Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28189/18.5T8LSB-F.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A FILHOS MAIORES
CESSAÇÃO
ÂMBITO DO RECURSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OFENSA DO CASO JULGADO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A lei processual fixou a forma de cálculo que julgou adequada para expressar a utilidade económica do pedido nas acções de alimentos (cfr. art. 298.º, n.º 3, do CPC), devendo tal critério ser aplicável para efeitos de determinação da sucumbência.

II. No caso dos autos, sendo o prejuízo da decisão impugnada, para o recorrente, inferior a metade do valor da alçada, o recurso não é admissível em termos gerais.

III. Porém, tendo o recorrente invocado, fundamentadamente, a ofensa do caso julgado, nos termos do disposto no art. 629.º, n.º 1, al. a), parte final, do CPC, o recurso é admissível, circunscrito, porém, à apreciação de tal questão, assim como das invocadas nulidades que, no caso, se encontram em conexão com a invocada ofensa do caso julgado.

IV. Constata-se que a decisão impugnada padece de nulidade por ter condenado em objecto diverso do pedido, excedendo o âmbito da pronúncia, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, als. d) e e), do CPC, devendo – em conformidade com o disposto no art. 684.º, n.º 1, do CPC – anular-se a parte final da decisão do acórdão recorrido.

V. Tendo-se reconhecido a nulidade do acórdão recorrido por condenação em objecto diverso do pedido e por excesso de pronúncia, mostra-se prejudicada a apreciação da invocada ofensa do caso julgado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA veio, em 15 de Fevereiro de 2019, requerer a cessação da prestação alimentar a seu cargo relativamente à sua filha maior, BB, alegando, sumariamente, que é ... no ... e que, devido ao desconto da pensão de alimentos da sua filha maior, acrescido do valor para pagamento das prestações já vencidas, recebe mensalmente o valor de cerca de € 200,00, o que se revela insuficiente para fazer face às suas despesas, tendo várias dívidas. Alega que a jovem já trabalha e que não mantém qualquer relação consigo.

Mais pediu que os valores pagos desde a maioridade da jovem sejam imputados ao pagamento dos valores já vencidos.

Citada a requerida, a mesma apresentou resposta, alegando, em síntese, que trabalhou apenas em part-time para ajudar nas despesas, mas que, de momento, está desempregada. Mais alegou que, sem a prestação de alimentos do requerente, terá de interromper a sua formação académica, pois a mãe, sozinha, não consegue fazer face às despesas das propinas e demais sustento da mesma. Alega ainda que o progenitor tem rendimentos para suportar a prestação de alimentos em causa, pois as suas despesas somam o montante de € 389,70, que corresponde ao valor que recebe após o desconto da pensão que lhe paga. Alega também que sempre manteve interesse em conhecer e relacionar-se com o pai; este, pelo contrário, apenas tinha interesse na progenitora e não na filha e nunca se preocupou com esta.

Refere que a requerida não tem como, por si só, ou apenas com a ajuda da mãe, prover ao seu sustento, principalmente no que concerne às despesas com a universidade que são bastante elevadas. Consequentemente, deverá o valor da prestação de alimentos manter-se no montante de € 214,48 (duzentos e catorze euros e quarenta e oito cêntimos), acrescido do montante de € 50,00 (cinquenta euros), até perfazer a quantia de € 33.900,00 (trinta e três mil e novecentos euros) de alimentos vencidos e em dívida.

Deverá ainda manter-se o desconto no vencimento do requerente, conforme determinado anteriormente pelo Tribunal, uma vez que voluntariamente o requerente não realizará o pagamento de tais quantias mensais.

Por sentença de 24 de Novembro de 2020, foi proferida a seguinte decisão:

«a) Considerar procedente o pedido de cessação da pensão de alimentos a cargo de AA a favor da sua filha maior, BB, a partir do mês de Dezembro de 2020, termos em que deve a entidade patronal deixar de fazer o desconto de € 214,48 que até agora fazia.

b) Julgar improcedente o pedido de imputação do valor pago a título de pensão de alimentos à jovem desde a sua maioridade ao valor já vencido.

c) Fixar as custas a cargo da Requerida.»

