Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2523/19.9T8PRD-E.P1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
DIREITO AO RECURSO
INCONSTITUCIONALIDADE
ALÇADA
RECLAMAÇÃO
Data do Acordão: 05/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: CONFIRMADO
Sumário :
I. Primeira Instância condenou o requerido a pagar uma indemnização por litigância de má fé; houve recurso para o TR, que se pronunciou sobre a situação, o que significa que houve já um grau de recurso (art.º 542.º, n.º 3 do CPC);

II. As normas relativas à litigância de má fé não impedem o recurso da decisão para o STJ, mas tão só asseguram a existência de um grau de recurso e é por força da 1ª decisão ser da Primeira Instância, seguida da intervenção do TR que se esgotam os recursos possíveis sobre a questão.

III. In casu sempre faltaria um pressuposto de aplicação do art.º 629.º, n.º 2, al.d) – existência de norma impeditiva de recurso para o STJ.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. Veio apresentada reclamação, nos termos do art.º 643.º do CPC, contra o despacho do Exmo Desembargador Relator, em que se decidiu:

Os requerentes AA e BB vieram interpor recurso de revista do acórdão proferido em 10.11.2020, tendo, entre outros motivos, alegado contradição entre este e outros acórdãos dos tribunais da Relação.

Sucede que o valor da causa se circunscreve a 8.000,01€.

O art. 629º, nº 2, al. d) do Cód. de Proc. Civil diz-nos que «independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (…) do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»

Com esta norma permite-se que o Supremo Tribunal de Justiça dirima contradições jurisprudenciais que, sem ela, poderiam persistir mesmo em ações que, apesar de apresentarem um valor processual superior à alçada da Relação, não admitem recurso de revista nos termos gerais, como acontece nos procedimentos cautelares ou, como regra, nos processos de jurisdição voluntária.

No entanto, conforme afirma Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 3ª ed., pág. 54), «ao invés do que faria supor a integração da alínea d) no proémio do nº 2, a admissibilidade do recurso, por esta via especial, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pois só assim se compreende o segmento normativo referente ao “motivo estranho à alçada do tribunal”».

Regressando ao caso dos autos, o que se verifica é que o valor da causa se limita a 8.000,01€, sendo, por isso, inferior à alçada dos tribunais da Relação em matéria cível que é de 30.000,00€ - cfr. art. 44º, nº 1 da LOSJ.

Ora, tal como preceitua o art. 629º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

Por conseguinte, o recurso interposto pelos requerentes, face ao valor da causa, mostra-se inadmissível.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no art. 641º, nº 2, al. a) do Cód. de Proc. Civil, por inadmissível, decide-se indeferir o recurso interposto pelos requerentes AA e BB.

Notifique.”


2. Dizem os reclamantes na reclamação que a mesma deve ser admitida, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1ª) A douta decisão recorrida viola o disposto no art. 692.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Civil;

2ª) A oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação é – independentemente do valor da causa e da sucumbência – fundamento de recurso para o STJ;

3ª) In casu, o recurso de revista não pode ser barrado, pois não obstante o valor da causa seja inferior à alçada da Relação, perfilam-se os fundamentos previstos na al. d) do n.º 2 do art.º 629.º do diploma supra citado;

4ª) Na verdade, a oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação é – independentemente do valor da causa e da sucumbência – fundamento de recurso para o STJ;

5ª) A mencionada oposição integra os fundamentos das alegações de recurso dos Autores;

6ª) O n.º 2 do art.º 629.º estipula expressamente que “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso”, pelo que não podia o Ac. ora em crise restringir o que o que a norma não restringe;

7ª) A compreensão daquela norma faz-se recorrendo a uma interpretação evolutiva sustentada, nas alterações de que foi alvo ao longo dos tempos, com o escopo indelével de permitir o direito ao recurso em casos como o objectus litigandi;

8ª) Não colhe a interpretação restritiva que a Relação faz da norma que temos vindo a debater, quando se reconhece que o legislador se exprimiu de forma genérica e ampla - “Independentemente do valor da causa e da sucumbência”- sendo verdadeiro, o provérbio: Ubi lex non distinguit, nec nobis distinguere licèt;

9ª) E ao não aceitar o recurso dos Autores, o Ac. viola a Constituição que prevê o direito ao recurso;

