Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7603/20.5T8PRT-C.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
DIREITO INTERNACIONAL
PROCESSO TUTELAR
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
LEGALIDADE
RECUSA
Data do Acordão: 05/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Nos termos do artigo 13.º da Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia, de 25-10-1980), que determina que a autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto, tendo o tribunal recorrido decidido pelo não regresso com base em juízos de conveniência e oportunidade, não se coloca uma questão de legalidade estrita que possa ser conhecida pelo STJ, por força do artigo 988.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:     


I. Relatório

1. O Ministério Púbico requereu a prolação de decisão sobre o pedido de regresso à Islândia das menores AA e BB ao abrigo da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de outubro de 1980.

2. Autuado os autos como Ação Tutelar Comum, procedeu-se à audição do progenitor e das menores.

3. O Tribunal de 1.ª instância proferiu, a 14 de dezembro de 2020, a seguinte decisão:

“determinar o regresso das menores AA e BB à Islândia, a fim de serem entregues à progenitora”.

4. Interposto recurso de apelação pelo progenitor, o Tribunal da Relação do ...... proferiu, a 23 de fevereiro de 2021, Acórdão com a seguinte decisão:

“julgar procedente a apelação e em consequência revogar a decisão recorrida não se ordenando o regresso das menores AA e BB à Islândia, permanecendo as mesmas em Portugal a residir com o progenitor.”

5. Inconformada com o decidido, a progenitora CC interpôs recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª O art. 662° do CPC consagra que o Tribunal da Relação só pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que não foi o caso. Era algo que lhe estava vedado por lei, constituindo assim uma nulidade, que expressamente se invoca, devendo, em consequência, o art.º. 18ºa ser eliminado.

1. Mais. Se a decisão do juiz a quo, devidamente fundamentada (foi o caso) for uma das situações plausíveis, segundo as regras da experiência e pela prova produzida, ela será inalterável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção do julgador.

2.ª Os princípios da imediação e da oralidade são extremamente importantes para uma justa e correta apreciação de mérito, princípios esses que não estiveram presentes, com o devido respeito, na elaboração do Acórdão da Relação. Apenas a 1ª instância ouviu e presenciou quer as menores, quer o progenitor. Só essa instância teve a perceção fidedigna da realidade que foi levada ao tribunal.

2. Foi notório estar-se na presença de menores preocupadas em transmitir uma imagem positiva do pai, que sentem como a figura mais vulnerável (ponto 9 da matéria de facto dada como provada); que verbalizam não quererem regressar à Islândia por estarem magoadas com a mãe, sendo que tal mágoa é causada pela conduta do progenitor, que relata o relacionamento da mãe com um terceiro como uma “traição a si e às filhas” (pontos 10 e 11 da matéria de facto dada como provada).

3. Fruto dessa conduta do progenitor, as menores mostram-se incapazes de fazer a distinção entre conjugalidade e parentalidade (ponto 12) e não são encorajadas a falar com a mãe pelo telefone(ponto 13)e que após a separação dos progenitores, em abril de 2020, apenas estiveram pontualmente com a mãe, rejeitando o convívio pelos motivos apontados (ponto 19).

4. Não está, porém, vedado legalmente ao Supremo verificar se o uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados - Acórdão do STJ, datado de 14 de Janeiro de 2016, proferido no Âmbito do processo nº1391/13.9TTCBR.C1.S1, devidamente completado pelo Acórdão 487/14.4TTPRT.P1.S1, de 07 de Julho de 2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

3.ª Este Supremo Tribunal não deve ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a respetiva força probatória.

1. Trata-se no fundo de verdadeiros erros de direito que, como tal, se integram também na esfera de competências do Supremo.

2. Ao Supremo Tribunal de Justiça impõe-se a efetivação desse controlo, in concreto, no pleno uso dos seus poderes legais, que lhe permitem verificar se existiu, ou não, o erro e a ofensa de uma disposição expressa da lei, nos precisos termos estabelecidos pelo nº 3, do art. 674º, do CPC.

3. Não poderá aditar-se um ponto que está em clara contradição como o que é demonstrado nos autos que é o que se retira da ata de audição de menores de fls 93 ss. Que quando relatam a separação, o seu discurso começa a revelar algumas incongruências, denotando influência de adulto; que a preocupação é transmitir uma imagem positiva do pai, figura sentida como mais vulnerável; que o seu discurso sugere que existe vontade de estarem com a mãe, mas encontram-se num conflito de lealdade, mostrando-se assim condicionadas.

4. Mais – e isto foi concretamente dito por uma perita, a Srª Psicóloga nomeada pelo Tribunal, a sua maturidade é compatível com a sua idade, mas a pressão a que são sujeitas condiciona a apreciação que fazem dos eventos e, por consequência, aferições e conclusões da sua realidade.

