Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4654/19.6T8CBR-A.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
OMISSÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
A al. a) do n.º 3 do art. 168.º do CIRE pressupõe a demonstração de um nexo de causalidade entre a omissão do dever de apresentação à insolvência e a criação da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas ou de agravamento da incapacidade de cumprimento.
Decisão Texto Integral:


Processo nº4654/19.6T8CBR-A.C1.S1

Recorrente: “Litoral Domésticos – Comércio de Electrodomésticos Ldª”

Recorrida: AA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Por apenso ao processo no qual foi declarada a insolvência da devedora “Troféu Genuíno, Electrodomésticos, Unipessoal, Ld.ª” a credora “Litoral Domésticos Comércio de Electrodomésticos Ld.ª” requereu a qualificação da insolvência como culposa, com afetação da sócia gerente AA, por entender que se encontravam preenchidas as hipóteses previstas nas alíneas a), b), d), e), g) e i) do nºº 2 e da alínea a) do nºº 3 do art. 186.º do CIRE.

Alegou a credora, em síntese, que aquela sócia gerente: ocultou ou fez desaparecer, em proveito pessoal, parte considerável do património da insolvente (pelo menos 34.000,00); celebrou negócio ruinoso e em seu proveito pessoal quando vendeu um veículo a metade do preço de mercado num momento em que a sociedade já estava em situação de insolvência; exerceu, a coberto da personalidade coletiva da Insolvente, uma atividade em proveito pessoal em prejuízo da empresa e dos credores (ou certos credores), sendo certo que a sociedade estava, há muito, em situação de insolvência; prosseguiu, no seu interesse pessoal, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência - que, alias, se verificou desde a constituição da insolvente - trabalhando à custa dos fornecedores a quem só pagava quando recebia depois de receber dos clientes finais (sempre fora do prazo de vencimento das dívidas) sem que dispusesse de fundos próprios para pagar atempadamente aos fornecedores; incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração com o tribunal e com o senhor administrador, não apresentando os documentos a que estava obrigada no seu articulado de oposição e não prestando as devidas informações solicitadas pelo senhor administrador judicial; incumpriu de forma flagrante o dever de requerer a declaração de insolvência, uma vez que a sociedade estava em situação de insolvência desde a sua constituição, com especial impacto em 2018 quando entrou em situação de incumprimento relativamente à generalidade dos seus credores (não só fornecedores, mas também trabalhadores); ao atuar desse modo - de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente culposa - a referida sócia gerente criou ou agravou a situação de insolvência, nunca tendo revelado capacidade para gerir convenientemente a empresa.

2. AA apresentou oposição, defendendo, em síntese, não ter adotado qualquer conduta culposa que tivesse agravado a situação económica da sociedade.

Alegou que a sociedade insolvente teve uma quebra nos seus negócios, em virtude da conjuntura que se viveu nos últimos anos de grave crise económica, associada à falta de saúde da opoente; que não apresentou a sociedade à insolvência por saber que conseguia liquidar todos os débitos com o produto da venda, que pretendia efetuar, do imóvel onde estava instalado o estabelecimento e que era seu bem próprio, situação que comunicou aos credores, tendo mantido os pagamentos devidos à Segurança Social e à Autoridade Tributária e à Caixa de Crédito Agrícola, onde contraíra um empréstimo; que nunca subtraiu quaisquer bens da Insolvente; que o veículo referido pela Requerente foi vendido pelo preço justo que se destinou a efetuar diversos pagamentos e que apenas não liquidou o passivo devido à conduta da Requerente que tudo fez para inviabilizar a venda do referido imóvel. Concluiu pedindo que a insolvência fosse declarada fortuita.

3. O Administrador da Insolvência apresentou parecer sustentando a qualificação da insolvência como culposa, dizendo, em síntese, que a sócia gerente da Insolvente não se apresentou à insolvência quando a situação o aconselharia; prosseguiu uma exploração deficitária e optou pela liquidação, beneficiando alguns credores.

4. O Ministério Público sustentou que a insolvência fosse qualificada como culposa - nos termos dos artigos 185.º, 186.º, nººs 1 e 2, alíneas a), b), d), e), g) e i), e nºº 3, al. a), do CIRE - com afetação da sócia gerente AA.

5. A Requerente pediu o desentranhamento de um documento que a requerida havia junto com a oposição, alegando que estaria coberto por sigilo profissional. Depois do exercício do contraditório, veio a ser proferido despacho sobre essa matéria, com o seguinte teor:

“(...) afigura-se prematuro conhecer, desde já, se a junção do documento em referência constitui - ou não - violação do dever de sigilo profissional, uma vez que o que poderá relevar é a eventual consideração ou valoração do mesmo na apreciação probatória a fazer pelo Tribunal. Com efeito, pode o mesmo nem sequer vir a ser valorado pelo Tribunal, não havendo, nesse caso, qualquer necessidade de apreciar tal questão. Se, todavia, o mesmo vier a revelar-se relevante para a decisão da causa, deverá o Tribunal apreciar a questão”.

6. Veio a ser proferida sentença que julgou improcedente o pedido de qualificação da insolvência como culposa, tendo qualificado a insolvência como fortuita.

No que respeita à questão do supra referido documento (junto pela requerida e impugnado pela requerente), decidiu-se o seguinte: “Consigna-se que, pelo facto de não ter sido valorado na apreciação probatória realizada, não se conhece da questão referente à eventual violação do dever de sigilo profissional a respeito da junção do documento que faz fls. 171 v.º, suscitada pela credora Litoral Domésticos”.

7. Inconformada com a sentença, a requerente interpôs recurso de apelação, mas o TRC não lhe deu razão, pois confirmou a decisão recorrida, embora com diferente fundamentação no que respeita à aplicação do art.186º, nº3, alínea a) do CIRE.

8. Discordando do acórdão do TRC, a apelante interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A) A Recorrente não se conforma com o Acórdão recorrido por considerar que o mesmo Julgou erradamente os vícios graves que determinam a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, por um lado, e por considerar que o Tribunal da Relação decidiu mal em termos de interpretação e aplicação do direito em face dos factos provados.

B) Em concreto, a Recorrente considera que o Acórdão da Relação deverá ser revogado e substituído por outro que declare nula a sentença da Primeira Instância, o que deverá suceder por três razões:

a. Porque o Tribunal Primeira Instância não se pronunciou (i) sobre o desentranhamento do Doc. 3 do Requerimento de 29.05.2021 (refª ...24), pelo facto de poder estar coberto por sigilo profissional e (ii) nem sobre se deveria considerar como não escrito o disposto no art. 26.º da Oposição, que se refere à matéria do documento em causa;

b. Porque o Tribunal Primeira Instância não se pronunciou quanto aos factos e argumentos alegados nos arts. 86.º e 87.º do requerimento inicial (do presente apenso de insolvência culposa).

c. Porque a sentença proferida pelo Primeira Instância é manifestamente ambígua e obscura quanto a quem terá efetuado vários pagamentos ao Estado e a outros credores da Trofeu Genuíno Unip. Lda., bem como quanto ao destino dado pela Recorrida à quantia de, pelo menos, € 5.030,00 que o administrador de insolvência diz que foi parar à esfera pessoal da Recorrida.

C) Quanto à matéria de direito, a Recorrente entende que, em face da matéria que considerou provada, o Tribunal da Relação de Coimbra não fez uma adequada interpretação e aplicação do disposto nas als. a), b), d), e), g), e i) do nº 2 e na al. a) do nº 3 do art. 186.º do CIRE.

D) Quanto à interpretação do disposto no art. 186.º, nº 2 e 3 do CIRE o Tribunal da Relação considerou e bem que aí se estabelecerem presunções absolutas ou inilidíveis da existência de insolvência culposa.

E) Quanto ao disposto no art. 186.º, nº 3, al. a) do CIRE, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou e bem que está em causa uma presunção ilidível de insolvência culposa.

F) Sobre o alcance de tais presunções, BB («A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Vol. II, 2006, p. 677 ss.) refere que o art. 186 nº 2 faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência.

Esta causalidade é fundamentante da responsabilidade (haftungsbegründend), pois diz respeito ao seu fundamento. O citado preceito dispensa o lesado da respectiva prova. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre no nº 3.

G) Estamos perante presunções de causalidade pela criação ou agravamento da insolvência, o que visa facilitar a imputação de responsabilidade aos administradores afetados pela violação dos deveres que resultam do art. 186.º, nº 2 e 3 do CIRE.

H) Na aplicação do direito ao caso em apreço, o Tribunal da Relação de Coimbra não foi coerente com aquele entendimento e não respeitou o modo como devem operar as presunções absolutas e relativa de insolvência culposa.