10ª) Mais, a norma do art.º 629, n.º 2, al. d) a ser tomada com o sentido que o Tribunal da Relação lhe confere, ofenderia o direito a um processo equitativo previsto no art. 20.º, n.º 4, da Constituição, uma vez que estabeleceria pressupostos desnecessários, inadequados e desproporcionados para o recurso fundado em oposição de acórdãos da Relação;

11ª) A matéria subjacente aos autos tem na sua base a condenação como litigante de má fé; e abstraindo do caso concreto, em abstrato e em termos genéricos, percorrendo as condenações decorrentes de má fé feitas pelos Tribunais de primeira instância, raramente ou quase nunca se atingem os valores da alçada fixada para os Tribunais da Relação;

12ª) Pelo que, e “destarte”, temos que dar como assente, a seguir-se a argumentação do Tribunal da Relação que ocorrendo a situação em análise – contradição entre acórdãos da Relação – jamais ou muitíssimas poucas vezes o S. T. J. seria chamado a pronunciar-se, convertendo-se consequentemente o instituto da boa fé numa espécie de “parente pobre” dos demais que o nosso direito alberga;

13ª) Ora, certamente que o legislador ponderou todos os casos/hipóteses, previamente à criação da norma do art.º 629.º, al. d). designadamente a argumentação vinda de referir, e por isso a fórmula que traduz a teleologia daquele artigo não é a indicada pela Relação;

14ª) O senso crítico na interpretação daquela norma, indigita a que a versão da Relação não esteja correta, o que a ocorrer conduziria a antinomias e desacertos no nosso sistema legislativo/processual, bastando compaginar esta matéria com outras onde a via de acesso ao S. T. J, não está impedida, designadamente a possibilidade do “terceiro grau de jurisdição”;

15ª) O Ac. da Relação de 10.11.2020, ao alterar o decidido pelo Tribunal de primeira instância em 12.06.2020, têm os Autores, parte vencida na indemnização, direito a recurso;

16ª) De facto, a decisão que não condena na indemnização pedida, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, é sempre recorrível nos termos gerais, exceção esta que terá de ser acolhida;

17ª) E mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, o acórdão da Relação não sendo confirmatório do montante da indemnização pedida, impondo uma outra, o recurso para o STJ torna-se legalmente admissível;

18ª) Uma vez que em matéria de litigância de má fé está legalmente - artigo 542.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil – garantido (sempre, diz a lei) um grau de recurso, sempre haverá, neste último caso, recurso para o STJ;

19ª) Pelo que, a decisão da Relação viola também o disposto no artigo 542.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil.

NESTES TERMOS, E NOS DE DIREITO, DEVE SER ATENDIDA A PRESENTE RECLAMAÇÃO E CONSEQUENTEMENTE SER ADMITIDO O REC URSO INTERPOSTO PELOS AUTORES EM 21.12.2020 E, POR VIA DISSO SUBIR A ESSE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, PARA AÍ SER SINDICADA A DECISÃO RECORRIDA.


3. Em primeira instância foi proferida sentença na qual se condenaram os requeridos, habilitados no processo principal, no pagamento da totalidade do pedido – 8.000,00€ - a título de indemnização devida pelos prejuízos sofridos pelos requerentes nos termos e para os efeitos do disposto no art. 543º, nºs 1, al. b) e 3 do Cód. de Proc. Civil.

4. Inconformados com o decidido, interpuseram recurso de apelação os requeridos.

5. O recurso foi conhecido pelo Tribunal da Relação que decidiu:

“Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos requeridos CC e DD e, em consequência, altera-se o decidido, condenando-se estes no pagamento da importância de 2.000,00€ (dois mil euros), a título de indemnização devida aos requerentes AA e BB nos termos do disposto no art. 543º, nºs 1, al. b), 2 e 3 do Cód. de Proc. Civil.”

6. A questão da litigância de má fé foi assim analisada:

Fixação da indemnização por litigância de má fé nos termos do art. 543º do Cód. de Proc. Civil

No art. 542º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil estabelece-se que, tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta a pedir, sendo o conteúdo desta definido no art. 543º do mesmo diploma.

É a seguinte a redação dos nºs 1, 2 e 3 deste preceito: «1. A indemnização pode consistir:

a) No reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;

b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má fé.

2. O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má fé, fixando-a sempre em quantia certa.

3. Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte. (…)»

Prevêem-se, pois, nesta norma dois tipos de indemnização, um com conteúdo mais reduzido, outro com conteúdo mais abrangente.

