Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1517/20.6T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPROPRIEDADE
DOCUMENTO PARTICULAR
INTERPRETAÇÃO DE DECLARAÇÃO NEGOCIAL
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
EFICÁCIA RETROATIVA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
FORMALIDADES AD PROBATIONEM
NEGÓCIO JURÍDICO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
VONTADE REAL DOS DECLARANTES
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
PEDIDO SUBSIDIÁRIO
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A distinção entre pedidos alternativos e subsidiários consiste em que, nos primeiros, o réu tem a faculdade de escolher um deles, dada a equivalência das prestações pretendidas pelo autor, e, nos segundos, embora apresentados sob a veste formal mais aparente de alternativa, a sua apreciação depende da improcedência do chamado pedido principal.

II - A qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo.

III - A interpretação dos negócios jurídicos rege-se pelas disposições dos arts. 236.º a 238.º do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário, pelo que na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário, mas faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.

IV - Para o efeito, deve recorrer-se a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as respectivas negociações, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes.

V - A determinação da vontade real das partes nas declarações negociais constitui matéria de facto. Mas não sendo possível determinar qual foi essa vontade, deve fixar-se o sentido juridicamente decisivo dessas declarações, reconduzindo-se a questão de direito, por contender com as regras legais que definem o critério hermenêutico.

VI - A compropriedade, cuja noção está descrita no art. 1403.º, n.º 1, do CC, pode ser constituída por negócio jurídico inter vivos ou mortis causa (por exemplo, duas ou mais pessoas compram conjuntamente determinado prédio ou adquirem-no por doação ou testamento), por disposição legal (por exemplo, arts. 1357.º, 1359.º, n.º 2, 1368.º, 1286.º e 1287.º) e por decisão judicial (por exemplo, art. 1370.º do CC).

VII - O contrato constitutivo da compropriedade por simples documento particular é formalmente nulo (arts. 220.º e 875.º do CC), e quando o documento é exigido para a celebração do acto, como requisito de forma, ele apresenta-se como condição de validade.

VIII - A nulidade formal do contrato opera retroactivamente, com a repristinação das coisas no estado anterior ao negócio, pois um contrato nulo não o torna inexistente, já que o negócio existe como acto realizado, fundando-se, assim, uma “relação de liquidação”.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO



1.1.- Os Autores - AA e BB - instauraram acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus - CC e DD.

Alegaram, em resumo

Os Autores, em 15 de Agosto de 2018, celebraram contrato promessa de compra e venda com a sociedade P... Lda, através do qual prometeram comprar e esta prometeu vender, pelo preço de € 310.000,00, o prédio urbano localizado no sítio ..., freguesia ..., fracção ..., tipo 3, ... andar, Bloco ..., inscrito na matriz sob o art....67. Acordaram que o preço seria pago em prestações, tendo os Autores sinalizado com a quantia de € 46.000,00.

O apartamento foi adquirido por Autores e Réus em compropriedade, mas a escritura de compra e venda, outorgada em 8 de Outubro de 2019, ficou apenas em nome dos Réus, como compradores, sendo um negócio simulado.

Em 6 Agosto de 2018, Autores e Réus, por documento particular, fizeram acordo, que designaram de “contrato particular”, mas os Réus nem sequer cumpriram, pois estão a utilizar exclusivamente o imóvel e a receber as rendas.

Os Réus agiram de má fé querendo ter o apartamento com o dinheiro dos Autores, sendo que a Ré é filha deles, aproveitando-se das suas fragilidades.

Pediram que:

a) os Réus sejam condenados a apresentar a planilha das rendas e a ressarcir do valor das rendas auferidas no período em que era para ser dos Autores, ou seja, 1 de outubro de 2019 a 31 de março de 2020, ao montante devem acrescer os juros de mora à taxa legal desde a citação até o efetivo e integral pagamento ou que seja declarado aos Autores o direito a usufruir do apartamento neste período das férias de 2020, da presente data até 30 de setembro de 2020;

b) seja declarada a nulidade da escritura de compra e venda realizada em nome dos Réus;

c) sejam declarados os Autores como os únicos donos e legítimos proprietários do apartamento;

ou, em alternativa,

d) sejam os Réus condenados a pagar aos Autores a quantia de € 137.692,00, por todo o investimento efetuado no apartamento, não sendo mais coproprietários, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.


1.2.- Os Réus contestaram, defendendo-se por impugnação, alegando serem os únicos proprietários do imóvel, e muito embora reconheçam o contrato particular, a verdade é que os Autores não o cumpriram, pois não pagaram a metade do preço, pelo que a acção deve ser julgada improcedente.

1.3. Realizada audiência de julgamento, foi proferida (27/6/2021) sentença que decidiu absolver os Réus CC e DD dos pedidos deduzidos pelos Autores AA e BB.