I) Quanto à als. a), d) e e) do nº 2 do art. 186.º do CIRE, resulta dos pontos 3 a 28 que a sócia-gerente da sociedade declarada insolvente terá feito desaparecer parte considerável do património da devedora no ano de 2019, a seu favor e de terceiros.

a. De acordo com os elementos contabilísticos apresentados no requerimento inicial do incidente de qualificação e que resultam também do relatório do administrador de insolvência, nas contas de 2018 a insolvente tinha bens inventariados e avaliados em € 46.567,36

b. De acordo com o ponto 27 da matéria provada, em 02.12.2019 os bens pertencentes à empresa insolvente, eram compostos maioritariamente por equipamentos necessários ao exercício da atividade (€ 1.810) e por contas bancárias (€ 36,15), totalizavam um valor de 1.846,15€ (ver Inventário dos autos principais, apresentado em 02.12.2019).

c. De acordo como ponto 28 da matéria provada, o saldo entre as compras (13.798,41€) e as vendas (29.808,93€) de eletrodomésticos em 2019 foi de 16.010,52 €,

d. Tal saldo de 16.010,52 € não se encontra refletido na conta bancária da sociedade insolvente, nem esta fez prova, como competia à Recorrida, do registo e depósito em contas das vendas feitas pela sociedade por si administrada.

e. Mas sabe-se que o saldo da conta em 6.08.2019 era de € 323,34 (ver extrato de conta bancária a fls. 112 a 114).

f. Ou seja, a Recorrida delapidou praticamente todo o ativo da sociedade insolvente, o que ocorreu nomeadamente quando a Recorrida já tinha sido afastada da administração da empresa em virtude do despacho inicial de 12.08.2019, publicada em edital no dia 13.08.2019 (ver Despacho de 12.08.2019 dos autos principais, publicado em edital no dia 13.08.2019).

g. Efetivamente, já depois de a Recorrida ter sido afastada dos poderes de administração, devido à medida cautelar de administração exclusiva pelo administrador de insolvência, a Recorrida, atuando de forma ilegal e abusiva e em violação do principio da igualdade credores, fez desaparecer da conta bancária em proveito pessoal e de terceiros a quase totalidade do valor que tinha resultado da venda do veículo favor de Gopecauto, Ld.ª, no valor de 9.000,00€ (ver pontos 12 a 16 da matéria provada e extrato de conta bancária a fls. 112 a 114 e fatura de venda datada de 12.08.2019).

h. A diminuição significativa do passivo da devedora deve-se essencialmente à venda do veículo pelo valor de 9.000,00€ e ao pagamento de 30.590,74€ feito pelo filho da Recorrida.

i. Resulta dos pontos 15. e 16 da matéria provada que a Recorrida transferiu quantias para conta pessoal e para conta de terceiros, efetuou vários levantamentos em dinheiro, e efetuou vários pagamentos.

j. No seu parecer de 17.01.2020, o administrador de insolvência diz: “6. Face ao reduzido valor dos bens apreendidos em comparação com o valor dos Inventários em 31/12/2018 (€36.201,51) e as Vendas (€29.808,93) e as Compras (€13.798,41) em 2019 aguardaram-se esclarecimentos da sócia gerente sobre eventual desvio relativamente ao que a contabilidade revela.7. Pediram-se também justificações para transferências no total de €5.030,00 que a sócia gerente beneficiou com a venda de veículo e de alguns stocks”.

J) Quanto à hipótese prevista na al. b) do nº 2 do art. 186.º do CIRE, importa invocar os pontos 3 a 12 da matéria provada do Acórdão recorrido:

a. em agosto de 2019, quando a Recorrente já havia requerido a insolvência da devedora, a Recorrida (socia gerente daquela), vendeu um veículo por 9.000,00€ à sociedade Gopecauto, Ld.ª quando o poderia ter vendido por € 11.000 (valor de retoma do veículo) ao concessionário da Nissanº

b. Daí resulta inequivocamente que a Recorrida, com a sua conduta, causou uma redução de lucro/proveito para a sociedade insolvente com a referida venda.

K) Quanto à hipótese prevista na al. g) do nº 2 do art. 186.º do CIRE releva toda a matéria provada e especial a matéria constante nos pontos 15 a 28: em face a toda a factualidade supra descrita, facilmente se pode concluir que a Recorrida prosseguiu, no seu interesse pessoal, uma exploração deficitária, não obstante saber, ou dever saber, que esta conduziria, com grande probabilidade, ao agravamento da situação de insolvência, com consequente prejuízo para os credores.

L) No seu parecer de 17.01.2020 o administrador de insolvência, com um conhecimento especial e especializado da situação patrimonial da sociedade insolvente, conclui dizendo:

Nestas circunstâncias, porque não se apresentou à insolvência quando a situação o aconselharia, prosseguindo uma exploração deficitária e optado pela liquidação, beneficiando alguns credores e num primeiro momento de algumas transferências, o signatário não poderá deixar de considerar a insolvência como culposa, afetando a gerente Sra. AA”

M) Quanto à hipótese prevista na al. i) do nº 2 do art. 186.º do CIRE existem vários documentos nos autos que evidencia que a Recorrida incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nºº 2 do artigo 188.º CIRE.

N) Quanto à hipótese prevista na al. a) do nº 3 do art. 186.º do CIRE está assente que a Recorrida incumpriu o dever de apresentação à insolvência.

O) O Tribunal da Relação valorizou indevidamente aquela intenção de liquidar todo o passivo da empresa insolvente à custa do seu património pessoal para afastar a presunção prevista na al. a) do nº 3 do art. 186.º do CIRE.

P) Na verdade, resulta da matéria provada que quem, de facto, pagou parte considerável da dívida da sociedade devedora, mais concretamente 30.590,74€, foi o filho da Recorrida e não a Recorrida (ver ponto 35 da matéria provada e comprovativos apresentados com o requerimento inicial).

Q) Ainda que tal pagamento tivesse sido realizado com dinheiro que a Recorrida depositou na conta do filho (ver ponto34. da matéria provada), a verdade é que a intenção de liquidar todo o passivo da empresa insolvente à custa do património pessoal da Recorrida continua por cumprir.

R) No que respeita à Recorrente, continua por liquidar a quantia de 9.831,66€ (ver certidão com código de acesso ...).

S) Logo, improcede o argumento de que a Recorrida não causou qualquer prejuízo aos credores porque tinha a intenção de liquidar todo o passivo da empresa insolvente à custa do seu património pessoal.

T) Além disso, nenhuma outra factualidade provada permite afastar presunção que resulta da al. a) do nº 3 do art. 186.º do CIRE.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, dever-se-á revogar-se o acórdão proferido, substituindo-se por outro que declara a nulidade da sentença proferida pela primeira instância.

Caso assim não se entenda, dever-se-á revogar-se o acórdão proferido, substituindo-se por outro que qualifique a insolvência como culposa e condene a Recorrida a indemnizar os credores da sociedade insolvente Troféu Genuino Unip. Ldª no montante dos créditos não satisfeitos.»

9. AA, por si e na qualidade de gerente da insolvente “Troféu Genuíno-Eletrodomésticos Unipessoal, Ldª”, apresentou contra-alegações, nas quais sustentou, em síntese, a inadmissibilidade da revista e, caso assim não se entendesse, sustentou a manutenção do acórdão recorrido, afirmando que ele não incorreu em qualquer causa de nulidade, nem fez errada aplicação do direito.

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso.

1.1. Apesar de os presentes autos se desenvolverem no âmbito de um processo de insolvência, o regime recursivo previsto no art.14º do CIRE não tem aqui aplicação, como decorre do próprio teor literal dessa norma e como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente entendido. Ao apenso de qualificação da insolvência aplicam-se, portanto, as regras gerais dos recursos.

O Tribunal da Relação de Coimbra admitiu a subida do recurso com a seguinte justificação:

«Ainda que o acórdão em causa tenha confirmado, sem voto de vencido, a decisão de 1.ª instância, fê-lo, no entanto, com diferente fundamentação, no que toca, especificamente, à situação prevista na alínea a) do nº 3 do art.º 186.º do CIRE. Daí que, à luz do disposto nos artigos 671.º, nºs 1 e 3, do CPC, o recurso seja admissível

Efetivamente (verificados também os pressupostos gerais, previstos no art. 629º, nº 1 do CPC), o recurso é admissível, como revista normal, com base no art. 671º, nº 1 do CPC, na medida em que o acórdão recorrido, apesar de ter confirmado o sentido decisório da sentença, se sustentou em fundamentação parcialmente diferente no que respeita à aplicação da alínea a) do nº 3 do art. 186º do CIRE (pois a primeira instância havia entendido que aí não se encontrava consagrada uma presunção de nexo de causalidade).

Há, porém, que esclarecer o âmbito de admissibilidade do recurso e, consequentemente, do seu objeto.

A principal pretensão recursiva da recorrente é a de que a insolvência seja declarada culposa (com as inerentes consequências legais), procedendo-se, portanto, à revogação do acórdão recorrido. Para tal efeito, invoca dois tipos de fundamentos: os previstos nas alíneas a), b), d), e), g) i) do nº 2 do art. 186º (que, uma vez preenchidos, resultam em presunções inilidíveis de insolvência culposa); e o previsto na alínea a) do nº 3 desse artigo (que prevê uma presunção ilidível de insolvência culposa).

Quanto à primeira tipologia destes fundamentos, ou seja, os correspondentes às citadas alíneas do nº 2, as instâncias decidiram rigorosamente no mesmo sentido, afirmando, portanto, uma dupla conformidade decisória. Todavia, deverá entender-se que tal sintonia decisória não impede a reapreciação desses fundamentos em recurso de revista, não se verificando, portanto, o limite estabelecido no art. 671º, nº 3 do CPC. 