Inconformada, a requerida interpôs recurso de apelação, tendo o tribunal da Relação, por acórdão de 29 de Abril de 2021, proferido a seguinte decisão:

«Nos termos vistos, acordam os Juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação .... em julgar procedente a Apelação, revogando a sentença objecto de recurso, mantendo a obrigação de o Requerido pagar alimentos à Recorrente, que se fixam na prestação mensal de 75 Euros, até a mesma terminar o curso de ....... ou perfizer 25 anos, a descontar mensalmente do ordenado do Recorrido, como até agora, para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente, até pagamento integral das quantias em divida à recorrente.».


2. Vem o requerente interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. No entendimento do Recorrente, o Acórdão da Relação ......., agora em revista, ao decidir e fixar um valor mensal de € 125,00 a pagar pelo ora Recorrente à aqui Recorrida, por conta da dívida daquele para com a Mãe desta, relativa aos alimentos vencidos, ofende a autoridade do caso julgado já constituído relativamente ao despacho de 21 de Dezembro de 2017, transitado em julgado, proferido no âmbito do Incidente de Incumprimento das Responsabilidades Parentais, que constitui o Apenso A a estes autos e no qual a Recorrida nem sequer é parte, violando, assim, o disposto no n.º 1 do artigo 619.º do CPC;

2. O Acórdão da Relação ......., ora em crise, depois de ter decidido e fixado uma pensão de alimentos no montante de € 75,00 mensais a favor da Recorrida, decidiu fixar também, à margem da Lei, o pagamento dos referidos € 125,00 mensais à Recorrida, por conta de uma dívida do ora Recorrente para com a Mãe desta, conhecendo assim de uma questão de que não podia, de todo, tomar conhecimento, razão pela qual é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

3. O Acórdão da Relação ......., ao condenar o Recorrente no pagamento coercivo da prestação mensal atrás mencionada (€ 125,00) à Recorrida, por conta de uma dívida daquele para com a mãe desta, condenou o Recorrente em objecto diverso do pedido, razão pela qual é nulo, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Com efeito, a ora Recorrida limitou-se a pugnar pela manutenção da pensão de alimentos anteriormente fixada a seu favor ainda que reduzida a mesma ao montante mínimo de € 75,00;

4. Para além dos vícios já mencionados, o Acórdão recorrido deve ainda ser declarado nulo nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto a sua decisão é obscura e ininteligível. Senão vejamos:

5. No segundo parágrafo da sua penúltima folha, refere o acórdão recorrido: “Cabe ainda salientar que, o facto de se manter o valor de 75,00 Euros a título de pagamento de prestações vencidas, não colide com a fixação deste outro valor, já que ambos se contêm no valor da prestação de alimentos (150 Euros, no total, é um valor inferior aos 241 Euros que o Requerente estava a pagar).” – nosso sublinhado.

6. Cumpre salientar que ao contrário do que se afirma no trecho citado, “a título de pagamento das prestações vencidas” o Recorrente paga uma prestação mensal no valor de €50, e não de €75, como por lapso o acórdão menciona.

7. Contudo ao aumentar aquele valor para € 75 mensais, é verdade que a soma de ambos ascende realmente ao valor de € 150,00 mencionado nesta mesma passagem do Acórdão recorrido.

8. Acontece, porém, que 3 parágrafos abaixo e também logo de seguida já em sede de “DECISÃO”, veio o mesmo Acórdão a mencionar: “(...) mantendo a obrigação de o Requerido pagar alimentos à Recorrente, que se fixam na prestação mensal de 75 Euros, até a mesma terminar o curso de ....... ou perfizer 25 anos, a descontar mensalmente do ordenado do Recorrido, como até agora, para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente, até pagamento integral das quantias em divida à recorrente.” – nossos os sublinhados.