5. Ocorreu assim nulidade entre a eliminação do ponto 16 da matéria de facto dada como provada, o aditamento de um novo ponto e a prova nos autos, tornado essa decisão ininteligível. Ou seja, sendo claro para todos que as crianças são instrumentalizadas por adultos, que são objeto de manipulação nas palavras do Ministério Publico a fls 89, como poderá afirmar-se que se sentem integradas socialmente? Se o socialmente para todos em geral é neste momento questionável, para duas crianças que chegaram a este país em .. de Julho, após estarem ausente cinco anos, os últimos três na Islândia, é inaceitável, inverosímil, não aceitável segundo as regas de experiência comum.

4.ª A solução preconizada pelo Acórdão recorrido vai no sentido de beneficiar o infrator, de atribuir um prémio a quem tem conduta que o Acórdão recorrido classifica de reprovável, o que é solução que a moral e a lei colocam em causa.

1. E estamos, não esqueçamos, perante um pedido de retorno feito ao abrigo da Convenção Internacional de Haia.

2. A Convenção de Haia relativa ao Rapto Internacional de Crianças tem como objetivo concreto, o restabelecimento, mais rápido possível, da situação anterior à subtração internacional da criança, mesmo que haja uma anterior decisão estrangeira de regulação das responsabilidades parentais e atribuição de eficácia a essa sentença pela autoridade judiciária do Estado para o qual a criança foi ilegitimamente transferida.

3. Ora, um dos pressupostos para o acionamento da Convenção de Haia para obtenção do regresso da criança ao país de origem é antes de mais existir uma retenção ilícita, sendo que o artigo 3.º explícita quando a mesma é ilícita. E dúvidas não existem de que a retenção das menores em Portugal é ilícita.

4. Por isso, e porque foi logo despoletado o processo expedito para pedir o regresso de uma criança, com fundamento em rapto, disciplinado na Convenção de Haia de 1980, a jurisprudência tem uniforme e repetidamente observado que se destina apenas a obter esse regresso, uma vez apurada a ilicitude da deslocação ou da retenção, e não a discutir o regime de exercício das responsabilidades parentais.

5. Assim se decidiu, por exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2003 (www.dgsi.pt, proc. n.º 03B2507), frisando que a definição desse processamento simplificado e urgente era uma das vias encontradas para “contrariar o uso de meios de autotutela” (para resolver divergências relacionadas com aquele exercício).

5.ª E nem sequer é questionável o conceito de residência habitual, já que os pais se separaram e deixaram de viver na mesma casa, já que, como salienta a Ilustre Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, no seu artigo sobre Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças, na Revista Julgar nº 24, de 2014, publicado pela Coimbra Editora, (embora inserido no âmbito do Regulamento aplicável aos Estados Membros da União Europeia, o que não é o caso da Islândia) “…o Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se no sentido de que “o conceito de «residência habitual», na acepção do artigo 8.°, n.° 1, do regulamento , deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao local que revelar uma determinada integração do menor num ambiente social e familiar. Para esse fim, devem ser tidas em consideração, nomeadamente, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado Membro e da mudança da família para esse Estado, a nacionalidade do menor, o local e as condições de escolaridade, os conhecimentos linguísticos, bem como os laços familiares e sociais que o menor tiver no referido Estado. Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar a residência habitual do menor tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto”

1. Ora, feitas as contas, estas crianças estivera, por decisão do seu progenitor, fora de Portugal durante cinco anos, três dos últimos na Islândia, onde, aí sim, estavam inseridas social e escolarmente, dominando a língua inglesa. Mas antes disso, já o pai se tinha ausentado para o estrangeiro, deixando cá a família, em busca de melhores condições de vida, passando as menores os primeiros anos de vida quase em exclusivo com a mãe.

2. Este mesmo conceito de residência habitual tem vindo a ser aplicado entre nós — cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 2009, proc. n.º 08B2777, do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 1327/12.4TBCSC. L1-2, do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de Abril de 2013, www.dgsi.pt, proc. 1211/08.6TBAND-A.C1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Outubro de 2013, www.dgsi.pt, proc. 1536/12.6T2AMD.L1-7, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 10 de Outubro de 2013 no mesmo processo, ou do Tribunal da Relação de Guimarães de 7 de Maio de 2013, www.dgsi.pt, proc. n.º 257/10.9TBCBT-D.G1, dando relevo à “maior facilidade em reunir os elementos necessários à defesa dos interesses da criança”.

