Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2709/18.3T8VCT.G1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
VENDA JUDICIAL
VENDA DE BENS ALHEIOS
MÁ FÉ
NULIDADE
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Pode dizer-se que a venda forçada constituiu uma verdadeira venda, em que a propriedade da coisa passa diretamente do executado para o adquirente. Prevalece, pois, o princípio nemo plus juris re aliena transfere potest quam ipse habet (art. 824.º, n.º 1, do CC, com as exceções previstas no n.º 3 do mesmo preceito).

II. O que não se encontrar disciplinado no CPC segue o regime do CC. III. Na venda de bens alheios, se ambas as partes tiverem agido de má fé, grande parte da doutrina não aplica a disciplina da venda de bens alheios, mas antes o regime geral da nulidade dos negócios jurídicos (arts. 285.º e ss do CC). Deve ser restituído tudo o que houver sido prestado (art. 289.º, n.º 1, do CC): o adquirente deve ser reembolsado, pelo executado (vendedor), do preço pago.

IV. Nos termos do art. 825.º do CC, verificando-se que o bem não pertence ao executado (vendedor), o adquirente (comprador) pode exigir que o preço pago lhe seja restituído por aqueles a quem foi atribuído.

V. De acordo com o art. 894.º, n.º 1, do CC, o conteúdo da obrigação de restituição do preço varia conforme o comprador esteja de boa ou má fé.

VI. Independentemente da posição que se adote quanto ao conteúdo da obrigação de restituição quando o comprador está de má fé, da conciliação prática do art. 825.º, n.º 1, com o art. 894.º, n.º 1, parece resultar que o adquirente (comprador) de coisa alheia em venda executiva apenas pode exigir a restituição do preço “àqueles a quem foi atribuído” no caso de estar de boa fé.

VII. O requisito da falta de causa justificativa remete o intérprete/aplicador para o conceito de causa justificativa, que é um conceito indeterminado. Todo o enriquecimento sem causa é necessariamente obtido à custa de outrem nestes casos em que, justamente, é pela pertença do enriquecimento a outrem que se define a falta de causa.

VIII. Existe uma justificação, aceite pelo ordenamento jurídico, para o “enriquecimento” da Exequente, quando o Executado se encontra obrigado a alimentos. Não se trata de opor à Autora o direito de crédito a alimentos da menor. É que, antes de a respetiva quantia pecuniária ser transferida para a Exequente, o preço pago pela Autora ingressou, idealmente, ainda que apenas por um breve lapso de tempo, na esfera jurídica do Executado, porquanto, na qualidade de titular do direito alienado e de vendedor, é ele o titular do direito ao preço. A Exequente não recebe o montante pago pela “aquisição” (compra) enquanto preço, pois este é percebido pelo Executado, mas antes em cumprimento forçado, por parte deste, da sua obrigação de alimentos perante a filha menor.

IX. A ausência de causa do enriquecimento do Executado (vendedor) encontra-se regulada pelo regime da invalidade (art. 289.º).

X. Além disso, o enriquecimento “há-de ser obtido directamente à custa do empobrecido” (requisito da imediação: entre empobrecimento e enriquecimento não deve encontrar-se um património intermédio, de terceiro).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I - Relatório

1. Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que, na procedência da ação:

a) se declare a nulidade da venda judicial de 1/9 dos referidos 4 prédios, realizada a 12 de setembro de 2016, a favor da Autora, na execução n.º 483/03…..;

b) se ordene o cancelamento do registo de propriedade de 1/9 desses 4 prédios, efetuado a favor da Autora pela Ap. … de 2017/05/18 incidente sobre os prédios urbanos descritos no registo predial sob os n.ºs ...69 e …70, da freguesia de … e sobre os prédios rústicos descritos no registo predial sob os n.ºs …81 e …82 dessa mesma freguesia;

c) se condene a 1.ª Ré a restituir à Autora a quantia de € 14 739,02, correspondente ao preço pago por esta e recebido por aquela por efeito dessa venda judicial, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da adjudicação até efetivo e integral pagamento.

2. Alegou, em síntese, que adquiriu 1/9 de 4 prédios em sede da execução especial n.º 483/03….., juízo de Família e Menores de ….., juiz …. Esta aquisição configura uma venda de bem alheio, tendo sido remetida pelo Tribunal da Relação ….. para ação própria de apreciação da nulidade decorrente dessa venda. A venda em causa é de bem alheio, pois que o Executado, ora Réu, já a 27 de outubro de 2009 havia transmitido aquele 1/9 dos 4 prédios aos Réus CC e Mulher e, por isso, a penhora do mesmo na referida execução n.º 483/03…… não poderia ter sido efetuada. Mais, a penhora realizada nessa execução foi, pois, feita erradamente, pois que, na realidade, a essa data, não existia em separado 1/9 desses 4 imóveis na titularidade do Executado: essa nona parte constituía antes o “quinhão hereditário de BB na herança indivisa aberta por óbito de DD”. Invoca que estava convencida de que o ali Executado BB era titular de 1/9 desses prédios. Por força da alienação do quinhão hereditário, não pertencendo os bens penhorados ao ali Executado BB, não poderiam ter sido objecto de venda em sede dessa execução, uma vez que o Tribunal carecia de legitimidade para a realizar. Quando o Tribunal procedeu à venda judicial e à aceitação da proposta apresentada pela aqui Autora, já o referido bem penhorado não se encontrava na titularidade do Executado BB, ora Réu. Deste modo, a venda judicial realizada a 12 de setembro de 2016 nessa execução e consequente adjudicação à aqui Autora daquele 1/9 dos referidos 4 prédios configura venda de bens alheios e, como tal, é nula - cf. art.º 892.º do CC. Impõe-se, por isso, a declaração de nulidade da venda realizada a 12 de setembro de 2016 na referida execução n.º 483/03….., tendo a Autora direito de exigir da 1.ª Ré a restituição integral do preço que pagou e que por esta foi recebido - cf. arts. 825.º e 894.º do CC - ou seja, a quantia de €14.739,02 (catorze mil setecentos e trinta e nove euros e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos sobre esta quantia, à taxa legal, desde a data da referida adjudicação, sendo que, até à presente data, venceram-se já juros no valor global de €1.109,67 (mil cento e nove euros e sessenta e sete cêntimos).

3. Apenas a 1.ª Ré AA contestou, invocando a exceção do abuso do direito por parte da Autora, alegando que, com a presente ação, pretende a Autora que a venda realizada no âmbito do P. 483 seja declarada nula, condenando-se a Ré a pagar-lhe a importância de €14.739,02, acrescida de juros vencidos e vincendos. Ou seja, a única responsável pela compra dos bens (a Autora) pretende receber de quem nenhuma responsabilidade tem (a 1.ª Ré) uma quantia muito superior àquela que esta auferiu no âmbito do P. 483, quantia essa à qual não tem direito. Alegou ainda que, no caso de existir, a discrepância entre a realidade jurídica dos prédios e aquela que se encontra registada só poderá ser da responsabilidade da Autora, pois a Ré limitou-se a consultar o Registo Predial e a indicar à penhora os bens que nele figuravam como pertencentes ao 2.ª Réu BB (Executado na outra ação), indicando 1/9 indiviso dos mencionados prédios, pois assim constava (e consta) do Registo Predial. Por outro lado, a Autora, apesar de saber desde 2013 que os bens penhorados tinham sido alienados pelo 2.º Réu BB, apresentou uma proposta de adjudicação desses bens em 2016, pagou o preço devido e registou a sua aquisição. Ao reclamar no P. 483 a restituição do valor por si pago, a Autora atuou em manifesto abuso do direito, consubstanciado num evidente "venire contra factum proprium". Abuso do Direito no qual, inexplicavelmente, persiste, ao propor a presente ação, na qual pede a declaração de nulidade da venda e até reclama da 1.ª Ré um valor superior àquele que ela recebeu. A Autora é compradora dolosa, pois sabia, pelo menos desde 2013, que comprava bens que não pertenciam ao Réu BB. Conclui afirmando que a Autora sabia, quando apresentou a proposta de aquisição, que os bens que pretendia que lhe fossem adjudicados no âmbito do P. 483 já não pertenciam a BB, Executado nesse processo. A Autora era, aliás, o único interveniente processual a ter conhecimento de tal facto, do qual soube depois de ter sido citada num Apenso de Habilitação. Aquando da dedução dessa Habilitação, o Requerimento foi instruído com todos os elementos identificativos dos prédios, pelo que, reitera-se, desde 2013 que a Autora sabia quem era o proprietário dos bens penhorados no P. 483. Devendo, assim, improceder o pedido de declaração da nulidade da venda. Impugnou também o valor peticionado pela Autora, porquanto à 1.ª Ré apenas foi entregue parte do produto da venda (€13.359,32), tendo sido a outra parte retida pelo Tribunal (pelo Exmo. Sr. Oficial de Justiça a exercer as funções de Agente de Execução) para custear os encargos do processo, da responsabilidade do Executado. E mesmo quanto ao valor de €13.359,32, a proceder essa parte do pedido, apenas poderão ser reclamados juros desde a data em que a sentença transitar em julgado ou, quando muito, desde a data da citação da Ré; não podendo a Autora reclamar juros desde a data da adjudicação (a qual nem coincide com a data em que efetivamente procedeu ao depósito do preço, pois a adjudicação ocorreu a 12 de setembro de 2016 e o depósito a 6 de março de 2017).