9. Assim e como resulta evidente, não é inteligível se o Tribunal da Relação, para além de fixar uma prestação de €75 pelos alimentos vincendos, pretende fixar (apesar de não o poder fazer) uma outra prestação de €75 por conta da dívida do ora Recorrente relativa a alimentos vencidos, o que daria o tal “total de €150 mensais.”, ou se, diferentemente, pretende fixar €75 por conta dos alimentos vincendos “para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente” por conta da dívida do ora Recorrente, o que daria um valor total de € 200,00 mensais.

10. Nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 2003.º do Código Civil, “Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário” e, caso o alimentado seja menor, os alimentos abrangem também “a instrução e educação do alimentado”.

11. Estabelece ainda o artigo 1880.º do Código Civil que “Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”.

12. Esclarece o n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil que “Para efeitos do disposto no artigo 1880.º entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respectivo processo de educação ou formação profissional tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.”

13. Por sua vez, nos termos do n.º 1 do artigo 2004.º do Código Civil “Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”, acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito que “Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”.

14. Na determinação da necessidade de alimentos, deve atender-se ao padrão de vida dos necessitados, à ambiência familiar, social, cultural e económica a que estão habituados e que seja justificável pelas possibilidades de quem está obrigado a prestar alimentos.

15. A obrigação (de alimentos) com a referida configuração e extensão, deve, pois, prolongar-se para além do termo da menoridade, por forma a que o filho complete a sua formação profissional e desde que seja razoável exigir dos pais a continuação dessas despesas e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete – cfr. artigo 1880.º, CC in fine.

16. Sendo absolutamente crucial, no entendimento do Recorrente, a correcta determinação por parte do Tribunal da questão a apreciar e decidir, o Acórdão, aqui recorrido, ao delimitar como única “questão a decidir”: “Se a pensão de alimentos, na modalidade de pagamento de contribuição para o pagamento de propinas de Faculdade Privada, deverá ser mantida a favor da ora Recorrente até completar o seu percurso académico ou completar os 25 (vinte cinco) anos de idade.”, procedeu a uma delimitação muito redutora e, salvo o devido respeito, errada, da “questão a decidir”.

17. Com efeito, tratando-se de uma acção de cessação de alimentos a filha maior intentada pelo ora Recorrente, alegando-se para tal a irrazoabilidade da sua exigência, o que aqui cumpre apreciar e decidir, é se sim ou não deve ser considerado razoável exigir ao Recorrente, em face da sua comprovada (in)disponibilidade económica, que continue a pagar à sua filha, que já é maior, uma pensão de alimentos.

18. Incompreensivelmente e de forma inexplicada, o acórdão em revista, que contém 24 páginas, nem um único parágrafo ou mesmo uma só palavra dedicou à questão essencial da decisão a ser proferida, referente à razoabilidade, ou não, da exigência da prestação.

19. Como muito bem questionou a Sra. Juíz do Tribunal a quo, “É exigível manter a prestação de uma pensão de alimentos a cargo do Progenitor para pagamento das propinas do curso superior da filha já maior, quando afinal tal redunda num rendimento líquido mensal de € 380 e este tem uma filha menor, de um ano de idade?

20. Relevam para tal juízo de razoabilidade, sobretudo, (i) as possibilidades económicas da Recorrida (que, como se provou, tem emprego e vive com a Mãe e com um Tio, numa casa que é dos avós), (ii) o seu aproveitamento escolar, (iii) a dimensão dos recursos do Recorrente e (iV) o relacionamento entre ambos existente.

21. No julgamento da 1.ª Instância, com interesse para esta causa, foram julgados provados um conjunto de factos particularmente importantes, a saber:

22. O Recorrente aufere um salário mensal bruto de € 650,00, do qual é descontado à cabeça, coercivamente e por ordem do Tribunal, o valor global de € 264,48 correspondente aos alimentos por si suportados (€ 214,48 + € 50,00), restando-lhe apenas o valor mensal bruto de € 385,562 para fazer face à sua subsistência;

23. Por sua vez, a ora Recorrida não suporta quaisquer despesas com a casa onde reside, não contribuindo para as despesas de habitação integralmente suportadas pela Mãe e pelos Avós.

