Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
157/17.1JAPRT-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
OMISSÃO
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
NULIDADE
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
O habeas corpus, como providência excepcional, não pode ser usado por interpretação extensiva a todos os casos em que exista uma qualquer limitação da liberdade, sendo o meio próprio apenas para as situações de manifesta ilegalidade da prisão, o que significa que, se a situação não for essa, os meios de defesa são os que a lei ordinária configurar para o caso. E qualquer discordância quanto ao mérito da decisão (provisória) tomada, só no âmbito do recurso ordinário pode ter guarida, não na presente providência extraordinária de habeas corpus, cujo pedido assim não pode, nem deve ser conhecido.
II - De acordo com o disposto no art. 213.º do CPP, o juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos de prisão preventiva no prazo máximo de 3 meses a contar da data da sua aplicação ou do último reexame. Tal actividade terá como suporte a audição do MP e do arguido, sempre que necessário.
III - A omissão do reexame, quando obrigatório, não constitui nulidade absoluta, uma vez que não é enquadrável no art. 119.º, do CPP. Como refere Maia Costa Código de Processo Penal Comentado, pág. 889 e segs., trata-se de mera irregularidade, seguindo o regime do art. 123º, daquele diploma legal.
IV - Deste modo, constituindo uma irregularidade processual, essa omissão de reexame dos pressupostos que ditaram a medida de coacção de prisão preventiva, não constitui fundamento de habeas corpus, porque não é susceptível de integração em nenhuma das situações descritas no n.º 2, do art. 222.º, já que esta providência não se destina a conhecer de nulidades ou irregularidades processuais.
V - Assim, sem embargo da relevância das questões suscitadas e da sua importância processual, entende-se que as mesmas, neste particular, não podem fundamentar a providência requerida.
VI - A requerente foi indiciada como autora de um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p.e p. nos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. b), e) e j) do CP. A requerente encontra-se sujeita à medida de prisão preventiva desde 09.05.2017. A requerente foi condenada na pena de 20 anos de prisão, confirmada pelo tribunal de recurso. Pelo que a esta data (25.03.2021), não se mostram excedidos os prazos máximos previstos no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, os quais se elevam para metade da pena que tiver sido fixada”, ou seja, in casu, o prazo máximo de prisão preventiva é de 10 (dez) anos, atendendo à actual fase do processo.
VII - Pelo que: a prisão preventiva a que a requerente se encontra sujeita, foi aplicada por entidade competente - o juiz do processo [alínea a)]; por facto pelo qual a lei permite - prática do crime de homicídio previsto nos arts. 131.º e 132.º, do CP, punido com uma pena abstracta de 12 a 25 anos de prisão- [alínea b)], e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coacção na fase em que o processo ora se encontra – [alínea c)].
VIII - Não se verificam, deste modo, quaisquer dos fundamentos previstos no art. 222.º do CPP, que fundamentam o pedido de habeas corpus.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 157/17.1JAPRT-B. S1

Providência de Habeas Corpus

Acordam, precedendo audiência, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA, viúva, atualmente detida no E.P. de ......... - ........., vem requerer a providência de Habeas Corpus, cuja petição aqui se transcreve:

(…)

1º. A Requerente foi detida em 10 de maio de 2017 e tem-se mantido, desde essa data, em prisão preventiva.

2º. Foi deduzida acusação em 08 de fevereiro de 2018.

3º. Foi requerida a Abertura de Instrução, onde se suscitou a Nulidade Do Inquérito por utilização de meios de obtenção de prova ilegal, em violação dos artigos 58º, 59º, 126º, nº 1 e 2 alíneas a) e e) do CPP,

4º. Declarada a aberta a fase de instrução e realizado o debate instrutório, veio o Senhor Juiz de Instrução do Tribunal Judicial da Comarca de ......... -Juízo Local Criminal de .........-, promover pelo prosseguimento dos autos para julgamento, concluindo pela falta de legitimidade da Arguida para suscitar a nulidade nos termos em que invocados.