4. A 1.ª Ré deduziu reconvenção, para o caso de procedência da acção, pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe:

a) A quantia de €14.920,00 (catorze mil novecentos e vinte euros), a título de indemnização por danos patrimoniais;

b) A importância de €50.001,00 (cinquenta mil e um euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais;

c) os juros de mora vincendos, à taxa legal, sobre as quantias peticionadas, desde a prolação da Douta Sentença em 1ª Instância e até efectivo e integral pagamento.

5. Requereu, por fim, a 1.ª Ré, a condenação da Autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização a seu favor.

6. A Autora respondeu nos termos do articulado de fls. 205 e ss, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

7. No âmbito do despacho saneador foi proferida sentença, que decidiu julgar improcedente a presente ação, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados.

8. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.

9. Foram apresentadas contra-alegações.

10. Por acórdão de 21 de novembro de 2019, o Tribunal da Relação ….. decidiu o seguinte:

“Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.”

11. A Autora, não se conformando, interpôs recurso de revista excecional, apresentando as seguintes Conclusões:

“1.ª - Não obstante na acção executiva n.º 483/03….. a ré, ali exequente, ser titular de um direito de crédito, um tal direito não é relativo à ora recorrente, já que esta não era ali executada, nem nada deve à recorrida e, portanto, a cobrança coerciva desse direito de crédito não pode ser feita senão à custa do património do ali executado

2.ª - A venda executiva realizada constitui venda de bem alheio e, por isso, o preço pago pela recorrente/compradora foi indevidamente recebido pela ré, ou foi recebido por virtude de uma causa que deixou de existir, já que, como se apurou, esses bens não podiam ter sido objecto de penhora e subsequente venda executiva por não pertencerem ao executado

- vd. n.º 2 art.º 473.º CC

3.ª - A venda executiva ocorrida foi assim geradora de um enriquecimento ilícito para a recorrida e, simultaneamente, causa de um dano para a recorrente que pagou o preço, estando por isso aquela obrigada a restituir à recorrente aquilo com que injustamente se locupletou, ou seja, a quantia de € 14 739,02, acrescida dos respectivos juros de mora

- vd. n.º 1 art.º 473.º CC

EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA:

- revogar-se o douto acórdão proferido, substituindo-o por outro, que julgue procedente o direito da recorrente à restituição integral do preço nos termos das regras do enriquecimento sem causa

ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA”.

12. A 2.ª Ré apresentou contra-alegações, expondo as seguintes Conclusões:

I. Atendendo ao valor da causa (€14.739,02) o presente recurso de Revista Excepcional é legalmente inadmissível, porquanto um dos pressupostos legais (o valor da causa), consagrado no art. 629º, nº1, do CPC, não se verifica.

II. Sendo o recurso delimitado pelas doutas conclusões da Recorrente, entendemos que não lhe assiste razão, devendo o Douto Acórdão Recorrido ser mantida na íntegra.

III. A Recorrida não enriqueceu à custa do empobrecimento da Recorrente.

IV. Como se escreveu no Douto Acórdão recorrido, «a R. era titular de um direito de crédito; a causa que deu origem ao recebimento do preço pago cuja restituição é peticionada pela A. é a cobrança coerciva por parte da Ré desse direito de crédito, no âmbito de uma acção executiva para pagamento de quantia certa - cobrança de alimentos. Donde se conclui que não está verificado um dos apontados requisitos cumulativos, determinantes da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, não havendo, por isso, lugar à pretendida restituição».

Termos em que deve o recurso de Revista excepcional interposto pela Recorrente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ser rejeitado, por legalmente inadmissível;

Assim não se entendendo,

Deverá o Recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se integralmente o Douto Acórdão Recorrido.

Assim farão V. Ex.ªs a esperada e costumada JUSTIÇA!”

13. Por se tratar de um recurso de revista excecional, interposto à luz do art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC, a Relatora, a 9 de outubro de 2020, remeteu os autos à Formação do Supremo Tribunal de Justiça.

14. Por acórdão de 27 de outubro de 2020, a Formação do Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso.

II – Questões a decidir

Atendendo ao Acórdão da Formação do Supremo Tribunal de Justiça, assim como às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento ofícioso, está em causa a seguinte questão:

- saber se, estando vedado ao comprador doloso opor ao vendedor de boa fé a nulidade da venda de bem alheio, aproveitando-lhe apenas as regras do enriquecimento sem causa, pode aqui ser-lhe impedido o direito à restituição integral do preço pago em venda executiva, por o exequente ser titular de um direito de crédito perante o executado (que não é o comprador). Isto é, o direito de crédito do exequente perante o executado constitui causa justificativa para o seu enriquecimento á custa do preço pago pelo comprador no âmbito de venda executiva (nula) de bem alheio e, correspondentemente, causa obstativa da restituição ao comprador do preço pago?

 

III - Fundamentação

A) De Facto

“Factos considerados provados:

1.1. Corre termos no juízo de família e menores de ….., juiz ….., a execução especial n.º 483/03….., instaurada em 06.11.2010 pela ré AA contra o réu BB, visando a cobrança de alimentos em atraso e respetivos juros – doc. Fls. 9 vº e 10.

1.2. Nessa execução foram penhorados ao aí executado BB, ora réu, 1/9 parte indivisa dos seguintes imóveis:

a - prédio urbano, composto de casa de habitação com dois andares e rossio, sito na freguesia de …., ……, descrito no registo predial sob o n.º ….69;

b - prédio urbano, composto de casa de habitação de dois andares, 2 dependências e rossio, sito na freguesia de …., ….., descrito no registo predial sob o n.º …..70;

c - prédio rústico, composto de terreno de cultura, vinha e pomar, sito na freguesia de …, …, descrito no registo predial sob o n.º …..82

d - prédio rústico, composto de terreno de cultura e vinha, sito na freguesia de …., …., descrito no registo predial sob o n.º …..81

1.3. Foi agendada a abertura de propostas deste 1/9 destes prédios para o dia 12.12.2013, sendo que, na ausência de qualquer proposta nessa data, foi determinada a venda por negociação particular.

1.4. Em 12.09.2016, a autora apresentou proposta para aquisição de 1/9 desses 4 imóveis penhorados - pelo preço global de € 14.739,02 - tendo-lhe os mesmos sido adjudicados.

1.5. Na sequência, em 06.04.2017 foi emitido o título de transmissão de 1/9 desses 4 imóveis a favor da autora – cf. doc. de fls. 9vº e 10.

1.6. Em 18.05.2017, a autora registou a seu favor essa aquisição - cfr. Ap.2851 de 2017/05/18 – doc. 10 vº a 16.

1.7. Corre termos no juízo local de ….. a acção de divisão de coisa comum n.º 236/10…., instaurada pela autora em 27.04.2010, contra, entre outros, o réu BB – doc. de fls. 17 e ss.

1.8. Em 26.06.2017, a autora deduziu por apenso a essa acção o incidente de habilitação de adquirente de 1/9 indiviso que BB detinha nos referidos 4 prédios – fls. 17 e ss.

1.9. Em 10.07.2017 CC e mulher contestaram esse incidente, alegando, em suma, que por escritura pública outorgada em 27.10.2009 adquiriram ao réu BB o quinhão hereditário deste na herança indivisa por óbito de sua avó, DD.

