do arguido de que os hematomas que a ofendida apresentava possam ter sido resultantes de agressões por parte da mãe, pessoa que no seu depoimento, além de doente e fragilizada, se mostrou preocupada e empenhada com a recuperação da filha”.

E, concluiu que, “(…) na ausência de outros elementos de prova que possam corroborar as declarações da assistente, não é de acolher o relato feito por esta que, como referido pelo tribunal a quo, se apresentou por vezes inconsistente, particularmente se conjugado com o teor das mensagens juntas aos autos e com os depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, dos quais resulta ter sido a ofendida quem procurava e insistia em manter relacionamento com o arguido, como aconteceu no dia em que se dirigiu à residência onde este vivia com CC. Note-se que isso mesmo é de algum modo admitido pela própria ofendida que, entre o mais, referiu que "Ele não queria que eu estivesse perto da casa dele". Da análise das suas declarações e do teor das mensagens juntas aos autos e que admitiu serem da sua autoria, resulta que todo o seu ressentimento é mais centrado no facto do arguido ter continuado com a companheira e de a ter "'traído" com outras mulheres, do que no facto de ter sido agredida pelo arguido.
Não há prova suficiente de que tenha sido agredida com um bastão no dia em que se dirigiu à residência do arguido. Nenhuma prova existe de que tenha sido o arguido a proporcionar produto estupefaciente à assistente, sendo que ambos consumiam, nem de que lhe tenha apontado uma caçadeira, sendo que também não há prova de que detivesse outras armas.
Com as excepções referidas supra e pelos fundamentos expendidos na sentença recorrida em sede de motivação, entende-se não existir prova dos demais factos considerados como não provados”[20].

Assim, através da leitura do acórdão recorrido e sem uma reanálise da prova nos pontos alegados pelos recorrentes, não se vislumbra que a fundamentação feita pelo colectivo de juízes desembargadores do Tribunal da Relação afronte as regras de experiência comum, nem que tenha proferido uma decisão ilógica e arbitrária, que evidencie um lapso manifesto, facilmente percepcionado pelo cidadão comum, e por isso, manifestamente insustentável, ferindo o elementar sentido de justiça e inviabilizando a cabal aplicação do direito.

Ao invés, entende-se que o colectivo de juízes desembargadores do Tribunal da Relação procedeu a um raciocínio lógico e coerente relativamente a toda a matéria de facto que deu como provada a qual foi alicerçada em prova que enunciou, não se verificando um qualquer erro que justifique o seu conhecimento, tendo explicado porque é que a partir da prova produzida, e em particular, daquela que enunciou, tinha um entendimento diverso do decidido em 1ª Instância.

Com efeito, o Tribunal da Relação esclareceu fundamentadamente porque atendeu aos argumentos dos recorrentes, esclarecendo a razão pela qual não acompanhou o raciocínio analítico da 1ª Instância, tendo ficado devidamente assegurado o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, uma vez que respondeu devidamente, em sede de recurso, aos concretos pontos de facto impugnados pelos recorrentes.

Concluindo, o Tribunal da Relação apreciou o recurso da matéria de facto apresentado pelos recorrentes e os concretos pontos aí elencados (após ter considerado que o ónus de impugnação foi cumprido estando assim viabilizada a apreciação requerida) e fundamentou, através das provas que indicou, que se impunha uma decisão distinta daquela que foi proferida em 1ª Instância, tendo esclarecido fundamentadamente porque é que tais provas deveriam ser atendíveis em face dos argumentos dos recorrentes, cumprindo o ónus que se lhe impunha na apreciação de um recurso sobre matéria de facto.

Termos em que improcede também nesta parte o recurso, na parte em que se entende, através da leitura do acórdão recorrido e sem uma reanálise da prova nos pontos alegados pelos recorrentes, que o Tribunal da Relação não proferiu uma decisão ilógica e arbitrária, e por isso, manifestamente insustentável, ferindo o elementar sentido de justiça e inviabilizando a cabal aplicação do direito.