5º. Nulidade que foi suscitada, uma vez mais, em sede de contestação.

6º. Sendo que, por Acórdão de 08 de novembro de 2018, veio a arguida a ser condenada pela prática dos factos imputados,

7º. No suprarreferido acórdão, considerou-se, na senda do despacho interlocutório, que a Requerente não detinha legitimidade para suscitar tal nulidade.

8º. Por se considerar tal entendimento ilegal e inconstitucional a Requerente interpôs recurso do Despacho de Pronuncia e, bem assim, do Acórdão de Primeira Instância, para o Tribunal da Relação ..........

9º. Nessa senda, por acórdão de 25.02.2019 veio o Tribunal da Relação ......... confirmar, nesta parte, as decisões proferidas, considerando que o depoimento prestado pela Testemunha BB não constitui meio proibido de prova nem integra qualquer nulidade, nos termos dos artigos 58º, 59º, nº 2, 120º, nº 2 al. d) e 126º, nº 1 e 2 al. a) do CPP, nem constitui ofensa às garantias constitucionais da Recorrente, designadamente do artigo 32º, nº 1 da CRP.

10º. Não se conformando com tal entendimento, a Requerente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, considerou pela irrecorribilidade da decisão e, como tal, não conheceu da suscitada nulidade e decorrente ilegalidade e inconstitucionalidade.

11º. Pelo que, a Requerente interpôs Recurso para o Tribunal Constitucional suscitando a ilegalidade e inconstitucionalidade da interpretação sufragada pelas instâncias anteriores, por violação dos artigos 58º, 59º, nº 2, 120º, nº 2 al. d) e 126º, nº 1 e 2 al. a) do CPP e dos princípios constitucionais previstos pelo artigo 32º, nº 1 da CRP.

AINDA ASSIM,

12º. Considerou o Tribunal Constitucional que a Requerente haveria de interpor recurso do Acórdão da Relação e não, do Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, concluindo pela não admissão do recurso de constitucionalidade (Acórdão 451/2020, notificado ao mandatário da Requerente em 22.09.2020).

13º. Por considerar estar em prazo, em virtude da interrupção que decorre do artigo 75º, nº1 e 2 da LTC, a Requerente interpôs novo recurso de constitucionalidade, desta vez do Acórdão da Relação, o que sucedeu em 02 de outubro de 2020.

SUCEDE QUE,

14º. Até ao presente, não foi a Recorrente notificada da sua admissão ou rejeição.

15º. Pelo que, em 04/03/2021 (Ref: 190833) requereu esclarecimentos quanto ao sucedido junto do Tribunal da Relação de ......... (Processo: 157/17.........),

16º. Que, “alheio ao domínio do processo”, informou que o mesmo se encontra na Primeira Instância, devendo ser esse o Tribunal a prestar os esclarecimentos solicitados- Tribunal da Relação de ........., Processo: 157/17........., Not. De despacho Mandatário em 05-03-2021, - Ref: 7410219

17º. Ou seja, decorridos 5 meses desde a receção pelo Tribunal da Relação de ......... do Recurso, e não obstante a Requerente estar sujeita à medida de coação mais gravosa, não foram os autos remetidos, primeiro ao Tribunal da Relação e depois ao Tribunal Constitucional.

ANTE O EXPOSTO,

18º. Inexistindo prolação quanto ao Recurso Interposto de qualquer decisão, é entendimento da Requerente que a decisão condenatória não transitou em julgado.

19º. E, como tal, até ao presente, mantém-se em prisão preventiva,

20º. Medida de coação que, pela sua gravidade, impõe o reexame dos pressupostos da sua manutenção- Cfr. Artigo 213º CPP,

21º. Que, desde a decisão do Tribunal Constitucional de 05 de novembro de 2020, (na qual se decidiu não tomar conhecimento da reclamação para conferência e indeferir a retificação do acórdão anterior (Acórdão do TC nº 584/2020), deixou de ser cumprido.

22º. E, como tal, a arguida encontra-se hoje em prisão ilegal.