1.10. Quinhão esse que corresponde a um nono indiviso da referida herança.

1.11. Em 04.12.2017 o juízo local de ….. julgou improcedente o incidente de habilitação deduzido pela A., precisamente por considerar que a parte que a ora autora se propunha substituir (BB) deixou de ser parte nos autos – cf. doc. de fls. 19 e ss em face da habilitação ocorrida no apenso A. desse mesmo processo, como infra descrito em 1.42. e 1.43.

1.12. Isto, em virtude de, em 12.07.2013, por decisão proferida no apenso A dessa acção, terem sido já habilitados CC e EE a intervir nos autos em substituição de BB, como infra descrito em 1.42. e 1.43.

1.13. Em 17.01.2018, em sede da execução n.º 483/03…., a autora requereu então a anulação da venda de 1/9 dos quatro prédios sitos na freguesia de ….., …. - cfr. doc. n.º 8, de fls. 21.

1.14. Alegou aí a autora que lhe foram adjudicados bens alheios, o que consubstancia “erro quanto à coisa transmitida”.

1.15. Em 27.03.2018, o juízo de família e menores decidiu julgar improcedente a pretensão da ora autora, quer por a considerar extemporânea, quer por entender que desde dezembro de 2011 tinha conhecimento da referida escritura de cessão do quinhão hereditário.

1.16. Em 14.06.2018, sob recurso da autora, o Tribunal da Relação … decidiu confirmar a decisão recorrida, negando provimento à apelação da autora - cfr. doc. n.º 9, de fls. 24 e ss.

1.17. Nesse acórdão do Tribunal Superior consignou-se, de entre o mais o seguinte: “Em primeiro lugar, por tudo quanto inicialmente se expôs, sobre os pressupostos do incidente deduzido e lembrando-se que ele o foi ao abrigo do disposto no n.º 1, do art.º 838.º, CPC, devia ter sido o mesmo liminarmente rejeitado. Com efeito, invocou-se, a pretexto de o bem ter sido vendido pelo executado a terceiro antes de penhorado na execução e nesta ter sido adjudicado à apelante, que houve “erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado” - um dos dois fundamentos naquela norma previstos - e, portanto, pediu-se a anulação da venda executiva. Ora, manifestamente, tal situação configura uma venda de bem alheio e não se confunde com aquela previsão legal. Como se explicou e justificou, na desconformidade em causa não cabe a venda de coisa alheia. (…) O bem adjudicado corresponde, inquestionavelmente, ao que, neste processo, foi anunciado, pretendido comprar e comprado pela recorrente. Se, de facto, a coisa vendida pertencia, sem dúvida, a terceiro, para a venda, na execução, ficar sem efeito necessário era que, nos termos do art.º 839.º n.º 1, alínea d), tivesse sido este - e não foi - a reivindicá-la aqui. De resto, o problema da nulidade da venda de 27.10.2009 só pode ser tratado e decidido no confronto também do vendedor e do comprador (no incidente apenas estão a credora exequente que requereu a penhora e o adquirente a quem na execução ele foi adjudicado) e em função das regras de direito substantivo atinentes - arts.ºs 892.º, 894.º e 825.º do CC - e sem perder de vista as do registo predial.” (…) “Certo que a apelante, nas alegações e conclusões, invoca ainda - mas não o fizera no requerimento inicial, por isso aqui tal se apresentado como questão nova - a nulidade decorrente, já não do fundamento que invocara e subsumira ao disposto no n.º 1, do art.º 838.º, CPC, mas da venda de bens alheios, pedindo que esta, sendo de conhecimento oficioso, seja declarada por este Tribunal. Sucede que este incidente é impróprio para tal se apreciar e decidir. Na execução, a consequência seria a prevista na alínea d), do n.º 1, do art.º 839.º, CPC (ficar sem efeito). Nele não estão os interessados respectivos, nomeadamente o dono, a reivindicá-la. Tal nulidade, em função do regime previsto no art.º 892.º, CC, está sujeita a condições (não pode ser oposta pelo vendedor ao comprador de boa fé nem o comprador doloso ao vendedor de boa fé) que limitam o seu conhecimento oficioso. Tem de ser equacionada em função das regras de registo predial e dos conceitos de terceiro e de boa-fé (cfr. Acórdão do STJ, de 21-02-2006).”

1.18. Em 27.10.2009, por escritura pública de “cessão de quinhão hereditário”, o réu BB declarou vender ao réu CC o seguinte: “Quinhão Hereditário na Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de sua avó, DD, quinhão esse que corresponde a um nono indiviso da referida herança” - cfr. doc. n.º 10.

1.19. Esse “quinhão hereditário” engloba o 1/9 de que o réu BB foi proprietário nos referidos 4 prédios.

1.20. Os réus CC e mulher, porém, não fizeram registar a seu favor a aquisição desse quinhão hereditário.

1.21. Em 06.11.2010, na execução especial por alimentos referida supra em 1.1. veio a exequente AA, ora ré, indicar à penhora, em concreto, a nona parte dos referidos 4 prédios devidamente identificados.

1.22. A autora, em 12/9/2016, no âmbito da execução nº 483/03….. apresentou proposta de compra de 1/9 desses 4 prédios, no valor global de € 14 739,02, valor esse que pagou na íntegra, tendo-lhe por isso mesmo sido emitido o título de transmissão respectivo.

1.23. No âmbito da tentativa de conciliação efectuada nos autos de Divórcio Litigioso nº 483/03….., foi regulado o exercício do poder paternal relativamente à menor FF, filha da Ré e do Réu BB.

1.24. Por força desse Acordo, realizado em 30 de Junho de 2003 e homologado por Douta Sentença de 29 de Setembro do mesmo ano, ficou o BB obrigado a pagar à Ré, a título de alimentos, a quantia de €125,00 (cento e vinte e cinco euros) mensais, montante anualmente actualizado em função do índice de inflação.

1.25. Não tendo o Réu BB procedido a tal pagamento, foi instaurada Execução para cobrança de tais valores. – Documento de fls. 84 vº e ss.

1.26. Após pesquisas efectuadas pela subscritora junto de diversas entidades, foram nomeados à penhora, e posteriormente penhorados, 1/9 indivisos de quatro prédios. – Documento 2 de fls. 87 vº e ss.

1.27. Prédios esses cujo primitivo registo na Conservatória do Registo Predial foi promovido pela A., na sequência da aquisição por parte desta de 2/9 indivisos desses prédios, no âmbito de Execução movida contra dois irmãos do Réu BB (Processo nº 628/2002, que correu seus termos no extinto Tribunal Judicial de ….). – Documento 3 de fls. 91 e ss.

1.28. A A., em processos judiciais, arrogou-se da titularidade de 2/9 dos mencionados prédios, não tendo jamais mencionado que o seu direito corresponde a 2/9 de um quinhão hereditário! – Documento 4 de fls. 105 vº e 106.

1.29. Foi a A. quem apresentou, relativamente a esses prédios, a Declaração Modelo 1 do IMI. – Documento 5, fls. 107.

1.30. No âmbito do P. 483, foi determinada a venda dos bens penhorados por proposta em carta fechada, a qual ficou deserta. – Documento 6 de fls. 108.

1.31. Subsequentemente, foi determinada a venda por negociação particular, através da qual, durante vários anos, não se logrou obter interessados. – Documento 7, de fls. 108 vº.

1.32. Pelo que, por despacho de 02/05/2016, foi indeferida a prorrogação do prazo peticionada pelo Sr. Encarregado de Venda. – Documento 8, fls. 109 vº.

1.33. Em face da iminente extinção da instância (por deserção), a aqui Ré requereu a adjudicação dos bens penhorados. – Documento 9, fls. 110 vº e ss.

1.34. Na sequência desse pedido, foi designado dia para a abertura de propostas em carta fechada (12/09/2016), tendo a A. efectuado a única proposta de aquisição. – Documento 10, de fls. 112 vº e 113.

1.35. Posteriormente, a A. "ameaçou" desistir da aquisição (devido a um problema com o registo de uma das verbas, relacionado com as áreas), pelo que a aqui Ré insistiu na adjudicação dos bens penhorados, caso a A. avançasse com essa "desistência". – Documento 11, fls. 113 vº e ss. – tendo este problema sido ultrapassado e os bens adquiridos pela A. – Documento 13, fls. 127 vº e 128.