24. A Recorrida é maior de idade (23 anos), pode trabalhar e trabalha, e sempre viveu com os avós maternos e com a sua mãe.

25. O Recorrente voltou a ser Pai de uma criança que nasceu no passado dia ... de ... de 2019.

26. Entre a Recorrida e Recorrente não existe qualquer tipo de relacionamento afectivo, sendo que a filha nem sequer fala ao pai;

27. “O salário do Requerido [Recorrente] é inferior, em qualquer caso, a € 350,00 líquidos por mês.” – cfr. facto provado sob o n.º 10 da douta sentença de 1ª Instância.

28. Considera o Recorrente, pois, que estes factos que se encontram provados, constituem por si só prova bastante da sua manifesta incapacidade em continuar a prestar alimentos à sua filha maior.

29. Não obstante, provado está ainda que no ano de 2018 a mãe da Recorrida, conjuntamente com esta, auferiram rendimentos no valor de € 16.609,90, o que lhe proporcionou um rendimento mensal no valor de € 1.239,14 (ou seja, mais do triplo do Recorrente!).

30. Encontra-se igualmente provado que o aproveitamento escolar da Recorrida não tem sido sequer suficiente, uma vez que, tendo ela 23 anos de idade (feitos em janeiro de 2021), frequenta (apenas) o 2.º ano do curso, com diversas e importantes “cadeiras” do 1.º ano por fazer.

31. Tendo já 23 anos de idade, se a Recorrida tivesse tido o aproveitamento escolar exigível, teria já terminado o curso, razão pela qual não se encontra verificada a previsão legal constante da parte final do artigo 1880.º - “e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”.

32. Por todo o atrás exposto, é por demais evidente que a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo fez uma adequada aplicação do direito aos factos concretos, em consonância, aliás, com a melhor doutrina e jurisprudência.

33. A título meramente exemplificativo e tendo em consideração a proximidade fática das situações em apreço refira-se o douto Acórdão da Relação de Coimbra de 19.12.2017 (Proc.º n.º 1156/15.3T8CTB.C2), no qual, com muito interesse para a decisão desta causa, podemos ler o seguinte:

. “A densificação da cláusula de razoabilidade constante do art.º 1880.º do CC implica e suscita, caso a caso, ponderações e reflexões relativas a diversos fatores como as possibilidades económicas do jovem maior, a dimensão dos recursos dos progenitores, a duração e dificuldade relativa dos estudos que o filho maior pretenda prosseguir, ou/e observância e respeito dos deveres do filho para com o progenitor obrigado”;

. “No caso em apreço, entendemos não ser razoável exigir ao requerido que pague alimentos à requerente, sua filha de 22 anos de idade, considerando o rendimento mensal que esta aufere e a ausência de encargos de renda de casa e demais despesas inerentes às despesas de um agregado familiar, os rendimentos livres do requerido – descontadas as despesas que suporta, o percurso escolar daquela, bem como a falta do dever de respeito perante o progenitor, patenteada pela factualidade descrita”.».

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da decisão da 1.ª instância.

A Recorrida não contra-alegou.


3. Por acórdão da conferência de 14 de Outubro de 2021, o tribunal a quo pronunciou-se:

- No sentido da não verificação da invocada nulidade por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido; e ainda,

- No sentido de qualificar como rectificação de lapso de escrita, a invocada nulidade por ambiguidade ou obscuridade da decisão, deferindo a reclamação nos seguintes termos:

«Da Nulidade por ambiguidade/Obscuridade.

Quando no Acórdão se refere “Cabe ainda salientar que, o facto de se manter o valor de 75,00 Euros a titulo de pagamento de prestações vencidas, não colide com a fixação deste outro valor, já que ambos se contêm no valor da prestação de alimentos (150 Euros, no total, é um valor inferior aos 241 Euros que o requerente estava a pagar), trata-se de um lapso manifesto ou inexatidão manifestada no texto, logo suprida pelo parágrafo em que se refere:

Fixa-se a prestação mensal de 75 Euros, até a mesma terminar o curso de ....... ou perfizer 25 anos, a descontar mensalmente do ordenado do Recorrido, para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente, até pagamento integral das quantias em divida à recorrente.