A indemnização simples, que se acha prevista na alínea a), engloba todas as despesas que a má fé do litigante haja obrigado a parte contrária a suportar, incluindo os honorários ao seu mandatário ou aos técnicos, ou seja, apenas são indemnizados os danos emergentes diretamente causados à parte contrária pela atuação de má fé. Já na indemnização agravada, prevista na alínea b), serão abrangidos todos os prejuízos sofridos pela parte contrária, incluindo lucros cessantes, que surgem como consequência direta ou indireta da atuação de má fé.1

Contudo, tal como se refere no Ac. Rel. Porto de 13.12.2017 (proc. 3006/05.0 TBGDM.P3, relator Manuel Domingues Fernandes, disponível in www.dgsi.pt.) nesta indemnização fundada na litigância de má fé estará apenas em causa a ofensa a posições de deveres processuais e não eventuais violações de posições de direito substantivo.

Desenha-se, assim, como uma responsabilidade de cunho próprio que se distingue da responsabilidade civil, com a qual, porém, pode coexistir, realçando-se, de qualquer modo, que o art. 543º do Cód. de Proc. Civil prevê não apenas a possibilidade de reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha obrigado a outra parte, mas também o ressarcimento dos prejuízos sofridos como consequência direta ou indireta da má fé.

Mas tal não significa colisão com a responsabilidade civil, uma vez que a indemnização por litigância de má fé prevista no art. 543º do Cód. de Proc. Civil está sempre conexionada com a prática de um ilícito processual e, consequentemente, os prejuízos a que se alude nesta norma só podem ser resultantes desse ilícito processual.

Aliás, conforme se salienta no referido Ac. Rel. Porto de 13.12.2017, a circunstância de a lei estabelecer expressamente que na litigância de má fé o julgador optará pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante – art. 543º, nº 2 – significa que estamos perante uma indemnização sujeita a regras diversas das que constam dos arts. 562º e segs. do Cód. Civil destinadas a reparar o dano sofrido pelo lesado.

O critério indemnizatório, no caso da litigância de má fé, não é o da medida do dano, nem se procura reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Esse critério assenta apenas e exclusivamente na conduta do litigante de má fé e ainda assim a definição do valor a pagar é deixado a uma opção mais ou menos discricionária do julgador, quando no nº 2 do art. 543º se estabelece que “o juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má fé”.

Neste contexto, na senda do aresto que temos vindo a seguir, impõe-se concluir que a finalidade visada pela indemnização atinente à litigância de má fé não é ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil, mas sim meramente sancionatória e compensatória.2O que, de resto, é confirmado pelo art. 543º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, atendendo a que “aí não se estabelece que o julgador deve arbitrar uma indemnização na qual, para além das despesas, estão compreendidos os restantes danos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da litigância de má fé, mas, antes que a indemnização pode consistir (sic) no reembolso das despesas ou no reembolso das despesas e na satisfação dos restantes prejuízos.

Significa, portanto, que a litigância de má fé se configura como um instituto em que o pretendido não é, ou não é predominantemente, o acautelar de posições privadas e particulares das partes mas sim um interesse público3 de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça.”

Regressando ao caso dos autos, o que se constata é que na sentença proferida em 30.1.2008, no âmbito do processo nº 813/2001, transitada em julgado, foi EE, autor nesse processo, condenado como litigante de má fé no pagamento de uma multa de 5 Uc`s e também no pagamento de uma indemnização aos aí réus, aqui requerentes, em montante a quantificar ulteriormente, por se considerar ter existido alteração da verdade dos factos por parte do falecido EE, uma vez que nas declarações prestadas negou ter autorizado a construção da casa dos réus, ora requerentes, afirmando que a ela sempre se opôs, quando se veio a verificar e provar o contrário.

Ora, não foi fixado o montante dessa indemnização, por se entender que os elementos constantes do processo não possibilitavam desde já a sua quantificação, o que sempre envolveria a prévia audição das partes.

Acontece que o tribunal “a quo” não procedeu a essa audição e em 11.12.2019, mais de uma década transcorrida sobre a sentença em que foi decidida a condenação em litigância de má fé, surgem os réus, através de um incidente de liquidação, a solicitar a fixação da respetiva indemnização na importância de 8.000,00€.

Não cabendo, naturalmente, questionar a litigância de má fé de EE, a quem sucederam os herdeiros habilitados, aqui requeridos, e a respetiva condenação em indemnização, uma vez que no tocante a esta condenação se formou caso julgado, os presentes autos destinam-se tão somente à fixação do seu quantitativo.