1.36. Na sequência dessa venda, recebeu a Ré a importância de €13.359,32 (treze mil trezentos e cinquenta e nove euros e trinta e dois cêntimos). – Documento 14, fls. 128 vº.

1.37. Posteriormente, em face da inexistência de outros bens penhorados, foi extinta a execução (P. 483), documento 15, fls. 129.

1.38. Em Janeiro de 2018, foi a Ré notificada do pedido de anulação da venda efectuada pela A., na qualidade de adquirente no âmbito do P. 483 com fundamento de que os bens penhorados e adjudicados, à data da adjudicação, não pertenciam ao Executado BB. – Documento 16, fls. 129 vº e ss.

1.39. A Ré respondeu, pugnando pela intempestividade e, principalmente, pela inexistência de erro (dado que a A. sabia desse facto desde 2013, ou seja, muito antes de ter apresentado a proposta, em 2016). – Documento 17, fls. 139 vº e ss.

1.40. A ora A. instaurou acção de divisão de coisa comum contra GG, HH e BB a que corresponde o Processo nº 236/10……, na qualidade de titular de 2/9 dos prédios supra descrito em 1.2.

1.41. No âmbito do referido processo especial de acção de divisão de coisa comum foi a A. notificada da contestação deduzida em 24/11/2011 por CC e esposa na qual estes invocavam ter adquirido ao co-réu BB o seu quinhão hereditário – fls. 166 e ss, tendo deduzido a resposta de fls. 178 e ss.

1.42. Por apenso à referida acção de divisão de coisa comum foi deduzido incidente de habilitação de adquirente pelos referidos CC e esposa, de que a A. foi notificada em 18/01/2013, tendo contestado nos termos constantes de fls. 185 e ss.

1.43. Com data de Julho de 2013 foi proferida sentença, transitada em julgado, constante de fls. 186 vº e ss que julgou habilitados como adquirentes do réu BB os requerentes habilitandos CC e esposa.

1.44. A A. sabia, desde Novembro de 2011 ou pelo menos desde Janeiro de 2013, que os bens penhorados pela aqui Ré já não pertenciam ao Réu BB.

1.45. Apesar desse conhecimento, no ano de 2016, apresentou uma proposta, na sequência da qual lhe foram adjudicados os referidos bens.

1.45. Apesar desse conhecimento, no ano de 2016, apresentou uma proposta, na sequência da qual lhe foram adjudicados os referidos bens.

1.46. A aquisição do quinhão hereditário por parte CC e EE não foi registada.

Factos julgados não provados:

2.1. Foi tendo em conta o anúncio de venda formulado na sequência da penhora dos bens indicados pela aí exequente, ora Ré, que a ora A. apresentou proposta de compra.”

B) De Direito

Venda executiva

1. A venda executiva encontra-se funcionalmente dirigida à satisfação coerciva o direito de crédito do exequente, quando o executado não cumpre voluntariamente a sua obrigação. No âmbito da ação executiva para o pagamento de quantia certa, é com o produto da venda dos bens penhorados que se efetua o pagamento da dívida.

2. A apreensão judicial dos bens, resultante da respetiva penhora, não extingue, naturalmente, o direito de propriedade do executado sobre os mesmos. Este apenas fica privado do exercício dos poderes de fruição e de disposição dos bens.

3. Com a venda, tem lugar como que uma “transferência coativa” do direito de propriedade dos bens do executado para o comprador.

4. Coloca-se, na venda executiva, a questão de saber quem é o vendedor: o executado representado pelo exequente, o executado representado pelo órgão executivo, o exequente, o executado ou o órgão executivo.

5. Pode dizer-se “que o juiz vende pelo executado, não no sentido de que o representa, mas no sentido de que o substitui e consegue, por um ato de autoridade, o mesmo efeito jurídico, que derivaria de um ato da vontade do executado[1]. A “arrematação é um contrato de natureza processual, em que o tribunal funciona como substituto, e não como representante do executado[2]. Mas, para todos os efeitos, “a arrematação é um ato de transferência, envolvendo alienação, aquisição e havendo sempre transmissão dos bens do executado[3].

6. O órgão executivo, no exercício dos poderes que lhe são concedidos, opera a transferência coativa do direito de propriedade dos bens penhorados do executado para o adquirente.

7. Os efeitos da venda executiva não se produzem na esfera do órgão executivo, mas antes nas do executado e do adquirente.

8. O direito de propriedade do adquirente é aquele que pertencia ao executado. Trata-se de uma aquisição derivada, em que o executado é, efetivamente, o alienante[4]. Pode dizer-se que a venda forçada constituiu uma verdadeira venda, em que a propriedade da coisa passa diretamente do executado para o adquirente (comprador). A venda não é feita pelo órgão executivo na qualidade de proprietário dos bens – que não é, e que se limita, na ausência da vontade do executado, a vender os bens no exercício dos poderes que lhe são legalmente conferidos, entregando, a seguir, aos credores o preço obtido. Vende no lugar do executado os bens penhorados, em virtude do seu incumprimento. Prevalece, pois, o princípio nemo plus juris re aliena transfere potest quam ipse habet (art. 824.º, n.º 1, do CC, com as exceções previstas no n.º 2 do mesmo preceito).

9. Deste modo, o que não se encontrar disciplinado no CPC segue o regime do CC. A disciplina da perturbação do contrato de compra e venda consubstanciada na venda de bens alheios é, mutatis mutandis, aplicável à venda judicial, juntamente com o disposto do art. 825.º do CC. A venda executiva pode, pois, ser qualificada como um contrato especial de compra e venda com características de direito público[5].

Venda de bens alheios

1. A situação prototípica prevista nos arts. 892.º e ss do CC é a venda de bem alheio (i.e., direito cuja titularidade não pertence ao vendedor) como próprio, no interesse do próprio vendedor, sem autorização do verdadeiro titular. Esta venda encontra-se ferida de nulidade.

2. O sistema de inoponibilidades consagrado nos arts. 892.º e ss – que representa um desvio à regra do art. 286.º - pressupõe sempre a ignorância de uma das partes do carácter alheio da coisa vendida.

3. Para alguns autores, para haver dolo do comprador basta que este celebre o contrato sabendo que a coisa pertence a terceiro[6]. Sob este ponto de vista, a expressão “dolo” é usada com o mesmo sentido que lhe é dado nos arts. 483.º, 898.º e 899.º (i.e., conhecimento, pelo comprador, da alienidade da coisa e da falta de legitimidade do vendedor, não relevando o desconhecimento culposo)[7]. Entendem outros autores que não basta o conhecimento, por parte do comprador, da falta de titularidade e de legitimidade do vendedor, sendo necessário que, nos termos do art. 253.º, o comprador tenha induzido ou mantido o vendedor em erro, ou se tenha apercebido do erro deste mas o tenha dissimulado em ordem a mantê-lo na sua falsa convicção[8]. Por último, para outros, parece que o termo dolo se deve aproximar do conceito de má fé em sentido ético. Assim, age de boa fé a parte que desconhece sem culpa a alienidade da coisa vendida e a falta de legitimidade do vendedor, de um lado e, de outro, age de má fé a parte que conhece, ou ignora por negligência, aquela alienidade e falta de legitimidade do vendedor[9].

4. Este sistema de inoponibilidades permite à parte de boa fé prevalecer-se da eficácia do contrato. Não lhe confere, naturalmente, o direito ao cumprimento do dever de pagamento do preço ou do dever de entrega da coisa vendida, pois foram precisamente estes deveres que a lei quis impedir que surgissem nas respetivas esferas jurídicas ao ferir de nulidade a venda de bens alheios. Atribuem-se antes à parte de boa-fé determinadas posições, apesar da invalidade dos deveres primários de prestação, as quais pressupõem, via de regra, a inobservância de deveres primários de prestação válidos e eficazes. Como consequência da nulidade, a coisa deve ser restituída ao vendedor pelo comprador, independentemente da boa ou má fé daquele.