Já no decurso do Acórdão, se havia escrito que o tribunal cessou os alimentos vincendos e aumentou em 75.00 Euros o valor a deduzir no vencimento do requerido por conta das prestações em atraso, ascendendo esse valor a 125.00 Euros. (75,00+50,00 Euros, já anteriormente fixados -125,00 Euros).

A esses 125 Euros, por conta do valor do valor vencido, acresce o valor ora fixada da prestação por alimentos de 75,00, como referimos na decisão final.

É por isso notório que aquela outra frase que refere o total de 150 Euros consubstancia um lapso manifesto, evidenciado no contexto do Acórdão.

Não estamos perante uma nulidade da sentença por obscuridade ou ambiguidade desta, mas sim perante uma frase que contém um lapso ou inexatidão manifestada no texto e por isso retificável nos termos do art.614º do CPC, considerando-se a mesma como não escrita.».      

4. Consideremos, antes de mais, a questão da admissibilidade do recurso, a qual depende, em primeira linha, da verificação dos pressupostos respeitantes ao valor da causa e da sucumbência. De acordo com o n.º 1 do art. 629.º do Código de Processo Civil:

«O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa».


4.1. No caso dos autos, em sede de requerimento inicial, o ora Recorrente indicou como valor da acção € 30.000,01, não tendo a requerida contestado tal indicação.

Sucede, porém, que a 1.ª instância não fixou valor à causa, como lhe incumbia (cfr. art. 306.º, n.ºs 1 e 3 do CPC), o que é gerador de nulidade por omissão de pronúncia, por força do disposto nos arts. 195.º, 199.º e 615.º, n.º 1, alínea d), todos do CPC.

Neste sentido pronunciou-se este Supremo Tribunal, por acórdão de 20.10.2015 (Proc. n.º 478/11.7TTVRL.G1-A.S1), disponível em www.dgsi.pt, afirmando:

     «[E]m regra, o valor da causa é fixado no tribunal de 1ª instância, sendo certo que se o juiz não fixar o valor da causa em qualquer dos apontados momentos (despacho saneador, sentença ou despacho que incida sobre o requerimento de interposição de recurso) deverá a parte nisso interessada arguir a correspondente nulidade, por omissão de pronúncia (cfr. arts. 195.º/1, 199.º/1 e 615.º).» [negrito nosso]

    No caso que nos ocupa, tal omissão de pronúncia não foi suscitada por qualquer das partes, do que resulta, ainda que implicitamente, a aceitação de que o valor a considerar será o indicado em sede de requerimento inicial (cfr. art. 305.º, n.º 4, do CPC).

    Nestes termos, consideramos que o valor da causa a ter em conta para efeitos de admissibilidade de recurso é de € 30 000,01.


4.2. Quanto ao valor da sucumbência, importa aferir se a decisão impugnada é desfavorável ao Recorrente em valor superior a metade do valor da alçada do tribunal recorrido.

    No caso dos autos, o Recorrente peticionou a cessação do pagamento de pensão de alimentos que se encontrava, à data da entrada em juízo do requerimento inicial, fixada em €214,48, tendo a Recorrida pugnado pela manutenção da pensão de alimentos fixada.

    Ora, a lei processual fixou a forma de cálculo que julgou adequada para expressar a utilidade económica do pedido nas acções de alimentos (cfr. art. 298.º, n.º 3, do CPC), devendo tal critério ser aplicável para efeitos de determinação da sucumbência.