1.4. Os Autores recorreram de apelação e a Relação de Évora, por acórdão de 16/12/2021, decidiu:

“Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida na parte impugnada e, consequentemente, por via da declaração de nulidade do contrato intitulado «Contrato Particular» junto aos autos:

a) Condenam os Réus a restituir aos Autores a quantia líquida de €64.900,00 (sessenta e quatro mil e novecentos euros), que já incluí a compensação da quantia em que os Autores são condenados a restituir aos Réus no valor de €30.000,00 (trinta mil euros);

b) Condenam os Réus a restituir aos Autores os valores que vierem a ser liquidados decorrentes dos factos provados 4, 9, 16 e 19, sendo que o valor das quantias a liquidar somadas à referida em a) deste dispostito não podem exceder €107.242,49 (cento e sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos);

c) Condenam Autores/Apelantes e Réus/Apelados nas custas nas duas instâncias, dado o recíproco decaimento em relação ao pedido subsidiário, fixando-se provisoriamente as mesmas, respetivamente, em 25% e 75%, sem prejuízo do rateio final, sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela Tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

d) Condenam os Apelantes nas custas do incidente de não admissão do documento junto em sede de recurso, fixando-se a taxa de justiça, em 2 (duas) UC´s (artigo 527.º do CPC e artigo 7.º, n.º 4, do RCP).”


1.5.- Os Réus recorreram de revista, com as seguintes conclusões:

1)O presente recurso de revista tem por fundamento o disposto no artigo 674 nº 1 aliena a) do CPC por erro de julgamento do Tribunal da Relação de Évora em virtude de errónea interpretação e aplicação do Direito aos factos provados e na determinação da norma aplicável.

2) O Tribunal de 1ªInstância considerou que o contrato celebrado entre Autores e Réus, escrito particular intitulado “Acordo Particular “é válido (artº 219º do CC) e produz efeitos ao abrigo da liberdade contratual devendo ser pontualmente cumprido como dispõem os artigos 405º e 406º do Código Civil.”

3)  O Tribunal de 1ªInstância considerou igualmente que tal “Acordo Particular” ainda pode ser cumprido, atento o prazo concedido para pagamento do empréstimo e as partes não revogaram ou resolveram tal contrato , ainda é no âmbito desse incumprimento contratual que tem que ser resolvida a situação , e que tendo o instituto do enriquecimento sem causa natureza subsidiária ,só caso os Autores não sejam indemnizados no âmbito do termo do contrato paralelo que celebraram com os RR é que poderão lançar mão de tal instituto.”

4) O Tribunal da Relação de Évora teve uma interpretação jurídica diversa relativamente à validade do “Acordo Particular” que foi celebrado entre as partes, entendendo que ao mesmo se aplica o artº 875 do Código Civil e 89º do Código do Notariado e que não obedece à forma legal prevista na lei para validar transmissão do direito de propriedade.

5) Sendo tal Acordo Particular Nulo, nos termos do artigo 220.º do Código Civil, podendo a mesma ser conhecida a todo o tempo e declarada oficiosamente pelo tribunal (artigo 286.º do Código Civil). Os efeitos da nulidade constam do artigo 289.º do mesmo diploma legal. Tem efeito retroativo e deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

6) Recorrentes não concordam com a interpretação jurídica que foi dada pelo Tribunal da Relação de Évora ao “Acordo Particular” pois o acordo que foi outorgado pelas partes foi celebrado apenas e só com efeitos meramente obrigacionais.

7) Tal Acordo Particular não consubstancia título de transmissão de propriedade, ao contrário do que interpretou o Tribunal da Relação de Évora.

8) O Acordo Particular em causa foi apenas e só para as partes regularem os termos e as condições que após cumprimento desse acordo particular seria efetuada a transmissão do direito de compropriedade do imóvel, pela forma legalmente prevista.

9)Tendo igualmente sido este o entendimento do Tribunal de 1ªInstância.

10) O Tribunal da Relação de Évora ao interpretar o “Acordo Particular” pressupondo que com tal Acordo pressupõe a transmissão de propriedade, ou seja, que tal “Acordo Particular” seria o título de transmissão da propriedade(compropriedade), cometeu erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito aos factos provados e na determinação da norma aplicável.

11) O “Acordo Particular” junto aos autos é perfeitamente legal nos termos do artº 219 do Código Civil, não tendo aplicação o artº 875º do C.Civil e artº 89º do Código do Notariado, porquanto, tal acordo produz efeitos meramente obrigacionais, não sendo o acordo em causa título que consubstanciaria a transmissão da propriedade (compropriedade).

12) Não tem aplicação ao Acordo Particular junto aos autos os artº 220º, 286º e 289º do Código Civil, não existindo qualquer causa de Nulidade do Acordo Particular.

13) Sendo tal Acordo Particular perfeitamente válido ao abrigo do artº 219º do CC e eficaz como considerou o Tribunal de 1ª Instância, não podendo por isso ser declaro nulo.

14) Deverá ser considerado que o Acordo Particular junto aos autos produz apenas efeitos meramente obrigacionais e é perfeitamente válido e eficaz por força do artº 219º do C.Civil, não tendo aplicação os artº 875º do C.Civil e artº 89º do Código do Notariado e artº 220, 286º e 289º do Código Civil do Código Civil , não sendo Nulo tal Acordo Particular.