6.ª A definição do processamento simplificado e urgente previsto na Convenção Internacional de Haia aqui em causa, foi uma das vias encontradas para “contrariar o uso de meios de autotutela” para resolver divergências relacionadas com o exercício das responsabilidades parentais, especialmente quanto à guarda da criança, dissuadindo os protagonistas de tentar criar situações de facto que lhes sejam favoráveis, numa discussão posterior sobre a guarda da criança —quer tentando deslocar a competência dos tribunais para o Estado onde se encontram, quer criando ligações da criança ao novo ambiente, de modo a que lhe seja prejudicial uma decisão de regresso ao Estado de onde foi deslocada.

1. Uma das razões principais invocadas e “…uma das preocupações do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, em complemento da Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980, foi, precisamente, a de combater o rapto internacional de crianças, que geralmente tem como protagonistas os respetivos progenitores, em divergência sobre o Estado de residência da criança ou, mais amplamente, sobre a respetiva guarda, e que se deslocam para Estado diferente com a criança sem o acordo do outro, ou que, após uma deslocação consensual, se recusam a regressar e pretendem mantê-la consigo.” – vide artigo já referido da revista Julgar.

2. O objetivo destes instrumentos internacionais é pois o de “… funcionar preventivamente, através de mecanismos de dissuasão de criação de situações de facto favoráveis ao autor do rapto, e repressivamente, pela simplificação do reconhecimento das decisões em matéria de exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente quanto à guarda da criança, e pelo carácter simplificado e expedito do processamento do pedido de regresso, como aprofundadamente se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 773/08.2TBLNH.L1-7.” – artigo citado, a pág.. 79.

3. Foi junta a lei islandesa, onde os pais, por acordo, tinham fixado residência com as menores, onde é expressamente vedado qualquer um dos progenitores levar as crianças para fora do país sem autorização do outro. E no dia .. de Julho, três dias antes do rapto, o progenitor requerido esteve perante as autoridades islandesas que expressamente lhe referiram que não podia impedir a mãe de ver as crianças, que tinha de as partilhar.

4. A resposta foi o rapto. Ao invés de se submeter à lei do país que escolheu para sua residência habitual, o progenitor ora Recorrido optou por um mecanismo de autotutela, raptando as menores, contando que a justiça portuguesa o favorecesse, bastando para o efeito prosseguir o processo de instrumentalização das crianças, de manipulação, nas palavras do Ministério Publico (fortes, mas altamente esclarecedoras).

5. Averiguar da ilicitude da deslocação ou retenção de uma criança, alegada como fundamento do pedido de regresso apresentado nos tribunais portugueses, reconduz-se normalmente a determinar se aquele que deslocou a criança para Portugal tinha o poder de, por si só, decidir sobre o respetivo local de residência, ou se a deslocação ou retenção foi ou não efetuada com o acordo ou com o consentimento do titular (ou cotitular) desse poder - (acórdão d o Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de Junho de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 786/09.7T2OBR-A.C1).

7.ª Sendo a retenção das crianças em Portugal ilícita por parte do progenitor, tal constitui, sem mais, fundamento para que se determine o regresso imediato das crianças. É que, da conjugação disposta pelos artigos 12º e 13º, resulta então que, quando o procedimento, nos termos do artigo , seja instaurado até um ano, as circunstâncias que podem fundamentar uma decisão de retenção são dadas exclusivamente pelo artigo 13 segundo parágrafo, alíneas A) e B) e pelo terceiro parágrafo; quando, contrariamente, o procedimento seja instaurado depois de um ano da subtração, às circunstâncias previstas pelo artigo 13º parágrafo segundo e terceiro, acrescenta-se aquela referente ao artigo 12º parágrafo segundo (o juiz poderá fundamentar uma decisão de retenção, baseando-se igualmente sobre o facto que o menor se tenha integrado no novo ambiente).

1. Dito de outra forma, para que assim não seja, para que não seja ordenado o regresso das menores, é necessário que haja prova do consentimento posterior (al. a)) ou o risco (al. b)), cabendo o ónus da prova a quem se opõe ao regresso (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 1534/11.7TMLSB-A-L1-7).

2. Nas decisões jurisprudenciais, ao abrigo da presente Convenção em análise, existe uma insistência de que o risco a que o preceito alude não deve consistir apenas na (inevitável) perturbação psicológica resultante para a criança do seu regresso. Existe uma premência, por parte da jurisprudência, de que este risco deve resultar de um perigo imputável ao progenitor cujo direito foi violado e que procura a restituição da criança. Para além de ser exigida a prova dos riscos inadmissíveis a que a criança estaria exposta ao regressar ao estado requerente, existem ainda decisões que exigem que se comprove que as autoridades requerentes não tutelariam o bem-estar da criança. Nada disso foi demonstrado.

3. Na falta de qualquer prova, é imperativo determinar o regresso (acórdão do Tribunal daRelação de Lisboa de 5 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 773/08.2TBLNH.L1.7).