B.3. Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia

O arguido AA invoca também a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, no que concerne a todo um rol de factos que o mesmo alegou em sua defesa em sede de contestação, e que considera “(…) indiscutivelmente relevantes para a boa decisão da causa (…)”, alegando que, nem o Tribunal em 1ª Instância, nem o Tribunal da Relação se pronunciaram sobre tais factos, dando-os por provados ou por não provados.

O arguido AA apresentou contestação, na qual de limitou a oferecer o merecimento dos autos, a requerer a inquirição de testemunhas que indicou e a juntar 50 documentos consubstanciados em múltiplas mensagens via telemóvel contendo várias fotografias e comentários sobre o seu relacionamento com a assistente, relativamente aos quais o mesmo teve possibilidade de se pronunciar em audiência de julgamento.

O arguido AA vem agora referir no ponto 29º das conclusões do recurso que: “(…)Tanto eram tais factos relevantes para a boa decisão da causa que o Tribunal de Primeira Instância, louvando-se em tal contestação, deu parte deles como provados, integrando-os no acórdão que veio a proferir (…)”, no ponto 30º que: “(…) Relativamente a todo um outro rol de FACTOS alegados, em sua defesa, pelo arguido, ora Recorrente – e indiscutivelmente relevantes para a boa decisão da causa -não se pronunciou o Tribunal de Primeira Instância, não os dando nem por provados nem por não provados (…)”, no ponto 31º que(…) – Agindo desta forma incorreu aquele Tribunal na nulidade por insuficiente fundamentação e/ou omissão de pronúncia – a qual se deixou expressamente e para todos efeitos arguida em sede de recurso para o Tribunal da Relação, nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas do art. 379º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2 do Código de Processo Penal (…)” e, no ponto 32º que  – “(…) De igual forma incorreu agora o tribunal recorrido na mesma nulidade, ao não dar por provados factos alegados em sede de contestação ou decorrentes da discussão, manifestamente relevantes para a boa decisão da causa, factos estes reproduzidos em sede de fundamentação do recurso da primeira instância para a relação e elencados supra, em sede de fundamentação, nos pontos A9 a U) , que aqui se deixam expressamente reproduzidos, para todos os efeitos legais – nulidade esta que, de igual modo expressamente e para todos os efeitos aqui se deixa arguida, nos termos e ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos arts. 425º, nº 4, 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2 do CPP, a qual só poderá ser reparada mediante o reenvio dos presentes autos para o Tribunal da Relação de Lisboa e deste para o Tribunal de Primeira Instância, por forma a que, aqui, se pronuncie expressamente sobre tal factualidade este tribunal, dando-a por provada ou não provada.

Ora, começaremos por sublinhar que o arguido AA não respondeu aos dois recursos interpostos para o Tribunal da Relação pelo Ministério Publico, e pela assistente BB, sendo esta a oportunidade processual que tinha para suscitar o invocado vício de omissão de pronúncia por parte do Tribunal em 1ª Instância por não se ter pronunciado sobre os factos por si alegados em sua defesa em sede de contestação, porquanto não tinha legitimidade para interpor recurso da decisão absolutória proferida em 1ª Instância (art. 401º, nº 1, al. b), do Cod. Proc. Penal).

E, uma vez que os recursos interpostos pelo recorrente Ministério Publico e pela assistente BB versavam sobre a apreciação da matéria de facto competia ao Tribunal da Relação (de acordo com o pedido por estes formulado), detectar e reparar os eventuais erros na apreciação da prova testemunhal e documental produzida, e eventualmente alterar a matéria de facto fixada, uma vez que este segundo julgamento tinha por objecto o que estava definido pelas conclusões apresentadas (nas quais os recorrentes seleccionaram e escolheram os pontos de facto que consideraram incorrectamente julgados através das provas produzidas), sem prejuízo, como é óbvio, do conhecimento oficioso da eventual existência dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do art. 410º do Cod. Proc. Penal[21], a cuja sanação deveria proceder (art. 426, nº 1, do Cod. Proc. Penal). [22]