15) Deverá ser Revogado o Acórdão Recorrido e mantida a decisão da 1ª Instância com os fundamentos aí constantes a qual absolveu os Recorrentes dos pedidos formulados pelos AA.


1.6.- Os Autores contra-alegaram, suscitando previamente a rejeição do recurso por “no entendimento dos Recorridos o recurso é quanto à matéria de facto”, e a improcedência do mesmo.



II – FUNDAMENTAÇÃO



2.1. Questão prévia da (in)admissibilidade do recurso

Os Autores suscitaram a questão prévia da inadmissibilidade da revista com a alegação de que nela se põe em causa a decisão de facto, e se pretende “reanalisar as provas”, subtraída ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça.

Esta questão carece de total fundamento, pois em parte alguma das alegações os Recorrentes pretendem a reavaliação dos factos, antes exprimindo claramente que o recurso tem por fundamento o disposto no art. 674 nº 1 a) CPC com base na “errónea interpretação e aplicação do Direito aos factos provados e na determinação da norma aplicável”.

Improcede a questão prévia.


2.2. – Delimitação do objecto do recurso

A questão submetida a revista, delimitada pelas respectivas conclusões, contende com a interpretação e (in)validade do escrito particular denominado “contrato particular” de 6 de Agosto de 2019, subscrito pelas partes.


2.3. – Os factos provados

1. Os Autores AA e BB celebraram em 15 de agosto de 2018, um Contrato de Promessa de Compra e Venda com a Parcitec – Construções Lda no âmbito do qual prometeram comprar e esta prometeu vender, pelo preço total de € 310.000,00, a pagar em várias prestações, devendo estar pago até 31 de março de 2019 a quantia de € € 186.000,00, sendo o remanescente pago na celebração da escritura definitiva, uma fração autónoma correspondente ao 1º andar do Bloco, fração ..., tipo ..., B, do prédio urbano localizado no Sítio dos ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67º da mencionado freguesia e descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...10 da freguesia ..., encontrando-se o apartamento em construção, tal como resulta de fls. 10 a 12 e 134 a136, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 1º a 4º da petição inicial).

2. Os Autores pagaram a quantia de €46.000,00 relativamente à promessa de compra e venda referida em 2) até agosto de 2019 (artigo 5º da petição inicial).

3) Em agosto de 2019, os Autores receberam um comunicado da promitente vendedora de que o prédio já tinha sido finalizado e que seria realizada a escritura de compra e venda (artigo 6º da petição inicial).

4) Os Autores residem em Luxemburgo e organizaram-se para viajar para Portugal, mas precisamente para ..., localidade onde está o apartamento e seria realizada a escritura de compra e venda, gastando nas viagens montante não concretamente apurado (artigos 7º e 39º da petição inicial).

5) Convidaram os Réus que vivem na Bélgica para irem de férias, sendo que a Ré é filha do Autor e este pagou a estadia dos Réus (artigo 8º da petição inicial).

6. O Autor teve um acidente em 14 de junho de 2019 e caiu do andaime nas obras na qual trabalhava, quebrando as vertebras e ficou com dificuldades para trabalhar desde meados de 2019 (artigo 9º da petição inicial).

7. Na sequência dos Autores não terem disponibilidade financeira para comprar o imóvel referido em 1) e não lhes ter sido concedido financiamento bancário, para não perderem o sinal já pago, solicitaram aos Réus que adquirissem o imóvel para si, acordando a possibilidade dos Autores o virem a adquirir em compropriedade por acordo escrito de 6 de agosto de 2018, denominado “Acordo particular”, nos termos do qual estabeleceram que a compra do apartamento referido em 1) seria em nome dos Réus, que contrariam um empréstimo no valor de €200.000,00 (incluindo €50.000,00 para os Autores, que serão solidários com este empréstimo e também “responsável” pela sua parte no empréstimo). Mais referem que o apartamento pertencerá aos Autores em 50% desde que paguem a sua participação de 50% (metade do preço de compra- €155.000,00, já tendo sido pagos €46.000,00; taxas de Notário e impostos relacionados com a compra- +/- €8.500,00; metade do preço do ar condicionado- +/- €2.500,00; metade da compra dos móveis-+/- €5.000,00; metade das cobranças mensais do apartamento e metade dos impostos e taxas). Foi estabelecido como condição da compropriedade que entre 1 de outubro e 31 de março o apartamento é propriedade exclusiva dos Autores. A venda só pode ser feita com o acordo dos 4 proprietários, só não sendo necessária quando uma das partes não assumir o pagamento da sua parte. Mais referem que os Autores assumem o compromisso de reembolsar o empréstimo de € 200.000,00 até ao fim de 2021, mas com flexibilidade nas datas, tal como resulta de fls. 37 a 48, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 15º da petição inicial-parte).