5. Conforme o art. 839.º, n.º 1, al. d), do CPC, a venda executiva fica sem efeito se a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono. É que o comprador nada adquire se o executado não for o titular do direito alienado. Segundo a doutrina dominante, a venda efetuada pelo non dominus constitui res inter alios acta e é, como tal, ipso jure ineficaz perante o titular do direito, não produzindo efeitos na sua esfera jurídico-patrimonial. A venda é, pois, sempre ineficaz perante o verdadeiro titular do direito: res inter alios acta. Por isso, o dono da coisa ilicitamente vendida por outrem pode reivindicá-la diretamente ao adquirente, sem necessidade de prévia declaração judicial da nulidade da venda. Alguma doutrina[10] permite ao adquirente valer-se procedimentalmente, de modo autónomo – i.e., independentemente da diligência processual do titular do direito em sede de ação de reivindicação -, do regime previsto no art. 838.º, n.os 2-4, do CPC, requerendo a anulação da venda com base na falta de titularidade do executado. Considera que se trata de uma situação equiparável àquela dos ónus por, em ambos os casos, estar em causa a ineficácia – total ou parcial – da venda perante o verdadeiro titular do direito alienado.

6. O bem em apreço nos autos não devia ter sido penhorado, pois não pertencia ao Executado. A subsequente venda desse bem é nula.

7. Na hipótese de ambas as partes terem agido de má fé – como se verifica no caso sub judice -, havendo celebrado o contrato apesar de ambas saberem que o vendedor não é o titular do direito nem tem legitimidade para o alienar, grande parte da doutrina não aplica a disciplina da venda de bens alheios, mas antes o regime geral da nulidade dos negócios jurídicos (arts. 285.º e ss do CC).

8. A venda executiva de bem alheio é nula, devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado (art. 289.º, n.º 1, do CC). Por conseguinte, o adquirente deve ser reembolsado, pelo executado (vendedor), do preço pago.

Art. 825.º (“Garantia no caso de execução de coisa alheia”) do CC

1. Tendo lugar uma venda executiva que recai sobre coisa alheia, vendendo-se um bem que não pertence a quem tem a posição de executado, e que também não deve responder pela dívida, deveria, à primeira vista, aplicar-se o regime da venda de bens alheios, estabelecido nos arts. 892.º e ss do CC. Contudo, a invalidação da venda, nos termos gerais deste regime, iria enfraquecer os fins subjacentes à ação executiva. Por isso, o art. 825.º estabelece um desvio, em diversos aspetos, ao regime previsto para a venda de bens alheios nos arts. 892.º e ss do CC[11].

2. Apesar de não haverem proposto uma ação de reivindicação, no âmbito do processo especial de ação de divisão de coisa comum (proc. n.º 236/10….) intentado pela Autora (na qualidade de titular de 2/9 dos prédios em apreço) foi proferida sentença, transitada em julgado, que julgou habilitados como adquirentes do Réu BB os requerentes habilitandos CC e Mulher, EE (factos provados sob os n.os 1.40 a 1.43) e não a Autora.

3. Do que se cura, no art. 825.º, é da venda em processo executivo de bens cuja titularidade se vem a verificar que não pertencia ao executado. A solução consagrada neste preceito passa pela previsão de um regime especial de invalidade[12].

4. O direito do adquirente (comprador) à restituição do preço não se dirige ao executado (vendedor), mas antes àqueles a quem esse preço tenha sido atribuído: os credores, ou as pessoas cujos direitos tenham sido transferidos para o produto da venda, nos termos do art. 824.º, n.º 3.  Com efeito, segundo o art. 825.º, n.º 1, verificando-se que o bem não pertence ao executado (vendedor), o adquirente (comprador) pode exigir que o preço pago lhe seja restituído por aqueles a quem foi atribuído: exequente e credores que o hajam recebido. No restante, aplica-se o art. 894.º (ex vi do art. 825.º, n.º 1, in fine).

5. O adquirente (comprador) tem igualmente direito a que os danos por si sofridos sejam reparados pelos credores e pelo executado. Também aqui as regras gerais da venda de bens alheios como que sofrem um desvio, pois só se houver culpa dos credores ou do executado, designadamente na nomeação do bem alheio à penhora, é que é devida uma indemnização (art. 825.º, n.º 1, 1.ª parte).

6. Não havendo culpa dos credores ou do executado, o adquirente (comprador) suporta os prejuízos, apenas podendo pedir a restituição do preço. Deste modo, além da restituição do preço, o adquirente tem direito a ser indemnizado pelos danos sofridos, pelos credores e pelo executado que hajam procedido com culpa.

7. Contudo, o adquirente (comprador) que “compra” um bem que sabe anteriormente alienado a terceiro, aceita o risco de ele não ser reconhecido como pertencente ao executado, o que exclui o direito a qualquer indemnização, mas não o seu direito à restituição do preço (perante o vendedor, nos termos do enriquecimento sem causa ou do regime geral da invalidade do negócio jurídico, conforme a posição que a este propósito se adote).

8. No que respeita à restituição do preço, o art. 825.º, n.º 1, in fine, estabelece uma remissão para o art. 894.º.

9. Assim, o adquirente (comprador) tem o direito de exigir a restituição integral do preço “àqueles a quem foi atribuído”, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer causa. Porém, se houver tirado proveito da perda ou diminuição de valor dos bens, será o proveito abatido no montante do preço que lhe dever ser restituído.

10. Acresce que, nos termos do art. 825.º, n.º 3, o adquirente pode fazer valer o seu direito à restituição do preço diretamente contra o executado, pois que o cumprimento da dívida exequenda foi efetuado à custa de bem alheio e não de bem seu. Pode, na verdade, ter interesse em proceder dessa forma, v.g., se o preço já tiver sido consumido “por aqueles a quem foi atribuído[13]. Subrroga-se, então, aos credores e exerce os respetivos direitos de crédito contra o devedor (executado).

Art. 894.º, n.º 1, ex vi do art. 825.º, n.º 1, in fine

1. De acordo com o art. 894.º, n.º 1, o conteúdo da obrigação de restituição do preço varia conforme o comprador esteja de boa ou má fé. Assim, o comprador de boa fé pode exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, se tenham deteriorado ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa, independentemente da boa ou má fé do vendedor.

2. Grande parte da doutrina afirma que este preceito se afasta do regime geral do art. 289.º, aproximando-se da disciplina estabelecida para a obrigação de restituir à luz do enriquecimento sem causa, prevista nos arts. 479.º e 480.º do CC.

3. Na verdade, de acordo com a doutrina dominante, procedendo à interpretação enunciativa do art. 894.º, n.º 1, mediante o recurso ao argumento a contrario sensu, o comprador de má fé não pode exigir a restituição integral do preço da venda, mas apenas aquilo com que o vendedor se locupletou segundo as regras do enriquecimento sem causa (arts. 473.º e ss)[14]. Note-se que, de acordo com esta posição, o art. 894.º, n.º 1, aplica o limite do enriquecimento (art. 479.º, n.º 2) à obrigação de restituição (do bem vendido), resultante do art. 289.º, a cargo do comprador de boa fé. Entendem estes autores que, ao prever para o comprador de boa fé apenas a obrigação de restituir o enriquecimento e para a vendedor de má fé a obrigação de restituir o obtido à custa do comprador, o art. 894.º determina uma restituição por enriquecimento sem causa, que em tudo se concilia com o regime previsto nos arts. 479.º e 480.º[15].

4. No caso dos autos, foi dado como provado que a Autora, quando adquiriu o bem penhorado no âmbito da execução especial por alimentos n.º 483, sabia que o mesmo já não pertencia ao Executado, e sabia-o desde 2011 ou, pelo menos, desde

2013. Pode, deste modo, concluir-se que agiu com “dolo”, i.e., de má fé.

5. De acordo com a posição da doutrina dominante, está, por conseguinte, vedado à Autora o direito à restituição integral do preço, na medida em que tal direito, ao abrigo do disposto no art. 894.º apenas se encontra previsto para o comprador de boa fé.

6. Para outros autores, do art. 894.º, n.º 1, apenas se pode retirar que o comprador de má fé não tem direito à restituição integral do preço nos casos de perda, deterioração ou diminuição de valor do bem, pois que se impõe a dedução, no montante do preço a restituir, da quantia correspondente às repercussões negativas dessas vicissitudes no bem a restituir. Com efeito, o que o art. 894.º, n.º 1, não visa é atribuir ao comprador de boa fé o direito à restituição integral do preço, porquanto esse direito resulta já do art. 289.º, n.º 1. O que esse preceito intenciona é antes dissociar o direito à restituição integral do preço das vicissitudes sofridas pela coisa durante o tempo em que esteve em poder do comprador de boa fé. Estando o comprador de má fé, não se aplica a norma especial do art. 894.º, n.º 1 (prevista apenas para os casos em que o comprador se encontra de boa fé), mas antes o regime geral estabelecido nos arts. 289.º e 290.º do CC[16].