23º. Assim se ofendendo o disposto nos artigos 213º e 22º, alínea c) do Código de Processo Penal.

TERMOS em que V. Exª. dando provimento à Requerida Providência de Habeas Corpus e ordenando a imediata libertação da Arguida-Requerente,

(…).

2. A Senhora Juíza lavrou despacho, em 29.01.2020, nos termos do disposto no artigo 223.º n.º 1, do CPP, informando o seguinte:

(…)

Conforme prescreve o artigo 223º, n.º 1 do Código do Processo Penal, envie imediatamente ao Ex.mo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a petição de habeas corpus.

Instrua-o com os seguintes elementos:

Recursos apresentados pela arguida e respectivos acórdãos (incluindo os proferidos pelo STJ e Tribunal Constitucional); cópia do recurso apresentado pelo arguido dirigido ao Tribunal da Relação de .........; todos os despachos proferidos após o envio dos autos à 1ª instância, conforme determinação do Tribunal Constitucional e requerimentos efectuados pela arguida a respeito da questão do trânsito em julgado que mereceram tais despachos, bem como o requerimento formulado junto do Tribunal da Relação de ......... e despacho aí proferido e, ainda, a liquidação da pena.

Sublinha-se que no despacho que remeteu os autos para o Tribunal da Relação de ......... mantive na íntegra tudo o já afirmado a respeito a propósito da questão do trânsito em julgado (no sentido de o trânsito já ter ocorrido há muito).

Notifique.

(…).

3. Foi determinada a junção de documentos.

4. Colhidos os vistos, foi levada a audiência, nos termos previstos nos artigos 223.º, n.º 2 e 424.º, do CPP.

II.

5. Compulsados os autos importa fazer o iter processual certificado na presente providência, destacando a matéria com relevância para a decisão da mesma, tal seja:

I. A requerente foi detida em 9.05.2017, ficando em situação de prisão preventiva até trânsito em julgado de sentença condenatória, por despacho judicial de 10.05.2017;

II. Por Acórdão de 08.11.2018, proferido no Juízo Central Criminal de .........- juiz ..., a ora requerente foi condenada como autora de um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p.e p. nos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), e) e j) do Código Penal (CP), na pena de 25 anos de prisão - fls. 2 a 40 v. º;

III. Desta decisão condenatória, e bem assim, de decisão interlocutória que indeferiu uma arguição de nulidade de toda a prova produzida após certa pessoa ter sido ouvida em inquérito, recorreu a ora requerente para o Tribunal da Relação de ......... (TR...), que por acórdão de 25.02.2019, decidiu negar provimento ao recurso interlocutório e reduzir a pena para 20 anos de prisão – fls. 41 a 89;

IV. Inconformada, veio a requerente interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça (STJ), quanto à parte da decisão que apreciou o recurso interlocutório, quer quanto à parte que apreciou o recurso da decisão condenatória- fls. 90 a 184 v. º;

V. No STJ foi proferido acórdão, datado de 19.9.2019, no sentido de: (a) não tomar conhecimento do objecto do recurso na parte que se refere à decisão do TR... que caiu sobre o despacho interlocutório, por irrecorribilidade; (b) não tomar conhecimento do objecto do recurso na parte que se refere à decisão do TR... sobre a impugnação da matéria de facto, por irrecorribilidade; (c) no mais, julgar o recurso improcedente - fls. 185 a 211;

VI. A requerente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (TC) ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, suscitando a ilegalidade e inconstitucionalidade da interpretação sufragada pelas instâncias anteriores, por violação dos artigos 58.º, 59.º, n.º 2, 120.º, n.º 2, al. d) e 126.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPP e dos princípios constitucionais previstos pelo artigo 32.º, n.º 1 da CRP- fls. 212 e 213;

VII. O requerimento de interposição do recurso foi indeferido por despacho do Senhor Juiz Conselheiro relator, datado de 14.10.2019;

VIII. Desta decisão reclamou a ora requerente para o TC, onde por acórdão de 18.09.2020 foi confirmada a decisão reclamada no sentido da não admissão do recurso de constitucionalidade pretendido pela reclamante - fls. 215 a 219;