8.ª Oobstáculo ao regresso poderá ainda fundamentar- senao posição da criança, desde que “já tenha atingido um grau de maturidade que levem a tomar em consideração a sua opinião sobre o assunto”. Cabe às autoridades assumirem uma posição crítica quanto à oposição, atendendo nomeadamente à idade da criança, à sua maturidade e à perspetiva que esta tenha sobre aquilo que entende ser o melhor para o seu futuro.

1. Mas haverá que ponderar se a vontade da criança foi manifestada de uma maneira livre e esclarecida, pois é sempre fácil que a criança manifeste a sua objeção por se encontrar sob influência do progenitor raptor.

2. Ora dos autos a todos foi claramente exposta e demonstrada a influência, a manipulação das menores pelo progenitor, incluindo o Ministério Publico.

3. E já então (em 16 de Setembro de 2020), quando a expressão manipulação do progenitor surge pela primeira vez, se tentava fazer valer os direitos da progenitora a estar presente na vida das menores.

4. Fruto dessa manipulação, as menores consideraram verdadeiro o que nunca viram, aderiram à posição do pai no conflito de conjugalidade e, em consequência, bloquearam a mãe de todas as redes que permitem o contato à distância e, ora lhe bloqueiam o contacto, ainda que por voz, ora não atendem, pura e simplesmente. Também isto já acontecia na Islândia, motivo pelo qual em 20 de Julho de 2020, o progenitor foi advertido pelas autoridades competentes.

5. Cabe aqui às autoridades, que são os tribunais, assumirem uma posição crítica quanto à oposição verbalizada, ponderando se a vontade das crianças foi manifestada de uma maneira livre e esclarecida. Ou se, ao invés, as crianças manifestaram a sua objeção por se encontrar em sob a total influência do progenitor raptor, que a intensifica, afastando as menores do contato da mãe, não o incentivando, fazendo-as aderir à sua dor, à sua suposta traição.

6. Foi esta ponderação, crítica e atenta, que foi feita exaustivamente na 1ª instância, onde as crianças foram presentes e ouvidas por duas vezes, uma das quais na presença de uma Psicóloga, nomeada pelo Tribunal, e que deixou a existência dessa influência sobre as crianças muito clara.

E conclui “entendemos que o acórdão recorrido cometeu a nulidade prevista no artigo 615º, aplicável ex vi artº 674º do CPC, cometeu erro na fixação dos factos face às declarações existentes vertidas em atas e apreciações feitas pelos intervenientes no processo, que em melhores condições estavam face ao príncipe de mediação da prova. E ainda violou lei substantiva - o disposto nos artigos 3º, 11º, 12º e na al. b) do artigo 13º da Convenção da Haia, de 1980, pelo que se impõe a sua revogação e, em consequência, deve ser ordenado o imediato regresso das menores à Islândia para junto da sua progenitora.

6. O progenitor DD e o Ministério Público apresentaram resposta ao recurso, concluindo pela improcedência do recurso, tendo o Ministério Público suscitado a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

7. O Relator proferiu decisão a admitir o recurso de revista.

8. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Recorrente, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- nulidade da decisão;

- erro na apreciação das provas;

- violação da lei substantiva.


III. Fundamentação

1. A factualidade provada:

1.1. AA e BB nasceram em ../03/2006 e ../03/2010, respetivamente, e são filhas de DD e CC, que contraíram casamento em ../07/2003 (assentos de nascimento e casamento de fls 6 a 8 do processo principal);

1.2. As menores viveram com os progenitores na Islândia durante os últimos três anos, reportados a julho de 2020;

1.3. Em abril de 2020, os progenitores separaram-se, estando pendente na Islândia procedimento de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais, onde não foi obtido acordo entre os progenitores;

1.4. Em Julho de 2020, o progenitor deslocou-se com as menores para virem passar férias a Portugal e decidiu, unilateralmente, mudar a residência das mesmas para este país.

1.5. A progenitora autorizou a viagem das menores com o pai, em férias, mas não autorizou a mudança de residência das menores para Portugal;

1.6. Em 29/07/2020, a progenitora formulou pedido de regresso ao abrigo da Convenção de Haia;

1.7. As menores descrevem de forma positiva a relação com cada um dos progenitores antes da separação, manifestando padrões de vinculação seguros em relação a ambos;

1.8. A dinâmica familiar anterior à separação é descrita pelas menores como gratificante;

1.9. O seu discurso denota preocupação em transmitir uma imagem positiva do pai, que sentem como a figura mais vulnerável;

1.10. Verbalizam não pretender regressar a Islândia por estarem magoadas com a mãe;

1.11. Tal mágoa é causada pela conduta do progenitor, que relata o relacionamento da mãe com um terceiro como “uma traição a si e às filhas”;