Efetivamente, embora a jurisprudência deste tribunal tenha admitido amplamente que a questão da dupla conforme pode ser apreciada em função de diferentes segmentos decisórios, não tendo, portanto, de se verificar em relação à totalidade das decisões, no caso concreto não se está perante segmentos decisórios teoricamente autonomizáveis ou cindíveis, porque não estão em causa pedidos ou frações de pedidos distintos. A pretensão da recorrente é só uma: a declaração de insolvência culposa. A diversidade de fundamentos invocados não tem como correspondente a formulação de pretensões decisórias (quantitativa ou qualitativamente) distintas, pelo que não é possível restringir o âmbito da revista apenas à aplicação da alínea a) do nº 3 do art. 186º.

1.2. O objeto central da presente revista é, assim, o de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando considerou a insolvência fortuita. Há ainda que apreciar a existência de alguma causa de nulidade do acórdão recorrido.

2. Factualidade provada:

A matéria de facto provada, após reapreciação pela segunda instância, é a seguinte:

«1. A sociedade Troféu Genuíno, Electrodomésticos, Unipessoal, Ld.ª (doravante, Troféu Genuíno), constituída em 23.07.2013, tem por objecto social o exercício do comércio a retalho de electrodomésticos, materiais para instalação eléctrica e de equipamento audiovisual;

2. O seu capital social é de 250,00€, sendo titulado por AA, que exerce a sua gerência;

3. Em 08.08.2019, a Litoral Domésticos, Comércio de Electrodomésticos, Ld.ª (doravante, apenas Litoral Domésticos) requereu a insolvência da sociedade Troféu Genuíno;

4. Em 12.08.2019, o Tribunal decretou, a pedido da requerente, a aplicação de medidas cautelares, designadamente a apreensão do veículo automóvel com a matrícula ..-UC-.. e a nomeação de Administrador Judicial Provisório (AJP);

5. Em 19.08.2019, o senhor AJP procedeu ao arrolamento do veículo automóvel em referência, o qual veio a ser fisicamente apreendido em 30.08.2019, tendo ficado constituído seu fiel depositário o senhor CC, gerente da Litoral Domésticos;

6. Em 27.08.2019, foi a Troféu Genuíno citada para os termos da presente acção, tendo vindo a deduzir contestação, em 05.09.2019;

7. Após a realização da audiência de discussão e julgamento, a Troféu Genuíno foi declarada em situação de insolvência, por sentença de 03.10.2019, entretanto já transitada em julgado;

8. A Trofeu Genuíno adquiriu a propriedade do veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-UC-.., em 23.03.2018, em estado novo, pelo preço de 17.000,00€;

9. Em 22.07.2019, foi registada provisoriamente uma acção judicial movida por Litoral Domésticos contra Troféu Genuíno e AA, tendo por objecto o aludido veículo automóvel;

10. Em 07.08.2019, a Trofeu Genuíno vendeu o veículo automóvel acima identificado, pelo preço de 9.000,00€, à sociedade Gopecauto, Ldª, que efectuou, àquela data, transferência bancária de tal quantia para a conta bancária da sociedade Troféu Genuíno, Ld.ª;

11. A sócia gerente da Trofeu Genuíno foi informada pelo concessionário da Nissan que o valor de retoma do aludido veículo, em Agosto de 2019, era de 11.000,006;

12. Com a data de 12.08.2019, a sociedade Troféu Genuíno, Ld.ª, emitiu factura a favor de Gopecauto, Ldª no valor de 9.000,00€, referente à venda do veículo automóvel acima identificado, tendo nela aposto carimbo com o dizer «Pagamento efectuado em 07.08.2019»;

13. Subsequentemente, a Gopecauto, Ld.ª, através da Ap. nº ...68, de 12.08.2019, requereu junto da Conservatória ... Automóvel o registo da propriedade do aludido veículo a seu favor, o que veio a ser recusado, «porquanto, sobre o veículo encontra-se em vigor registo provisório por natureza de Ação judicial, na qual é ré a sociedade vendedora e titular inscrita Troféu Genuíno, Eletrodomésticos, Unipessoal, Ld.ª»;

14. Por despacho de 11.03.2021, proferido nos autos principais de insolvência (e, entretanto, já transitado em julgado), foi determinada, ao abrigo do disposto no artigo 141.º, nº 3, do CIRE, a separação do veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ...-UC-..., da massa insolvente, com o inerente levantamento da apreensão incidente sobre o mesmo e a sua subsequente restituição a Gopecauto, Ld.ª;

15. Após a transferência da quantia de 9.000,00€ referida no ponto 10, AA transferiu - no dia 14/08/2019 - a quantia de 3.500,00€ da conta bancária da sociedade Troféu Genuíno Ld.ª para a sua (dela DD) conta bancária e, entre os dias 25/08/2019 e 15/09/2019 efectuou levantamentos da conta bancária da sociedade Troféu Genuíno Lda. no total de 1.530,00€ (perfazendo essa transferência e levantamentos o valor global de 5.030,00€).

16. Após a transferência da quantia de 9.000,00€ referida no ponto 10, foram efectuados diversos pagamentos a partir da conta bancária da Insolvente (Troféu Genuíno), designadamente, a credores da sociedade e entre os quais se incluem: 255,94€ e 1.234,07€ ao Estado (em 13-08.2019); 921,60€ a EE (em 14.08.2019); 716,94€ a FF (em 14.08.2019); 366,05€ a GG (em 14.08.2019); 983,96€ a HH (em 14.08.2019) e 852,53€ a Crilar (em 14.08.2019) e, após os levantamentos e transferência referidos no ponto 15, AA pagou, a partir das suas contas pessoais, pelo menos o IVA da Troféu Genuíno, no montante de 2.294,82€, e procedeu aos pagamentos à Requerente que são referidos no ponto 35 e que se reportavam a fornecimentos efectuados à sociedade.

17. A Troféu Genuíno já não apresentava, desde o início de 2018, liquidez suficiente para cumprir pontualmente a generalidade das suas obrigações e, em Maio de 2019, FF, funcionário da empresa (e filho de AA), deixou de trabalhar para a mesma, não havendo, desde então, funcionários ao serviço desta.

17-A. AA (sócia gerente da sociedade Trofeu Genuino Unip. Ld.ª) tinha conhecimento da impossibilidade da sociedade de cumprir as suas obrigações vencidas desde início de 2018 sem que, apesar disso, tivesse ponderado a sua apresentação à insolvência por pretender liquidar todo o passivo existente à custa do seu (dela gerente) património pessoal e encerrar depois a actividade.

18. O estabelecimento comercial da Troféu Genuíno, em Julho de 2019, encontrava-se praticamente vazio;

19. Com a data de 05.09.2019, a Segurança Social emitiu declaração, nos termos da qual a Ré tinha a sua situação contributiva regularizada;

20. Com a data de 05.09.2019, a Autoridade Tributária emitiu declaração, nos termos da qual a Ré tinha a sua situação tributária regularizada;

21. Do mapa de demonstrações financeiras relativo ao quadriénio de 2015/2018, resulta que, já em 2015, a empresa se encontrava em situação de falência técnica, decorrente de prejuízos acumulados;

22. Em cerca de 6 anos de actividade, a empresa requerida apurou sempre prejuízos, com excepção do ano de 2017, em que o resultado foi de 546,00€ positivos;

23. De acordo com o Balanço do exercício de 2018, a empresa apresentava então um activo no total de 69.817,86€, constituído fundamentalmente por saldos nas rubricas de Inventário, Clientes e Activos Fixos Tangíveis (nos montantes respectivamente de €36.201,51, €22.630,70 e €10.365,85), e um passivo de 91.613,34€, decorrente essencialmente de créditos a fornecedores, no total de 49.293,32€; de outro Passivo Corrente por remunerações a pagar, no montante de 20.424,20€, e de Financiamentos obtidos, no total de 11.299,69€;

24. Tais valores permitiram apurar Capitais Próprios negativos no montante de 21.795,48€;

25. Na Demonstração de Resultados relativa ao mesmo ano de 2018, verifica-se um volume de negócios de 107.533,56€ para Custos de Mercadorias Vendidas de 84.061,22€ e Gastos com Pessoal de 27.435,97€ e outros, que permitiu o apuro de Resultado Operacional negativo de 13.949,25€, agravado por Gastos de Financiamento que conduziram a Resultados Líquidos negativos de 14.024,99€;

26. O Balancete Analítico, reportado a 31.10.2019, evidencia um volume de negócios no montante de 29.808,93€, tendo como custos mais significativos os contabilizados na rubrica de Gastos com Pessoal, no montante de 6.760,21€ e Fornecimentos e Serviços de Terceiros, no total de 3.398,76€;

27. Em 02.12.2019, o senhor AI procedeu à apreensão dos bens pertencentes à empresa requerida, os quais, sendo compostos maioritariamente por equipamentos necessários ao exercício da actividade e por contas bancárias, totalizavam um valor de 1.846,15€;

28. Uma parte dos bens que constituíam o inventário referido no ponto 23 (existente em 2018) foi vendido durante o ano de 2019, esclarecendo-se que durante o ano de 2019 foram efectuadas compras no valor de 13.798,41€ e foram efectuadas vendas no valor de 29.808,93€.