Ora, o Tribunal da Relação apreciou todas as questões suscitadas pelos recorrentes relativamente à impugnação da matéria de facto fixada em 1ª Instância, tendo fundamentado, através das provas que indicou, que se impunha uma decisão distinta daquela que foi proferida em 1ª Instância, esclarecendo fundamentadamente porque é que tais provas deveriam ser atendíveis em face dos argumentos apresentados, cumprindo para além do mais, o ónus que se lhe impunha na apreciação de um recurso sobre matéria de facto, e não detectou nenhum vício na decisão recorrida que oficiosamente devesse conhecer.

Como já se disse, o arguido AA não respondeu aos recursos interpostos para o Tribunal da Relação pelo Ministério Publico, e pela assistente BB, sendo esta a oportunidade processual que tinha para suscitar o invocado vício de omissão de pronúncia por parte do Tribunal em 1ª Instância, pelo que não pode agora em sede de recurso para este Supremo Tribunal invocar que o acórdão recorrido não conheceu de matéria por si alegada em sua defesa em sede de contestação por tal matéria ter sido objecto de caso julgado.

Pelo que o recurso interposto pelo arguido também improcede nesta parte.

B.4. Da medida da pena

Passamos agora a apreciar da justeza da medida da pena de prisão aplicada que o arguido AA entende que deverá ser suspensa na sua execução.

Para a determinação da medida concreta da pena aplicada ao arguido AA, o acórdão recorrido fez constar que[23]:
O crime de violência doméstica, na sua forma "simples" é punido no n.° 1 do artigo 152.° do Código Penal, com pena de prisão de 1 a 5 anos.
"A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente em sociedade" e, em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40° do Código Penal) que é dizer que a medida da pena dependerá "dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção. "[24]
Nos termos do n.° 1 do artigo 71° a medida da pena a aplicar é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham contra e a favor do arguido, conforme disposto no n.° 2 do mesmo artigo que, nas suas diversas alíneas, apresenta um catálogo exemplificativo de factores a considerar. Por sua vez, o n.° 3 do artigo 71° do Código Penal prevê sejam expressamente referidos na sentença os fundamentos da medida da pena, o que vem reforçado no artigo 375° do Código de Processo Penal.
No caso em apreço, é elevado o grau de culpa do arguido, sendo igualmente elevado o grau de ilicitude dos factos, aferido, entre o mais, pela actuação reiterada, por um modo de execução diversificado - consubstanciador de violência psicológica e de violência física -, revelando uma acentuada desconsideração pela vítima e pelas regras de convivência em sociedade. Na verdade, além de dirigir àquela a expressão dada como provada, molestou fisicamente a ofendida ao longo do relacionamento que manteve com esta, com consequências relevantes, ainda que se considerem apenas as lesões sofridas a 20 de Abril de 2020.
São acentuadas as exigências de prevenção geral face ao aumento do número de casos[25] de violência doméstica e à forte reprovação social que lhe está associada, exigindo a comunidade a aplicação de penas dissuasoras de comportamentos violentos particularmente para com aqueles que estão mais próximos do agressor ou possam ser mais vulneráveis.
As exigências de prevenção especial são também elevadas, já que, além das condenações pela prática de crimes estradais, de crimes de dano, de profanação de cadáver e de introdução em lugar vedado ao público, o arguido foi já condenado pela prática do mesmo crime de violência doméstica (decisão de 2014), tendo sido também condenado pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, de discriminação racial e detenção de arma proibida (decisão de 2011) e, ainda, pela prática do crime de abuso sexual de crianças (em 2011), sendo que nestas situações as penas de prisão impostas foram sempre suspensas na sua execução.
No caso, tudo ponderado, afigura-se justa e adequada a aplicação ao arguido da pena de 3 (três) anos de prisão”.