    Neste sentido se pronunciou este Supremo Tribunal no acórdão de 02.05.2019 (proc. n.º 6537/17.5T8CBR.C1.S1), consultável em www.dgsi.pt:

    «Num processo de divórcio, por mútuo consentimento ou sem consentimento, mas em que haja convolação para mútuo consentimento, se o processo prosseguir apenas para fixação dos alimentos, o valor a considerar para efeitos de determinação da sucumbência dever ser aferido em função do critério legal de fixação do valor das acções de alimentos.». [negrito nosso]

    Assim, tendo por referência a mencionada disposição legal, a pretensão formulada pelo autor em sede de requerimento inicial e o valor da pensão de alimentos fixado pelo tribunal da Relação, há que concluir que o valor da sucumbência é de € 4.500,00 (€ 75,00 x 12 x 5).

    Efectivamente, o valor indicado é o que corresponde ao «montante do prejuízo que a decisão recorrida importa para o recorrente, o qual é aferido em função do teor da alegação do recurso e da pretensão nele formulada, equivalendo, assim, ao valor do recurso, traduzido na utilidade económica que, através dele, se pretende obter», nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.09.2021 (proc. n.º 51/17.6T8PVZ.P1.S1), ainda não publicado.

    Se assim é, impõe-se a conclusão de que o prejuízo que para o Recorrente decorre da decisão impugnada é inferior a metade do valor da alçada, razão pela qual se o recurso não é admissível em termos gerais.


4.3. Em todo o caso, veio o Recorrente invocar a ofensa do caso julgado, por considerar que o Tribunal da Relação, ao determinar o desconto da quantia de € 125,00, violou a decisão judicial proferida no apenso A, em 21 de dezembro de 2017.

    Dispõe o art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC:

    «Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado».

    No caso dos autos, tendo o Recorrente invocado, fundamentadamente, a ofensa do caso julgado, o recurso é admissível, nos termos do disposto no art. 629.º, n.º 1, alínea a), parte final, do CPC, circunscrito à apreciação de tal questão.

    No que se refere ao conhecimento das invocadas nulidades, e não obstante não se ignorar a divergência da jurisprudência deste Supremo Tribunal quanto ao âmbito de admissibilidade do recurso a este respeito – conhecimento de todas as nulidades invocadas ou apenas conhecimento das nulidades conexas com a questão recursória que justifica a aplicação do art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC – constata-se que, de qualquer forma, no caso dos autos, as nulidades suscitadas se encontram, efectivamente, em conexão com a invocada ofensa do caso julgado, uma vez que a sua apreciação tem a ver com o segmento decisório colocado em crise pelo Recorrente, na parte em que o recurso é admitido, razão pela qual se decide caber igualmente, a este Supremo Tribunal apreciar tais nulidades, nos termos do disposto no art. 617.º, aplicável ex vi art. 666.º, e ainda art. 674.º, n.º 1, alínea c), todos do CPC.


5. Tendo por referência as conclusões do recurso, assim como a delimitação feita no ponto 4.3. do presente acórdão, cumpre apreciar as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia e por condenação em objecto diverso do pedido;

- Nulidade do acórdão recorrido por ambiguidade e obscuridade que torne a decisão ininteligível;

- Ofensa do caso julgado.

6. Dispõe o art. 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, aplicável ex vi art. 666.º, n.º 1, do CPC:

«É nula a sentença quando: (…)

d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) o juiz condene em quantidade ou objeto superior ao pedido.».

A nulidade da sentença prevista na alínea d) prende-se, essencialmente, com o comando normativo extraído do n.º 2, do art. 608.º do CPC que dispõe que:

 «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.».

Por seu turno, a nulidade prevista na alínea e), igualmente invocada, encontra fundamento no disposto no n.º 1 do art. 609.º do CPC que dispõe que:

 «A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir».

No caso dos autos, está em causa o segmento final da decisão proferida pelo acórdão recorrido:

«Nos termos vistos, acordam os Juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação .... em julgar procedente a Apelação, revogando a sentença objecto de recurso, mantendo a obrigação de o Requerido pagar alimentos à Recorrente, que se fixam na prestação mensal de 75 Euros, até a mesma terminar o curso de ....... ou perfizer 25 anos, a descontar mensalmente do ordenado do Recorrido, como até agora, para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente, até pagamento integral das quantias em divida à recorrente.». [negrito nosso]

Como resulta do relatório do presente acórdão, o requerente, ora Recorrente, peticionou tão-só e apenas: (i) a cessação dos alimentos fixados; e (ii) a imputação dos montantes pagos a título de pensão de alimentos desde a maioridade da sua filha à dívida vencida durante a sua menoridade.