29. O prédio urbano composto por estabelecimento comercial, sito em ..., ..., registado com o nº ...75 na Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...85°, com o valor patrimonial de 56.452,23€, mostra-se registado a favor de AA, por averbamento 1448 de 14.04.2011, por partilha subsequente a divórcio;

30. Em 10.07.2019, a imobiliária Remax, na pessoa de II, angariou o bem imóvel acima identificado, a pedido de AA, para venda, pelo preço de 126.500,00€;

31. AA tinha a intenção de, com o produto da venda do bem imóvel acima identificado, de sua propriedade, pagar a totalidade das dívidas da Troféu Genuíno e, após, encerrar a actividade desta;

32. Em cerca de uma semana, surgiu uma proposta de aquisição do aludido imóvel, pelo preço de 65.000,00€, a poder ser concretizada imediatamente;

33. Entretanto, no âmbito de acções executivas movidas pela Litoral Domésticos, o aludido prédio havia sido penhorado, pelo que, para viabilizar a venda acima referida, o proponente adquirente entregou a AA, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 40.000,00€, a fim de lhe possibilitar efectuar o pagamento da quantia exequenda e, com isso, obter o levantamento da penhora;

34. A mencionada quantia de 40.000,00€ foi depositada em conta bancária de FF, filho da sócia gerente da Trofeu Genuíno, dado que as contas bancárias de AA também haviam sido penhoradas;

35. Através da conta bancária de seu filho, FF, a sócia gerente da Troféu Genuíno pagou o valor total de 30.590,74€ à Litoral Domésticos, no âmbito das execuções movidas por esta (no processo nº 1282/19…: €7.128,86; no processo nº 1284/19....; €6.219,68; no processo nº 1286/19....: €7.454,32; e no processo nº 4678/19....: €9.787,88, todos a correr no Juízo de Execução ...).»

3. O direito aplicável:

3.1. A recorrente começa por pedir a revogação do acórdão da Relação, porque este não declarou a nulidade da sentença (como havia requerido na apelação). Sustenta a sua pretensão em três ordens de razões:

«a. Porque o Tribunal Primeira Instância não se pronunciou (i) sobre o desentranhamento do Doc. 3 do Requerimento de 29.05.2021 (refª ...24), pelo facto de poder estar coberto por sigilo profissional e (ii) nem sobre se deveria considerar como não escrito o disposto no art. 26.º da Oposição, que se refere à matéria do documento em causa;

b. Porque o Tribunal Primeira Instância não se pronunciou quanto aos factos e argumentos alegados nos arts. 86.º e 87.º do requerimento inicial (do presente apenso de insolvência culposa).

c. Porque a sentença proferida pelo Primeira Instância é manifestamente ambígua e obscura quanto a quem terá efetuado vários pagamentos ao Estado e a outros credores da Trofeu Genuíno Unip. Lda., bem como quanto ao destino dado pela Recorrida à quantia de, pelo menos, € 5.030,00 que o administrador de insolvência diz que foi parar à esfera pessoal da Recorrida

Quanto à alegada ausência de pronuncia sobre a questão do desentranhamento do supra referido documento, concluiu-se no acórdão recorrido não existir qualquer fundamento para nulidade da sentença, nos termos que se reproduzem:

«Não existe, porém, qualquer omissão de pronúncia que seja susceptível de determinar a nulidade da sentença, uma vez que, apesar de a questão não ter sido conhecida, foram indicadas as razões pelas quais se entendia não ser necessária essa apreciação.

Com efeito, no que toca a essa questão, escreveu-se na fundamentação da Sentença o seguinte: “Consigna-se que, pelo facto de não ter sido valorado na apreciação probatória realizada, não se conhece da questão referente à eventual violação do dever de sigilo profissional a respeito da junção do documento que faz fls. 171 v.º, suscitada pela credora Litoral Domésticos”.

 Essa decisão (de não Conhecer dessa questão) está, aliás, em perfeita consonância com o despacho de 20/11/2020, onde já se havia dito que a eventual violação do sigilo profissional por via da junção do referido documento só relevaria para efeitos da possibilidade de o mesmo ser valorado como meio probatório e que, como tal, a questão de saber se existia ou não violação desse sigilo só seria apreciada se o documento em questão viesse a revelar-se relevante para a decisão da causa, sendo que, se não fosse esse o caso, não seria necessário apreciar essa questão. É evidente, portanto, que não existe qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia; a questão não foi efectivamente apreciada porque se entendeu – conforme consta expressamente da sentença – que tal apreciação não era necessária pelas razões aí indicadas.»

 Não estando em causa uma questão respeitante ao mérito da causa, mas apenas uma questão de natureza processual interlocutória, o seu conhecimento encontra-se excluído do âmbito de análise do presente recurso, dado o disposto no art. 671º, nº 2 do CPC (ainda que o recorrente a qualifique como uma questão de nulidade).

Quanto à alegada ausência de pronúncia sobre factos e argumentos alegados nos pontos 86º e 87º do requerimento inicial, a posição do acórdão recorrido inscreve-se no entendimento doutrinal e jurisprudencialmente sedimentado segundo o qual o juiz não tem de se pronunciar sobre todo e qualquer argumento invocado pela parte para sustentar a sua tese; tem de se pronunciar, sim, sobre questões (de facto ou de direito). Como bem se justificou no acórdão recorrido: «(…) ainda que a delimitação das questões submetidas à apreciação do tribunal seja feita, em boa parte, por via dos factos que são alegados pelas partes, tais factos, individualmente considerados, não correspondem a “questões”, mas sim a argumentos (de natureza factual) que, uma vez provados, irão servir de base à apreciação das questões suscitadas.

Assim, ainda que o juiz tenha o dever, conforme disposto no art. 607.º, nºs 3 e 4 do CPC, de se pronunciar sobre os factos alegados (para o efeito de os julgar ou não provados) - pelo menos os factos que, tendo em conta as várias soluções plausíveis, poderão ser relevantes para a decisão – esses factos não correspondem a “questões”, mas sim a “argumentos” e, portanto, o eventual incumprimento desse dever – com a desconsideração de factos que sejam relevantes para a decisão – não determina a nulidade da sentença, podendo apenas configurar um erro de julgamento, seja ao nível da decisão proferida sobre a matéria de facto, seja ao nível da decisão da causa que veio a ser tomada sem a consideração daqueles factos.

Não existe, portanto, qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia; os factos referidos pela Apelante não correspondiam, conforme referimos, a “questões” para os efeitos da norma citada e, portanto, a sua desconsideração não interfere com a validade formal da sentença e apenas se poderá reconduzir a vício ou erro de julgamento que apenas poderia determinar a alteração ou ampliação da matéria de facto, caso esses factos fossem relevantes para a decisão

Conclui-se, portanto, que o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei processual ao não identificar, nessa matéria, qualquer causa de nulidade da sentença.

Quanto à alegada ambiguidade da sentença, o recorrente reporta-se ao julgamento da matéria de facto.

Neste sentido pronunciou-se corretamente o acórdão recorrido, ao afirmar «(…) a invocada ambiguidade não é, propriamente, causa de nulidade da sentença. Com efeito, o que está em causa é uma pretensa ambiguidade da decisão proferida sobre determinados pontos de facto e tal ambiguidade – se existir – deverá ser resolvida por via da alteração dessa decisão (…)», vindo a concluir que: «Não se configura, portanto, a apontada nulidade da sentença. A existência (ou não) da apontada ambiguidade será oportunamente apreciada e resolvida no âmbito da impugnação deduzida relativamente à decisão da matéria de facto

Ora, como decorre do art. 682º do CPC, não cabe ao STJ pronunciar-se sobre o modo como a matéria de facto foi apreciada e reapreciada nas instâncias (para além das exceções legalmente previstas, que não interessam para o caso concreto).

*

3.2. No que respeita ao objeto central do recurso, a recorrente pede a revogação do acórdão do TRC e a sua substituição por outro que qualifique a insolvência como culposa com as inerentes consequências. Sustenta, para tal (como já havia sustentado na apelação) que se encontrariam verificadas as hipóteses previstas nas alíneas a), b), d), e), g), i) do nº 2 do art. 186º do CIRE, bem como a hipótese prevista na alínea a) do nº3 desse artigo.

Tanto a sentença como o acórdão recorrido entenderam que os factos provados não preenchiam nenhuma das invocadas hipóteses de presunção de insolvência culposa da requerida.  

Efetivamente, a factualidade provada não é absolutamente inequívoca no que respeita ao comportamento da recorrida DD e não é claramente concludente no sentido de se estar perante uma atuação correspondente a uma “insolvência culposa”, tal como esta situação é legalmente traçada pelo art. 186º e para os efeitos do art. 189º do CIRE.

As sanções previstas nos números 2 a 4 do art. 189º, pela sua gravidade, pressupõem que se encontrem demonstrados (de forma expressa ou presumida) factos reveladores dos comportamentos “desviantes” (face ao comportamento padrão legalmente exigido), elencados nas várias hipóteses previstas no art.186º.

Nas nove hipóteses elencadas no nº2 do art.186º não se consagra uma simples presunção de culpabilidade de determinados comportamentos, mas sim a estatuição imperativa de que determinados comportamentos (uma vez dados como provados) recebem necessariamente a qualificação de “insolvência culposa” para efeitos da aplicação das sanções previstas nos nº 2 a 4 do art.189º. Diversamente, no nº 3 do art. 186º [desde logo, pela diferença de redação face ao nº 2], e concretamente quanto à sua alínea a), a única que releva para o caso concreto, o que se estabelece é que o comportamento omissivo dos gerentes (ao não apresentarem a empresa à insolvência no prazo de 30 dias) é considerado culposo. Porém, esta presumida imputabilidade subjetiva não prescinde da demonstração de que aquela omissão foi causalmente determinante da situação de insolvência ou agravou a situação de impossibilidade de dar cumprimento às obrigações vencidas.

