Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3550/09.0TBVLG.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA CONTRATUAL
NULIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
INVALIDEZ
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 10/01/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REIVTSA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO / NULIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 286.º E 334.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 17-06-2014, PROCESSO N.º 233/2000.C2.S1;
- DE 15-04-2015, PROCESSO N.º 385/12.6TBBRG.G1.S1;
- DE 09-11-2017, PROCESSO N.º 26399/09.5T2SNT.L1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

- DE 24-05-2018, PROCESSO N.º 212/13.7TBCUB.E1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1. Não é verdade que ante uma cláusula nula, por contrariedade à boa-fé, o tribunal esteja limitado na sua função de administração da justiça e impedido de declarar a sua nulidade por a mesma não haver sido invocada pelos interessados.

2. Antes de declarar a nulidade o tribunal deve ouvir as partes, na medida em que a mesma não prejudique os demais fins do processo, desde que a invalidade da cláusula nunca tenha sido discutida ou trazida aos autos, nem fosse susceptível de ser equacionada como questão pelos interessados, face ao andamento que o processo apresentava. Tendo o recorrente no recurso oportunidade de emitir a sua opinião sobre a questão, cumprindo a finalidade legal pelo instituto e também reconhecida pela jurisprudência deste STJ, atendendo ao principio processual de aproveitamento dos actos e de gestão activa do processo pelo tribunal deve considerar-se que a falta de audição é irregularidade que se encontra sanada e o tribunal de recurso ao conhecer da questão sobre se a nulidade é ou não de conhecimento oficioso, se entender que não há motivos para invalidar o aresto recorrido por excesso de pronúncia pode aproveitar o acto da parte, considerando sanada a irregularidade e decidir o ponto controvertido.

3. Discutindo-se nos autos se estava preenchida a cláusula contratual que obrigada a seguradora perante a A. por esta ter uma invalidez absoluta a posição da recorrente não se afigura a mais adequada face aos factos provados nos autos.

4. Mas os factos provados têm ainda de ser integrados na previsão contratual em discussão já incluindo aqui a discussão sobre se a cláusula deve ser considerada inválida (parcialmente).

5. Tendo o tribunal recorrido entendido que a cláusula era abusiva, sendo desconsiderada a parte da mesma que obrigava a A. a provas suplementares relativamente às efectuadas, ter-se-ia de considerar os factos provados e a sua ligação com a cláusula do contrato expurgado destas exigências abusivas.

6. Tendo a A. comunicado o sinistro à R. e accionado o seguro antes de haver resolução do contrato pela seguradora, torna-se inútil discutir se a resolução deve ser dirigida a ambos os segurados ou apenas a um, ou se interfere ainda na solução o conhecimento que o cônjuge tenha da resolução comunicada à esposa, ficando a questão prejudicada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA e BB instauraram a acção declarativa contra CC, S.A., na qual pediam:

a) A condenação da Ré no pagamento ao Banco DD, S.A., banco mutuante, beneficiário do contrato de seguro identificado no art 2º da pi, da quantia de €42.017,93, correspondente ao valor por aquele Banco peticionado à data da execução instaurada;

b) A condenação da Ré a pagar ao mencionado banco mutuante as demais quantias que ele venha a peticionar na mesma execução;

c) A condenação da Ré a pagar todos os encargos e custas da referida execução, em valor que se liquidará oportunamente;

d) A condenação da Ré a pagar aos Autores as quantias por estes pagas a título de prestações do contrato de mútuo e de prémio de seguro após a verificação da invalidez total e definitiva da A. mulher, em quantia que se liquidará posteriormente.

     Alegaram, em síntese, que em 12 de Agosto de 1997, para efeitos de obras na sua habitação, o Banco DD, S.A., emprestou aos AA. a quantia de 8.000 000$00 (€ 40.000,00), nos termos e com os prazos constantes do documento junto como Doc. n.º 1 e que por exigência do Banco (cf. cláusula oitava do Doc. n.º 1), o referido contrato de mútuo foi acompanhado pela subscrição pelos AA. de um seguro com a apólice nº.... celebrado com a “EE, S.A.”, pertencente ao mesmo grupo do Banco, com as condições gerais e particulares constantes do documento junto como doc. n.º 2.

O referido contrato de seguro tem por objecto, além do mais, a cobertura da invalidez absoluta e definitiva das pessoas seguras (cf. cláusula “garantias complementares” do doc. nº. 3), sendo que as pessoas seguras são os AA., e o beneficiário e tomador do seguro o Banco FF, S.A.

Sucede que, no ano de 2002, à A. mulher foi diagnosticado carcinoma mamário, por força do qual foi submetida a mastectomia, facto que causou a sua invalidez total e definitiva, incapacitando-a de exercer qualquer actividade remunerada, encontrando-se permanentemente assistida por terceira pessoa, no caso o marido, ora A, que por sua vez fica impedido de exercer qualquer outra actividade.

Mais alegam que pese embora tenham comunicado tal situação ao banco e à ré, comprovada pela documentação clínica, a ré declinou a sua responsabilidade de pagar o capital seguro.

Alegam também que por força de tal situação os AA viram-se impossibilitados de continuar a pagar ao banco as prestações relativas ao contrato de mútuo, tendo o banco instaurado acção executiva, cabendo contudo à ré o pagamento ao banco da quantia mutuada.

     2. Contestou a Ré, alegando, em síntese, que efectivamente em 1997 os AA contrataram com o então EE, S.A., um seguro de grupo associado a um empréstimo que nesse ano lhes foi concedido pelo DD, SA, sendo certo que esse seguro cobria, entre outros, o risco de “invalidez absoluta e definitiva da pessoa segura”, tendo sido entregue aos AA as condições gerais, sucede que, alega, tal contrato de seguro foi anulado por falta de pagamento do respectivo prémio com efeitos a partir de 1.3.2006, conforme carta enviada pela ré, e recebida pela A.