1.12. O progenitor levou as menores ao local de trabalho da mãe, onde viram a mãe no carro com um amigo, tendo-lhes o pai transmitido que a mãe deu um beijo a tal pessoa;

1.13. Em consequência de tal conduta, as menores aderiram ao ponto de vista paterno, porque o pai manifestou tristeza;

1.14. As menores mostram-se incapazes de fazer a distinção entre a conjugalidade e a parentalidade;

1.15. Não são encorajadas a falar com a mãe por telefone;

1.16. (eliminado pelo Tribunal da Relação);

1.17. As menores sentem como positivo o convívio que têm com os avós paternos, com quem vivem juntamente com o pai;

1.18. Apreciam o convívio escolar com os pares;

1.18-A. As menores manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente e face ao descrito nos anteriores pontos 17º e 18º.

1.19. Após a separação dos progenitores, em abril de 2020, as menores apenas estiveram pontualmente com a mãe, rejeitando o convívio pelos motivos supra descritos.


2. Da nulidade do Acórdão

No acórdão recorrido, o aditamento do facto 18-A – “As menores manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente e face ao descrito nos anteriores pontos 17º e 18º” – foi assim justificado:

 “Face ao conjunto da prova produzida com destaque para as referidas declarações das menores prestadas perante a psicóloga - acta de folhas 93 vº dos autos e declaração das menores exaradas na acta de tentativa de conciliação de folhas 69 a 72 e visto o disposto no citado art. 662º do Código de Processo Civil ex vi art. 32, nº 3 do R.G.P.T. adita-se à matéria de facto provada o ponto 18-A (…)”.

A Recorrente entende que este aditamento torna o Acórdão nulo porque não se verificou o caso previsto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que prevê a alteração da matéria de facto pela Relação se “os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, rematando que “Era algo que lhe estava vedado por lei (…) Mais. Se a decisão do juiz a quo, devidamente fundamentada (foi o caso) for uma das situações plausíveis, segundo as regras da experiência e pela prova produzida, ela será inalterável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção do julgador”.

Esta argumentação, que a Recorrente desenvolve no ponto I da motivação e das conclusões do recurso, presta-se a duas interpretações possíveis (excluída uma terceira, relacionada com a falta de fundamentação, que grosseiramente não ocorre):

 - primeira, de oposição ao aditamento oficioso do facto pelo Tribunal da Relação, isto é, sem que o recorrente o tenha requerido (com efeito, a impugnação recaiu apenas sobre os pontos 4,11,15 e 16);

 - segunda, de oposição ao julgamento pela Relação em sentido diverso do julgamento da matéria de facto pela 1.ª instância, este baseado na livre convicção do julgador e devidamente fundamentado.  

Apreciando.

Relativamente àquele primeiro sentido da questão:

- nos processos de jurisdição voluntária, o tribunal – de 1.ª instância ou da Relação – não está dependente dos factos direta ou indiretamente alegados pelas partes e tem ampla iniciativa probatória – artigo 986.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, por isso que “nos processos de jurisdição voluntária, são aplicáveis as regras relativas aos poderes dos tribunais de recurso, nomeadamente quanto à ampliação e à alteração da decisão da matéria de facto” – Acórdão do STJ de 05/11/2009, Revista n.º 1735/06.0TMPRT.S1.

De onde, não tem a Recorrente razão se entende – o recurso, como se disse, não é inteiramente claro – estar vedado ao tribunal de recurso ampliar oficiosamente a matéria de facto;

Relativamente ao segundo entendimento:

- da norma do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil decorre, ao contrário do entendido pela Recorrente, que “o tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto impugnada, dispõe de autonomia decisória, de modo a formar a sua própria convicção, fazendo uso do princípio da livre apreciação sem que se lhe imponha qualquer limitação” – ver, por todos, Acórdão do STJ de 27/02/2020, Revista n.º 1367/10.8TBMAI.P2.S1 – não estando dependente, por assim dizer, do julgamento operado em 1.ª instância, ainda que fundado em provas sujeitas a livre apreciação e devidamente fundamentado (de notar que a jurisprudência dos tribunais de 2.ª instância conheceu uma corrente que, efetivamente, defendia a alteração da matéria de facto apenas nos casos de erros grosseiros ou palmares, hoje abandonada em face do entendimento contrário preconizado pelo STJ, conforme à garantia efetiva do 2.º grau de reapreciação da matéria de facto e da prova).

Sendo assim, também a razão não está do lado da Recorrente quando entende estar vedado ao tribunal de recurso julgar a matéria de facto em sentido diverso do julgamento em 1.ª instância.

A Recorrente referiu ainda, em abono da manutenção do julgamento de facto operado na 1.ª instância, a violação dos princípios da imediação e da oralidade pelo Tribunal da Relação.