8. Em 18 de Outubro de 2019, os Réus CC e DD compraram o prédio referido em 1) à Parcitec – Construções Lda por escritura pública de compra e venda, pelo preço de PTE. 310.000,00, o qual foi adquirido com recurso a mútuo com hipoteca no valor de €200.000,00, sendo os Réus os compradores e os mutuários, tendo o preço sido pago, por cheque ou transferência bancária, nos seguintes termos:

- €31.000,00, em 04-09-2018;

- €7.500,00 em 18-01-2019;

- €7.500,00 em 24-01-2019;

- €30.000,00 em 06-08-2019;

- €34.000,00 em 10-09-2019,

- €200.000,00 em 18-10-2019, de fls. 180 a 214; 9)

9.  Atento o acordo referido em 7), os Réus efetuaram um empréstimo bancário em nome deles, por serem mais jovens e terem crédito bancário, ao contrario dos Autores, junto na Caixa Geral de Depósitos em ..., no montante total de € 200.000,00, a serem pagos em 20 anos em prestações mensais, sendo que entre Autores e Réus acordaram que € 150.000,00 seriam pagos pelos Réus e € 50.000,00 seriam pagos pelos Autores, os quais têm pago aos Réus mensalmente a quantia de € 230,00 da prestação que estes suportam para amortização do empréstimo bancário (artigos 17º e 24º da petição inicial).

10) Os Réus têm inscrita a seu favor a aquisição, por compra, do prédio referido em 1) Ap. 2349 de 29-10-2019, estando tal prédio onerado com uma hipoteca.

11) O Autor efetuou duas transferências para conta bancária do Réu CC, em agosto de 2019, uma no valor de €6.000,00, a outra no valor de €14.000,00 e, em 18 de outubro de 2019, fez uma transferência bancária para o Réu no valor de €24.000,00, perfazendo um total de €44.000,00 (artigo 19º da petição inicial).

12) Em setembro de 2019, o Réu emprestou a quantia de €30.000,00 ao Autor para pagamento de parte do apartamento referido em 1), a qual deveria ser paga logo após a escritura (artigo 22º da petição inicial).

13) Os Autores não utilizaram o apartamento de 1 de outubro de 2019 a 31 de março de 2020, apesar de o terem solicitado aos Réus (artigos 28º e 29º da petição inicial).

14) Os Réus vêm explorando o imóvel referido em 1), desde outubro de 2019, auferindo rendas, com publicidade no Airbnb e Facebook (artigo 30º da petição inicial).

15) Os Autores receberam uma carta da advogada dos Réus, informando que não tem direito de fruir do imóvel, a não ser que pague o valor de 30.000,00€ e outras dívidas (artigo 33º da petição inicial)

16) Os Autores inicialmente pagavam metade das despesas mensais de luz, água, condomínio, ainda mais com o pagamento do IMI, prestações do empréstimo bancário e seguro anual do apartamento, sempre realizando o pagamento por transferências bancárias para a conta do Réu mas, por não terem acesso ao apartamento, deixaram de o fazer (artigo 46º da petição inicial).

17) Em 24 de Março de 2019, os Réus entregaram a quantia de €10.000,00 aos Autores, a título de empréstimo, a qual foi devolvida no âmbito das transferências referidas em 11), tendo ainda sido transferida pelo Autor a quantia de €4.000,00 em 30-08-2019 (artigo 13º da contestação).

18) Entre 1 de outubro e 2019 e 31 de março de 2020, a exploração turística do prédio referido em 1), rendeu pelo menos, a quantia líquida de €3.093,69 auferida pelos Réus (artigo 41º da contestação).

19) Os Autores suportaram custos com a mobília do apartamento referido em 1) e de valor não concretamente apurado, tendo pago exclusivamente o ar condicionado no valor de €4.900,00, tendo sido o Réu que suportou as despesas relativas a impostos e Notário para celebração a compra e venda do imóvel referido em 1), no valor total de €17.574,75 (artigo 38º da petição inicial).


2.4. – Os factos não provados

a) Já em Portugal, os Réus ficaram deslumbrados com o apartamento e propuseram aos Autores a comprar a metade do valor do apartamento, ou seja, serem coproprietários (artigo 10º da petição inicial).

b) Por causa do acidente do Autor, os Réus diziam que queriam ajudar, assim não ficaria tão caro as prestações do empréstimo bancário (artigo 11º da petição inicial).

c) O investimento dos Autores no apartamento era para reforma, pois que já estavam cansados e muito perto de atingir a idade para reforma (artigo 12º da petição inicial).

d) A princípio, os Autores não aceitaram a proposta, mas diante de tanta insistência por parte dos Réus, então eles acabaram cedendo, sem contar que a Ré é filha do Autor e assim ficaria tudo em família (artigo 13º da petição inicial).

e) Na assinatura do acordo referido em 7) dos factos provados, o Réu não aceitou um profissional do direito, ou seja, um advogado e até mesmo a filha da Autora que é advogada, não teve acesso ao Contrato e foi proibida de ter conhecimento (artigo 15º da petição inicial-parte).

f) O Autor argumentou por várias vezes que a escritura ficasse em nome dos Autores também, mas não foi aceite pelo Réu (artigo 26º da petição inicial)

g) Os Autores contribuíram com o pagamento do Notário e impostos relacionados a compra do imóvel (artigo 27º da petição inicial).

h) Ficou acordado verbalmente entre as partes que a quantia emprestada pelo Réu de € 30.000,00, seria pago em várias prestações e até porque eles sabiam da saúde precária do Autor e a dificuldade em trabalha (artigo 36º da petição inicial).