    Mais alegou que, face aos elementos clínicos que lhe foram apresentados pela A. esta não está numa situação de incapacidade absoluta e definitiva para efeito da cobertura contratada, a verificação do risco contratado só ocorre, sobre o mais, se a pessoa segura necessitar de recorrer, de modo contínuo, à assistência de uma terceira pessoa para efectuar actos normais da vida diária, o que não foi comunicado à ré, pelo que não terá a A. direito a receber o capital seguro, razão pela qual as participações por si apresentadas foram declinadas.

3. Prosseguindo os autos para julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção totalmente procedente e, em consequência:

1- Condenar a Ré CC, S.A. a pagar ao Banco mutuante beneficiário do contrato de seguro com a apólice nº ..., a quantia de €42.017,93 (quarenta e dois mil, dezassete euros e noventa e três cêntimos) correspondente ao valor por aquele peticionado à data da instauração da execução que o mesmo instaurou contra os AA identificada no artigo 4º da pi, acrescido das demais quantias aí peticionadas em sede de execução seja a que título for, designadamente juros, encargos e custas;

2- Condenar a Ré CC, S.A. a pagar aos AA eventuais quantias por estes pagas a título de prestações do contrato de mútuo e prémios de seguro após a comunicação da situação de invalidez total e definitiva da A mulher àquela, não abrangidas na execução referida em 1), em quantia a apurar em incidente de liquidação.”

4. A Ré interpôs recurso de apelação, que foi conhecido pelo Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí decidido julgar a apelação improcedente e confirmando-se a sentença, mas com distinta fundamentação.

5. Desse acórdão a Ré interpôs novo recurso – agora de revista – que foi admitido, com efeito devolutivo e subida imediata pelo tribunal a quo, entendendo que a confirmação da decisão por fundamentos diversos permitia ao recorrente interpor recurso de revista, sem que a tal o impedisse o obstáculo “dupla conforme”.

6. Nas conclusões do recurso diz-se (transcrição):
1) O presente recurso tem por objecto a reapreciação do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que, embora com diferente fundamentação, confirmou a condenação da instância;
2) Através da presente acção pretendem os Autores fazer condenar a aqui Recorrente no pagamento da quantia segura ao banco beneficiário por, alegadamente, na vigência daquele contrato de seguro ter tido lugar o evento a que se refere a cobertura contratada, ou seja, a Invalidez Absoluta e Definitiva;
3) Existe preterição de litisconsórcio necessário activo, que é de conhecimento oficioso, num caso como o dos autos em que o Banco beneficiário e tomador do seguro, não é parte nos mesmos;
4) Existe também preterição de litisconsórcio necessário, agora do lado passivo, por a questão da violação do dever de informação não poder ser discutida sem a presença do banco tomador do seguro: é isto mesmo que nos diz o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.03.2015, citado em texto;
5) De qualquer forma, não foi sequer alegado, muito menos consta do elenco da matéria de facto, factos que permitam qualificar o contrato de seguro dos autos como contrato de adesão. Sendo que ainda que se entendesse que estava cumprido o requisito da generalidade, falta aos Autores a alegação da abstracção, logo vedado estava ao Tribunal oficiosamente subsumir o contrato dos autos a tal categoria;
6) Não podia o Tribunal a quo declarar oficiosamente a nulidade de um segmento da cláusula invocada por contrária à boa-fé, excluindo-o da sua redacção: estava, assim, vedado ao Tribunal conhecer de questões de que não poderia tomar conhecimento, sendo nula a sentença à luz deste fundamento (art. 615º nº 1 al. d) e art. 666.º do Cód. Proc. Civil);
7) Esta nulidade não foi peticionada pela Autora, nem tão pouco foi dada pelo Tribunal possibilidade às partes de sobre ela se pronunciar, constituindo uma verdadeira decisão surpresa;
8) De todo o modo, sempre se diga que, nem à luz desta solução encontrada pelo Tribunal a quo para acolher a pretensão da Autora, os factos provados nos autos integram os pressupostos fácticos de que depende o preenchimento da cláusula permitem determinar o momento que a Autora padece de Invalidez Absoluta e Definitiva;
9) Assim, não foi concretizada a data em que se verificou a incapacidade total para o trabalho, o recurso a assistência de uma terceira pessoa e de forma contínua, fazendo-se apenas apelo que foi na sequência da doença que foi diagnosticada à Autora em 2002;
10) Acresce que, não constitui a data da invalidez determinada pelo ISS a mesma para efeito do preenchimento da cláusula contratual em causa nos autos, ignorando-se, aliás, quais os critérios que determinaram a concessão daquela invalidez;
11) Tendo o contrato dos autos sido eficazmente resolvido em 2007 e não se podendo apurar se antes dessa data a situação da Autora integrava os requisitos contratuais previstos na cláusula em apreço, lapidar é concluir que a ação não tem como não improceder;
12) E não se diga, como o fez o acórdão recorrido, que a circunstância de a carta de resolução apenas ter sido dirigida à Autora mulher afasta a eficácia desta resolução por falta de pagamento dos prémios;
13) Na verdade, esta circunstância se revelasse inócua, quer porque estamos perante um seguro de grupo, com vários segurados, quer porque se apurou que a respetiva carta foi recebida por ambos os Autores;
14) É este entendimento que tem sido acolhido na jurisprudência de que são exemplos os acórdãos proferidos por este Alto Tribunal em 14.12.2017 e pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 18.09.2018, citados em texto;
15) Decidindo como decidiu o Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 33º, 615º nº 1 al. d) do CPC e 224º nº 1 do CC.
Termos em que, na procedência das conclusões, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por decisão que absolva a Recorrente CC, SA do pedido.
Assim decidindo, farão V. Exas a devida JUSTIÇA.”