Debalde, porém:

A reapreciação da decisão de facto, nos termos consignados no artigo 662.º do Código de Processo Civil, não viola os princípios da oralidade e/ou da imediação, porque “O controlo exercido pelo tribunal ad quem sobre a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo está, portanto, garantido e não oferece particulares dificuldades:

-  Se a prova for produzida sem imediação, a situação do julgador, no momento da sua reponderação, é semelhante em qualquer das instâncias.

-  Se as provas forem produzidas oralmente na instância recorrida, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão de facto exige, naturalmente, que a Relação tenha acesso à sua documentação ou registo, o que, como se sabe, é obrigatório (cf. art. 155°, do CPC). Mostra-se, assim, acautelada a observância dos princípios da imediação e da oralidade, possibilitando à Relação assumir-se como verdadeira segunda instância e exercer a sua competência decisória seja quanto a questões de direito ou de facto”. – Acórdão do STJ de 20/02/2020, Revista n.º 6126/15.9T8BRG.G1.S2.

Em suma, não ocorre qualquer nulidade do acórdão relacionada com o aditamento do facto 18-A, nas perspetivas argumentativas esgrimidas pela Recorrente.

3. Do erro na apreciação das provas

O erro na fixação dos factos materiais da causa apenas pode ser objeto do recurso de revista no caso em que ocorra a ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova – artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Embora tenha indicado e transcrito este normativo para fundamentar o recurso, a Recorrente omitiu o consequente ónus de alegar e demonstrar a existência de um daqueles casos, aludindo apenas à circunstância de o Acórdão da Relação não ter valorado devidamente as declarações prestadas pelos menores, levadas à ata que faz fls. 93 e sgs., e prestadas pela psicóloga, umas e outras sujeitas à livre apreciação do julgador – artigos 5.º, n.º 1, do RGTPC e 389.º do Código Civil – e, nessa medida, não passíveis de reapreciação neste Tribunal (“É definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação, não podendo ser modificado ou censurado pelo STJ, cuja intervenção está limitada aos casos da parte final do n.º 3 do art. 674.º do mesmo Código” – Acórdão do STJ de 03-03-2020, Revista n.º 3936/17.6T8PRT.P1.S1.S1. –

Por consequência, comprometida fica a ininteligibilidade – termo usado não para sustentar qualquer vício formal do Acórdão mas para expressar a discordância como a forma como foi valorada a prova – com que a Recorrente adjetivou a eliminação do facto 16 e aditamento do facto 18-A .

Deve, pois, improceder, o alegado erro na fixação dos factos.

4. Da violação do disposto nos artigos 3º, 11º, 12º e na al. b) do artigo 13º da Convenção da Haia, de 1980

Para sustentar a decisão de não ordenar, revogando a decisão do Tribunal de 1.ª instância, o regresso das menores AA e BB à Islândia, permanecendo as mesmas em Portugal a residir com o progenitor, o Acórdão exarou a seguinte fundamentação:

“A Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças - (Convenção de Haia) tem por objecto, para além do mais assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer estado contratante ou nele retidos indevidamente - cf. art 1º, alínea a).

Tendo decorrido menos de um ano desde a data da deslocação ilícita, o regresso apenas não deve ser ordenado, se a pessoa que se opuser ao mesmo provar: – que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com essa transferência ou retenção; ou – que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável (cf. alíneas a) e b) do artigo 13º da Convenção).

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto - citado artº13º, da Convenção.

Revertendo à situação dos autos, constata-se que as menores AA, prestes a completar 15 anos de idade e BB, prestes a completar 11 anos de idade, vivem com o pai desde a separação dos progenitores, ocorrida em Abril de 2020, até Julho de 2020 na Islândia e a partir desse mês em Portugal.

A conduta do pai ora recorrente, ao decidir unilateralmente pela alteração da residência das filhas para Portugal é reprovável, como igualmente é o envolvimento no conflito conjugal e o não incitar as menores a falar com a mãe pelo telefone.

Todavia, as menores manifestaram, pelo menos, em dois momentos distintos o seu desejo de permanecer com o pai em Portugal: em .. de setembro de 2020 que não querem voltar para a Islândia, e, em .. de novembro de 2020 que pretendem permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares.

Têm uma maturidade compatível com a sua idade. (…)

Ora, atendendo à idade das menores, que têm uma maturidade compatível com a mesma, que as mesmas manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares, têm no pai a figura afectiva de referência e apresentam bom aproveitamento escolar, o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas, consequências essas que não foram equacionadas e perturbar o seu desenvolvimento harmonioso.