i) O Réu disse que ia castigá-lo por não ter pago os €30.000,00 e não ia deixar os Autores a usufruir os 6 meses, desrespeitando o contrato de gaveta (artigo 37º da petição inicial).

j) Para além do provado em 4), desde 2018 que os Autores vêm tendo gastos com apartamento, como vivem em Luxemburgo tem os custos da viagem, hotel, aluguel de apartamento e etc., o que já perfaz um total no valor de €15.650,00 (artigo 39º da petição inicial).

k) Para além do provado em 19), toda a mobília foi comprada pelos Autores e outras despesas gerais, perfazendo um total de €12.042,00 (doc. que se junta) (artigo 38º da petição inicial).

l) Para além do provado em 18), o valor das rendas apurados pelos Réus no período de 1 de outubro de 2019 a 31 de março de 2020 é de €20.000,00 (artigo 42º da petição inicial).

m) O apartamento e a mobília estão danificados, em virtude do uso frequente de pessoas do arrendamento e se encontram em más condições de conservação e utilização (artigo 43º da petição inicial)


2.5. A interpretação e (in)validade do escrito particular denominado “contrato particular” de 6 de Agosto de 2019.

Os Autores pediram a condenação dos Réus a pagar-lhes “a quantia de € 137.692,00, por todo o investimento efetuado no apartamento, não sendo mais coproprietários, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento”

Muito embora os Autores tenham designado tal pedido como alternativo (“ou em alternativa”), tanto a 1ª instância como a Relação qualificaram-no como pedido subsidiário.

Como se sabe, o pedido costuma qualificar-se como a pretensão do autor para a qual requer a tutela judicial, ou seja, é o feito jurídico pretendido (pretensão processual) e, em regra, deve ser único, certo e exigível. O art.555 do CPC permite a cumulação de pedidos, que pressupõe a simultaneidade ou multiplicidade de pretensões, ou seja, o autor pede a satisfação ao mesmo tempo de mais de uma prestação, exigindo-se, contudo, a compatibilidade substancial, verificando-se a incompatibilidade sempre que as prestações se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si, de tal forma que uma impeça o exercício da outra, ou seja, quando produzem efeitos contraditórios ou sob o aspecto material ou sob o aspecto processual.

No pedido alternativo (art. 553 CPC), a alternatividade pressupõe a dedução de duas ou mais pretensões disjuntivas, para apenas uma delas se efectivar. Já o pedido subsidiário (art. 554 CPC) é feito para a hipótese de o primeiro não proceder.

Tanto nos pedidos subsidiários, como alternativos, há uma singularidade de pretensões, porque o autor pretende valer contra o réu um dos pedidos, o que não sucede na cumulação. A distinção entre pedidos alternativos e subsidiários consiste em que, nos primeiros, o réu tem a faculdade de escolher um deles, dada a equivalência das prestações pretendidas pelo autor, e, nos segundos, embora apresentados sob a veste formal mais aparente de alternativa, a sua apreciação depende da improcedência do chamado pedido principal.

Considerando o contexto do pedido e a alegação da petição inicial, interpretada de acordo com o critério dos arts. 236 e 238 CC, estamos perante um pedido subsidiário, como de resto foi interpretado pelas instâncias.

Os pedidos principais nomeadamente o da declaração do direito de propriedade dos Autores sobre o apartamento, foi julgado improcedente, e não está aqui impugnado, logo transitou em julgado.

A sentença da 1ª instância absolveu os Réus do pedido, com base nos seguintes tópicos:

O contrato particular outorgado por documento particular em 6/8/2019 (cf. fls. 37 a 48) foi celebrado no âmbito da liberdade contratual, pelo que só com a revogação ou resolução é que eventualmente poderá ocorrer o pagamento de uma indemnização, a título de enriquecimento sem causa relativamente aos valores pagos. Mas como “ no caso dos autos, considerando que o contato particular ainda pode ser cumprido, atento o prazo concedido para pagamento do empréstimo e as partes não revogaram ou resolveram tal contrato, ainda é no âmbito desse incumprimento contratual que tem que ser resolvida a situação, tendo o instituto jurídico do enriquecimento sem causa natureza subsidiária, ou seja, só caso os Autores não sejam indemnizados no âmbito do termo do contrato paralelo que celebraram com os Réus é que poderá lançar mão de tal instituto (o qual nem seque invocou nos autos)”.

A Relação, por seu turno, decretou a nulidade do “contrato particular”, argumentando, em síntese, que o contrato particular de 6/8/2019 (fls. 37 a 48) é formalmente nulo porque reportando-se à constituição do direito de compropriedade, o documento particular junto não obedece à formal legal prevista na lei para validar a transmissão do direito de propriedade.

A qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo.

A interpretação dos negócios jurídicos rege-se pelas disposições dos arts.236 a 238 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário. Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as respectivas negociações, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes.

Interpretar uma declaração negocial é actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer. E, como se viu, esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto (art. 238 do CC). Isto significa que a letra do negócio (o texto do documento ) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação. Optou-se por uma orientação objectiva porque se pretende apurar qual o sentido a atribuir à declaração considerada relevante para o direito, em face dos termos que a constituem.