O crime de violência doméstica é punido nos termos do art. 152º, n° 1, do Cod. Penal com pena de prisão de 1 a 5 anos.

A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do Cod. Penal).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo esta vista enquanto juízo de censura em face do desvalor da acção praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

Na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que, no caso, se façam sentir, incluindo-se tanto as exigências de prevenção geral como as exigências de prevenção especial.

E, enquanto as exigências de prevenção geral se cingem ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime e que deverão corresponder ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, as exigências de prevenção especial visam a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e dissuadi-lo da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), daí que a medida das necessidades da sua socialização deva ser, em princípio, o critério decisivo para efeito de medida da pena a aplicar.

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias[26], a propósito do critério da prevenção geral positiva, “A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penal”.

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o Prof. Figueiredo Dias que: “Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização[27] .

O arguido AA alega, na conclusão 38ª do recurso apresentado, que o tribunal recorrido lhe aplicou uma pena de 9 (nove) anos de prisão, tendo sido violados os princípios constitucionais da culpa (arts. 1º, 13º, e 25º, nº 1, da CRP), da proporcionalidade da pena, (art. 18º, nº 2, da CRP) e ainda da insusceptibilidade de transmissão da responsabilidade penal (art. 30º, da CRP), bem como os arts. 71º, nº 1, e nº 2, e 40, nº 1, e nº 2, do Cod. Penal.

Contudo, o acórdão recorrido aplicou ao arguido AA a pena de 3 (três) anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica p. p. pelo art. 152º, nº 1, do Cod. Penal, pelo que se entende existir aqui um lapso da sua parte ao ter feito constar que tinha sido condenado numa pena de 9 (nove) anos de prisão.

O arguido AA também alega que deveria ter sido condenado numa pena o mais próximo possível do mínimo legal, face às suas condições pessoais, à sua  conduta anterior e posterior aos factos, designadamente ter a sua vida familiar estabilizada, organizada e sem reporte de quaisquer problemas, sendo por isso possível fazer um juízo de prognose favorável e concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo a pena concreta que lhe foi aplicada ser substituída, determinando-se a suspensão da sua execução, subordinada ou não ao cumprimento de deveres ou regras de conduta que o Tribunal ad quem entenda necessárias nos termos e ao abrigo do disposto no art. 50º e segs. do Cod. Penal.

O arguido AA alega por fim que a sua condenação numa pena de 3 (três) anos de prisão viola os princípios constitucionais da culpa (arts. 1º, 13º e 25º, nº 1 da CRP), da proporcionalidade da pena (arts. 18º, nº 2, da CRP), e ainda da insusceptibilidade de transmissão da responsabilidade penal (art. 30º, da CRP), bem como os arts. 71º, nº 1, e nº 2, e 40º, nº 1, e nº 2, do Cod. Penal.

Porém, não lhe assiste qualquer razão.

Com efeito, o acórdão recorrido atendeu às elevadas necessidades de prevenção geral que se fazem sentir, referindo estar-se perante a prática de um crime que exige uma resposta institucional intensa e eficaz, sobretudo de carácter preventivo, não podendo deixar de ser altamente censurável a perpetração de crimes desta natureza.

Estamos perante a prática de um crime integrado no Código Penal, no capítulo dos crimes contra a integridade física, sendo que a teleologia do crime de violência doméstica assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo aquelas condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física como psíquica.

O acórdão recorrido também atendeu e enunciou as já elevadas necessidades de prevenção especial que se fazem sentir face: (i) ao elevado grau de culpa do arguido AA; (ii) ao elevado grau de ilicitude dos factos dos factos por si cometidos ao longo do relacionamento que manteve com a assistente BB desde o início do ano de 2018 até ao mês de Abril de 2020; (iii) ao modo de execução dos factos com recurso a violência física e psicológica e revelando uma acentuada desconsideração para com esta, e conclui não se retirarem quaisquer circunstâncias que possam diminuir a ilicitude dos factos por si praticados.