O segundo pedido foi objecto da seguinte decisão, não impugnada, da 1.ª instância:

«b) Julgar improcedente o pedido de imputação do valor pago a título de pensão de alimentos à jovem desde a sua maioridade ao valor já vencido.».

Entende-se, pois, que, em face da pretensão deduzida em juízo, não podia a Relação determinar um aumento do desconto para futuro a realizar no ordenado do requerente por conta da dívida vencida, já que tal pretensão não se encontrava em discussão nos autos nem foi sujeita a contraditório.

Deste modo, considera-se verificada, in casu, a nulidade da decisão por condenação em objecto diverso do pedido, sendo também evidente que a Relação excedeu o âmbito da pronúncia que lhe foi solicitada. Nas palavras do sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 08.02.2018 (proc. n.º 633/15.0T8VCT.G1.S1)[1], disponível em www.dgsi.pt:

 «II - A nulidade por condenação além do pedido e em objecto diverso do pedido, e ainda por exceder o âmbito da pronúncia, prevista no art. 615º, nº 1, alínea e), do CPC, a verificar-se, resultará do desrespeito pelo princípio do nº 1, do art. 609º, do CPC, segundo o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.

III - Tal nulidade deriva, assim, da conformidade com o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objecto do litígio (a pretensão formulada pelo autor, que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objecto dessa tutela), o qual, por sua vez, constitui um corolário do princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1, do CPC).».

É o que sucede no caso que nos ocupa, já que a Relação determinou um aumento do valor a descontar do salário do requerente por conta de uma dívida vencida, sendo evidente que tal aumento não tinha sido peticionado nos autos.


7. Em relação à fundamentação do acórdão da conferência do tribunal a quo que se pronunciou no sentido da não verificação das nulidades apreciadas no ponto anterior (cfr. supra, ponto 3 do presente acórdão), refira-se que, diversamente do que aí se afirma, para além de não ter sido pedida a alteração do montante a descontar por conta da dívida vencida no âmbito dos autos de alteração da regulação das responsabilidades parentais, ainda que tal tivesse ocorrido não teria, nem poderia ter qualquer relevância na economia dos presentes autos que conservam inteira autonomia.

Não se vislumbra, igualmente, em que medida o aumento, para futuro, do valor a descontar no ordenado do requerente, por conta da dívida vencida, pode configurar “um menos” relativamente ao pedido de imputação dos valores liquidados desde a maioridade da requerida à dívida vencida e não paga, já que aquela decisão e este pedido configuram realidades totalmente distintas, tendo o pedido sido indeferido pela 1.ª instância, sem que a decisão tenha sido impugnada.

Acresce que a circunstância de a soma (entre o valor fixado a título de pensão de alimentos e o valor do desconto no ordenado do requerente por conta da dívida vencida) não exceder o montante da pensão de alimentos em vigor à data da entrada em juízo do requerimento inicial não assume qualquer relevância, já que as referidas parcelas têm natureza e fundamentos distintos e, do ponto de vista do Recorrente, tal matéria (alteração do valor mensal a descontar no ordenado por conta da dívida vencida) não se encontrava, de todo, em discussão nos presentes autos, não tendo sido colocada à consideração das instâncias.

Por fim, cumpre mencionar que, diversamente do entendido no acórdão da conferência do tribunal a quo, não era exigível ao Recorrente que impugnasse o entendimento da 1.ª instância – a qual, em sede de fundamentação de sentença, produziu, efectivamente, afirmação acerca do aumento do valor a descontar no ordenado do requerente –, uma vez que tal entendimento não transitou para o dispositivo da sentença, não prejudicando o requerente, ora Recorrente (cfr. art. 621.º do CPC). De facto, se é verdade que os fundamentos do caso julgado podem assumir relevância para efeitos de interpretação da parte dispositiva da sentença, também é certo que não têm relevância jurídica autónoma, não prejudicando, por si só, as partes nos autos.