7. Foram apresentadas contra-alegações, que concluem assim (transcrição):
“1 - 0 presente recurso foi interposto tendo por objeto a reapreciação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que confirmou a decisão que havia sido proferida pela 1ª instância, ainda que com diferente fundamentação.
2 - Através dos presentes autos os AA. pretendem fazer condenar a aqui recorrente no pagamento da quantia segura ao Banco beneficiário porque na vigência do contrato de seguro teve lugar o evento a que se refere a cobertura contratada - invalidez absoluta e definitiva.
3 - Na sentença proferida nos autos, declarou-se a exclusão da cláusula inscrita na alínea d) do artigo 2.2 das condições gerais por violação do dever de informação, condenando-se a recorrente no pedido.
4 - 0 Tribunal da Relação entendeu que aquela alegada violação do dever de informação não era oponível à Ré Seguradora mas, outrossim seria na mesma nula tal cláusula por ser contrária à boa fé, eliminando, assim, o segmento que aludia à necessidade de recorrer, de modo contínuo, à assistência de terceira pessoa,
5 - Confirmando, ainda que com diferente fundamentação a sentença recorrida.
6 - Nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil "Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.3 instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte."
7 - Quer a sentença apelada, quer o acórdão recorrido consideraram nula a cláusula em questão, no âmbito do quadro normativo específico dos contratos de adesão e em consequência submetidas as respetivas cláusulas ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais.
8 - Quer a sentença apelada, quer o acórdão recorrido apenas divergem no "iter" jurídico percorrido em causa, mas não existe, entre uma e outra, uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa, esta, sim, condição para que se possa considerar que tenha existido uma fundamentação essencialmente diferente, e em consequência pudesse ser admissível o presente recurso.
9 - Face ao exposto, existe dupla conformidade entre a sentença proferida em 1ª instância nos presentes autos e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, pois que não existe nem voto de vencido nem fundamentação essencialmente diferente entre uma decisão e outra.
TERMOS EM QUE: Procedendo as conclusões apresentadas, deverá ser dada decisão que não admita o presente recurso.”

Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

8. Na sentença recorrida e do acórdão que conheceu da impugnação da matéria de facto resultou o seguinte:

I – Matéria de facto provada

1 - Por documento escrito denominado “Mútuo com Hipoteca”, datado de 12 de Agosto de 1997, o Banco DD, SA declarou conceder aos autores, para efeitos de obras no imóvel correspondente a prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e andar e anexo, sito na Rua ..., e Rua ..., da freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., um empréstimo no valor de “oito mil contos” (€40.000.00), tendo os AA. declarado aceitar o dito empréstimo e se confessado devedores de todas as quantias que do Banco receberam e ainda venham a receber a título de empréstimo e até ao montante do mesmo”.

2 - Nos termos do documento descrito em 1, e para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, e bem assim dos respectivos juros à taxa anual de 10,8%, acrescidos de uma sobretaxa até quatro por cento ao ano, em caso de mora a título e cláusula penal, e despesas judiciais e extra judiciais, os AA. constituíram a favor do Banco mutuante hipoteca voluntária sobre o prédio descrito em A.

3 - Nos termos da cláusula oitava das Condições Gerais do documento complementar elaborado na sequência do documento descrito em A e B, “Os mutuários obrigam-se a contratar um seguro de vida cujas condições, constantes da respectiva apólice, serão as indicadas pelo Banco, bem como se obrigam a manter seguro o imóvel hipotecado contra os riscos e pelo valor que o Banco indique”.

4 - Em 13 de Maio de 1997, os aqui Autores firmaram com a Ré um seguro de grupo do ramo Vida associado ao mútuo descrito em A a C, titulado pela apólice n.º ....

5. Nos termos do contrato de seguro em causa, o mesmo teve início em 12/08/1997, do mesmo constando como pessoas seguras os aqui Autores e como tomador e beneficiário o Banco FF[1].

6 - Ainda nos termos do contrato de seguro em causa, este cobria, em caso de invalidez total permanente por acidente, o capital de € 39.903.83 e em caso de invalidez absoluta e definitiva o valor de € 39.903.83.

7 - Os AA. declararam na proposta do contrato de seguro celebrado com a Ré, “ ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar (…) e “das condições do seguro de vida que constam neste impresso (…) bem como das Condições Gerais que me foram apresentadas nesta data”.

8 - Nos termos do artigo 2º, alínea d) das Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro celebrado, “Para efeitos desta cobertura complementar, considera-se: invalidez absoluta e definitiva: se, em consequência de doença ou acidente, ficar totalmente incapacitado de exercer qualquer profissão ou actividade lucrativa, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis. Esta situação será considerada como Invalidez Absoluta e Definitiva se a Pessoa segura necessitar de recorrer, de modo contínuo, a assistência de terceira pessoa para efectuar actos normais da vida diária, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais”.

9 - A Direcção Regional de Saúde atribuiu à autora mulher em 10 de Março de 2003 a incapacidade permanente, conferindo-lhe um grau de incapacidade de 80%, declaração essa que renovou em 15 de Fevereiro de 2008.

10 - Aos AA. foi apresentada a proposta de seguro do ramo vida em causa, não tendo tido qualquer intervenção na negociação das respectivas cláusulas e/ou condições gerais e especiais, assinado e subscrevendo a dita proposta.

11 - A Ré, por carta datada de 22 de Janeiro de 2007, “dirigida à A.”[2], declarou o cancelamento da apólice do contrato de seguro em causa, por falta de pagamento de prémios, com efeitos a partir de 1/03/2006.

12 - No ano de 2002, à autora mulher foi diagnosticado um carcinoma mamário por força do qual foi submetida a uma mastectomia – relatório pericial 13 - Desde então, a autora é permanentemente assistida em termos médicos.

14 – E faz tratamentos de quimioterapia e radioterapia.

15 - Encontrando-se, por força da doença em causa, definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade profissional remunerada ou lucrativa.

16 – A A não perdeu completamente a mobilidade dos membros superiores mas apresenta alterações severas das funções neuromusculoesqueléticas e relacionadas com o movimento, por limitação funcional de ambos os membros superiores, ao nível das amplitudes de movimento e força, tendo assim restrições severas para transportar, mover e manusear objectos, que comprometem a realização de todas actividades de autocuidados.

17 – A A. apresenta uma marcha claudicante.

18 - Encontrando-se, desde então, incapaz de cozinhar, passar a ferro, cuidar da casa ou efectuar qualquer outra tarefa doméstica.

19 - Sendo obrigada a recorrer, todos os dias, e de modo contínuo, à ajuda de terceiros para a realização de tais tarefas.

20 - De igual modo, por força da doença em causa, a autora mulher vê-se obrigada diariamente e de modo contínuo a recorrer à ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoa, alimentar-se, tomar a medicação e vestir-se.