Na verdade, a natureza dos actos praticados pelo arguido AA na pessoa da assistente BB demanda já elevadas necessidades de prevenção especial de ressocialização, tendo o mesmo plena consciência da elevada ilicitude e censurabilidade da sua conduta.

Por outro lado, o arguido AA não confessou os factos, não interiorizou a censurabilidade dos seus actos, e já sofreu várias condenações pela prática de crimes estradais, de crimes de dano, de profanação de cadáver e de introdução em lugar vedado ao público, tendo também já sido condenado pela prática do mesmo crime de violência doméstica (decisão de 2014), e pela prática de crimes de ofensa à integridade física qualificada, de discriminação racial e detenção de arma proibida (decisão de 2011) e pela prática do crime de abuso sexual de crianças (em 2011), em penas de prisão que foram sempre suspensas na sua execução mas que não surtiram qualquer efeito no sentido de o arredar da prática de crimes.

Desta forma, entende-se que uma redução da medida da pena que lhe foi aplicada iria violar o critério de proporcionalidade que se impõe com vista à realização das finalidades que presidem à sua aplicação, comprometendo-se a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas.

Assim, ponderando tudo o que já foi dito, entende-se justa e adequada a condenação do arguido AA na pena parcelar de 3 anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica p. p. pelo art. 152º, nº 1, do Cod. Penal, a qual não afronta nenhum princípio constitucional, designadamente os princípios da necessidade, da proibição do excesso, e da proporcionalidade das penas, a que alude o art. 18º, nº 2, da CRP, nem ultrapassa a medida da sua culpa, revelando-se adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico.

Caberá por último apurar se se verificam os pressupostos da suspensão da execução da pena aplicada ao arguido AA.

Relativamente a esta questão o acórdão recorrido fez constar que:
“A execução de uma pena de prisão não superior a cinco anos é suspensa “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste " o tribunal concluir "que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam deforma adequada e suficiente as finalidades da punição. " (artigo 50° do Código Penal).
A suspensão da execução da prisão supõe, em primeiro lugar, que não se coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e as expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime. Supõe, ainda, que um juízo relativo à personalidade do agente que permita concluir que a censura do facto e ameaça da pena sejam quanto basta para evitar a repetição de comportamentos delituosos.
Ora, no caso vertente, e personalidade do arguido, manifestada nos factos objecto do processo e naqueles que estiveram na origem das condenações averbadas no respectivo certificado de registo criminal, a que é feita menção na matéria de facto provada, impedem um juízo de prognose positivo relativamente ao comportamento futuro do arguido, entendendo-se de não suspender a execução da pena de prisão”.

Vejamos:

Os pressupostos da suspensão da execução da pena vêm enunciados no art. 50º, nº 1, do Cod. Penal que refere que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Assim, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão determina que a medida concreta da pena aplicada não possa ser superior a 5 anos. O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão determina que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão possam realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

No caso, mostra- se preenchido o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão, contudo entende-se, tal com o fez o acórdão recorrido, que o pressuposto material não se mostra preenchido, no sentido de considerar que a pena de substituição é adequada e suficiente para prevenir a reincidência.

E, para chegarmos à conclusão que este pressuposto material não se encontra preenchido, atendeu-se à natureza dos factos praticados pelo arguido AA, às circunstâncias em que os mesmos foram cometidos, à personalidade neles revelada, à postura assumida perante os factos cometidos, e ao facto de já ter sofrido condenações em penas de prisão suspensas na sua execução não se podendo prever, fundamentadamente, que a ameaça de execução da pena de prisão a aplicar, seja suficiente para que este possa adequar a sua conduta de modo a respeitar o direito.

Pelo que improcede igualmente nesta parte o recurso.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.
- Condenar o arguido em custas, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s.


Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Junho de 2022
(Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do Cod. Proc. Penal)


Adelaide Sequeira (Relatora)

Maria do Carmo Silva Dias

Eduardo Loureiro

______________________________________________________


[1] E, ainda, na pena acessória de proibição de contactos com a assistente pelo período de três anos (art. 152°, n° 4, do Cod. Penal) e no pagamento de indemnização à ofendida no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) pelos danos não patrimoniais sofridos, valor ao qual acrescem juros à taxa legal desde a data de prolação do presente acórdão, mantendo a absolvição quanto ao valor pedido a título de danos patrimoniais.
[2] Transcrição de parte do Parecer.
[3] Transcrição de pags. 22 e 23 do acórdão recorrido.
[4] Cfr. pags. 23 e 24 do acórdão recorrido.
[5] Cfr. Ac. STJ de 09/10/2019, in Proc. nº 3145/17.4JAPRT.S1, Relator Cons. Raúl Borges
[6] Não contendo esta Lei nº 94/2021, qualquer norma transitória que contemple a sua aplicação no tempo, as questões relativas às regras de interposição de recurso interposto de decisão proferida pélo tribunal colectivo em 1ª Instância para o STJ, devem ser resolvidas à luz do disposto no art. 5º do Cod. Proc. Penal, que regula a aplicação da lei processual penal no tempo, e que refere que a nova lei não é de aplicação imediata nos processos iniciados anteriormente à sua vigência se daí resultar um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido ou uma quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo, situação que não se verifica no caso em apreço.
[7] Cfr. anotação ao art. 358º do Cod. Proc. Penal, por Oliveira Mendes in Código de Porcesso Penal Comentado, 3ª Edição Revista Almedina Anotado, pag. 1102.
[8] Cfr. sumário do Ac. STJ de 20/12/2006, Proc. nº 06P3059, acessível em www.dgsi.pt
[9] Cfr. sumário do Ac. STJ de 21/03/2007 Proc. nº 07P024, acessível em www.dgsi.pt
[10] Cfr. sumário do Ac. STJ de 17-09-2009, Proc. nº 169/07.3GCBNV.S1, acessível em www.dgsi.pt
[11] Em 14/10/2020, o MP junto da 4ª Secção do DIAP do ... deduziu acusação no Proc. Inquérito nº 415/20...para julgamento em Processo Comum Singular contra o arguido AA, nos seguintes termos: “(…) O arguido AA e a ofendida BB mantiveram uma relação de namoro, com alguns períodos curtos de interrupção, pelo menos, desde o dia 8 de Fevereiro de 2018 até ao dia 26 de Maio de 2020.
O arguido, a partir do terceiro mês de namoro, passou a ser, frequentemente, controlador, enciumado e agressivo, física e verbalmente, para com a ofendida, circunstâncias agravadas por ser consumidor de heroína e de cocaína.
Na primeira ocasião, depois de confrontado pela ofendida por continuar a viver com a sua companheira e com a sua filha, o arguido discutiu com aquela, partiu-lhe um telemóvel e bateu-lhe em várias zonas do corpo com um bastão.
Desde então, a maioria das agressões físicas sofridas pela ofendida têm ocorrido no interior do veículo automóvel do arguido, consistindo, sobretudo, em estrangulamentos, socos e bofetadas, as quais, por mais do que uma vez, em datas não concretizadas, tiveram como consequência o deslocamento do maxilar da ofendida.
Em data não concretizada, o arguido, com as mãos, apertou o pescoço da ofendida, impedindo-a de respirar até a mesma desmaiar.
O arguido, frequentemente, intimida a ofendida com ameaças de morte, presencialmente ou através de mensagens de telemóvel, e com perguntas relativamente às quais lhe exige resposta imediata, independentemente do assunto, enquanto efectua uma contagem decrescente e mantém um braço esticado e o respectivo punho fechado junto ao corpo daquela, com a intenção de atingir fisicamente caso não obtenha uma resposta dentro do prazo por ele determinado.