A determinação da vontade real das partes nas declarações negociais constitui matéria de facto. Mas não sendo possível determinar qual foi essa vontade, impõe-se fixar o sentido juridicamente decisivo dessas declarações, reconduzindo-se a questão de direito, por contender com as regras legais que definem o critério hermenêutico.

Por seu turno, a aplicação do art. 237 do CC confina-se, como, desde logo, resulta da sua epígrafe, aos casos duvidosos. A sua doutrina não prevalece contra as regras do art. 236 do CC, aplicando-se apenas se estas não puderem definir o sentido da declaração, ou seja, “vale para os casos em que a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação de harmonia com o critério fixado no artigo anterior, comporta ainda dois ou mais sentidos, baseados em razões de igual força”.

Está provado que

“7. Na sequência dos Autores não terem disponibilidade financeira para comprar o imóvel referido em 1) e não lhes ter sido concedido financiamento bancário, para não perderem o sinal já pago, solicitaram aos Réus que adquirissem o imóvel para si, acordando a possibilidade dos Autores o virem a adquirir em compropriedade por acordo escrito de 6 de agosto de 2018, denominado “Acordo particular”, nos termos do qual estabeleceram que a compra do apartamento referido em 1) seria em nome dos Réus, que contrariam um empréstimo no valor de €200.000,00 (incluindo €50.000,00 para os Autores, que serão solidários com este empréstimo e também “responsável” pela sua parte no empréstimo). Mais referem que o apartamento pertencerá aos Autores em 50% desde que paguem a sua participação de 50% (metade do preço de compra- €155.000,00, já tendo sido pagos €46.000,00; taxas de Notário e impostos relacionados com a compra- +/- €8.500,00; metade do preço do ar condicionado- +/- €2.500,00; metade da compra dos móveis-+/- €5.000,00; metade das cobranças mensais do apartamento e metade dos impostos e taxas). Foi estabelecido como condição da compropriedade que entre 1 de outubro e 31 de março o apartamento é propriedade exclusiva dos Autores. A venda só pode ser feita com o acordo dos 4 proprietários, só não sendo necessária quando uma das partes não assumir o pagamento da sua parte. Mais referem que os Autores assumem o compromisso de reembolsar o empréstimo de € 200.000,00 até ao fim de 2021, mas com flexibilidade nas datas, tal como resulta de fls. 37 a 48, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 15º da petição inicial-parte)”.

Comprova-se que a negociação do apartamento (uma fração autónoma correspondente ao 1º andar do Bloco, fração ..., tipo ..., B, do prédio urbano localizado no Sítio dos ..., freguesia ..., Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67º da mencionada freguesia e descrito na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...10 da freguesia ...) foi feita através de contrato promessa de compra e venda bilateral no qual a Parcitec – Construções Lda prometeu vender aos Autores, que prometeram comprar, pelo preço de € 310.000,00, o referido apartamento, tendo os Autores entregue € 46.000,00, a título de sinal.

Como o apartamento já estava finalizado, em Agosto de 2019 a promitente vendedora comunica aos Autores tal facto, e que seria realizada a escritura pública. Por esse motivo, os Autores, que vivem no Luxemburgo, deslocaram-se com os Réus (filha e genro) à ....

Devido às dificuldades financeiras e em virtude de lhes não ter sido concedido financiamento bancário, para não perderem o sinal, é que Autores e Réus outorgaram, em 6/8/2019, o escrito designado “contrato particular” (fls. 37 a 49).

E em 18/10/2019, é celebrada a escritura pública de compra e venda entre a Parcitec – Construções Lda (vendedora) e os Réus (compradores).

Pois bem, é neste contexto que deverá ser interpretado o designado “contrato particular”, outorgado cerca de um mês antes da escritura pública de venda e naturalmente para acautelar os interesses dos Autores.

Sabe-se que a  interposição fictícia de pessoas ocorre quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real), de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa, ou seja, outorgado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objectivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei( simulação subjectiva). Mas para a qualificação desta interposição como fictícia de pessoa (simulação subjectiva) exige-se que o acordo seja tripartido entre os sujeitos reais e o fictício ou aparente, mas todos têm de intervir no conluio, inclusivamente a o Banco mutuário. Por isso, não se pode concluir por uma situação típica de simulação relativa, através de simulação dos sujeitos, com a chamada “interposição fictícia de pessoas”.

A situação também não parece que se possa reconduzir pura e simplesmente a uma interposição real em que o interposto age em nome pessoal, mas no interesse de outrem, assume os efeitos do negócio celebrado e compromete-se a transferir os efeitos num momento posterior, intervindo com mandato sem representação.

Na verdade, no designado “contrato particular” o acordo não se reporta apenas à compra do apartamento (“transacção imobiliária 1”), mas também à de um terreno em construção de um edifício composto por, pelo menos, 6 apartamentos em Portugal (“transacção imobiliária 2”). Note-se que o “contrato particular” tem um espetro mais amplo, de tal forma que consignaram – “Estabeleceremos este acto para que cada uma das partes respeite as cláusulas abaixo de acordo com as suas obrigações no contexto de várias transacções imóveis demarcados abaixo” e estipularam ainda que a “transacção imobiliária 1 é valida apenas desde que a transacção imobiliária 2 é realizada por ambas as partes”.