21 - Sendo o autor marido, os filhos de ambos e outros familiares que assistem à autora todos os dias e de modo contínuo na realização de tais tarefas, domésticas e pessoais.

22 - O autor marido vê-se obrigado a assistir sempre a A. nas suas deslocações ao Hospital.

23 - Pelo que, desde 2002, data em que foi diagnosticado um carcinoma mamário à A. e por força do descrito, o autor marido não pode trabalhar.

24 - Em 19 de Janeiro de 2003, os AA comunicaram o descrito supra em 12 a 23 ao Banco mutuante e à Ré.

25 - Remetendo a documentação clínica que comprovava o descrito.

26 - Tendo reiterado, por diversas vezes, junto da Ré o pedido de pagamento da quantia mutuada.

28 – (passou a facto não provado)

27 - E remetendo toda a documentação que a Ré solicitava.

29 - Tendo este então intentado a execução contra os AA. com o nº5956/05.4TBVLG, que correu termos pelo 2º Juízo de ....

30 - Os AA receberam a missiva descrita em 11.

31 - Aquando da adesão pelos AA, ao seguro de grupo foram-lhes entregues as respectivas condições gerais.

32 - A A. é pensionista da Segurança Social por invalidez desde 25.3.2003.

33 - Todas as semanas a autora mulher realiza tratamentos médicos.

34 - Não sendo de prever, face aos actuais conhecimentos médicos, qualquer melhoria no estado de saúde da autora.

II. – Matéria de facto não provada

Com relevo para a decisão, da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que:

A - Os AA. pagaram ao Banco mutuante as prestações resultantes do contrato de mútuo referentes aos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2003.

B - E igualmente, após essa data, continuaram a pagar à Ré o prémio de seguro anual contratado, por recearem que o não pagamento pudesse prejudicar a análise por parte da Ré da situação participada.

C – Foi explicado aos AA. o teor das cláusulas das condições gerais, conforme descrito em 7.

D – Que as deslocações da A. ao Hospital para se submeter a consultas médicas sejam sempre semanais.

Anterior facto provado 28 – Pois em face da situação exposta viram-se os AA impossibilitados de continuar a pagar ao Banco mutuante as prestações resultantes do contrato de mútuo com este firmado.


9. Questões suscitadas no recurso:
1) Nulidade do acórdão – por excesso de pronúncia – conhecimento de questão não suscitada pelos AA: possibilidade de declaração oficiosa de nulidade de cláusula do contrato de seguro por contrariedade à boa-fé;
2) Preterição de lei por proferimento de decisão surpresa – sem exercício de contraditório o tribunal pode declarar a nulidade da cláusula por contrariedade à boa-fé?
3) Saber se ocorreu violação de direito por preterição de litisconsórcio necessário activo, num caso, como o dos autos, em que o Banco beneficiário e tomador do seguro, não é parte;
4) Saber se ocorreu violação de direito por preterição de litisconsórcio necessário, agora do lado passivo, por a questão da violação do dever de informação não poder ser discutida sem a presença do banco tomador do seguro;
5) Saber se a qualificação do contrato de seguro como contrato de adesão tinha de ser alegada e, sendo negativa a resposta, se estavam reunidos os pressupostos para a sua subsunção na categoria e bem assim se o tribunal podia oficiosamente tratar o contrato como tal;
6) Saber se os factos provados permitem concluir que estão reunidos os pressupostos de que depende a activação da responsabilidade da seguradora – incapacidade total para o trabalho, nomeadamente quanto ao momento a partir do qual ocorreu a referida invalidez absoluta e definitiva; saber se a data da invalidez determinada pelo ISS é a que releva para efeito da cláusula do contrato;
7) Saber se a invalidez ocorreu antes da resolução do contrato de seguro – operada em 2007; saber se a resolução opera na sua plenitude apesar de ter sido apenas comunicada à A. mulher.

No recurso de apelação haviam já sido discutidas as seguintes questões, que assim se repetem no presente recurso (questões 3, 4., 5., 6.):

1. Saber se ocorreu preterição de litisconsórcio necessário (activo e passivo);

2. Se estamos em presença de um contrato de adesão;

3. Se os factos impõem a procedência da acção.

Como questão prévia às questões suscitadas no recurso cumpre analisar a da admissão da revista, porquanto a ela se opõem os recorridos invocando a dupla conforme.

O recurso veio admitido pelo Tribunal da Relação que frisou em vários momentos estar a confirmar a sentença mas com fundamentação distinta.

A lei considera que existe dupla-conforme impeditiva da revista se a confirmação da decisão recorrida não tiver fundamentação essencialmente distinta. Sabendo que a 1ª instância decidiu o caso com base na violação dos deveres de informação e o TR optou por considerar que essa violação a existir não seria oponível à R., mas declarou a nulidade (parcial) de certa cláusula contratual, estamos perante uma fundamentação que não se pode afirmar não ser fundamentalmente distinta, motivo pelo qual o recurso deve ser admitido, nos termos em que o foi. A nulidade da cláusula pressupõe cumprido (ou inoponível) o dever de informação; a violação do dever de informação impede a análise do teor da cláusula por ficar afectada a validade do contrato, em regra, na totalidade.

10. Iniciando a análise das questões suscitadas no recurso pela invocada nulidade do acórdão, correspondente ao ponto 1. das questões colocadas no recurso, na visão deste STJ a resposta é no sentido de não assistir razão ao recorrente.

Por um lado, não é verdade que ante uma cláusula nula, por contrariedade à boa-fé, o tribunal esteja limitado na sua função de administração da justiça e impedido de declarar a sua nulidade por a mesma não haver sido invocada pelos interessados. A nulidade decorre da lei, é de conhecimento oficioso e não tem prazo para ser declarada – como decorre do regime dos art.ºs 286.º e ss do CC, a que se junta o regime do art.º 334.º do CC. Esta é orientação pacífica na jurisprudência e que foi seguida pelo tribunal recorrido, nada havendo a apontar. Acresce ainda o facto de constituir dever dos tribunais nacionais suscitar oficiosamente o carácter abusivo de uma cláusula contratual (cf. Ac. STJ de 09/11/2017, proc. 26399/09.5T2SNT.L1.S1).