IX. Deste Acórdão veio a ora requerente, reclamar e pedir a sua rectificação - fls. 220 (com o carimbo de entrada de 6.10.2020);

X. Foi proferido Acórdão datado de 5.11.2020, que não tomou conhecimento da reclamação, por ser manifestamente descabido e indeferiu a pretendida rectificação - fls. 221 a 225;

XI. Este acórdão transitou em julgado a 19.11.2020 - cfr. certidão de fls. 226;

XII. Na sequência de promoção do Ministério Público para liquidação da pena, datada de 18.12.2020, veio a ora requerente informar que havia interposto, em 6.10.2020, junto do TR..., recurso do acórdão ali proferido para o TC, em vista à apreciação da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 58.º e 59.º do CPP;

XIII. Por despacho de 5.01.2021, a Senhora Juíza junto do tribunal de 1.ª Instância veio dizer que, e transcreve-se: “O “recurso” apresentado e mencionado no requerimento que antecede consta de fls. 43 do Apenso A e foi objecto do acórdão que faz fls. 52 desse apenso- que decidiu não tomar conhecimento do mesmo e indeferir a reclamação ( o qual foi notificado ao I. causídico, pelo que não se compreende o requerido), tendo sido expressamente consignado o trânsito em julgado do acórdão- fls. 62- sobre o qual inexistem quaisquer dúvidas. Assim nada a determinar” (cfr. os pontos VIII, IX, X);

XIV. Ao que a requerente veio dizer que o TR... ainda não proferira despacho sobre a admissibilidade do recurso, referido no ponto XII;

XV. O Ministério Público, por promoção de 4.03.2021 procedeu à liquidação da pena, tendo a mesma sido notificada ao mandatário da ora requerente, na sequência de despacho judicial de 8.03.2021;

XVI. A requerente veio interpor a presente providência de habeas corpus em 16.03.2021, às 11h29m, a qual foi distribuída neste STJ em 18.03.2020.

6. Este o enquadramento que sobressai do certificado nos presentes autos e que interessa para a decisão da presente providência.

III.

7. Nos termos do previsto nos n.os 1 e 2 do artigo 27.º, da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), sob a epígrafe direito à liberdade e à segurança, (i) “todos têm direito à liberdade e à segurança” e (ii), “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão”.

8. Por sua vez, o n.º 1, do artigo 31.º, da CRP, sob a epígrafe de habeas corpus, prescreve que “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”. “Trata-se de um direito subjetivo (direito-garantia) reconhecido para a tutela de um outro direito fundamental, dos mais importantes, o direito à liberdade pessoal” - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, p. 260.

9. O n.º 2, do artigo 222.º, sob a epígrafe de habeas corpus em virtude de prisão ilegal, determina que, relativamente a pessoa presa, o pedido “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”.

10. A providência de habeas corpus configura incidente que visa assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido (revisitem-se os citados artigos 27.º, n.º 1 e 31.º, n.º 1, da CRP), com o sentido de pôr termo às situações de prisão ilegal, designadamente motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou mantida para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial (revisite-se ainda o citado artigo 222.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) a c)).

Em suma, a providência habeas corpus apenas pode ser utilizada para impugnar os precisos casos de prisão ilegal nos termos do citado n.º 2, do artigo 222.º, do CPP.

11. Aliás, como tem sido sublinhado na jurisprudência tirada neste Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus constitui uma medida extraordinária ou excepcional de urgência (no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de impedir ou reagir contra prisão ou detenção ilegais) perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei; não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs., todos do CPP). A providência não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade[1].

A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão reportada ao momento em que é apreciado o pedido. Assim tem decidido uniformemente este Tribunal [2].

12. Em suma, cumpre assim sinalizar que, diante dos citados preceitos, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem sedimentado a interpretação de que a providência de habeas corpus não cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação, mas tão só pretende almejar a constatação de uma ilegalidade patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder.