Depois de acordarem que o apartamento “terá o nome de CC e DD, que contrataram o empréstimo de € 200.000,00, escrevem que os Autores “serão, portanto, solidários com este empréstimo e também responsável pela sua parte no empréstimo e pelos custos a este referente”.

De seguida consignaram o seguinte – “Este apartamento também pertencerá à AA e BB em 50% (ver condições de propriedade abaixo) à condição desde que paguem a sua participação de 50% na compra, bem como as taxas, nomeadamente (Lista não exaustiva (…)”, e regularam as condições de utilização (“condições de propriedade”).

A Relação interpretou o acordo como contrato de constituição de compropriedade, ao concluir – “Por isso, quando no mesmo as partes acordaram que o imóvel ficava a pertencer em compropriedade em 50% aos Autores, conforme as condições ali escritas, suportando os mesmos determinados custos com a aquisição (parte do preço e impostos), com o pagamento do empréstimo bancário, regulando, ainda, a utilização do imóvel, a possível venda a terceiros, as consequências do incumprimento das partes, o prazo de cumprimento dos reembolsos, o destino em caso de morte de algum dos intervenientes, o referido acordo pressupõe a transmissão da propriedade para os outorgantes e os efeitos que as partes pretenderam assacar a essa transmissão”.

Note-se que os Autores começaram a pagar inicialmente metade das despesas mensais de luz, água, condomínio, o pagamento do IMI, prestações do empréstimo bancário e seguro anual do apartamento, sempre realizando o pagamento por transferências bancárias para a conta do Réu mas, por não terem acesso ao apartamento, deixaram de o fazer (cf. 16), bem como suportaram custos com a mobília do apartamento e pago exclusivamente o ar condicionado (cf. 19).

Segundo o critério já definido para a interpretação do negócio jurídico, tendo em conta o texto do acordo, bem como o seu contexto, deve acolher-se o sentido plasmado no acórdão.

A noção de compropriedade consta do art. 1403 nº 1 CC “(…) quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”.

A compropriedade pode ser constituída por negócio jurídico inter vivos ou mortis causa (por ex. duas ou mais pessoas compram conjuntamente determinado prédio ou adquirem-no por doação ou testamento), por disposição legal (por ex., arts. 1357, 1359 nº 2, 1368, 1286 e 1287) e por decisão judicial (por ex. art.1370 CC) (cf. HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, Sumários 1966/67, pág. 240 e segs.).

A constituição de direitos reais pressupõe, por força do princípio da causalidade, um título de aquisição (sistema do título). Ora, “enquadrando-se o nosso sistema dentro dos sistemas do título, é evidente que a constituição ou modificação de qualquer direito sobre as coisas depende  da validade da causa jurídica que precede essas mesmas consequências : ou seja, e fora da produção desse efeito ex vi legis, da existência e procedência do negócio de que derivou tal vicissitude no mundo jurídico-real ( da compra e venda, da doação, da troca, da constituição de usufruto, etc)”, mas nos sistemas do título, o efeito real não é independente do efeito obrigacional, pois que “ o negócio é um e único, obrigacional e real, um negócio real quoad effectum (…)” (ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, pág.196 e segs.).

Por conseguinte, tendo Autores e Réus acordado na aquisição do imóvel  (apartamento) em compropriedade,  a sua validade exigiria a formalização por escritura pública (art. 875 CC e art. 89 C Notariado), a aquisição conjunta  por compra e venda de prédio urbano destinado à habitação acompanhada de contrato de mútuo, com ou sem hipoteca, em que a entidade mutuante seja uma instituição de crédito, devendo ser efetuada através de documento particular de modelo próprio (art.2º do Decreto-lei n.º 255/93, de 15/07), a aquisição conjunta feita por documento particular autenticado e depositado eletronicamente (artigo 69.º, n.º 1, alínea b), do Código do Registo Predial, artigos 22.º, alínea a), e 24.º do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04/, como salientou o acórdão.

Ora, o contrato constitutivo da compropriedade por simples documento particular é formalmente nulo (arts. 220 e 875 CC), e, como bem anotou o acórdão recorrido, uma coisa é a liberdade contratual (art 405 CC) outra a validade formal do contrato. Na verdade, quando o documento é exigido para a celebração do acto, como requisito de forma, ele apresenta-se como condição de validade (formalidade ad substantiam).

Os Recorrentes alegam que o “contrato particular” foi celebrado apenas e tão só com efeitos meramente obrigacionais, pelo que não consubstancia título de transmissão de propriedade, logo é perfeitamente legal, ao abrigo do art. 219 CC, mas já se viu que não é assim.