Em data não concretizada, durante a relação, na residência do arguido sita na Rua …, ..., …, o mesmo apontou uma caçadeira na direcção do corpo da ofendida, manifestando a intenção de a matar.
Em várias datas não concretizadas, na sequência de a ofendida ter revelado ao arguido a intenção de terminar a relação, este enviou-lhe fotografias em que aparece na posse de aparentes, armas de fogo.
Durante o namoro, o arguido, frequentemente, tem dito à ofendida: “Mongolóide do caralho. Puta do caralho. Monga do caralho.”.
Ao longo da relação, o arguido tem exigido à ofendida que lhe dê conhecimento das palavras-passe que ela utiliza para aceder ao seu telemóvel, ao seu correio electrónico e às redes sociais (facebook e Instagram), o que lhe tem sido, sempre, facultado, devido à certeza que aquela tem de que seria fisicamente agredida caso não fizesse.
O arguido, por várias vezes, alterou e apagou conteúdos das contas das redes sociais da ofendida.
Durante a relação, por várias vezes, o arguido adquiriu e consumiu heroína e cocaína na presença da ofendida, ignorando os pedidos da mesma para que não o fizesse, pois, a mesma já fez vários tratamentos de desintoxicação a produto estupefaciente e o contacto com estes coloca-a numa situação de risco de regresso ao consumo.
No dia 20 de Abril de 2020, no interior de uma residência sita no ..., imóvel onde a ofendida se encontrava a trabalhar nas limpezas e o arguido a trabalhar nas mudanças, este atingiu-a na cabeça, na cara, nas costas e nos pés com várias peças de madeira e com vários tacos de golfe.
A seguir, o arguido estrangulou a ofendida com as mãos, impedindo-a, momentaneamente, de respirar.
Durante a madrugada do dia 21 de Abril de 2020, naquela residência, o arguido, propositadamente, pisou a cabeça da ofendida e impediu-a de voltar a dormir.
No mesmo período, o arguido queimou a mão esquerda da ofendida com um cigarro aceso.
A dado momento, a ofendida referiu que pretendia apresentar queixa-crime contra o arguido, e este, de forma agressiva, afirmou que seria ele próprio a transportá-la até uma esquadra.
A ofendida acedeu por ter receio de voltar a ser agredida fisicamente.
Assim, no mesmo dia, cerca das 14 horas, o arguido estacionou o seu veículo automóvel na Rua…, próximo da Esquadra do ... da P.S.P., e, quando a ofendida se preparava para sair, apertou-lhe o pescoço com as mãos, puxou-lhe os cabelos e atingiu-a com um soco na boca.
A ofendida conseguiu sair do veículo, no entanto, devido ao medo que sente do arguido, o qual se manteve no local a olhar para ela e a ligar-lhe para o telemóvel, não entrou naquela esquadra.
Como consequência directa e necessária das condutas do arguido nos dias 20 e 21 de Abril de 2020, a ofendida sofreu no crânio, uma equimose rosada com 3cm x 1cm , localizada na região frontal à esquerda, e ligeiro edema na região temporal esquerda; na face, sofreu uma equimose rosada na região malar esquerda com 5cm x 3cm, equimose arroxeada com 1cm x 1cm na região mandibular à direita, equimose arroxeada com 0,2cm x 0,2cm na mucosa interna do lábio superior à esquerda; no pescoço, uma equimose arroxeada com 1cm x 1cm na face anterior esquerda do um terço médio do pescoço; no tórax, uma equimose arroxeada-rosada com 3cm x 1cm na face anterior do ombro direito; no membro superior direito, uma equimose arroxeada-esverdeada com 3cm x 3cm na face posterior do um terço distal do antebraço e equimose arroxeada-esverdeada com 3cm x 1cm na face
dorsal da mão entre D2 e D3; no membro superior esquerdo, uma equimose arroxeada-esverdeada com 3cm x 1cm na face posterior do um terço médio do antebraço, equimose arroxeada-esverdeada com 5cm x 3cm na face posterior do um terço distal do antebraço, flictenas de queimaduras com 0,2cm x 0,2cm localizadas na região dorsal, uma entre D1 e D2 e a outra entre D2 e D3; no membro inferior esquerdo, uma equimose arroxeada-esverdeada com 7cm x 5cm no dorso do pé, lesões que lhe causaram dez dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