13. E, por último, como se sublinha, na anotação 4 ao artigo 222.º (em “Código de Processo Penal – Comentado”, Almedina, 2014, pág. 909), “o que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário”.

IV.

Dito isto,

Entende a recorrente que tendo o TC, no seu acórdão de 22.09.2020 considerado (…) que a Requerente haveria de interpor recurso do Acórdão da Relação e não, do Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, concluindo pela não admissão do recurso de constitucionalidade (Acórdão 451/2020, notificado ao mandatário da Requerente em 22.09.2020), assim o fez interpondo novo recurso de constitucionalidade, desta vez do Acórdão da Relação, o que sucedeu em 02 de outubro de 2020.(…).

Alega a requerente que até ao presente não foi notificada da sua admissão ou rejeição.

Em 04.03.2021, requereu esclarecimentos quanto ao sucedido junto do TR..., onde se informou que estando o processo na 1.ª Instância, deveria ser esse o Tribunal a prestar os esclarecimentos solicitados.

Razão pela qual entende a recorrente que a decisão condenatória ainda não transitou em julgado.

E, como tal, até ao presente, mantém-se em prisão preventiva.

Mais entende a requerente que desde a data da prolação do último acórdão do TC (nº 584/2020, de 5.11.2019) a medida de coacção, pela sua gravidade, impõe o reexame dos pressupostos da sua manutenção, nos termos do artigo 213º CPP, e que tal não mais foi cumprido.

Pelo que, a ora requerente encontra-se em prisão ilegal, ofendendo o disposto nos artigos 213.º e 22.º, alínea c) do CPP.

14. Vejamos.

Digamos, previamente, que entendemos que o habeas corpus, como providência excepcional, não pode ser usado por interpretação extensiva a todos os casos em que exista uma qualquer limitação da liberdade, sendo o meio próprio apenas para as situações de manifesta ilegalidade da prisão, o que significa que, se a situação não for essa, os meios de defesa são os que a lei ordinária configurar para o caso. E qualquer discordância quanto ao mérito da decisão (provisória) tomada, só no âmbito do recurso ordinário pode ter guarida, não na presente providência extraordinária de habeas corpus, cujo pedido assim não pode, nem deve ser conhecido.

No caso em apreço, a requerente não indica qualquer facto ou circunstância que permita enquadramento nas hipóteses legais em que se deva ponderar a existência de uma situação de prisão ilegal. Dizendo por outras palavras: os fundamentos invocados na sua petição não cabem na previsão normativa do artigo 222.º, n.º 2, do CPP.

Mesmo que por benevolência se entendesse que os motivos indicados pudessem constituir o fundamento a que alude o citado artigo (222.º, do CPP), não se verifica fundamento de habeas corpus.

A requerente limita-se a discorrer sobre incidências (muitas delas recursivas) do processo no âmbito do qual foi condenada, tecendo considerações e apreciações de diversa natureza terminando por pedir a sua libertação, por entender que não se procedeu ao reexame dos pressupostos que ditaram a prisão preventiva a que se encontra sujeita.

Da informação prestada e dos demais elementos recolhidos, resulta a legalidade da situação processual da requerente.

Não há, pois, qualquer fundamento legal para a petição que é feita.

No entanto, no que agora releva, importa dissecar as razões que nos levam a esta conclusão, percorrendo cada uma das situações previstas no n.º 2, do artigo 222.º, do CPP, nomeadamente, se a prisão foi decretada por entidade incompetente [alínea a)], se foi motivada por facto pelo qual a lei não permite [alínea b)] ou, se se mantém para além do prazo fixado por decisão judicial [alínea c)]. E a razão pela qual o pedido não pode ser atendido.

15. Apreciemos.

Comecemos por apreciar a questão suscitada no requerimento que deu origem à presente providência, ou seja, saber se:

1- A requerente se encontra em situação de prisão preventiva, porque ainda não existe trânsito em julgado de um recurso que interpôs, em 2.10.2020, para o TC, em virtude da interrupção que decorre do artigo 75º, n.ºs 1 e 2 da LTC, recurso esse ainda se encontra pendente de despacho de admissão no TR...;

2- E mantendo-se nesta situação - prisão preventiva- se esta tem de ser revista como determina a lei (artigo 213º CPP);

3- O que não tendo sido feito, encontrando-se ainda em prisão preventiva, deve de imediato ser colocada em liberdade.