Uma vez assente, segundo a interpretação do “contrato particular” na posição de um declaratário normal, que Autores e Réus celebraram contrato de constituição de compropriedade, tem aplicação o art. 408 nº 1 CC, como expressão do princípio da consensualidade dos direitos reais, ou seja, a constituição ou transmissão dos direitos reais dá-se por mero efeito do contrato, sem necessidade de qualquer acto complementar. E, por sua vez, a exigência de forma escrita para os contratos reais está colimada ao princípio da causalidade, na medida em que a ausência de formalização escrita tem como consequência a nulidade do negócio, e invalidada a transmissão ou constituição do direito real, significa que a violação do princípio da consensualidade dos negócios jurídicos acaba por se traduzir também na violação do princípio da causalidade.

Alegam os Recorrentes que o acordo foi apenas para regular os termos das condições que, após cumprimento do acordo particular, seria efectuada a transmissão da compropriedade, parecendo estar subjacente a tal alegação que o acordo consubstanciaria um contrato promessa de negócio constitutivo da compropriedade, ou seja, como contrato preparatório da situação de compropriedade.

Contudo, essa interpretação já foi recusada, e só poderia eventualmente anuir-se com base na conversão do negócio (art. 293 CC), mas que não foi sequer alegada e peticionada, não sendo de conhecimento oficioso (cf., por ex., Ac STJ de 27/1/2010 (proc. nº 4221/06), em www dgsi.)

Estando assente a nulidade do contrato particular de 6/8/2019, decretada oficiosamente (art. 286 CC) pela Relação, tal implica a aplicação do art. 289 CC, segundo a doutrina do Assento de do STJ de 28/3/1995, publicado no DR 1ª série de 17/5/1995 (agora transformado em Acórdão de Uniformização de Jurisprudência) – “Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebimento com fundamento no nº 1 do artigo 289 do Código Civil”.

Afirmada a nulidade formal do contrato ela opera retroactivamente, com a repristinação das coisas no estado anterior ao negócio. Com efeito, um contrato nulo não o torna inexistente, já que o negócio existe como acto realizado, fundando-se, assim, uma “relação de liquidação” (cf. LARENZ, Derecho Civil, Parte General, pág. 624 e 625), pois  “deve o contrato nulo ser valorado, e, semelhante circunstancialismo, no tocante ao desenvolvimento ulterior da aludida composição entre as partes, como “ relação contratual de facto” ( faktisches Vertragsverhaltnis), susceptível de fundamentar os efeitos em causa ( …) encarados agora, não como efeitos jurídico-negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos ( ex lege) do actos na realidade praticado” ( Ac STJ de 6/5/2004 ( Lucas Coelho ), proc. nº 03B3416, disponível em www dgsi.pt ).

A restituição é devida com fundamento e a partir da  nulidade e não com base no enriquecimento sem causa, dado o seu carácter subsidiário, abrangendo tudo o que haja sido prestado, ainda que pelo valor correspondente, se não for possível a restituição em espécie, de modo a que as partes sejam colocadas na situação objectiva que tinham antes da celebração do contrato ou como se este não tivesse sido realizado ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 263 e 264, Ac STJ de 10/12/85, BMJ 352, pág. 417).

Considerando os factos provados nos pontos 2, 4, 9, 11, 12, 16, 17, 17 corrobora-se a justificação do acórdão quantos aos valores que os Réus devem restituir.


2.6.- Síntese conclusiva

a). A distinção entre pedidos alternativos e subsidiários consiste em que, nos primeiros, o réu tem a faculdade de escolher um deles, dada a equivalência das prestações pretendidas pelo autor, e, nos segundos, embora apresentados sob a veste formal mais aparente de alternativa, a sua apreciação depende da improcedência do chamado pedido principal.

b). A qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo.

c). A interpretação dos negócios jurídicos rege-se pelas disposições dos arts. 236 a 238 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário, pelo que na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário, mas faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante

d). Para o efeito, deve recorrer-se a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as respectivas negociações, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes.

e). A determinação da vontade real das partes nas declarações negociais constitui matéria de facto. Mas não sendo possível determinar qual foi essa vontade, deve fixar-se o sentido juridicamente decisivo dessas declarações, reconduzindo-se a questão de direito, por contender com as regras legais que definem o critério hermenêutico.

f). A compropriedade, cuja noção está descrita no art. 1403 nº 1 CC, pode ser constituída por negócio jurídico inter vivos ou mortis causa (por ex. duas ou mais pessoas compram conjuntamente determinado prédio ou adquirem-no por doação ou testamento), por disposição legal (por ex., arts.1357, 1359 nº 2, 1368, 1286 e 1287) e por decisão judicial (por ex. art. 1370 CC).

g) O contrato constitutivo da compropriedade por simples documento particular é formalmente nulo (arts. 220 e 875 CC), e quando o documento é exigido para a celebração do acto, como requisito de forma, ele apresenta-se como condição de validade.

h) A nulidade formal do contrato opera retroactivamente, com a repristinação das coisas no estado anterior ao negócio, pois um contrato nulo não o torna inexistente, já que o negócio existe como acto realizado, fundando-se, assim, uma “relação de liquidação”.



III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar os Recorrentes nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Junho de 2022.


Os Juízes Conselheiros

Jorge Arcanjo ( Relator )

Isaías Pádua

Freitas Neto