A 1ª Instância entendeu fixá-la nos 8.000,00€ peticionados pelos requerentes, mas encarou a indemnização a atribuir na sequência da condenação da parte como litigante de má fé em termos de responsabilidade civil, designadamente quando escreveu que “a indemnização a fixar visa … a reparação do prejuízo causado e pretende colocar o lesado na situação que existiria se não fosse o facto danoso e a lesão ocorrida.”

Tal como já se explanou atrás o critério definidor da indemnização prevista no art. 543º do Cód. de Proc. Civil, porque esta não é ressarcitória, não é a medida do dano, mas apenas e tão-só a atividade processualmente ilícita que foi desenvolvida pelo litigante de má fé, o que nos remete para um espaço marcado por uma alguma discricionaridade do próprio julgador.

Daí que se diga no nº 2 do art. 543º que o juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada e que no nº 3 se aluda à fixação de uma indemnização no que parecer razoável, com prudente arbítrio.

Em suma, a fixação desta indemnização deve ser feita com referência a um padrão de equidade.

Na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição”.4

Também sobre a equidade escreve o seguinte Dario Martins de Almeida (in “Manual de Acidentes de Viação, 1987, Almedina, págs. 107/110):

“Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. (...) A equidade não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação. A equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. (...) Em síntese, a proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza objectiva são as linhas de força da equidade quando opera, com os ditames da lei, na análise e compreensão e solução do caso concreto.”

Julgar segundo a equidade significa assim que o juiz não está sujeito à estrita observância do direito aplicável, devendo antes orientar-se por critérios de justiça concreta, procurando a solução mais justa face às características da situação em análise.

No caso dos autos, este critério da equidade, como definidor do montante indemnizatório, deve operar apenas no que concerne à conduta processual de EE, a quem sucederam como herdeiros habilitados os ora requeridos, e que foi tido como integrativo de litigância de má fé.

Neste domínio, há que ter em conta que o ilícito processual de EE foi inequivocamente grave, atendendo a que ao propor a ação não podia desconhecer que o por si alegado não correspondia à verdade e que tal se conexionava com o direito à habitação dos aqui requerentes, tanto mais que fora ele próprio a autorizar a ocupação e utilização do terreno por parte dos requerentes e a subsequente construção, aí, da casa de morada de família destes.

Contudo, porque a indemnização a atribuir não tem cunho ressarcitório, ao contrário do que foi entendido na sentença recorrida, estando, por isso, a sua fixação sujeita a regras diversas das que regem para a responsabilidade civil nos arts. 562º e segs. do Cód. Civil, terá o montante de 8.000,00€ arbitrado pela Mmª Juíza “a quo” que ser substancialmente reduzido.

Mas mesmo que se sustentasse que a fixação da indemnização aqui em causa se situava no plano da responsabilidade civil, ainda assim se justificaria a sua substancial redução, uma vez que, após a reapreciação da matéria de facto, esta se mostra significativamente comprimida,

pois está apenas provado que os requerentes temeram pela perda da sua casa de morada de família, o que lhes causou temor e desassossego [nº 5].

Por outro lado, não é possível estabelecer nexo de causalidade entre o conteúdo das declarações médicas emitidas em 21.2.2020 em que se atesta para os requerentes um quadro de ansiedade justificativo da toma de medicamentos ansiolíticos desde 2010 e uma demanda processual que, definindo a situação da sua casa de morada de família, se verifica estar finda há aproximadamente uma década.

De resto, tudo leva a crer que o quadro de ansiedade documentado nas declarações médicas não decorre diretamente da litigância do falecido EE, mas de toda uma complexa situação de difícil relacionamento pessoal que se vai arrastando ao longo do tempo e que leva até a que os requerentes tantos anos depois se lembrem de acionar, através de um incidente de liquidação, uma condenação em indemnização por litigância de má fé que aparentemente havia caído no esquecimento, embora aqui também por culpa do próprio tribunal que não deu atempado cumprimento ao disposto no art. 543º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil [à data art. 457º, nº 2 do anterior Cód. de Proc. Civil].

Assim, tendo em conta a gravidade da conduta processual desenvolvida pelo falecido EE, cremos como razoável e adequado que a indemização por litigância de má fé em que este, a quem sucederam os requeridos habilitados, foi condenado seja fixada, ao abrigo do art. 543º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, na importância de 2.000,00€.