Conclui-se, pois, que o Recorrente não impugnou tal passagem da fundamentação da sentença de 1.ª instância porque não tinha de o fazer em face do que ficou dito, não podendo ser, por tal motivo, prejudicado.

Assim, conclui-se que a decisão ora impugnada padece de nulidade por ter condenado em objecto diverso do pedido, excedendo o âmbito da pronúncia, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC, devendo – em conformidade com o disposto no art. 684.º, n.º 1, do CPC – anular-se a parte final («para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente, até pagamento integral das quantias em divida à recorrente») da decisão do acórdão recorrido.


8. Veio, ainda, o Recorrente invocar a nulidade do acórdão recorrido com fundamento em ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível (cfr. art. 615.º, n.º 1, alínea c), segunda parte, do CPC).

Sobre esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que é de considerar ambígua uma decisão quando for possível atribuir-lhe pelo menos, dois sentidos díspares; e que é de considerar obscura uma decisão quando for impossível, a um destinatário medianamente esclarecido, apreender o seu sentido.

No caso dos autos, está em causa a seguinte passagem da fundamentação do acórdão recorrido e, mais concretamente, a referência a €150:

«Cabe ainda salientar que, o facto de se manter o valor de 75,00 Euros a título de pagamento de prestações vencidas, não colide com a fixação deste outro valor, já que ambos se contêm no valor da prestação de alimentos (150 Euros, no total, é um valor inferior aos 241 Euros que o requerente estava a pagar) (...)».

 Ora, como enunciado supra, no ponto 3 do relatório do presente acórdão, em acórdão da conferência, o tribunal a quo já se pronunciou sobre a invocada nulidade, tendo pugnado pela sua não verificação, concluindo pela existência de uma mera inexactidão manifestada no próprio texto do acórdão, que rectificou nos termos supra reproduzidos no sobredito ponto 3. do relatório.

Na verdade, lida e interpretada a decisão recorrida, há que concluir que a mesma não revela qualquer ambiguidade ou obscuridade. De facto, tendo por referência o teor da parte final da decisão proferida pelo acórdão recorrido («(...) mantendo a obrigação de o Requerido pagar alimentos à Recorrente, que se fixam na prestação mensal de 75 Euros, até a mesma terminar o curso de ....... ou perfizer 25 anos, a descontar mensalmente do ordenado do Recorrido, como até agora, para além da cobrança coerciva da quantia total de 125 Euros, mensalmente, até pagamento integral das quantias em divida à recorrente.»), temos por evidente que qualquer destinatário medianamente esclarecido interpretaria a passagem da fundamentação do mesmo acórdão, agora sob escrutínio, no sentido de que o valor fixado a título de pensão é de € 75,00, acrescido da quantia de € 125,00, a título de pagamento da dívida vencida, num total de € 200,00.

Conclui-se, assim, não se verificar a invocada nulidade, tratando-se, sim, de mera inexactidão que foi já rectificada pelo tribunal recorrido, nos termos pretendidos pelo Recorrente.


9. Tendo-se reconhecido (cfr. pontos 6 e 7 do presente acórdão) a nulidade do acórdão recorrido por condenação em objecto diverso do pedido e por excesso de pronúncia, mostra-se prejudicada a apreciação da invocada ofensa do caso julgado.

10. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, anulando-se a parte final da decisão do acórdão recorrido, passando a mesma decisão a ser do seguinte teor:

«Nos termos vistos, acordam os Juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação .... em julgar procedente a Apelação, revogando a sentença objecto de recurso, mantendo a obrigação de o Requerido pagar alimentos à Recorrente, que se fixam na prestação mensal de 75 Euros, até a mesma terminar o curso de ....... ou perfizer 25 anos, a descontar mensalmente do ordenado do Recorrido, como até agora.».

Custas pelo Recorrente na proporção de 50%.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2021

Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

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[1] Relatado pela relatora do presente acórdão.