3.3. Quanto às hipóteses previstas nas alíneas a), b), d), e), g) e i) do nº 2 do art. 186º (invocadas pela recorrente nas conclusões I a M das suas alegações de recurso).

Dispõe este normativo:

«Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

 (…)
d)
Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

 (…)

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

(…)
i)
Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188º»

3.3.1. Alega a recorrente que se encontrariam preenchidas as hipóteses previstas nas alíneas a), d) e e) porque a sócia gerente da sociedade insolvente teria feito desaparecer parte considerável do património da devedora no ano de 2019, a seu favor e de terceiros, entendendo que tal se encontraria provado nos pontos 3 a 28 da factualidade assente.

Deve notar-se que a hipótese da alínea a) só se preenche no caso de o património do devedor ser feito desaparecerno todo ou em parte considerável”, e que a disposição de bens do devedor, nos termos da alínea d) tem de ser feita “em proveito pessoal ou de terceiros”.

Ora da factualidade provada não é possível concluir qual a concreta “parte considerável” do património que a recorrida teria feito desaparecer entre 2018 e 2019.

A recorrente compara elementos contabilísticos de 2018 com elementos contabilísticos de 2019 para chegar à conclusão, através de um raciocínio especulativo, que a diminuição dos ativos significaria que o património da devedora teria sido feito desaparecer em proveito pessoal da recorrida ou de terceiros.

Todavia, apenas consegue concretizar essa alegação quanto à venda de um veículo automóvel da sociedade devedora, pelo valor de 9.000 Euros. Porém, o destino dos 9.000 Euros encontra-se documentado nos pontos 15 e 16 da factualidade provada, de onde resulta que, desse valor, houve uma transferência de 5.030 Euros para a conta da gerente e que, de seguida, esta pagou, através da sua conta pessoal, dívidas da sociedade a vários credores (incluindo o pagamento do IVA) que totalizaram um montante superior ao que havia recebido. Ora, apesar desta estranha “prática contabilística”, não se pode concluir que ela tenha feito desaparecer parte significativa do património da empresa e que o tenha feito desaparecer em seu benefício, nem que tenha desenvolvido atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa. Acresce que o facto de a sociedade não ter apresentado resultados lucrativos, com exceção do ano de 2017 (como resulta do facto provado nº 22) não significa, por si só, que a recorrida tenha desenvolvido uma atividade em prejuízo da própria empresa e, consequentemente, dos credores. 

Subscreve-se, na essência, a fundamentação que consta do acórdão recorrido quanto ao não preenchimento da hipótese prevista na alínea a) do nº 2, da qual se destaca o seguinte excerto:

«A Apelante fundamenta o pretenso desaparecimento de bens na discrepância existente entre os valores que resultavam dos elementos contabilísticos e o valor dos bens que foram apreendidos. Com efeito, resultando provado que o inventário tinha, em termos contabilísticos e no ano de 2018, o valor de 36.201,51€ e resultando da contabilidade que, em 2019, teriam sido efectuadas compras no valor de 13.798,41€ e vendas no valor de 29.808,93€, deveriam existir, em teoria, bens no valor de 20.190,99€, quando é certo que os bens apreendidos tinham apenas o valor de 1.846,15€. É com base nesses factos que a Apelante conclui que o valor restante (o que deveria existir segundo a contabilidade) corresponde a bens que teriam desaparecido.

Mas, salvo o devido respeito, pensamos não ser válida essa argumentação nos termos que já explicámos aquando da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, uma vez que, pelas razões aí mencionadas, o facto de estar inscrito na contabilidade um inventário com o valor de 36.201,51€ não significa que existissem efectivamente bens nesse valor (conforme se referiu supra, esse inventário poderia estar sobrevalorizado e poderia estar desactualizado em virtude de os bens que o integravam terem sofrido, entretanto, desvalorização).

Para que se pudesse concluir pelo desaparecimento de bens – com a consequente verificação da situação prevista na alínea a) – era necessário que se tivesse como   demonstrada a efectiva existência de determinados bens que, posteriormente, não foram encontrados sem que se tivesse apurado o seu destino.

Nada se provou, no entanto, nesse sentido e, portanto, não podemos ter como verificada a situação prevista na alínea a).»

No que respeita à alínea d) do nº 2, acompanha-se igualmente a fundamentação do acórdão recorrido quando concluiu que não se encontra demonstrada a existência de proveito da gerente ou de terceiros, nos termos que se extratam:

«Não há dúvida que o negócio de compra e venda do veículo é um negócio de disposição do bem em causa. Mas, para que se verifique a situação prevista na citada alínea, é necessário ainda que essa disposição tenha sido efectuada em benefício do próprio administrador ou de terceiros.

Nada resultou provado que permita concluir que a sócia gerente da Insolvente tenha tirado qualquer proveito pessoal do negócio em questão e do produto dessa venda (apesar de, num primeiro momento, ter procedido a uma transferência e a levantamentos da conta bancária da sociedade onde havia sido depositado esse preço, procedeu, posteriormente, a pagamentos aos credores de valor superior e, portanto, não se poderá considerar que tenha obtido qualquer proveito pessoal).

E, na nossa perspectiva, também não poderá considerar-se que o negócio foi celebrado em proveito pessoal do terceiro que adquiriu o veículo por via desse negócio.

Quando a citada alínea exige que a disposição dos bens tenha sido feita em proveito pessoal ou de terceiros estará, naturalmente, a reportar-se a um benefício por eles adquirido sem qualquer contrapartida ou benefício para a sociedade insolvente, ou, pelo menos, sem uma contrapartida que seja justa e adequada. O que ali se pretendeu incluir - enquanto atitude censurável que se considera relevante para efeitos de qualificação de insolvência - foi a situação anómala em que o benefício emergente da disposição dos bens não reverte em favor da pessoa que dele deveria beneficiar, mas sim em favor de outrem, seja ele o administrador da pessoa colectiva a quem pertencem os bens, seja um terceiro; não se pretendeu incluir nessa previsão os actos de disposição de bens que são realizados normalmente pela respectiva proprietária mediante a contrapartida ou contraprestação que foi acordada. Na verdade, aquilo que, na nossa perspectiva, justifica o facto de, nas situações descritas no nº 2, a insolvência se considerar sempre culposa (dispensando a demonstração de qualquer outro facto ou circunstância) é a manifesta irregularidade dos comportamentos ali descritos, que, na sua maioria, correspondem a condutas claramente lesivas do património do devedor e da garantia patrimonial dos respectivos credores e cuja ilicitude não podia ser ignorada, na medida em que diminuem e afectam o património do devedor insolvente, de forma totalmente injustificada (designadamente porque tais actos, apesar de praticados pelo devedor ou pelos seus administradores, visam apenas o favorecimento de terceiros, já que, apesar de se reflectirem negativamente no património do devedor, não são praticados no seu interesse, mas sim no interesse de outrem) e sem que comportem qualquer possibilidade credível de terem sido adoptados sem dolo ou culpa grave. Estão em causa condutas que, implicando, na sua maioria, um favorecimento de outras pessoas que não o devedor, já indiciam, só por si, uma específica vontade e intenção, que, por regra, não se compadece com a inexistência de dolo ou culpa grave.

Ora, em face dessas considerações, pensamos ser claro que a venda do veículo não pode ser vista como um acto de disposição dos bens da devedora em proveito do comprador; na verdade, o comprador pagou à vendedora o preço acordado e, portanto, a transmissão da propriedade do veículo não corresponde a qualquer benefício ou proveito que tenha obtido, correspondendo apenas à prestação a que legitimamente tinha direito em face do negócio celebrado.

Não existe, portanto, qualquer prova de que o negócio de venda do veículo tenha sido celebrado em proveito pessoal da sócia gerente ou qualquer outra pessoa

Acompanha-se, igualmente, o que no acórdão recorrido se afirmou quanto ao não preenchimento da hipótese da alínea e) do nº 2, por ausência de base factual para se concluir que a recorrida teria usado a empresa apenas para alcançar proveito pessoal, replicando-se os seguintes extratos do acórdão:

«Nada resulta da matéria de facto que tenha idoneidade para integrar essa previsão legal, sendo certo que não resultou provado o exercício de qualquer actividade em proveito de qualquer outra pessoa que não fosse a sociedade (a Insolvente).

[…]

É certo que estava em causa uma sociedade de pequena dimensão com pouco património e que quase sempre apresentou prejuízos, mas nada aponta para o facto de que esses prejuízos (da sociedade) tenham tido como resultado qualquer benefício ou proveito para a respectiva sócia gerente ou para qualquer outra pessoa.»

3.3.2. Alega a recorrente que se encontraria preenchida a alínea b) do nº 2 porque a recorrida vendeu o supra referido veículo automóvel por 9.000 Euros quando o podia ter vendido por 11.000 Euros, baseando-se, essencialmente, no que consta do ponto nº11 da factualidade provada. Todavia, o que consta deste ponto da matéria de facto assente não permite extrair linearmente essa conclusão. O que aí se diz é que ela “foi informada pelo concessionário da Nissan que o valor de retoma do aludido veículo, em agosto de 2019, era de 11.000€”. Não se deu como assente que existisse uma concreta proposta de aquisição do veículo por esse valor.