Assim, entendemos que tendo em consideração, por um lado, a oposição das menores ao seu regresso a Islândia, a sua boa integração, quer no agregado familiar paterno quer no estabelecimento de ensino que frequentam, e o referido no citado art. 13º, da Convenção de Haia e, por outro o disposto no art. 3º, da Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26 de Janeiro de 1990, e que o interesse superior das menores reconduz-se ao direito destas ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade (cfr. Almiro Rodrigues in “Interesse do menor contributo para uma definição - Revista Infância e Juventude, nº 1, 1985, página 18) estas menores deverão continuar a residir com o progenitor em Portugal.”

Entende a Recorrente que o Acórdão deve ser revogado, pela seguinte ordem de razões:

- primeiro, o processo para pedir o regresso de uma criança, fundado em rapto, disciplinado na Convenção de Haia de 1980, destina-se apenas a obter o regresso, apurada a ilicitude da deslocação ou da retenção, ou seja, a contrariar o uso de meios de auto-tutela e não a discutir o regime de exercício das responsabilidades parentais;

 - segundo, os menores tinham residência habitual na Islândia;

 - terceiro, a lei islandesa veda a qualquer um dos progenitores levar as crianças para fora do país sem autorização do outro;

- quarto, o risco previsto na alínea b) do artigo 12.º da Convenção não deve consistir apenas na (inevitável) perturbação psicológica resultante para a criança do seu regresso mas de um perigo imputável ao progenitor cujo direito foi violado e que procura a restituição da criança. Para além de ser exigida a prova dos riscos inadmissíveis a que a criança estaria exposta ao regressar ao estado requerente, existem ainda decisões que exigem que se comprove que as autoridades requerentes não tutelariam o bem-estar da criança. Nada disso foi demonstrado;

- quinto, a oposição das crianças em regressarem à Islândia não foi livre nem esclarecida.

Vejamos.

A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de outubro de 1980 (doravante Convenção), foi aprovada, em Portugal, pelo Decreto de Governo n.º 33/83, de 11 de maio (publicado no DR n.º 108/1983, Série I de 1983/05/11), e foi aprovada, igualmente, pelo governo Islandês.   

A Convenção, tem por objeto assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente – art. 1.º al. a) –, considerando ilícita a transferência ou retenção quando tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa (…) individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção – art. 3.º, al. a) e) – e, aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia, e até atingir a idade de 16 anos – art. 4.º.

No caso dos autos, as menores, com 15 e 11 anos atualmente, viveram na Islândia, conjuntamente com os progenitores, casados entre si, nos últimos três anos anteriores a julho de 2020, não suscitando dúvida que aí tinham a sua residência habitual – factos 1. e 2.; em julho de 2020, após a separação dos progenitores ocorrida em abril de 2020, o progenitor, com o acordo da progenitora, deslocou-se com as menores para virem passar férias a Portugal e decidiu, sem o acordo daquela, mudar a residência das mesmas para este país – factos 4. e 5..

Os artigos 28-A e 29 da Lei islandesa (Children Act No. 76, de 27 de março de 2003) prevêem que, sendo os progenitores casados, o direito de custódia pertence a ambos, envolvendo este direito a faculdade de decidir sobre o lugar da sua (dos menores) residência – artigo 5.º, al. a), da Convenção.

Pelo que, a decisão do progenitor, sem o acordo da progenitora, de após o terminus das férias, decidir mudar a residência das menores para Portugal, configura, para efeitos de aplicação da Convenção, uma ilícita ou indevida retenção destes, já que viola o direito de custódia, exercido por direito, (também) pela progenitora antes da retenção.

Assim também se decidiu no acórdão de 14/04/2011, Revista n.º 883/09.9TMCBR.C1.S1, “I - A decisão unilateral por parte da progenitora (mãe) de não regressar ao país (Estado da residência habitual) onde a menor estava domiciliada, depois de se ter deslocado a Portugal pelo período de 15 dias com o consentimento do outro progenitor (pai), que detinha também a custódia da filha, configura à luz do art. 3.º, al. a), da Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia, de 25-10-1980) uma situação de retenção ilícita, dado que não está em causa nos autos a regulação das responsabilidades parentais sobre a menor.”.

Deste excurso, seguir-se-ia ordenar imediatamente o regresso das menores à Islândia, censurando, de forma enérgica e exemplar, o uso pelo progenitor de meios de auto-tutela da regulação das responsabilidades parentais – artigo 1.º, al. a), da Convenção – cumprindo-se cabalmente a prescrição contida no artigo 12.º, primeiro parágrafo, da Convenção, segundo a qual “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”.

Ocorre que o artigo 13.º da Convenção ressalva:

Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.

A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança”.

Com efeito,  “IV - A ilicitude da deslocação ou da retenção é condição para que seja determinada a entrega imediata da criança”; porém, “V - Sendo ilícita, a entrega deve ser ordenada, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25-10-1980, aprovada pelo DL n.º 22/83, de 11-05, e o referido Regulamento consideram aptas a fundamentar uma decisão de recusa” – Acórdão do STJ de 24/06/2010, Revista n.º 622/07.9TMBRG.G1.S1.