Por conseguinte, o recurso interposto pelos requeridos obterá parcial procedência.”

7. Não se satisfazendo com o decidido os reclamantes apresentaram recurso de revista do acórdão, no qual formularam as seguintes conclusões (transcrição):

1ª) O acórdão da Relação, ora recorrido, está em contradição, com outro, do mesmo Tribunal, proferido em 16/06/2014 (proc. n.º 117/13.1TBPNF.P1) e que, com a devida vénia se passa a transcrever:

“(…) Ora, o instituto da litigância de tem em certa medida uma natureza bifronte porquanto tem uma natureza sancionatória, disciplinadora da conduta das partes e dos seus patronos e uma vertente ressarcitória geradora da obrigação de indemnizar com base na prática de facto ilícito.”

Assim, o Ac., do qual ora se recorre, está em contradição com o que acabou de se transcrever, sobre a mesma questão de direito.

2ª) Está igualmente em contradição com o Acórdão do Tribunal de Évora, de 29.04.2004, in proc. 506/04.03 in www.dgsi.pt.

3ª) A interpretação queo Ac. recorrido fazdo art.º 543, n.º 1, nosentido dequeno instituto da litigância de má fé o pretendido não “é predominantemente o acautelar de posições privadas e particulares das partes mas sim um interesse público” viola o art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa; está-se a dar prevalência ao estado em detrimento dos cidadãos.

4ª) Não assiste razão ao Tribunal da Relação quando refere que“nem se procura reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Tal significaria, impedir in casu, que os ora Recorrentes fossem devidamente indemnizados pelos prejuízos decorrentes do comportamento do A. na ação contra eles intentada, o que violaria a ratio legis do art. 543.º do Cód. Proc. Civil e o disposto no art.º 20º da CRP.

5ª) De fato, na análise do “objectus litigandi” em causa, ter-se-á que considerar o princípio geral daobrigação deindemnização formulado no art.º 562 do Cód. Civil“Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

6ª) Nos termos do disposto na al. b) do n.º 1, do art.º 543.º, do Cód. Proc. Civil, a indemnização pode consistir o reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé.

7ª) Posto isto, o Tribunal da Relação violou o artigo 543º do Cód. Proc. Civil, o artigo 562º do Cód. Civil, o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, o artigo 615º nº 1 b) do Cód. Proc. Civil.

8ª) Nos autos, existem elementos que fundamentam e alicerçam de forma consistente a decisão de primeira instância, no que concerne ao critério tido na indemnização e na fixação desta.

9ª) O Ac. recorrido deu como assente que :

-Os requerentes temeram pela perdadasua casa demoradadefamília, o quelhes causou temores e desassossego;

-Por declaração médica emitidaem 21.02.2020, pela Drª FF, da ACES............ – Unidade de Saúde .............., o requerente AA toma medicamentos ansiolíticos, desde o ano 2010, por causa da ansiedade;

-Por declaração médica emitidaem 21.02.2020, pela Drª FF, da ACES ............. – Unidade de Saúde de USF ............., a requerente BB toma medicamentos ansiolíticos, desde o ano 2010, por causa da ansiedade e insónias. Tendo em 2016 iniciado tratamento com modelador do sono, com antidepressivo e, em 2019, iniciou ainda um tratamento antidepressivo.

10ª) Considerando aqueles pontos assentes e, depois da ação ter durado oito anos ( 2001-2008), atento o facto dos recorrentes tomarem medicamentos devido a ansiedade e depressão,          a indemnização fixada de 8.000,00€ é justíssima, pugnando-se pela manutenção na sua condenação.

11ª) O Ac., no que concerne à sentença de primeira instância deu o seu assentimento à gravidade do comportamento do autor; à necessidade de indemnização e que a fixação desta se deve conduzir pelo padrão da equidade.

12ª) Mas, não obstante, decidiu incompreensivelmente, fixar a indemnização a pagar aos recorrentes em 2.000,00€. Sem razão e de forma inconsistente.

13ª) O “travão a fundo” que o Ac. coloca na atribuição da indemnização, para que esta não seja do valor fixado de 8.000,00€ é destituído de qualquer razoabilidade. E não fundamenta.

14ª) Não valoriza as circunstâncias subjacentes aos danos sofridos pelos réus; não fixa a indemnização segundo juízos de equidade.