Vejamos.

Previamente, quanto à questão da prolacção de despacho de admissão de recurso pelo TR..., poderia a requerente ter feito uso de reclamação junto do Presidente daquele Tribunal, suscitando a irregularidade do acto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 123.º, do CPP, aquando da notificação do despacho que recaiu quanto “ao pedido de esclarecimentos” que efectuou junto daquele tribunal, em 04.03.2021.

Passemos, agora, à situação tal qual nos é posta pela requerente, partindo do pressuposto que o acórdão ainda não transitou, atendendo ao disposto no artigo 75º, n.ºs 1 e 2 da LTC.

Impõe-se uma questão: a medida de coacção a que a requerente se encontra sujeita tem de ser revista nos termos do artigo 213.º do CPP? E a falta deste reexame constitui fundamento de habeas corpus?

Importa consignar, em 1.º lugar, que de acordo com o disposto no artigo 213.º do CPP, o juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos de prisão preventiva no prazo máximo de 3 meses a contar da data da sua aplicação ou do último reexame. Tal actividade terá como suporte a audição do Ministério Público e do arguido, sempre que necessário.

Em segundo lugar, a omissão do reexame, quando obrigatório, não constitui nulidade absoluta, uma vez que não é enquadrável no artigo 119.º, do CPP. Como refere Maia Costa[3], trata-se de mera irregularidade, seguindo o regime do artigo 123º, daquele diploma legal.

Deste modo, constituindo uma irregularidade processual, essa omissão de reexame dos pressupostos que ditaram a medida de coacção de prisão preventiva, não constitui funda­mento de habeas corpus, porque não é susceptível de integração em nenhuma das situações descritas no n.º 2, do artigo 222º, já que esta providência não se destina a conhecer de nulidades ou irregularidades processuais.

Assim, sem embargo da relevância das questões suscitadas e da sua importância processual, entende-se que as mesmas, neste particular, não podem fundamentar a providência requerida[4].

16. Ponderemos.

A ora requerente foi condenada como autora de um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p.e p. nos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), e) e j) do CP.

O crime de homicídio previsto nos citados artigos (131.º e 132.º, do CP) é punido com uma pena abstracta de 12 a 25 anos de prisão.

Este tipo de crime integra o conceito de criminalidade violenta (artigo 1.º, al. j), do CPP).

Percorrendo o artigo 215.º, do CPP (prazos de duração máxima da prisão preventiva), retira-se o seguinte:

O prazo máximo de prisão preventiva, sem que tenha havido condenação em 1ª instância é de 1 ano e 6 meses, e sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado é de 2 anos – n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c).

No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória tiver sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada- n.º 6.

Ora, no caso da presente providência, o acórdão proferido pelo TR... confirmou a condenação imposta pelo acórdão da 1.ª instância, ainda que tenha reduzido a pena de 25 para 20 anos de prisão.

E, de harmonia com o disposto no artigo 215.º, n.º 6, do CPP, como suprarreferimos, “No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada”.

E, embora a pena tenha sido reduzida, o que é facto é que se trata de uma confirmação de uma condenação por uma decisão de um Tribunal de recurso.

E é pacífica, desde há muito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nesse sentido.

Esta orientação tem por base o entendimento de que aquilo que o legislador pretendeu evitar ao fixar os prazos de duração máxima da prisão preventiva, é que o arguido esteja preso preventivamente por mais de certo e determinado tempo sem nunca ter sido condenado por um tribunal, ou seja, sem que um tribunal, após contraditório, haja considerado o arguido culpado. Tal seria intolerável do ponto de vista legal.