Para efeitos de tal normativo, em que se baseou o Acórdão recorrido para indeferir o regresso das menores, não ocorrem, ante a matéria de facto provada, as previsões contidas nas alíneas a) e b):

 - para efeitos da alínea a), a progenitora, com quem as menores viviam antes de virem para Portugal onde ficarem retidas por decisão do progenitor, exercia (o ordenamento jurídico islandês prevê-o), o direito de custódia sobre as mesmas; e,

 - para efeitos da alínea b), o progenitor não provou, como era seu ónus, que o regresso das menores à Islândia as exponha a perigos de ordem física ou psíquica ou as coloque numa qualquer situação intolerável.  Frise-se: primeiro, a relação das menores com cada um dos progenitores e a dinâmica familiar antes da separação era positiva e gratificante, podendo vir a sê-lo novamente caso regressem para junto da mãe – factos 7. e 8.; segundo, o facto das menores estarem magoadas atualmente com a mãe radica exclusivamente na atitude censurável do pai – relatando-lhes o relacionamento da mãe com um terceiro como “uma traição a si e às filhas”, e levando-as local de trabalho, onde a viram no carro com um amigo, lhes transmitiu que a mãe deu um beijo a tal pessoa – que levou a aderiram ao seu ponto de vista – factos 10, 11, 12 e 13; terceiro, a integração social, familiar e escolar das menores em Portugal não exclui a mesmíssima integração na Islândia, não passando de futurologia o Acórdão afirmar que “o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas”.

Por todo o exposto, não será intolerável a situação das menores caso regressem à Islândia.

Remanesce o último fundamento obstativo ao regresso das menores, previsto no terceiro parágrafo: A autoridade judicial pode recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.

Uma vez que o controlo exercido por este Tribunal sobre o Acórdão da Relação, na parte em que relevou a oposição das menores ao regresso, opera num plano de legalidade estrita, resta escrutinar apenas se a matéria de facto evidencia essa mesma oposição, questão a que se não pode dar senão resposta positiva por expressamente dela constar que (as menores) “Verbalizam não pretender regressar a Islândia por estarem magoadas com a mãe” – facto 10.

Já o juízo vertido no Acórdão recorrido que, partindo desta oposição, que se confirma num plano de legalidade estrita constituir fundamento de denegação do regresso, teve como fundamento a maturidade, a integração social, familiar e escolar das crianças e, na ponderação global dos seus superiores interesses, concluiu pela sua maior promoção no caso de  permanecerem e residirem em Portugal – traduzido nos seguintes parágrafos: “Ora, atendendo à idade das menores, que têm uma maturidade compatível com a mesma, que as mesmas manifestaram vontade de permanecer em Portugal porque se sentem mais integradas socialmente, vendo o convívio com os avós paternos de forma positiva, sendo também expressivo o convívio escolar com os pares, têm no pai a figura afectiva de referência e apresentam bom aproveitamento escolar, o imediato regresso destas menores à Islândia contra a sua vontade poderá provocar consequências psicológicas negativas para as mesmas, consequências essas que não foram equacionadas e perturbar o seu desenvolvimento harmonioso”. e “Assim, entendemos que tendo em consideração, por um lado, a oposição das menores ao seu regresso a Islândia, a sua boa integração, quer no agregado familiar paterno quer no estabelecimento de ensino que frequentam, e o referido no citado art. 13º, da Convenção de Haia e, por outro o disposto no art. 3º, da Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque em 26 de Janeiro de 1990, e que o interesse superior das menores reconduz-se ao direito destas ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade (cfr. Almiro Rodrigues in “Interesse do menor contributo para uma definição - Revista Infância e Juventude, nº 1, 1985, página 18) estas menores deverão continuar a residir com o progenitor em Portugal”.

Assim, a fundamentação do Acórdão recorrido, nesta parte, assenta na equidade, em juízos de conveniência e de oportunidade e, nessa medida, por limitação legal expressa – artigo 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – pelo que não está sujeito ao controlo deste Supremo Tribunal.

Neste contexto, decidiu-se no Acórdão do STJ de 05/11/2009, Revista n.º 1735/06.0TMPRT.S1, “VI - Está fora do âmbito possível do recurso de revista o controlo de uma decisão de recusa ou de entrega com fundamento na maior adequação à protecção dos interesses da criança, apenas susceptível de recurso até à Relação”.

Deste modo, e atento o atrás exposto, o recurso terá de improceder.


IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 4 de maio de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (relator)

Fátima Gomes

Fernando Samões


(com assinatura digital do Relator e declarando, nos termos do artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A, de 13 março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo, Conselheiros Fátima Gomes e Fernando Samões)