15ª) A Meritíssima Juiz de primeira instância, ao invés do Ac., na atribuição da indemnização teve em consideração um juízo de equidade – ponderando o grau da gravidade do comportamento do autor, a intensidade e duração da dor (que afetou os recorrentes, então réus, a nível psíquico e de qualidade de vida, prejudicando a sua saúde de forma definitiva), os sentimentos negativos provocados.

16ª) A redução do valor da indemnização ao montante de 2.000,000€ põe em causa a seriedade e o respeito devido aos recorrentes que padeceram os danos e os correspondentes sofrimentos.

17ª)Os montantes indemnizatórios relativos aos danos morais devem ser fixados segundo padrões de dignidade humana.

18ª) Ao não mencionar os fundamentos de direito que justificam a decisão, o Ac. é nulo – al. b) do n.º 1, do art. 615, do CPC.

19ª) O tribunal ora recorrido deixou de se pronunciar sobre quais as regras, que refere “serem regras diversas das que regem para a responsabilidade civil nos arts. 562º e segs. do Cód. Civil” que estão na base da fixação do seu valor de 2000,00€, a título de indemnização, constituindo tal, uma nulidade por omissão.

Nestes termos, e nos mais de Direito, deve ser concedida a Revista e consequentemente:

A) Revogado o Acórdão recorrido substituindo-o por outro que mantenha a condenação dos réus conforme decisão da primeira instância. Caso assim não se entenda,

B) Ser reenviado o processo à Relação, ordenando-se a sua baixa, a fim de que ela suprima a nulidade por omissão, pronunciando-se sobre a questão referida nas conclusões 18ª e 19ª.

Por ser de inteira JUSTIÇA!


10. O recurso não foi admitido, conforme justificação já apresentada.

11. Recebidos os autos foram os mesmos analisados pela relatora que entendeu não dever dar provimento à reclamação, através de despacho.

12. Os reclamantes insistem na sua posição, requerendo a intervenção da conferência, na qual invocam inconstitucionalidades.


II. Fundamentação

13. Relevam os elementos supra indicados.

14. No despacho de não admissão a relatora havia assim justificado a não admissão do recurso e a inexistência de inconstitucionalidades, posição com a qual este colectivo concorda, razão pela qual faz suas as considerações que se seguem:

(início de transcrição)

11.1. O recurso de revista, para o STJ, com a invocação da situação prevista no art.º 629.º, n.º 2, al. d) do CPC, pressupõe não só a contradição de julgados (das Relações), mas que o recurso para o STJ não seja possível por causa distinta da relativa à alçada, nomeadamente porque é a lei, em norma específica, que impede o recurso.

O facto de a indicada norma estar inserida no art.º 629.º do CPC, que prevê situações em que o recurso para o STJ é admissível mesmo sem alçada, não cumpre a mesma função das situações previstas com essa dispensa.

Por isso tem sido a alínea d) interpretada como norma que não dispensa o requisito da alçada, só sendo possível lançar mão da sua invocação quando as causas cumprem aquele requisito.

Na situação dos autos, o apenso de liquidação da indemnização tem um valor de 8.000 euros, muito inferior à alçada do Tribunal de que se recorre, pelo que, na referida lógica, não está abrangido pela possibilidade de recurso para este STJ, conforme justificação apresentada no despacho de não admissão supra transcrito, com o qual se concorda e que corresponde à orientação dominante no STJ.

11.2. Sobre o sentido do art.º 629.º, n.º 2, al. d) teve já o STJ diversas oportunidades para se pronunciar, nomeadamente, como sucede no recente Acórdão desta secção, datado de 26/11/2019, e relativo ao  processo 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1[1], do qual extraímos os seguintes trechos, por serem adequados a responder à questão suscitada na presente reclamação:

“O recurso prescrito na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC tem como justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça – como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.º, n.º 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.º, n.º 2, do CPC).

No mesmo sentido, a doutrina (Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2 de junho de 2015, Blog do IPPC (Instituto Português de Processo Civil), disponível em https://blogippc.blogspot.com/2015/06/jurisprudencia-157.html), entende que «o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC só é aplicável se houver uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tenha a ver com a relação entre o valor da causa e a alçada do tribunal ou, mais em concreto, se a lei excluir a admissibilidade de uma revista que, de outro modo, seria admissível». Afirma o autor que «há uma (boa) razão de ordem sistemática para se entender que o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não pode dispensar a admissibilidade da revista nos termos gerais (sendo nomeadamente necessário, para a admissibilidade da revista, que o valor da causa exceda a alçada da Relação)», desde logo, porque «se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista "ordinária" nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC».