No Proc. nº. 268/13..., da … Secção do …Juízo Criminal de ... por sentença transitada em julgado em 15 de Outubro de 2014, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº. 152º, nº. 1, al. b), e nº. 2, do Cód. Penal, na pena de prisão de 3 anos, suspensa na sua execução pelo
período de 3 anos, sob condição de o mesmo ser sujeito a regime de prova assente num plano individual de reinserção social, com incidência na vertente profissional, familiar e social, a executar sob a vigilância da D.G.R.S..
Ao agir das formas acima descritas, o arguido AA, aproveitando-se da sua superioridade física, quis ofender o corpo e a saúde de BB, sua namorada, com o propósito conseguido de lhe causar fortes dores e lesões e de a subjugar à sua vontade.
O arguido AA, ao dirigir-se à ofendida BB, sua namorada, nos sobreditos termos e ao ameaçá-la das formas acima descritas, quis ofendê-la na sua honra, consideração e dignidade, humilhá-la, limitá-la na sua liberdade de movimentos, subjugá-la à sua vontade e fazê-la temer pela sua integridade física e pela sua vida, com o propósito de lhe causar sofrimento emocional e de diminuí-la como pessoa, o que concretizou.
O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente e sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Pelo exposto, incorreu o arguido, como autor material (artº. 26º, do Cód. Penal), na prática de um
crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº. 152º, nº. 1, al. b), nº. 4 e nº. 5, do Cód. Penal.
Requer-se que, nos termos do artº. 21º, nos. 1 e 2, da Lei nº. 112/2009, de 16 de Setembro, e artº. 82º-A, do Cód. Processo Penal, seja atribuída indemnização à vítima BB.
[12] Cfr. final do 2º §, da pag. 21, do acórdão recorrido.
[13] Constante da nota de rodapé 13.
[14] Cfr. anotação ao art. 358º do Cod. Proc. Penal, por Oliveira Mendes in Código de Porcesso Penal Comentado, 3ª Edição Revista Almedina Anotado, pag. 1102.
[15] Sem nunca ter indicado quais os factos dados como provados pelo Tribunal da Relação que não permitiam a sua condenação pelo crime de violência doméstica.
[16] O erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido aquela que o arguido/recorrente pretendia que fosse.
[17] Transcrição do texto do acórdão de fls. 20, 21 e 22 sem correspondência com a numeração das notas de rodapé.
[18] Irmão de GG. Encontra-se pendente o processo 181/19... no qual é arguido AA e ofendido HH.
[19] Irmã de HH que no dia seguinte se dirigiu à residência deste.
[20] Cfr. pag. 23 e 24 do acórdão recorrido.
[21] Neste sentido, cfr. José Manuel Damião da Cunha “O Caso Julgado Parcial”, Porto 2002, Universidade Catolica, Parte III, Os recursos num Processo de Estrutura Acusatória”, nota de rodapé 90, pag. 592.
[22] Cfr. Ac. STJ de 21/03/2018, Proc. nº 1188/15.1PHLRS.L1.S1, em cujo sumário se lê que: “III - Decorre do art. 426º do CPP que, quando se reconheça a verificação de um dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, a decisão de reenvio constituirá a excepção e só tem lugar se “não for possível decidir da causa” no tribunal de recurso, cabendo em regra a sanação do vício ao próprio tribunal de recurso”
[23] Transcrição pag. 25 e 26 do acórdão recorrido sem coincidência com a numeração de nota de rodapé
[24] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 238 s.
[25] Ou duma maior visibilidade destes.
[26] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244.
[27] Também citado e referenciado no Ac. STJ de 20/05/2020, in Proc. nº 404/17.0GBMFR.S1, acessível em www.dgsi.pt.