Como se afirmou no acórdão recorrido, sobre a aplicação desta alínea:

«Para que esse negócio fosse susceptível de integrar a previsão da referida alínea era necessário que ele pudesse ser configurado como um negócio ruinoso (ou seja, um negócio que tivesse causado prejuízos à sociedade que dele era proprietária) e era ainda necessário que ele tivesse sido celebrado em proveito do próprio administrador (no caso a sócia gerente) ou em proveito de pessoa que com ele fosse especialmente relacionada (ou seja, uma pessoa que se inserisse no âmbito de previsão do art. 49.º do CIRE). Ora, nada na matéria de facto aponta para a verificação dessa situação.

O veículo em questão foi vendido pelo preço de 9.000,00€ e nada nos permite afirmar que o seu valor de mercado fosse superior. Sobre esta matéria, apenas se provou que o concessionário da Nissan havia informado a sócia gerente da Insolvente de que o valor de retoma do aludido veículo, em Agosto de 2019, era de 11.000,00€.

Mas, além de não ter resultado provado que fosse esse o seu valor de mercado, a verdade é que, ainda que fosse, dificilmente se poderia considerar que uma venda efectuada por 9.000,00€ (motivada, eventualmente, por razões de maior celeridade na celebração do negócio e de recebimento do preço) correspondesse a um negócio ruinoso. É certo, por outro lado, que esse preço foi efectivamente pago e depositado na conta da sociedade.

Mas ainda que fosse um negócio ruinoso – prejudicial, portanto, à sociedade – para que se pudesse ter como verificada a situação prevista na referida alínea era ainda necessário que ele tivesse sido celebrado em proveito da sócia gerente da sociedade ou em proveito de pessoas que com ela fossem especialmente relacionadas (ou seja, uma pessoa que se inserisse no âmbito de previsão do art. 49.º do CIRE). Ora, nada disso aconteceu. É a própria Apelante que reconhece que o preço de venda desse veículo se destinou a pagar a credores da sociedade (conforme resulta, aliás, dos pontos 15 e 16), não tendo resultado provado que a sócia gerente da sociedade ou alguma pessoa com ela especialmente relacionada tivesse retirado desse negócio qualquer proveito ou benefício pessoal.

O negócio foi, na verdade, celebrado no interesse da sociedade, tendo em vista a redução do seu passivo e inseria-se num plano da respectiva sócia gerente de proceder à venda de todo o activo e pagar a totalidade do passivo (à custa, também, do seu património pessoal) com vista ao encerramento da respectiva actividade (cfr. pontos 17-A e 31 da matéria de facto).»

3.3.3. Alega também a recorrente que se encontraria demonstrada a hipótese prevista na alínea g) do nº2, pois a recorrida teria prosseguido no seu interesse pessoal uma exploração deficitária sabendo que acabaria numa situação de insolvência com prejuízo para os credores.

Como já se referiu a propósito da alínea e), a factualidade provada não permite concluir que a atividade desenvolvida pela recorrida tivesse sido direcionada para satisfazer o seu interesse pessoal ou o interesse de terceiros. Do facto de a sociedade não ter apresentado resultados lucrativos, com exceção do ano de 2017, não é possível concluir linearmente que a recorrida tenha desenvolvido conscientemente uma atividade em prejuízo da própria empresa e dos credores ou concluir que ela se houvesse conformado com uma inevitável insolvência da sociedade.

Como se afirma na fundamentação do acórdão recorrido: «(…) a mera circunstância de a gerente da devedora estar ciente da situação de insolvência (ou pré-insolvência) em que esta se encontrava e de, ainda assim, ter prosseguido a actividade deficitária não é bastante para que se considere verificada a situação prevista na citada alínea; para tal, seria necessário, como vimos, que a exploração deficitária fosse prosseguida no interesse pessoal da referida gerente ou no interesse de terceiro e nada resultou da prova produzida que aponte nesse sentido.»

3.3.4. Invoca a recorrente ainda o disposto na alínea i) do nº 2 para sustentar a qualificação da insolvência como culposa, sustentando-se em documentos que diz existentes nos autos (mas que não se encontram refletidos na factualidade assente), afirmando que a recorrida incumpriu de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188º.

Da factualidade provada nada consta que possa sustentar minimamente essa hipótese. E a este tribunal cabe aplicar o direito aos factos que se encontram provados, como estabelece o art. 682º do CPC.

Como se afirmou no acórdão recorrido: «Como é bom de ver, esta situação não se verifica, uma vez que nada se provou nesse sentido (…)»

 

*

3.4. Quanto à hipótese da alínea a) do nº 3 do art. 186º (invocada pela recorrente nas conclusões N a T das suas alegações de recurso):

3.4.1. Entendeu a primeira instância que não se encontrava incumprido o dever de atempada apresentação à insolvência; e, ainda que assim não se entendesse, não se encontraria demonstrado o nexo de causalidade entre essa omissão e a produção ou o agravamento da situação de insolvência.

Diferentemente, no acórdão recorrido (após alteração da matéria de facto, particularmente do ponto nº 17-A) entendeu-se que aquele dever de apresentação à insolvência havia sido incumprido e que a alínea a) do nº 3 do art. 186º consagraria não apenas uma presunção de culpa, mas também uma presunção de nexo de causalidade. Porém, concluiu-se que a requerida teria conseguido ilidir a presunção de culpa. Concluindo-se, portanto, que a insolvência havia sido fortuita (como também havia concluído a primeira instância).

3.4.2. Efetivamente, afirma-se no acórdão recorrido o seguinte: «(…) estando em causa uma sociedade comercial, é evidente que tinha o dever de requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la (cfr. art. 18º do CIRE) e pensamos ser claro que esse dever não foi cumprido, uma vez que, como resultou provado, a sócia gerente da Insolvente tinha conhecimento que a sociedade estava impossibilitada da satisfazer as suas obrigações vencidas desde o início de 2018 e não requereu a declaração da sua insolvência (a insolvência só veio a ser decretada em 03/10/2019 e a requerimento de uma das suas credoras).

Presume-se, portanto, por força do disposto na citada disposição legal, a existência de uma insolvência culposa.

Mas, como também se referiu, essa presunção pode ser ilidida mediante a prova do contrário e pensamos que, no caso, há elementos suficientes para considerar ilidida tal presunção

E depois justifica-se: «Ainda que, num primeiro momento - durante o ano de 2018 e início de 2019 -, a sócia gerente da Insolvente tenha prosseguido a exploração normal da actividade, comprando e vendendo mercadorias (eventualmente na esperança de alguma recuperação), pelo menos a partir de meados de 2019, a sócia gerente da Insolvente terá entendido cessar essa actividade. Mas, ao invés de apresentar a sociedade à insolvência - como seria suposto - nunca ponderou essa possibilidade porque pretendia liquidar todo o passivo à custa (também) do seu património pessoal (uma vez que o património da sociedade era insuficiente), encerrando depois a actividade (cfr. pontos 17-A e 31 da matéria de facto). Para esse efeito, procedeu à venda do veículo pertencente à sociedade (em Agosto de 2019), utilizando o produto da venda para efectuar pagamentos a diversos credores e colocou à venda (em Julho de 2019 e pelo preço de 126.500,006) o imóvel (de sua propriedade) onde funcionava o estabelecimento comercial.

A Apelante pretendia, portanto, liquidar todo o passivo da sociedade à custa dos bens da sociedade (que, na prática, se resumiam ao veículo mencionado) e à custa do referido imóvel (de sua propriedade). E, provavelmente, tê-lo-ia conseguido se não tivesse sido requerida e declarada a sua insolvência e se não tivessem surgido obstáculos à concretização da venda desse imóvel por força de penhora que havia sido requerida pela Apelante (tendo em conta que, como resulta da sentença que declarou a insolvência, havia sido celebrado acordo por via do qual a sócia gerente da Insolvente se havia obrigado pessoalmente ao pagamento da dívida da sociedade à Apelante). Com efeito, apesar de o imóvel ter sido posto à venda pelo valor de 126.500,00€, a sócia gerente da Insolvente acabou por aceitar uma proposta que surgiu de imediato no valor de 65.000,00€, valor que seria provavelmente suficiente para liquidar todo o passivo da sociedade ainda existente. Veja-se que, com o sinal obtido com a promessa de venda desse imóvel, DD (a sócia gerente da Insolvente) pagou à Apelante o valor global de 30.590,74€, pelo que o seu crédito ficou reduzido ao valor global de 10.407,02€ (valor que foi reconhecido pelo Sr. Administrador na lista de créditos) e veja-se que os demais créditos reconhecidos ascendem ao total de 17.869,36€. Ora, ao que tudo indica, este passivo - ainda existente - de 28.276,38€ poderia ser pago com o remanescente do valor daquela venda após o pagamento à Apelante dos referidos 30.590,02€ (ainda que se desconheça se existia, ou não, outro passivo que tivesse sido pago entretanto com aquele valor).