(…)

A limitação da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, contra a qual o reclamante se insurge, entendendo que a mesma padece de ilegalidade e de inconstitucionalidade, resulta da ratio do recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC – que visa garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações em processos que, pela especialidade da matéria, não têm possibilidade de alcançar o Supremo Tribunal de Justiça, por nunca ser admissível o recurso de revista por motivo estranho à alçada (realce nosso) – conjugada com o objetivo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, que se pretende reservado à sua qualificada função de estabilização da interpretação e aplicação da lei, em ordem a garantir a unidade do direito.

Ora, tal limitação assenta na ponderação dos requisitos de admissibilidade que estreita o acesso ao triplo grau de jurisdição da revista excecional, dirigida à uniformização de jurisprudência dos tribunais da Relação, com base no critério do valor da ação. Na verdade, o alcance amplo que a reclamante pretende dar ao artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, determinaria uma incoerência teleológica no sistema de recursos, na medida que o recurso de revista ordinário, baseado na contradição entre acórdãos dos tribunais da Relação, não dependeria do critério do valor nem da sucumbência, enquanto o recurso de revista excecional para dirimir conflitos de jurisprudência, previsto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, estaria sujeito ao requisito do valor e da sucumbência como resulta das regras gerais do recurso[2]. Contudo, o artigo 629.º, n.º 2, al. d), reporta-se, como vimos, apenas às matérias (e só a estas) que não admitem recurso por motivo estranho à alçada (por exemplo, como vimos, questões de insolvência e de expropriações), e que passam a admiti-lo quando haja conflito de jurisprudência entre acórdãos dos tribunais da Relação, não prescindindo a lei processual, interpretada no seu conjunto, do critério de recorribilidade do valor da ação e da sucumbência, nos termos do artigo 629.º, n.º 1, do CPC (cfr. O Acórdão de 14/05/2019, proc. n.º 12/12.1TBGMR-F.G1.S2, a propósito do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, e a jurisprudência nele citada, segundo a qual, em matéria de insolvência, o recurso por contradição de acórdãos não dispensa a verificação dos pressupostos gerais do valor da causa e da sucumbência em confronto com a alçada legal). Estas limitações ao recurso de revista foram pretendidas pelo legislador, de acordo com os objetivos das sucessivas reformas do CPC, que visaram alcançar um descongestionamento do Supremo Tribunal de Justiça, afastando do terceiro grau de jurisdição os casos de diminuto valor económico, mesmo que as decisões impugnadas estejam em contradição com outras dos tribunais da Relação. A justificação desta solução, tal como as restantes limitações ao direito ao recurso, decorre, como refere Lopes do Rego (O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 764), «(…) da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais».”

11.3. Não se ignora, no entanto, que não há unanimidade interpretativa do art.º 629.º, n.º2, al.d), no que respeita à exigibilidade da alçada, motivo pelo qual se justifica verificar se, não obstante o requisito da alçada não estar preenchido se poderia considerar estarem preenchidos todos os demais requisitos impostos pela norma, nomeadamente a existência de norma específica a impedir o recurso de revista  para o STJ.

In casu, a Primeira Instância condenou o requerido a pagar uma indemnização por litigância de má fé; houve recurso para o TR, que se pronunciou sobre a situação, o que significa que houve já um grau de recurso (art.º 542.º, n.º3 do CPC)

As normas relativas à litigância de má fé não impedem o recurso da decisão para o STJ, mas tão só asseguram a existência de um grau de recurso e é por força da 1ª decisão ser da Primeira Instância, seguida da intervenção do TR que se esgotam os recursos possíveis sobre a questão.

Isto significa que falta um pressuposto de aplicação do art.º 629.º, n.º2, al.d) – existência de norma impeditiva de recurso para o STJ.

12. Dizem os reclamantes que com o despacho de não admissão do recurso terão sido cometidas inconstitucionalidades, por violação do direito ao recurso e o direito a um processo equitativo previsto no art. 20.º, n.º 4, da Constituição, uma vez que estabeleceria pressupostos desnecessários, inadequados e desproporcionados para o recurso fundado em oposição de acórdãos da Relação;

Não se indica, em concreto, em que se traduzem essas inconstitucionalidades, não vindo definindo em que termos e porque motivos opera esta violação.