7. Em qualquer caso, independentemente da posição que se adote quanto ao conteúdo da obrigação de restituição quando o comprador está de má fé, da conciliação do art. 825.º, n.º 1, com o art. 894.º, n.º 1, parece resultar que o adquirente (comprador) de coisa alheia em venda executiva apenas pode exigir a restituição do preço “àqueles a quem foi atribuído” no caso de estar de boa fé, i.e., de desconhecer, sem culpa, a falta de titularidade do direito ou de legitimidade do vendedor. Com efeito, não faria sentido que a Autora, que conhecia a falta de titularidade e de legitimidade do Executado para vender o bem em causa e, mesmo assim, se propõe adquiri-lo (comprá-lo), viesse depois exigir da Exequente – que, aliás, se encontra de boa fé, pois que desconhecia, sem culpa, a falta de titularidade do Executado – a restituição integral do preço pago. O regime especial ou o desvio à disciplina prevista para a venda de bens alheios, consagrado no art. 825.º, n.º 1, para a hipótese de execução de coisa alheia, não se aplica quando o adquirente (comprador) se encontra de má fé, como sucede in casu. A restituição das prestações efetuadas em cumprimento de um negócio nulo deve também, em primeiro lugar, ter lugar entre as partes (Réu/Executado (vendedor) e Autora/Adquirente (compradora)).

8. Não se aplicando o preceito do art. 825.º, n.º 1, a Autora não pode exigir da Exequente ora Ré a restituição do preço pago com base no art. 894.º.

Do enriquecimento sem causa

1. Também não assiste à Autora o direito à restituição do preço nos termos das regras do enriquecimento sem causa (arts. 473.º e ss).

2. De acordo com o art. t. 473.º, “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

3. O requisito da ausência de causa justificativa remete o intérprete/aplicador para o conceito de causa justificativa, que é um conceito indeterminado[17]e, por isso, carecido de implementação valorativa. Remete-o, na construção do sentido da norma de acordo com a ideia de justiça, para os “critérios legais definidores de uma correta ordem ou ordenação dos bens[18].

4. Na medida em que esses critérios são todos os princípios e todas as regras do ordenamento ou do sistema jurídico, o requisito da falta de causa justificativa significa, em último recurso, “uma remissão para o resto do ordenamento[19].

5. O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que “a noção de falta de causa do enriquecimento é… muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa[20].

6. Entre os aspetos mais ou menos consensuais estão o de que a ausência de causa justificativa coloca um problema de interpretação e de integração da lei[21] e o de que, através da interpretação e da integração da lei, se há-de determinar, “em cada caso concreto, se o ordenamento jurídico (…) acha ou não legítimo que o beneficiado (…) conserve (o enriquecimento)[22].

7. Se há casos em que se pode dizer que o enriquecimento é obtido à custa de outrem mas não é destituído de causa, todo o enriquecimento sem causa é necessariamente obtido à custa de outrem nestes casos em que, justamente, é pela pertença do enriquecimento a outrem que se define a falta de causa[23].

8. O critério da determinação da ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial pressupõe a consideração da correta ordem ou ordenação dos bens aceite pelo sistema jurídico. Se, de acordo com esta, deve pertencer a outra pessoa, o enriquecimento não tem causa justificativa[24].

9. A determinação da ausência de causa do enriquecimento da Ré/Exequente não poderia deixar de conflituar com a correta ordem ou ordenação jurídica dos bens, com a ideia de justiça que essa ordem ou ordenação persegue.

10. Existe, efetivamente, uma justificação, aceite pelo ordenamento jurídico, para esse “enriquecimento” da Ré/Exequente: a obrigação de alimentos do Réu/Executado perante a menor FF, sua filha e da Ré/Exequente, e que foi objeto do acordo de ambos sobre o exercício das responsabilidades parentais celebrado a 30 de junho de 2003 e judicialmente homologado a 29 de setembro do mesmo ano (factos provados sob os n.os 1.23 e 1.24).

11. O enriquecimento é, então, adquirido pelo património da Ré/Exequente. De acordo com a correta ordem ou ordenação dos bens, deve ficar aí, sendo definitivamente adquirido por esse património, não devendo ser deslocado para o património da Autora. Não foi perturbado qualquer equilíbrio patrimonial que precise de ser restaurado, não havendo necessidade de corrigir a deslocação patrimonial que teve lugar a favor da Ré/Exequente. Este resultado decorre de exigências de justiça subjacentes àquela correta ordem ou ordenação dos bens[25]. Não há nada a retransmitir, por parte da Ré/Exequente, ao património da Autora, porque o montante por si percebido não pertencia ao património da Autora de acordo com a correta ordem ou ordenação dos bens.

12. Não se trata de opor à Autora o direito de crédito a alimentos da menor FF – o que poderia conflituar com a relatividade das obrigações. É que, antes de a respetiva quantia pecuniária ser transferida para a Ré/Exequente, o preço pago pela Autora ingressou, idealmente, ainda que apenas por um breve lapso de tempo, na esfera jurídica do Réu/Executado, porquanto, na qualidade de titular do direito alienado e de vendedor, é ele o titular do direito ao preço. Portanto, a obrigação de pagamento do preço é, em primeira linha, cumprida perante o Executado. Na verdade, a Ré/Exequente não recebe o montante pago pela “aquisição” (compra) enquanto preço, pois este é percebido pelo Réu/Executado, mas antes em cumprimento forçado, por parte deste, da sua obrigação de alimentos perante a filha menor FF. Pode dizer-se, grosso modo, que o pagamento do preço foi efetuado pela Autora ao Réu/Executado e este, coativamente, entregou o respetivo montante à Ré/Exequente em cumprimento da obrigação de alimentos a que se encontrava adstrito.

13. A invalidade da venda executiva acarreta a falta de causa do enriquecimento de cada uma das partes, resultante da execução das prestações (pagamento do preço e entrega da coisa vendida), mas não do enriquecimento da Autora. Essa ausência de causa do enriquecimento do Réu/Executado (vendedor) encontra-se regulada pelo regime da invalidade (art. 289.º). A invalidade da venda, sendo fonte de restituição de prestações, em virtude da sua semelhança com o que se verifica no enriquecimento sem causa, afasta a aplicação do regime deste. Trata-se também da subsidiariedade do enriquecimento sem causa.

14. Com efeito, conforme o art. 474.º, 1.ª parte, que estabelece o princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa, “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro modo de ser indemnizado ou restituído”. Entende-se que se faz referência a um outro meio com a mesma utilidade e onerosidade[26]. Poder-se-ia dizer que a Autora (compradora) sempre poderia exigir a restituição integral do preço ao Réu/Executado (vendedor), à luz do art. 289.º, n.º 1, uma vez que ambos se encontram de má fé – ambos conheciam a falta de titularidade e de legitimidade do Réu/Executado (vendedor). A restituição das prestações realizadas em cumprimento de um negócio nulo deve também, em primeiro lugar, ter lugar entre as partes (Réu/Executado (vendedor) e Autora adquirente (compradora)).

15. De resto, estando provada a má fé do sujeito direta ou imediatamente enriquecido – o Réu/Executado (vendedor) -, não está provada a má fé do sujeito apenas indireta ou mediatamente enriquecido – a Ré/Exequente[27].

16. Não se verifica, pois, perante a Ré/Exequente, o pagamento do indevido por parte da Autora – condictio indebiti (arts. 476.º-478.º do CC). Existe causa para esse pagamento feito à Ré/Exequente e, por isso, para esta o reter: o cumprimento da obrigação de alimentos – causa solvendi. O sistema jurídico consente a deslocação patrimonial em apreço, pois existe uma relação de natureza alimentar que, de acordo com os respetivos princípios, a justifica.