[…]

Importa notar, no entanto, que a intenção da referida sócia gerente não era dar um tratamento preferencial a qualquer credor; o que ela pretendia era liquidar todo o passivo (pagar a todos os credores) á custa, designadamente, do seu património pessoal que já havia colocado à venda e foi por isso que não apresentou a sociedade à insolvência.

Nessas circunstâncias, pensamos haver razões para concluir que a sócia gerente não actuou com culpa grave.

[…]

Ora, no caso, a sócia gerente, quando omitiu o dever de apresentar a sociedade à insolvência, não pretendeu o agravamento da situação de insolvência e tão pouco admitiu e aceitou a possibilidade de verificação desse resultado; o que ela pretendia era precisamente o contrário; pretendia liquidar todo o passivo à custa, designadamente, do seu património pessoal para depois encerrar a actividade com o passivo totalmente liquidado.

[…]

Tendo em conta que o património - que já havia sido colocado à venda - seria, provavelmente, suficiente para satisfazer a totalidade do passivo, admite-se como aceitável (e não totalmente injustificado ou despropositado) - tendo em conta o padrão médio de comportamento de uma pessoa normalmente diligente - o juízo formulado pela sócia gerente da Insolvente de que, nessas circunstâncias, a insolvência seria eliminada por via do pagamento de todo o passivo e seria desnecessário requerer a declaração de insolvência, não podendo afirmar-se - como seria necessário para que existisse culpa grave - que a generalidade das pessoas (ainda que não particularmente diligentes) não iria pensar e actuar da mesma forma. Pensamos, portanto, em face do exposto, haver razões para concluir que a sócia gerente da Insolvente não actuou com culpa grave, considerando-se, por isso, ilidida a presunção de insolvência culposa prevista na alínea a) do nº 3 do art. 186.º.

Entendemos, portanto, em face de tudo o exposto, que não existem razões ou fundamentos para qualificar a insolvência como culposa.»
3.4.3. A nosso ver, o resultado decisório a que se chegou na aplicação do art. 186º, nº 3, alínea a), qualificando a insolvência como fortuita, é o resultado correto. Todavia, a interpretação que, no acórdão recorrido, se fez quanto ao âmbito normativo dessa alínea não é aquela que dominantemente tem sido feita pela jurisprudência do STJ, a qual não tem defendido que nessa alínea a) se consagre uma presunção de nexo de causalidade[1].
Efetivamente, podem ver-se neste sentido os seguintes arestos:

- Acórdão do STJ, de 06.10.2011, no processo nº 46/07.8TBSVC-O.L1.S1 (Relator Serra Baptista), onde se diz que:

«O nº 3 do art. 186º estabelece (…) presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.

Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento.»[2]

- Acórdão do STJ de 08.02.2022 (relator Ricardo Costa), no processo nº 807/17.0T8STS-B.P1.S1, onde se afirma:

«(…) II. Os nºs 2 e 3 do art. 186.º do CIRE elencam um conjunto de factos exemplificativos de actuação susceptível de produção ou agravamento de insolvência efectiva do devedor que não seja pessoa singular de acordo com a cláusula geral do art. 186º, nº 1. Ademais, o nº 2 elenca factos que constituem presunções iuris et de iure da existência de comportamento culposo (doloso ou com negligência grosseira e consciente) no surgimento ou no agravamento do estado de insolvência; por sua vez, o nº 3 adiciona comportamentos que traduzem presunções iuris tantum de “culpa grave” (isto é, comportamento não doloso mas com negligência consciente e grosseira); sempre em referência à actuação do administrador, tanto o de direito como o de facto.

[…]
V. Para termos facto causalmente contributivo para a insolvência (em aproveitamento da aplicação adaptada do art. 563.º do CC) é necessário que tenhamos facto (acção ou omissão) que conduza, imediata e/ou mediatamente, à criação e/ou ao agravamento da situação económico-financeira e/ou à criação ou agravamento de condições impeditivas do cumprimento de ou das obrigações vencidas, com a inerente repercussão negativa na satisfação do interesse dos credores ao pagamento dos seus créditos. É necessário demonstrar que essa actuação se revelou apropriada, pela sua natureza, geral e abstracta, e segundo o decurso normal das coisas e as regras da experiência, a produzir ou a agravar a situação conducente à insolvência, de acordo com um juízo de previsibilidade e probabilidade na óptica de um observador experimentado médio, colocado na posição concreta do sujeito e em referência ao momento da verificação ou agravamento da insolvência (resultado-dano), quanto à imputação dessa situação à conduta.(…)»[3]

- Acórdão do STJ de 23.02.2021 (relatora Maria Olinda Garcia), no processo nº 5831/18.2T8VIS-A.C1.S1, no qual se entendeu que existia nexo de causalidade entre a omissão da apresentação à insolvência e a impossibilidade de o credor receber o seu crédito:

«É qualificável como culposa a insolvência da sociedade que, tendo perdido a licença administrativa para exercer a sua atividade (de empresa de trabalho temporário), não se apresenta atempadamente à insolvência, tendo tal omissão conduzido à sua incapacidade para satisfazer o crédito do seu ex-trabalhador requerente da insolvência, já que, entretanto, veio a receber uma quantia pecuniária que entregou a uma sociedade sua sócia.
 Caso se tivesse apresentado atempadamente à insolvência, a quantia pecuniária que recebeu
, 6 meses depois de ter perdido a licença para exercer a sua atividade (correspondente à devolução de uma caução), teria passado a integrar a massa insolvente e, consequentemente, a poder dar satisfação ao crédito do credor seu ex-trabalhador, que sempre seria graduado antes do eventual crédito da sua sócia (que seria crédito subordinado)[4]

Também na doutrina se tem entendido pela necessidade de que o nexo de causalidade se encontre demonstrado.

 Como afirma Soveral Martins: «O art.186º, 3 permite, no entanto, perguntar se a presunção é apenas relativa à culpa grave ou se também é presumida a insolvência culposa. Perante o disposto no art.186º, 1, parece-nos que as presunções previstas no nº3 seguinte apenas dizem respeito à atuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal atuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência.»[5]

3.4.4. Para se concluir que existe uma situação de “insolvência culposa” (com as consequências previstas no art.189º do CIRE) não bastará, em termos gerais, a simples constatação objetiva da existência de um qualquer atraso na apresentação à insolvência, após a consciência de não se conseguir cumprir as obrigações vencidas. Será necessário que essa omissão temporária conduza, pelo menos, ao agravamento da situação económico-financeira (gerando aumento do passivo ou diminuição do ativo) do devedor com a inerente repercussão negativa na satisfação do interesse dos credores.

Efetivamente, a presunção de culpa estabelecida na alínea a) do nº 3 do art.186º não pode deixar de ser conjugada com o disposto no nº 1 deste artigo, do qual se estrai a conclusão de que a situação de insolvência ou o agravamento dessa situação surge “em consequência da atuação” do devedor.

A distinção legal entre as consequências do comportamento omissivo e a imputabilidade subjetiva desse comportamento encontra-se claramente plasmada na letra no nº5 do art.186º (aplicável às pessoas singulares que não estão legalmente obrigadas a apresentar-se à insolvência). Estabelece-se nesta norma que, ainda que a inação do devedor (não se apresentando à insolvência) determine o agravamento da sua situação económica (nexo de causalidade entre a omissão e o resultado), esse comportamento não se presume culposo. A culpa terá de ser provada. Distingue-se, assim, claramente entre imputabilidade objetiva (nexo de causalidade) e imputabilidade subjetiva (culpa).

 A diferença entre os pressupostos do comportamento do agente previstos nesta norma e o disposto no nº 3 do art.186º respeita apenas ao pressuposto da culpa, que aqui é presumida (enquanto na hipótese do nº5 tem de ser provada).

Sendo a devedora uma sociedade comercial, esta tinha o dever de se apresentar à insolvência, dentro dos 30 dias posteriores à data em que soube que se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, como decorre da aplicação conjugada dos artigos 18º e 3º do CIRE.

Não tendo a gerente da sociedade devedora requerido a insolvência nesses termos, incorreu na presunção de culpa grave estabelecida no art. 186º, nº 3, alínea a). Presume-se, assim, que tal omissão constituirá, no mínimo, uma negligência grosseira, pois ao gerente ou ao administrador de uma sociedade comercial exige-se um grau de conhecimento e de diligência superior ao que é exigido a um devedor singular, relativamente ao qual não se presume a culpa, ainda que a omissão ou o retardamento na apresentação à insolvência tenha determinado um agravamento da sua situação económica (como estabelece o art.186º, nº 5).

Tendo a recorrida plena consciência do dever de apresentar a sociedade à insolvência (como resulta do facto provado nº 17-A)[6], mas não o tendo feito porque pretendia liquidar todas as dívidas à custa do seu património pessoal, não se vê como é que aquela omissão não lhe será subjetivamente imputável (apesar das boas intenções subjacentes a esse comportamento). Efetivamente, a lei não estabelece uma faculdade de apresentação; estabelece, sim, de modo imperativo, um dever de apresentação à insolvência, dentro de determinado prazo, não prevendo qualquer ressalva opcional que possa justificar a omissão de não requerer atempadamente a insolvência.

Não resulta da factualidade provada que a gerente da sociedade insolvente tivesse tido alguma impossibilidade pessoal para cumprir aquele dever (o que, provavelmente, afastaria a presunção de culpa). Antes pelo contrário, como supra referido, ela optou por não cumprir atempadamente esse dever. Apesar de se perceber que ela teria acreditado que conseguiria solucionar todos os débitos e encerrar a atividade da sociedade, sem necessidade de apresentação à insolvência, certo é que não conseguiu concretizar esse plano antes de a insolvência ser requerida por um credor.