11. Quanto à questão de saber se o tribunal estaria vinculado a ouvir as partes antes de declarar a nulidade da cláusula (ponto 2. das questões colocadas no recurso) o que se considera é que pode (porventura, deve) ser dada essa oportunidade na medida em que a mesma não prejudique os demais fins do processo, desde que a invalidade da cláusula nunca tenha sido discutida ou trazida aos autos, nem fosse susceptível de ser equacionada como questão pelos interessados, face ao andamento que o processo apresentava. No caso dos autos essa oportunidade não foi dada previamente às partes, sobretudo à R., mas a mesma teve no recurso oportunidade de emitir a sua opinião sobre a questão, cumprindo a finalidade legal pelo instituto e também reconhecida pela jurisprudência deste STJ (cf. Ac. STJ de 17/06/2014, proc. 233/2000.C2.S1[3]). O principio processual de aproveitamento dos actos e de gestão activa do processo pelo tribunal conduz-nos, assim, a considerar que a falta de audição é irregularidade que se encontra sanada – a parte expos já o seu entendimento – e o tribunal de recurso ao conhecer da questão sobre se a nulidade é ou não de conhecimento oficioso, se entender que não há motivos para invalidar o aresto recorrido por excesso de pronúncia pode aproveitar o acto da parte, considerando sanada a irregularidade e decidir o ponto controvertido.

Em face do exposto, por se entender que, nas alegações de recurso, a parte teve oportunidade de se pronunciar sobre a indicada nulidade, exercendo o contraditório (suscita a questão, podendo ter-lhe dado um desenvolvimento maior ou menor), importa agora analisar se a nulidade – com os fundamentos indicados no acórdão recorrido – foi bem decidida.

Por razões de coerência lógica só entraremos na análise da questão 2. depois de resolvidas as demais questões do recurso que lhe sejam um antecedente lógico:

12. (ponto 3. e 4 das questões colocadas no recurso) - No acórdão recorrido as questões 3 e 4 foram respondidas pelo tribunal nos seguintes termos:

“Sustenta a apelante (conclusões 11ª e 12ª) que existe preterição de litisconsórcio necessário activo e passivo, pela circunstância de não se encontrar nos autos o banco tomador do seguro.

A acção foi instaurada na vigência do anterior Código de Processo Civil, cujo nº 1 do art. 26º aferia a legitimidade das partes pelo interesse directo em demandar (o Autor) e em contradizer (o Réu). O interesse em demandar exprimia-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advinha (nº 2 do mesmo art. 26º).  Os números 1 e 2 do artigo 30º do CPC de 2013 em matéria de legitimidade reproduzem na matéria o anterior Código.

    Invocando os Autores a ocorrência do evento previsto no contrato de seguro em que a Ré foi a seguradora e peticionando desta o pagamento da prestação a que se julgam com direito por efeito do mesmo contrato, têm interesse directo em demandar, já que a procedência da causa implica que a seguradora pague ao Banco o montante que era devido pelos Autores. No contrato de seguro invocado, são os Autores os titulares da relação controvertida, sendo por isso considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade (art. 26º, nº 3, do anterior CPC e art. 30ª, nº 3, do actual CPC).

   Se a acção for julgada procedente a Ré será condenada a pagar ao Banco as prestações do mútuo de que os Autores eram devedores. Em tal hipótese apenas a Ré poderá sofrer “prejuízo”, pelo que apenas esta tem interesse em contradizer.

     É invocado um seguro de grupo e questiona-se se foi cumprido pelo Banco tomador o dever de informação. Mas nenhum pedido foi deduzido contra o Banco e nenhuma disposição legal impunha que o Banco tivesse que ser demandado; o pagamento decorrente da verificação do evento aleatório previsto no contrato de seguro apenas da seguradora é exigido, não ocorrendo por isso qualquer situação de litisconsórcio necessário.”

O ponto 3. das questões colocadas no recurso foi resolvida pelo tribunal recorrido em consonância com o entendimento que tem sido veiculado por este STJ, em termos que não justificam afastamento por parte deste colectivo, no qual se insere o seguinte aresto: Ac. STJ de 15-04-2015, proc. 385/12.6TBBRG.G1.S1 [4].

 No que respeita ao ponto 4. das questões colocadas no recurso, estranha-se que esta questão seja colocada na revista quando o acórdão do TR já disse que a violação do dever de informação (a existir) não seria oponível ao segurador – solução que resolve a inteiro contento da seguradora a dúvida que lhe pudesse ter surgido; acresce que o acórdão da Relação entendeu que a acção devia proceder não porque tivesse havido violação do dever de informação, mas porque a cláusula contratual violada a boa-fé. É pois manifestamente inútil tratar desta questão no recurso, por não ter qualquer reflexo na situação concreta, o que dispensa (impede) o tribunal de a analisar – a questão ficou prejudicada.

13. No que respeita ao ponto 5. das questões colocadas no recurso, disse o Tribunal recorrido:

      Estamos perante um seguro de grupo, que no Decreto-Lei nº 176/95, de 26/7 – diploma em vigor à data da celebração do contrato dos autos e que estabelecia regras de transparência para a actividade seguradora e disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro – era caracterizado como o “seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo de interesse comum” (al. g) do art.º 1º).

No Regime Jurídico do Contrato de Seguro a noção de seguro de grupo consta do artigo 76º.

   De início o contrato de seguro de grupo é celebrado apenas entre a seguradora e um tomador, vindo posteriormente a aderir as pessoas ligadas de algum modo ao tomador do seguro. Como se salienta no acórdão do STJ de 13-01-2011 “uma das características do contrato de seguro de grupo é a sua formação em dois momentos distintos: num primeiro momento é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador do seguro e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo. Sendo com as adesões que surgem as pessoas seguras, visto que o tomador do seguro não tem essa qualidade” (Proc. 1443/04.6TBGDM.P1.S1, disponível no site da DGSI).