E, essa jurisprudência tem aval de constitucionalidade nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 404/2005 e 208/2006 (ainda que estes acórdãos se refiram a casos de anulação da decisão condenatória, as razões em que se fundam têm aqui aplicação por serem idênticas as situações para este efeito).

Entendimento algo semelhante vem assumindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), ao considerar que o período de tempo a considerar para duração da prisão preventiva inicia-se com a prisão e termina com a decisão em 1.ª instância sobre o mérito da acusação, o que está associado ao entendimento que o que o n.º 3, do artigo 5.º, da CEDH garante, é que qualquer pessoa presa ou detida tem direito a ser julgada num prazo razoável. Este julgamento é o passado em 1.ª instância. Efetuado este, entra-se na fase dos recursos e aí a regra que valerá é a do artigo 6.º, n.º 1, sendo certo que prazo razoável para efeitos do artigo 5.º, n.º 3, é diferente de prazo razoável para efeitos do artigo 6.º, n.º 1. Neste último caso, o que se pretende evitar é que as pessoas acusadas, presas ou não, se mantenham muito tempo numa situação de incerteza sobre o desfecho do seu processo, enquanto no primeiro o que se pretende evitar é, unicamente, que a prisão tenha uma duração excessiva[5].

17. No caso presente:

A requerente foi indiciada como autora de um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p.e p. nos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b), e) e j) do CP.

A requerente encontra-se sujeita à medida de prisão preventiva desde 9.05.2017.

A requerente foi condenada na pena de 20 anos de prisão, confirmada pelo tribunal de recurso.

Pelo que a esta data (25.03.2021), não se mostram excedidos os prazos máximos previstos no artigo 215.º, nº 6, do CPP, os quais se elevam para metade da pena que tiver sido fixada”, ou seja, in casu, o prazo máximo de prisão preventiva é de 10 (dez) anos, atendendo à actual fase do processo.

Pelo que:

A prisão preventiva a que a requerente se encontra sujeita, foi aplicada por entidade competente - o juiz do processo [alínea a)]; por facto pelo qual a lei permite -  prática do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º e 132.º, do CP, punido com uma pena abstracta de 12 a 25 anos de prisão- [alínea b)], e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coacção na fase em que o processo ora se encontra – [alínea c)].

Não se verificam, deste modo, quaisquer dos fundamentos previstos no artigo 222.º do CPP, que fundamentam o pedido de habeas corpus.

18. Face ao exposto, por falta de fundamento bastante, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA, nos termos do disposto no artigo 223. º, n.º 4, alínea a) do CPP.

19. A requerente decaiu totalmente no pedido de habeas corpus pelo que é responsável pelo pagamento de taxa de justiça, de acordo com o disposto o n.º 9, do artigo 8.º, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a qual pode ser fixada ente 1 e 5 UC. Tendo em conta a complexidade do incidente, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 (quatro) UC.

V.

20. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:

a). por falta de fundamento bastante, indeferir a providência de habeas corpus requerida por AA nos termos do disposto no artigo 223. º, n.º 4, alínea a), do CPP.

b). Condenar a requerente nas custas, fixando a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

25 de Março de 2021

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários.

Margarida Blasco (Relatora)

Eduardo Loureiro (Adjunto)

António Clemente Lima (Presidente)

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[1] cfr., por todos, o acórdão de 04.01.2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt
[2] cfr., entre muitos outros, o acórdão proferido no processo n.º 115/13.3JAPRT-B. S1, de 8.11.2013, da 3.ª secção.
[3] Código de Processo Penal Comentado, pág. 889 e segts.

[4] De referir ainda o Acórdão do STJ, de 25.11.1993, Processo 51/93, citado em Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, "Código de Processo Penal", 1. volume, 1996, pág. 834, “se não se proceder a esse reexame no prazo legal (de 3 meses), deve o arguido requerê-lo, se se mostrar prejudicado. Por sua vez, do respectivo despacho que recair sobre esse requerimento poderá interpor-se recurso ordinário (não sendo caso de extinção da prisão preventiva - cf. artigo 215.º do CPP)”.
[5] Cf. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada (3ª edição), 103/104.