17. Importa igualmente levar em linha de conta que o enriquecimento sem causa visa remover o enriquecimento, transferindo-o do património do enriquecido para o do empobrecido. De acordo com a correta ordem ou ordenação dos bens, e com a ideia de justiça que lhe está subjacente, a vantagem adquirida pelo enriquecido estava destinada ao empobrecido, era-lhe atribuída, pertencia-lhe perante o conteúdo de destinação da posição jurídica do empobrecido em que o enriquecido interveio. A lei obriga, então, o enriquecido a dar ao empobrecido o que está a mais no seu património e, nessa medida, faz entrar no património do empobrecido alguma coisa do que aí está a menos[28]. Nada isso se verifica no caso dos autos.

18. Além disso, se o que se pretende é que o enriquecido fique colocado na mesma situação em que estaria se não fosse a deslocação patrimonial que o enriqueceu, à custa do empobrecido, o enriquecimento corresponde ao saldo ou diferença para mais no património do enriquecido, que resulta da comparação entre a situação em que ele presentemente se encontra (situação real) e aquela em que se encontraria se não se tivesse verificado a deslocação patrimonial que funda a obrigação de restituir (situação hipotética)[29]. Ora, poderia até dizer-se que, no caso em apreço, também não existe enriquecimento da Autora: era titular de um direito de crédito ao pagamento de determinado montante que foi satisfeito pela entrega da correspondente quantia pecuniária e, por isso, aquele saldo ou diferença entre a situação real (a situação em que o enriquecido agora está, no momento em que é judicialmente citado para a restituição - após a entrega da quantia pecuniária correspondente aos alimentos) e a situação hipotética (situação em que ele estaria, no mesmo momento, se o facto produtivo do enriquecimento não se tivesse dado – titularidade de um direito de crédito ao pagamento daquele montante pecuniário a título de alimentos) do património da Autora seria igual a zero. Apesar de se acolher o conceito de enriquecimento em sentido patrimonial, afigura-se, todavia, bastante discutível afirmar que é patrimonialmente indiferente ter um crédito ou o montante que corresponde à sua satisfação. Por isso, a ausência de enriquecimento patrimonial não constitui fundamento para a não aplicação do instituto do enriquecimento sem causa ao caso sub judice.

19. Além disso, o enriquecimento constitui também um dos dois limites que, segundo o seu conteúdo normal, a obrigação de restituir o enriquecimento sem causa comporta. Quem consome bens alheios não se enriquece na medida do valor objetivo do valor dos bens consumidos, mas na medida da diferença que haja – se diferença houver – entre a situação em que o seu património se encontra e aquela em que se encontraria se não tivesse ocorrido aquele facto. O conceito patrimonial de enriquecimento é, necessariamente. contingente ou aleatório (porque dependente do efeito ou influência que a aquisição da vantagem tenha tido, concretamente, sobre o património do enriquecido). Estando o enriquecido de boa fé, não parece justo obrigá-lo a restituir senão o que esteja a mais no seu património e a verdade é que, em tal hipótese, no seu património nada está a mais[30] (arts. 479.º, n.º 2, e 480.º).

20. Depois, o enriquecimento “há-de ser obtido directamente à custa do empobrecido[31]. O empobrecimento é também pressuposto e limite da obrigação de restituir (arts. 473.º, n.º1, e 479.º, n.º 1). Trata-se de estabelecer a ligação ou contacto entre a vantagem adquirida pelo devedor e o património do credor, de atribuir a este legitimidade para receber o crédito a que a obrigação de restituir corresponde. É a circunstância de o enriquecimento ter sido obtido à custa do empobrecido que explica e justifica que o enriquecimento seja transferido ou deslocado precisamente para o património do empobrecido[32]. O requisito da imediação (art. 481.º a contrario sensu)[33] significa que entre empobrecimento e enriquecimento não deve encontrar-se um facto intermédio ou um património intermédio, de terceiro (o enriquecimento indireto ou mediato é aquele em que a deslocação tem lugar mediante um património intermédio, i.e., ocorrem duas aquisições ou transmissões sucessivas)[34] – no caso dos autos, entre o enriquecimento da Ré/Exequente e o empobrecimento da Autora esteve o património do Réu/Executado. Houve como que duas transmissões: uma da Autora para o Executado e outra deste para a Exequente. 

21. A exigência de que a atribuição patrimonial seja direta ou imediata, ou de que entre o património empobrecido e o património enriquecido não haja nenhum património intermédio, não é, todavia, objeto de consenso[35].

22. Entre os dois polos do espetro, verifica-se a tendência para preterir critérios mais simples, como o da ausência de um facto intermédio ou de um património intermédio, em prol de critérios mais complexos[36], porque se exige uma ponderação global[37], norteada por um sentimento comum de justiça, de todos os interesses relevantes e de todas as circunstâncias do caso concreto. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[38] já enunciou os critérios, mais complexos, aplicáveis aos casos em que as atribuições patrimoniais sejam só indiretas ou mediatas em termos de regra e de exceção: em primeiro lugar, a regra, segundo a qual o enriquecimento há-de ser direta ou imediatamente obtido à custa do empobrecido, e, depois, a exceção, que ressalva os casos em que o requisito da imediação conflitue com o comum sentimento de justiça[39].

23. No caso dos autos, não pode dizer-se que o requisito da imediação conflitue com o comum sentimento de justiça. O sujeito direta ou imediatamente enriquecido é o Réu/Executado que viu cumprida uma obrigação sua através do produto de venda executiva de coisa alheia. A não exigência da imediação é que contrariaria, certamente, neste caso, aquele comum sentimento de justiça

24. De facto, a Ré/Exequente, indireta ou mediatamente enriquecida, não pode ficar obrigada em lugar do Réu/Executado, porquanto não recebeu o montante correspondente ao preço a título gratuito, mas antes em cumprimento da obrigação de alimentos de que o Executado era devedor perante a filha menor FF. Não se lhe aplica, por conseguinte, a exceção (art. 481.º), mas antes a regra que pressupõe, precisamente, a imediação.


IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar o recurso improcedente interposto por Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL, confirmando-se o acórdão do Tribunal da Relação …..

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 23 de março de 2021.


Sumário: 1. Pode dizer-se que a venda forçada constituiu uma verdadeira venda, em que a propriedade da coisa passa diretamente do executado para o adquirente. Prevalece, pois, o princípio nemo plus juris re aliena transfere potest quam ipse habet (art. 824.º, n.º 1, do CC, com as exceções previstas no n.º 3 do mesmo preceito). 2. O que não se encontrar disciplinado no CPC segue o regime do CC. 3. Na venda de bens alheios, se ambas as partes tiverem agido de má fé, grande parte da doutrina não aplica a disciplina da venda de bens alheios, mas antes o regime geral da nulidade dos negócios jurídicos (arts. 285.º e ss do CC). Deve ser restituído tudo o que houver sido prestado (art. 289.º, n.º 1, do CC): o adquirente deve ser reembolsado, pelo executado (vendedor), do preço pago. 4. Nos termos do art. 825.º do CC, verificando-se que o bem não pertence ao executado (vendedor), o adquirente (comprador) pode exigir que o preço pago lhe seja restituído por aqueles a quem foi atribuído. 5. De acordo com o art. 894.º, n.º 1, do CC, o conteúdo da obrigação de restituição do preço varia conforme o comprador esteja de boa ou má fé. 6. Independentemente da posição que se adote quanto ao conteúdo da obrigação de restituição quando o comprador está de má fé, da conciliação prática do art. 825.º, n.º 1, com o art. 894.º, n.º 1, parece resultar que o adquirente (comprador) de coisa alheia em venda executiva apenas pode exigir a restituição do preço “àqueles a quem foi atribuído” no caso de estar de boa fé. 7. O requisito da falta de causa justificativa remete o intérprete/aplicador para o conceito de causa justificativa, que é um conceito indeterminado. Todo o enriquecimento sem causa é necessariamente obtido à custa de outrem nestes casos em que, justamente, é pela pertença do enriquecimento a outrem que se define a falta de causa. 8. Existe uma justificação, aceite pelo ordenamento jurídico, para o “enriquecimento” da Exequente, quando o Executado se encontra obrigado a alimentos. Não se trata de opor à Autora o direito de crédito a alimentos da menor. É que, antes de a respetiva quantia pecuniária ser transferida para a Exequente, o preço pago pela Autora ingressou, idealmente, ainda que apenas por um breve lapso de tempo, na esfera jurídica do Executado, porquanto, na qualidade de titular do direito alienado e de vendedor, é ele o titular do direito ao preço. A Exequente não recebe o montante pago pela “aquisição” (compra) enquanto preço, pois este é percebido pelo Executado, mas antes em cumprimento forçado, por parte deste, da sua obrigação de alimentos perante a filha menor. 9. A ausência de causa do enriquecimento do Executado (vendedor) encontra-se regulada pelo regime da invalidade (art. 289.º). 10. Além disso, o enriquecimento “há-de ser obtido directamente à custa do empobrecido” (requisito da imediação: entre empobrecimento e enriquecimento não deve encontrar-se um património intermédio, de terceiro).


Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Fernando Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).


Maria João Vaz Tomé (relatora)

_________

[1] Cf. José Alberto dos Reis, “Da Venda em Processo de Execução”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 1.º, N.º 4, 1941, p. 443.
[2] Cf. Inocêncio Galvão Telles, “Ação de arbitramento e preferência do inquilino comercial”, Ac. do STJ de 29 de abril de 1947, in Boletim Faculdade Direito da Universidade de Lisboa, Ano 4.º, 1947, pp.209-212.
[3] Cf. Inocêncio Galvão Telles, “Ação de arbitramento e preferência do inquilino comercial”, Ac. do STJ de 29 de abril de 1947, in Boletim Faculdade Direito da Universidade de Lisboa, Ano 4.º, 1947, pp.209-212.
[4] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, “Sobre a eficácia extintiva da vende executiva”, Ac. do STJ de 4 de abril de 2002, in Cadernos de Direito Privado, N.º 2, abril/ junho, 2003, p.59.
[5] Cf. José Lebre de Freitas, A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, Gestlegal, 2017, p.404.
[6] Cf. Inocêncio Galvão Telles, “Contratos Civis”, in BMJ n.º 83, 1959, p.128.
[7] Cf. Diogo Bártolo, “Venda de bens alheios”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume IV, Coimbra, Almedina, 2003, p.400.
[8] Cf. Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 892.º, in Código Civil anotado, Volume II, Coimbra, Coimbra Editora,
[9] Cf. António Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, VolumeI, Coimbra, Almedina, 1984, pp.497-500; Manuel A. Carneiro da Frada, “Perturbações típicas do contrato de compra e venda”,  in Direito das Obrigações, Volume 3 (coordenado por Menezes Cordeiro), Lisboa, AAFDL, 1992, p.54.
[10] Cf. Rui Pinto, A ação executiva, Lisboa, AAFDL, 2018, p.921; Artur Anselmo de Castro, A ação executiva singular, comum e especial, Coimbra, Coimbra Editora, 1970, p.238.
[11] Cf. Maria Victória Rocha, “Anotação ao Artigo 825.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.1213.
[12] Cf. Maria Victória Rocha, “Anotação ao Artigo 825.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.1213.
[13] Cf. Maria Victória Rocha, “Anotação ao Artigo 825.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.1214.
[14] Cf. Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 894.º, in Código Civil anotado, Volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1986; Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume III, Coimbra, Almedina, 2013, p.93; António Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Volume I, Coimbra, Almedina, 1984, p.501; Paulo Olavo Cunha, “Venda de bens alheios”, in ROA, 47, 1987, p.453; Manuel Baptista Lopes, Do contrato de compra e vendas: no direito civil, comercial e fiscal, Coimbra, Almedina, 1971, p.145.
[15] Cf. Luís Telles de Menezes Leitão, O enriquecimento sem causa no direito civil. Estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1996, pp.627 ss.; Luís Telles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p.467.
[16] Cf. Diogo Bártolo, “Venda de bens alheios”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume IV, Coimbra, Almedina, 2003, p.410.
[17] Cf. Luís Telles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p.453: “seguramente o conceito mais indeterminado no âmbito do enriquecimento sem causa”.
[18] Cf. Rui de Alarcão, Direito das obrigações (policopiado), Coimbra, 1983, p.190.
[19] Cf. Júlio Manuel Vieira Gomes, “anotação ao art. 473.º”, in Código Civil anotado, Volume II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.251.
[20] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de março de 2017 (António Joaquim Piçarra), proc. n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1.
[21] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de setembro de 1999 (Nascimento Costa), proc. n.º 99B686; de 16 de outubro de 2003 (Araújo Barros), proc. n.º 03B2813; e de 19 de fevereiro de 2013 (Alves Velho), proc. n.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1.
[22] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de março de 2017 (António Joaquim Piçarra), proc. n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1.
[23] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, Coimbra, Almedina, 1999, p.11.
[24]  Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça 7 de novembro de 2019 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 354/14.1TBALM.L1.S2; de 28 de junho de 2011 (Helder Roque), proc. n.º 3189/08.7TVLSB.L1.S1; de 29 de abril de 2014 (Helder Roque), proc. n.º 246/12.9T2AND.C1.S1; e de 3 de maio de 2018, proc. n.º 175/05.2TBALR.E1.S1 (Pedro de Lima Gonçalves).
[25] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, Coimbra, Almedina, 1999, p.20.
[26] Cf. Júlio Manuel Vieira Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 1998, p.443.
[27] A ausência de má fé permite sustentar que a obrigação de restituição do sujeito só indireta ou mediatamente enriquecido “deva ser subordinada à impossibilidade prática de exercitar a acção de enriquecimento contra o alienante, em virtude da insolvência deste” - cf. Luís Telles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p.477.
[28] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, Coimbra, Almedina, 1999, pp.22-23.
[29] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, Coimbra, Almedina, 1999, p.26.
[30] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, Coimbra, Almedina, 1999, pp.36-37, 39.
[31] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, "Um problema de enriquecimento sem causa", in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XVII, 1970, pp.354-356.
[32] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho, O enriquecimento e o dano, Coimbra, Almedina, 1999, p.41.
[33] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 354/14.1TBALM.L1.S2; Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 473.º, in Código Civil anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p.457; João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, Volume I, Coimbra, Almedina, 2000, pp.493-496; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 2006, pp.496-499; António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, Volume VIII, Coimbra, Almedina, 2017, pp.232-235.
[34] Considerando que a imediação consiste na ausência de um facto intermédio, vide Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 473.º, in Código Civil anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p.457; João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, Volume I, Coimbra, Almedina, 2000, pp.493-496. Defendendo que a imediação se tradua na ausência de um património intermédio, vide, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 2006, p. 497; Luís Telles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pp. 425-426.
 Ainda que art. 481.º não fosse claro, sempre haveria consenso no sentido de que o requisito da imediação não se aplica aos casos de alienação ou de disposição gratuita do objecto da obrigação de restituição. O terceiro fica sempre obrigado a restituir na hipótese de aquisição gratuita, porque “uma liberalidade não deve ser mantida em detrimento de outrem”. Cf. Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 481.º, in Código Civil anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 469; Ana Prata, “anotação ao art. 481.º”, in Ana Prata (coord.), Código Civil anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pp.624-625; Júlio Manuel Vieira Gomes, “anotação ao art. 473.º”, in Código Civil anotado, Volume II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, p.251, e “anotação ao art. 481.º”, in Código Civil anotado, Volume II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, pp.269-270; Francisco Manuel Pereira Coelho, "Um problema de enriquecimento sem causa", in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano 27.º, 1970, p.355.
[35] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 354/14.1TBALM.L1.S2; de 30 de maio de 2006, proc. n.º 06A825 (Nuno Cameira). A favor do requisito da imediação, Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 473.º, in Código Civil anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p.457; João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, Volume I, Coimbra, Almedina, 2000, pp.493-496; Francisco Manuel Pereira Coelho, "Um problema de enriquecimento sem causa", in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XVII, 1970, pp.354-356; Diogo Leite de Campos, A subsidiariedade da obrigação de restituir o enriquecimento, Coimbra, Almedina, 1974, p.327. Contra aquele requisito, vide Luís Telles de Menezes Leitão, O enriquecimento sem causa no direito civil. Estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1996, pp.627 ss.; Luís Telles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pp.425-426
[36] Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 2006, pp.498-499.
[37] Cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, Volume VIII, Coimbra, Almedina, 2017, p.234; Luís Telles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pp.425-426.
[38] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de27 de janeiro de 1998 (Fernando Fabião), proc. n.º 97A354.
[39] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 354/14.1TBALM.L1.S2; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 2006, pp.498-499.