   O tomador de seguro é, no caso dos autos, a instituição bancária que concedeu o empréstimo.

       O contrato de seguro tem um conteúdo que se encontra fixado aquando da assinatura pelos subscritores – o que ocorreu no caso, conforme o descrito no facto nº 10. Quem subscreve o seguro não tem possibilidades de fixar o conteúdo do contrato, dado que as respectivas cláusulas já se encontram fixadas, em termos que são os aplicados a uma infinidade de contraentes em semelhante posição e que recorrem ao serviço da seguradora para assegurarem a cobertura de certo tipo de riscos. Tais contratos são, por isso, contratos de adesão e as cláusulas dos mesmos encontram-se submetidas ao regime das cláusulas contratuais gerais, previsto no DL nº 446/85 (neste sentido: Acórdãos do STJ, de 19.10.2010, Proc. 13/07.1TBCHV.G1 e desta Relação, de 31.01.2012, Proc. 8728/09.3TBVNG.P1; Prof. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, 2ª ed., 2016, págs. 489 e 641).

     Alegava a apelante que não foram alegados nem constam da matéria de facto factos que permitam qualificar o contrato de seguro dos autos como contrato de adesão (conclusão 13ª).

    Na réplica (fls. 117/121) os Autores invocaram: que se limitaram a subscrever a proposta e a aderir ao seguro (arts. 3º e 6º); que se limitaram a “aceitar em bloco o conteúdo contratual que lhe foi proposto, não tendo qualquer participação na preparação e na redacção das cláusulas, isto é, não tendo qualquer poder negocial” (art. 16º). No facto provado na sentença descrito sob o nº 10 consta que os Autores não tiveram qualquer intervenção na negociação das cláusulas, assinando e subscrevendo a proposta. Constata-se assim que foram alegados e provados factos que permitem concluir que o seguro em causa configura um contrato de adesão, sendo aplicável o regime das Cláusulas Contratuais Gerais (art. 1º, nº 1 e 2, da LCCG)”

Não obstante a justificação transcrita o recorrido discorda dela, nomeadamente por entender que a alegação de factos caracterizadores da abstracção e da generalidade enquanto elementos essenciais da sujeição ao regime das ccg é fundamental.

Cremos que não lhe assiste razão já que, como o tribunal recorrido justificou, os elementos existentes nos autos são suficientes para se considerar que o contrato de seguro dos autos é um contrato de adesão. Aderem-se aos fundamentos invocados pelo tribunal recorrido.

14. No que respeita ao ponto 6. das questões colocadas no recurso, disse o Tribunal recorrido:

“Desde a operação a que foi submetida que a Autora se encontra definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade profissional remunerada ou lucrativa (facto nº 15); tem restrições severas para transportar, mover e manusear objectos, que comprometem a realização de todas actividades de autocuidados (facto nº 16); apresenta uma marcha claudicante (facto nº 17); encontra-se, desde então, incapaz de cozinhar, passar a ferro, cuidar da casa ou efectuar qualquer outra tarefa doméstica, sendo obrigada a recorrer, todos os dias, e de modo contínuo, à ajuda de terceiros para a realização de tais tarefas (factos nº 18 e 19); vê-se obrigada diariamente e de modo contínuo a recorrer à ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoa, alimentar-se, tomar a medicação e vestir-se (facto nº 20). Na “Informação Clínica” datada de 08-04-2003 (fls. 34/35) já constava que para as actividades diárias e mesmo para a higiene íntima a Autora necessitava de auxílio de terceira pessoa. Essa situação integra invalidez absoluta e definitiva. Verificando-se a ocorrência do evento previsto no contrato de seguro a seguradora encontra-se obrigada a cobrir o risco.

  Sustenta a Ré que o contrato de seguro se encontrava desde 2007 “eficazmente anulado” (conclusão 16ª).

 Ambos os Autores eram segurados. Mas a carta da seguradora a comunicar o “cancelamento da apólice” apenas foi endereçada à Autora. A resolução pode fazer-se mediante declaração à outra parte (art. 436º, nº 1, do C. Civil).

Como se decidiu no acórdão desta Relação, de 12-05-2009 (Proc. 0824635) e da Relação de Lisboa, de 08-11-2012 (Proc. 428/11.0TVLSB.L1-2), estamos perante um contrato indivisível, ou seja, uma vez que ambos os cônjuges eram segurados na mesma apólice, não era possível resolver o contrato apenas em relação a um deles. Assim, ainda que fosse admissível a resolução sem a prévia interpelação, aquela apenas podia operar caso a comunicação da seguradora tivesse sido endereçada a ambos os segurados. E não foi, ficando assim afastada a invocada resolução do contrato de seguro.

Acresce que na data em que foi enviada a carta referida no facto nº 11, e mesmo na data indicada naquela carta como “Data de Efeito de Anulação”- 01-03-2006 (doc. fls. 101 e facto nº 11)- já tinha ocorrido o evento aleatório previsto no contrato – a situação de incapacidade da Autora – e a seguradora já tinha sido informada da situação de incapacidade da Autora (factos nº 24 a 27) e tinha comunicado à ora Autora a decisão de não proceder ao pagamento do capital seguro, invocando a cláusula que exigia para a verificação da invalidez absoluta e definitiva a necessidade de “recorrer de modo contínuo à assistência de terceira pessoa para efectuar actos normais da vida diária”. Esta comunicação da seguradora (reproduzida a fls. 103” tem aposta a data de 27 de Março de 2003.

 Mesmo que se considerasse o contrato cessado com a carta da seguradora referida no facto nº 11, a obrigação de a seguradora cobrir o risco permanecia, porque constituída anteriormente àquela cessação.

 Flui do exposto que assistia aos Autores o direito a reclamar da seguradora a cobertura do risco. Tendo formulado esse pedido, a acção teria que ser julgada procedente.”

O recorrente insiste na posição de que não estavam preenchidas as condições exigidas pela cláusula do contrato relativo à obrigação da seguradora em caso de invalidez absoluta.