Como se referiu, a lei não deixa nas mãos dos gerentes ou administradores das sociedades devedoras a opção de requerer ou não a insolvência quando a sociedade entra em situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas. Deste modo, a recorrida não tinha a opção de não apresentar a sociedade à insolvência (ainda que o tenha feito por uma convicção benemérita ou ingénua de que conseguiria solucionar os problemas financeiros da empresa). Assim, dificilmente se poderia concluir (como concluiu o acórdão recorrido) que a presunção de culpa estabelecida na alínea a) do nº3 do art.186º teria sido claramente ilidida.

Todavia, o facto de a presunção de culpa não ser ilidida não significa, por si só, que se esteja perante uma situação de “insolvência culposa” para os efeitos do art.189º do CIRE, pois tem de se demonstrar a existência de um nexo de causalidade entre a omissão subjetivamente imputável à gerente da sociedade devedora e o agravamento da solvabilidade ou a impossibilidade de satisfazer os credores.

 

3.4.5. Da factualidade provada não se pode concluir inequivocamente que a omissão da apresentação à insolvência em 2018 tenha sido a causa do agravamento ou da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas e, como tal, a razão para que os credores se encontrassem numa situação pior do que aquela em que se encontrariam se a insolvência tivesse sido atempadamente requerida.

Como se estabeleceu no ponto nº 28 da factualidade provada: «Uma parte dos bens que constituíam o inventário referido no ponto 23 (existente em 2018) foi vendido durante o ano de 2019, esclarecendo-se que durante o ano de 2019 foram efectuadas compras no valor de 13.798,41€ e foram efectuadas vendas no valor de 29.808,93€.»

Embora a factualidade assente não seja concludente quanto aos bens do inventário de 2018 que foram vendidos em 2019, nem seja clara quanto ao modo como o resultado das vendas reverteu a favor dos credores, numa análise objetiva não se pode concluir que a prossecução da atividade da sociedade tenha agravado a impossibilidade de pagamento aos credores, pois o valor das vendas foi significativamente superior ao valor das compras.

Por outro lado, em 2019 foram pagou diversos credores da sociedade insolvente com o produto da venda de um veículo automóvel, por 9.000 €, como se conclui do facto provado nº 16, do qual consta que:

 «Após a transferência da quantia de 9.000,00€ referida no ponto 10, foram efectuados diversos pagamentos a partir da conta bancária da Insolvente (Troféu Genuíno), designadamente, a credores da sociedade e entre os quais se incluem: 255,94€ e 1.234,07€ ao Estado (em 13-08.2019); 921,60€ a EE (em 14.08.2019); 716,94€ a FF (em 14.08.2019); 366,05€ a GG (em 14.08.2019); 983,96€ a HH (em 14.08.2019) e 852,53€ a Crilar (em 14.08.2019) e, após os levantamentos e transferência referidos no ponto 15, AA pagou, a partir das suas contas pessoais, pelo menos o IVA da Troféu Genuíno, no montante de 2.294,82€, e procedeu aos pagamentos à Requerente que são referidos no ponto 35 e que se reportavam a fornecimentos efectuados à sociedade

Não se sabe se o valor daquele veículo automóvel, caso tivesse sido apreendido para a massa insolvente e vendido em processo de insolvência, seria idêntico, inferior ou superior. Seria puramente especulativo supor agora que esse valor poderia ser superior.

O que se concluiu, em termos globais, da matéria de facto provada é a existência de alguma “desorientação” ou falta de rigor da requerida na gestão da situação debitória da sociedade devedora, sobretudo ao “misturar” pagamentos das suas contas pessoais com débitos da sociedade.

 Porém, não é possível concluir, de forma linear, que a omissão da apresentação à insolvência no início de 2018 colocou os credores numa situação pior do que aquela em que se encontrariam caso se tivesse verificado essa hipótese. Desde logo porque o agora recorrente recebeu 30.590,74€ em 2019 que não teria recebido se a sociedade devedora tivesse sido apresentada à insolvência em 2018, pois trata-se do pagamento de débitos da sociedade devedora (declarada insolvente), cujo pagamento foi feito com bens pessoais da recorrida DD, como resulta da consideração conjugada do que consta na parte final do ponto 16 da factualidade (supra transcrito) e do ponto nº35, no qual se deu como assente que:

 «Através da conta bancária de seu filho, FF, a sócia gerente da Troféu Genuíno pagou o valor total de 30.590,74€ à Litoral Domésticos, no âmbito das execuções movidas por esta (…)»

Se a recorrida tivesse apresentado atempadamente a sociedade à insolvência, mas não tivesse desenvolvido qualquer esforço para pagar aos credores, nomeadamente através do seu património pessoal, o seu comportamento não seria considerado culposo. Porém, os credores estariam em pior situação, nomeadamente o recorrente que não teria recebido a referida quantia de 30.590,74€.

Em resumo, o acórdão recorrido não merece censura ao decidir que a insolvência não deve ser considerada culposa, mas sim fortuita.

*

DECISÃO: Pelo exposto, considera-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas na revista: pela recorrente.

Lisboa, 07.06.2022

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa (com declaração de voto)

António Barateiro Martins (com declaração de voto)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

________________


Proc. 4654/19.6T8CBR-A.C1.S1

Declaração de Voto

Também considero a revista improcedente, porém, para tal, seguiria “in totum” o percurso e raciocínio jurídicos constantes do Acórdão recorrido.
Efetivamente, venho entendendo (pelas razões que expus, v. g., no Ac. da Rel. de ... de 10/07/2013, proferido no processo 1.441/11.3TBTNV-G.C1, consultável in ITIJ) que as presunções do art. 186.º/3 do CIRE (na redação anterior à Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro) não podem ser consideradas simples presunções de culpa qualificada no facto praticado/omitido, tendo antes que ser vistas como presunções relativas (ilidíveis) de insolvência culposa; venho entendendo que o art. 186.º/3 do CIRE, interpretado como consagrando uma simples presunção de culpa (qualificada) no facto omitido, acaba por se tornar num preceito vazio de sentido útil; e venho entendendo que, assim como as alíneas h) e i) do nº 2, as alíneas a) e b) do nº 3 enunciam factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, ou seja, os factos em tais alíneas enunciados – o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a não elaboração e depósito das contas – fazem supor que, se assim se procedeu, é porque pode haver alguma coisa a esconder, é porque podem ter sido praticados atos que contribuíram para a insolvência e se quis/quer ocultá-los, sendo estes os factos (que se quis/quer ocultar e porventura causais da criação ou agravamento da situação de insolvência) que estão implicitamente presumidos (ou, se preferirmos, ficcionados) nos factos enunciados em tais alíneas a) e b) do nº 3 (assim como nas alíneas h) e i) do nº 2) e cuja verificação desencadeia a insolvência culposa.

Não se ignora, assim vistas as coisas, que serão muitos os casos em que a insolvência será declarada culposa, uma vez que o insolvente tem que combater a presunção legal de insolvência culposa do nº 3 ou, pior ainda, que se conformar com as consequências da insolvência culposa caso se verifique algum dos factos do nº 2, em que a presunção é iuris et de iure, porém, a meu ver, é este o sentido da lei.

António Barateiro Martins

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Processo nºº 4654/19.6T8CBR-A.C1.S1

DECLARAÇÃO DE VOTO

Voto a decisão.

Sem prejuízo, atendendo à compreensão racional do art. 671º, 3, do CPC, mas ainda integrada numa compreensão favorável à admissibilidade recursiva confrontada com a “dupla conforme”, apenas conheceria do objecto recursivo na parcela da fundamentação que se revela “essencialmente diferente” (porque inovatória e diferenciada no juízo da 2.ª instância, merecedora da intervenção do STJ em revista) na interpretação e aplicação do art. 186º, 3, a), do CIRE (portanto, só o ponto 3.4. da parte II) enquanto fundamento do dispositivo decisório coincidente das instâncias.

O 1.º Adjunto

Ricardo Costa

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[1] A nova redação dada ao n.3 do art.186º pela Lei n.9/2022 (embora ainda não aplicável ao caso concreto), não deixará de fornecer uma indicação de que foi este o sentido interpretativo que o legislador quis consagrar. É o seguinte o novo teor desta norma: «Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: (…)»
[2] Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/59337dd5b2aa6bca80257925004e95c6?OpenDocument
[3] Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f63227fe3d6526cc802587e6004f8c8a?OpenDocument
[4] Publicado em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ca8d1495e750c77a80258685003b2209?OpenDocument
[5] Um Curso de Direito da Insolvência (2ª ed), pág.422 e 423.
[6] É o seguinte o teor deste ponto da factualidade provada: «17-A. Rosa Caeiro Cordeiro (sócia gerente da sociedade Trofeu Genuíno Unip. Ld.ª) tinha conhecimento da impossibilidade da sociedade de cumprir as suas obrigações vencidas desde início de 2018 sem que, apesar disso, tivesse ponderado a sua apresentação à insolvência por pretender liquidar todo o passivo existente à custa do seu (dela gerente) património pessoal e encerrar depois a actividade.»