Ainda assim, voltando a fazer nossas as palavras usadas no Ac. deste STJ de 26/11/2019, sempre se diria:

“Deve dizer-se a este propósito que, na verdade, as alterações legislativas ao Código de Processo Civil, bem como a interpretação que delas tem feito a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de restringir o acesso a este tribunal de revista, não frustraram as legítimas expetativas da reclamante.

O princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Lei Fundamental, postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional, só «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica» (cfr. Acórdão n.º 303/90).
Refere-se, com pertinência, no Acórdão n.º 313/95, que «o princípio da confiança (…) inculca que deva o cidadão prever as intervenções que o Estado possa "levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas", devendo, assim, confiar "que a sua atuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes" (usaram-se as palavras do Acórdão nº 17/84), o que conduz a que aquele princípio imponha ao Estado, sem que com isso se signifique que não possa levar a cabo modificações da ordem jurídica existente, a não edição de normação que, repercutindo-se acentuada, onerosa e intoleravelmente nas situações já existentes e criadas à sombra da anterior legislação, as vá alterar no seu conteúdo e consequências, com os quais os cidadãos, razoavelmente, não contariam».

Ora, a decisão em análise, ao limitar a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência das Relações, tomando como critério de restrição o valor da ação, assim cumprindo o desiderato de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, articulado com o objetivo de garantir que a revista excecional se abra apenas para os casos em que se verificam os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista, não afeta de forma inadmissível as expetativas jurídicas da reclamante, sendo certo que, como se referiu, não decorre da Constituição a existência, em processo civil, de um recurso de uniformização de jurisprudência, nem sequer o direito a um triplo grau de jurisdição. Com efeito, o legislador ordinário goza de uma ampla margem de liberdade na concreta conformação e delimitação do regime dos recursos cíveis, no qual se integram os respetivos pressupostos de admissibilidade.
Sendo assim, a solução jurídica adotada na decisão reclamada, fazendo prevalecer sobre os interesses acautelados pela uniformização de jurisprudência o objetivo de
racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, reservando a sua intervenção, no âmbito da revista excecional, para as causas cuja valor exceda o da alçada, e visando garantir as condições para que este órgão possa exercer as funções que lhe estão cometidas, mostra-se suficientemente justificada por um fundamento objetivo e materialmente fundado, que não põe em causa as expetativas dos cidadãos nem a segurança jurídica.
Conclui-se, deste modo, que a interpretação das normas jurídicas do Código de Processo Civil adotada na decisão reclamada não merece censura à luz dos parâmetros constitucionais invocados (artigos 2.º, 13.º, e 20.º, n.
os 1 e 4 da Constituição), não se vislumbrando a violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, nomeadamente, do princípio da legalidade (artigo 3.º da CRP), do princípio da separação de poderes, ou dos princípios consagrados no artigo 266.º da CRP.

(…) Recentemente, o Tribunal Constitucional reiterou esta posição no Acórdão n.º 206/2019, em que julgou conforme à Constituição a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 629.º, n.º 2, alínea d), 721.º, n.º 1, e 854.º, todos do Código de Processo Civil, no sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, não é admissível quando o mesmo não preencha os requisitos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC, ou seja, quando o mesmo não conheça do mérito da causa ou ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.”

Em face do exposto, impõe-se concluir que não procedem as invocadas inconstitucionalidades.

15. A posição dos reclamantes não é distinta da que havia apresentado anteriormente, ainda que desenvolva o quadro das inconstitucionalidades que alega, na mesma linha do posicionamento anterior, rebatidas através da citação da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional.

Em face do exposto no despacho e no presente acórdão da conferência, inexistem motivos para admitir o recurso ou inconstitucionalidades que obstaculizem à decisão.


III. Decisão

Pelos motivos expostos, conforma-se o despacho reclamado, sendo as custas da inteira responsabilidade dos reclamantes, nos termos das disposições legais conjugadas do CPC e Código das Custas Judiciais, sem prejuízo do apoio judiciário, e que se fixam em 3 UC.


Lisboa, 4 de Maio de 2021


Fátima Gomes, que assina electronicamente

Fernando Samões, que assina electronicamente

Maria João Vaz Tomé,

Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exma. Senhora Conselheira, Maria João Vaz Tomé, que também compõe este Colectivo.

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[1] Disponível em www.dgsi.pt.
[2] Negrito nosso.