Os seus argumentos são:

1) Não está provado nos autos o momento a partir do qual a A. se encontra em situação de invalidez absoluta;

2) A data da invalidez determinada pelo ISS não é a data que releva para efeito de accionamento do seguro;

3) Falta prova da incapacidade total para o trabalho e do recurso à assistência de uma terceira pessoa de forma contínua (nos autos só se indica que estas circunstâncias tiveram lugar na sequência da doença em causa diagnosticada em 2002 sem se concretizar o momento).

Analisando.

A posição da recorrente não se afigura a mais adequada face aos factos provados nos autos. Mas os factos provados têm ainda de ser integrados na previsão contratual em discussão já incluindo aqui a discussão sobre se a cláusula deve ser considerada inválida (parcialmente).

Tendo o tribunal recorrido entendido que a cláusula era abusiva, sendo desconsiderada a parte da mesma que obrigava a A. a provas suplementares relativamente às efectuadas, ter-se-ia de considerar os factos provados e a sua ligação com a cláusula do contrato expurgado destas exigências abusivas. Assim, como os factos provados no processo, a A. teria logrado demonstrar que estava em situação de invalidez absoluta, tal como alegou e demonstrou.

A decisão do TR está, nesta parte, absolutamente correcta e os factos provados permitem concluir que o seguro foi devidamente accionado antes da resolução. São os seguintes os factos provados relevantes:

9 - A Direcção Regional de Saúde atribuiu à autora mulher em 10 de Março de 2003 a incapacidade permanente, conferindo-lhe um grau de incapacidade de 80%, declaração essa que renovou em 15 de Fevereiro de 2008.

12 - No ano de 2002, à autora mulher foi diagnosticado um carcinoma mamário por força do qual foi submetida a uma mastectomia – relatório pericial 13 - Desde então, a autora é permanentemente assistida em termos médicos.

14 – E faz tratamentos de quimioterapia e radioterapia.

15 - Encontrando-se, por força da doença em causa, definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade profissional remunerada ou lucrativa.

18 - Encontrando-se, desde então, incapaz de cozinhar, passar a ferro, cuidar da casa ou efectuar qualquer outra tarefa doméstica.

19 - Sendo obrigada a recorrer, todos os dias, e de modo contínuo, à ajuda de terceiros para a realização de tais tarefas.

20 - De igual modo, por força da doença em causa, a autora mulher vê-se obrigada diariamente e de modo contínuo a recorrer à ajuda de terceiros para fazer a sua higiene pessoa, alimentar-se, tomar a medicação e vestir-se.

21 - Sendo o autor marido, os filhos de ambos e outros familiares que assistem à autora todos os dias e de modo contínuo na realização de tais tarefas, domésticas e pessoais.

23 - Pelo que, desde 2002, data em que foi diagnosticado um carcinoma mamário à A. e por força do descrito, o autor marido não pode trabalhar.

24 - Em 19 de Janeiro de 2003, os AA comunicaram o descrito supra em 12 a 23 ao Banco mutuante e à Ré.

25 - Remetendo a documentação clínica que comprovava o descrito.

26 - Tendo reiterado, por diversas vezes, junto da Ré o pedido de pagamento da quantia mutuada.

27 - E remetendo toda a documentação que a Ré solicitava.

32 - A A. é pensionista da Segurança Social por invalidez desde 25.3.2003.

34 - Não sendo de prever, face aos actuais conhecimentos médicos, qualquer melhoria no estado de saúde da autora.

15. Porque a questão indicada no ponto anterior se pretende com a questão suscitada no ponto 2. das questões colocadas no recurso, vejamos agora se o tribunal recorrido decidiu bem.

 Sobre a nulidade da cláusula disse o Tribunal recorrido o seguinte:

“O contrato de seguro em apreciação tinha por finalidade a prevenção do risco de ocorrência de morte ou invalidez permanente que não permitisse ou dificultasse o pagamento das prestações emergentes do contrato de mútuo celebrado com o Banco. Para o cidadão comum, medianamente informado, a invalidez permanente nem sempre tem que estar associada à necessidade da assistência permanente de terceira pessoa para realizar os actos normais da vida diária. Ao estabelecer a necessidade de assistência de terceira pessoa, como condição para que a pessoa segura seja considerada em estado de invalidez absoluta e definitiva, está a ser frustrado o objectivo visado pelo segurado quando assinou o contrato, que espera que a seguradora venha a pagar quando ele esteja incapaz; e está a ser traída a confiança depositada pela pessoa que assina o contrato, uma vez que a ocorrência de uma situação de invalidez absoluta e definitiva só por si não é bastante para que o seguro pague. Quem subscreve o seguro tem essa perspectiva em mente. A exigência, além da incapacidade definitiva de exercer qualquer profissão, de ser necessário o recurso, de modo contínuo, à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária apresenta-se desproporcionada e contrária à boa fé (neste sentido: Acórdãos do STJ, de 07-10-2010, Proc. 1583/06.7TBPRD.L1.S1; de 18-09-2014, Proc. 2334/10.7TBGDM.P1.S1; e de 27-09-2016, Proc. 240/11.7TBVRM.G1.S1). Lê-se no segundo destes arestos – todos versavam situações algo idênticas às dos presentes autos – “Pretender ainda, como pretende a seguradora, fazer depender a verificação do estado de invalidez permanente e definitiva, em consequência de doença, não só da incapacidade definitiva de exercer qualquer profissão, mas também da necessidade de recorrer, de modo contínuo, à assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária, mais não é do que um artifício pelo qual a seguradora, predisponente da cláusula, intenta sub-reptícia e encapotadamente restringir de modo drástico o alcance da cobertura do seguro, como se considerou no acórdão recorrido.”

    As cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé são proibidas e nulas (artigos 12º e 15º da Lei das CCG). Sendo a nulidade de conhecimento oficioso (art. 286º do C. Civil), não enferma do vício de excesso de pronúncia o acórdão que dela conhece, ainda que tal questão não haja sido suscitada nas alegações de recurso, conforme o decidido nos acórdãos do STJ, de 18-09-2014 e de 27-09-2016, acima referidos.

    Eliminando-se o segmento que aludia à necessidade de recorrer, de modo contínuo, à assistência de terceira pessoa, a cláusula referente à invalidez absoluta e definitiva (art. 2º das “Condições Especiais”, vigorará nos seguintes termos: “INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA - A Pessoa Segura encontra-se na situação de Invalidez Absoluta se, em consequência de doença ou acidente, ficar total e definitivamente incapacitada de exercer qualquer profissão ou outra actividade lucrativa, com fundamento em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis.”



Não se identificaram nas alegações do recorrente argumentos que pudessem sustentar a validade da cláusula tal como a mesma havia sido inserida no contrato. O recorrente não se conforma com o conhecimento oficioso da nulidade, mas não diz que a mesma não é nula, nem porque motivos a considera válida.

Face ao exposto, é de aderir à posição defendida pelo tribunal recorrido, quando declara a nulidade da cláusula (parcial), por ter efectuado uma interpretação mais consentânea com o padrão do homem médio – art.sº 236.º e ss do CC.

Os tribunais portugueses – quer o STJ[5], quer as Relações[6] – já declararam nulas várias vezes cláusulas do teor da que integra o contrato dos autos, por razões semelhantes às indicadas no aresto recorrido.

16. Tendo a A. comunicado o sinistro à R. e accionado o seguro antes de haver resolução do contrato pela seguradora, torna-se inútil discutir se a resolução deve ser dirigida a ambos os segurados ou apenas a um, ou se interfere ainda na solução o conhecimento que o cônjuge tenha da resolução comunicada à esposa, ficando a questão prejudicada. É pois de aderir à decisão recorrida quando nesta se diz:

“Acresce que na data em que foi enviada a carta referida no facto nº 11, e mesmo na data indicada naquela carta como “Data de Efeito de Anulação”- 01-03-2006 (doc. fls. 101 e facto nº 11)- já tinha ocorrido o evento aleatório previsto no contrato – a situação de incapacidade da Autora – e a seguradora já tinha sido informada da situação de incapacidade da Autora (factos nº 24 a 27) e tinha comunicado à ora Autora a decisão de não proceder ao pagamento do capital seguro, invocando a cláusula que exigia para a verificação da invalidez absoluta e definitiva a necessidade de “recorrer de modo contínuo à assistência de terceira pessoa para efectuar actos normais da vida diária”. Esta comunicação da seguradora (reproduzida a fls. 103” tem aposta a data de 27 de Março de 2003.

     Mesmo que se considerasse o contrato cessado com a carta da seguradora referida no facto nº 11, a obrigação de a seguradora cobrir o risco permanecia, porque constituída anteriormente àquela cessação.”



III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, julga-se a revista improcedente.

   

Custas pela recorrente, vencida no recurso.

     Lisboa,  1 de Outubro de 2019

Fátima Gomes

Acácio Neves

Fernando Samões

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[1] Modificado pelo Tribunal da Relação.
[2] Rectificado pelo Tribunal da Relação.
[3] Onde se lê: “Admitimos que se deu um avanço no entendimento do princípio do contraditório, na nossa lei processual, perdendo assim actualidade a concepção restrita do mesmo, segundo a qual o processo consistia numa discussão duma parte contra a outra, com o juiz, acima delas, a decidir. Mais do que uma discussão dialéctica entre as partes, está agora aberto o caminho para que estas “influenciem directamente” a decisão. Mas a mais a nossa lei não chega, pois a estrutura do nosso processo civil não prevê que o tribunal “discuta” com as partes o que quer que seja.
Note-se que, na redacção do preceito proveniente do DL n.º 329-A/95, estabelecia-se que a decisão pelo juiz de questões não suscitadas e debatidas pelas partes devia ser precedida da respectiva audição, quando as partes não tivessem tido a possibilidade de, “agindo com a diligência devida”, sobre elas se terem pronunciado durante o processo. Já na redacção do mesmo preceito legal, estabelecida pelo DL n.º 180/96 (e que se manteve nas reformas de 2007 e de 2013), foi alterada aquela formulação legal, passando a dispensar-se a audição prévia das partes sobre a questão nova suscitada pelo juiz na decisão, nos casos de “manifesta desnecessidade”. Ou seja, no regime de 1996, apela-se à necessidade ou utilidade da audição complementar das partes, dispensando-a quando tal audição se configurar como acto inútil[5].
O legislador, perante os princípios gerais que enformam o nosso Código de Processo Civil, não quis aliviar as partes de usarem a diligência devida para preverem as questões que vêm a ser, ou podem vir a ser, importantes para a decisão., residindo o cerne deste problema em saber se as partes tiveram, ou não, oportunidade processual para alegar quanto àquela questão e se a questão era ou não previsível para uma parte de diligência média.
Como esclarece Lopes do Rego, «a audição excepcional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela»[6].
Esta orientação tem sido assumida por este Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 16.1.2007, Agravo n.º 3294/06 e de 11.11.2008, Revista n.º 11.11.2008) e pelo STA, no acórdão de 23.1.2008, processo 0574/07: “O princípio do contraditório, na vertente que proíbe a decisão surpresa, não impõe ao tribunal de recurso que, antes de decidir questão proposta pelo recorrente, o alerte para a eventualidade de o fazer com base num quadro normativo distinto do por si invocado e até então não referido no processo”.”
[4] “Como é manifesto, está vedado ao tribunal definir quem deve ser demandado; note-se, aliás, que a falta do Banco não se traduz em qualquer situação de ilegitimidade, que pudesse ser sanada a convite do tribunal (actual artigo 6º, nº 2, anterior artigo 265º, nº 2); ao que acresce que sempre haveria de ter sido deduzido um pedido contra o Banco, fundado no incumprimento do dever de informação; que não foi.”
[5] Cf. aresto citados no acórdão recorrido.
[6] Cf. Ac. de 24/05/2018 do TRE, processo 212/13.7TBCUB.E1 – cláusula invalidada: «para efeitos deste seguro complementar, invalidez Absoluta ou Definitiva, consistia na incapacidade total da pessoa segura para o exercício de qualquer actividade, necessitando do recurso à assistência permanente de uma terceira pessoa para os actos básicos da vida diária, incluindo necessariamente a dependência total de terceiros, para a higiene e alimentação» - in www.dgsi.pt.