Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2387
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAÚL BORGES
Descritores: REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
HOMICÍDIO QUALIFICADO «ATÍPICO»
CÔNJUGE
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
Nº do Documento: SJ200901210023873
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I - Sendo os argumentos utilizados pelo recorrente no recurso para o STJ na sua esmagadora maioria exactamente os mesmos que foram dirigidos ao primeiro acórdão (no recurso para a Relação), tal significa que, em rigor, o recorrente não impugna o acórdão da Relação, fazendo tábua rasa do aí decidido, esquecendo-se de que a decisão agora em exame é esta e não a da 1.ª instância.
II - Para uma corrente jurisprudencial, o recurso nestas condições é de rejeitar, por carência de motivação – cf. os Acs. do STJ de 14-11-2002, Proc. n.º 3092 - 5.ª; de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209; de 22-09-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 158; de 24-01-2007, Proc. n.º 4812/07 - 3.ª; de 12-04-2007, Procs. n.ºs 255/07 - 5.ª e 516/07 - 5.ª; e de 02-10-2008, Proc. n.º 4725/07 - 5.ª.
III - Em sentido oposto se pronunciaram, v.g., os Acs. do STJ de 10-10-2007, Procs. n.ºs 3315/07 - 3.ª e 2684/07 - 3.ª; de 17-10-2007, Proc. n.º 3265/07 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 - 3.ª e 823/08 - 3.ª; e de 22-10-2008, Proc. n.º 3274/08 - 3.ª.
IV - Acolhendo-se a segunda orientação (e revendo-se a posição assumida nos Acs. de 10-10-2007, Proc. n.º 3197/07, e de 12-03-2008, Proc. n.º 112/08), por a repetição/renovação de motivação não dever ser equiparada à sua falta e não estar prevista a possibilidade de rejeição de recurso para os casos em que o recorrente se limita a repetir a argumentação já apresentada no recurso interposto para o Tribunal da Relação, entende-se não ser de rejeitar o recurso por este motivo.
V - A propósito da questão da aplicação do direito intertemporal, relativamente à lei processual aplicável no que tange a recorribilidade, as Secções Criminais deste Supremo Tribunal convergiram para uma solução de compromisso, expressa no Ac. de 29-05-2008, Proc. n.º 1313/08 - 5.ª, que, no fulcro, se reconduz à afirmação de que «a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1.ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido».
VI - A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de invocação contra a matéria de facto directamente provada, de discussão processualmente inadmissível sobre a decisão em matéria de facto, ou de o recurso respeitar à qualificação e à medida da pena e não ser referida nem existir fundamentação válida para alterar a qualificação acolhida ou a pena que foi fixada pela decisão recorrida – cf. Ac. do STJ, de 22-11-2006, Proc. n.º 4084/06 - 3.ª.
VII - A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada, sendo que a deficiente apreciação da prova produzida é matéria que escapa aos poderes de cognição do STJ.
VIII - A impossibilidade de este Tribunal sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento, que assim tem um objecto impossível, devendo ser rejeitado, nos termos do art. 420.º, n.º 1, do CPP, preceito que, nesta perspectiva, não padece de inconstitucionalidade – cf. Acs. do TC n.ºs 352/98, de 12-05-1998, e 165/99, de 10-03-1999.
IX - A doutrina e a maioria da jurisprudência nunca consideraram que a relação conjugal pudesse ser encarada como abrangida pela al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
X - A nova formulação deste preceito [ao qual a Lei 59/2007, de 04-09, aditou a circunstância qualificativa que passou a integrar a sua al. b) – praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau] vem consagrar a inserção, de forma autónoma, no quadro das situações padrão, do conjugicídio e situações paralelas, para além de outras, o que se justificará atendendo à evolução legislativa, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus tratos familiares, como mais especificamente ocorre com o Anexo II – Exposição de Motivos Relativa ao Projecto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família (elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, do Conselho da Europa), aprovado na 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais (BMJ 335.º/5); a Lei 61/91, de 13-08; a Resolução da AR 31/99, de 25-03 (DR I-A, de 14-04-1999); a Resolução do Conselho de Ministros 55/99, de 27-05 (DR I-B, de 15-06-1999), aprovando o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica; a alteração ao CP, com a nova redacção do art. 152.º, e ao CPP, com a reformulação dos seus arts. 281.º e 282.º (Lei 7/2000, de 27-05); o I Relatório Intercalar de Acompanhamento do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (Maio de 2000); a Lei 7/2001, de 11-05, definindo medidas de protecção para as situações de união de facto; a Resolução do Conselho de Ministros 88/2003 (DR I-B, de 07-07-2003), aprovando o II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica; a Resolução da AR 17/2007 (DR I, de 26-04-2007) sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”; a Resolução do Conselho de Ministros 82/2007, de 06-06-2007 (DR I, de 22-06-2007), aprovando o II Plano Nacional para a Igualdade – Cidadania e Género (2007-2010); a Resolução do Conselho de Ministros 83/2007, de 06-06-2007 (DR I, de 22-06-2007), aprovando o III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica; e a Lei 51/2007, de 31-08, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei 17/2006, de 23-05, que aprova a Lei Quadro da Política Criminal.
XI - Tal agravativa será de ter em conta apenas para o futuro, atento o princípio ínsito no comando constitucional expresso no art. 29.º, n.º 4, da CRP e concretizado nos arts. 1.º, n.º 1, e 2.º, n.º 4, do CP.
XII - A jurisprudência do STJ tem mantido uma interpretação do tipo do art. 132.º como sendo baseado estritamente na culpa mais grave revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto de este revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento.
XIII - É entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP, os chamados exemplos padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente, e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa.
XIV - E a jurisprudência deste STJ tem defendido a possibilidade de configuração, na ausência de qualquer dos exemplos padrão, de crime de homicídio qualificado atípico, com formulações mais ou menos exigentes.
XV - Um caso especialmente grave pode ser admitido como incluso no critério orientador ou cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade quando a gravidade do facto equivalha à dos casos mencionados nos exemplos típicos, devendo o julgador orientar-se a partir dos sinais fornecidos na exemplificação da norma constante de cada alínea, ou seja, perspectivar os factos através das diversas als. do n.º 2 do art. 132.º e, através da ponderação do pleno das circunstâncias enformadoras do facto e da personalidade do agente, definida que seja a imagem global do facto, averiguar e avaliar se se está ou não perante um especial e acentuado desvalor de atitude, que se encontra dentro das fronteiras marcadas pela estrutura de sentido que modela o exemplo, ou se estamos perante circunstâncias de natureza análoga, paralela ou equivalente, que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de um dos exemplos padrão, que marquem uma diferença, distanciamento e dissociação, relativamente ao padrão normal de actuação, ao tipo matriz, no sentido de um maior ou acentuado desvalor de atitude, na forma de especial censurabilidade ou perversidade, e que possa, por isso, ser valorada em termos de conformar especial juízo de censura e especial tipo de culpa, agravada.
XVI - Resultando da matéria de facto provada que:
- o arguido era casado com a vítima desde Setembro de 2004, tendo convivido maritalmente um com o outro desde 1996, tendo então, cada um, 2 filhos de anteriores casamentos, e tendo tido 1 filho comum, nascido em 04-04-1998, que à data dos factos tinha 8 anos de idade;
- nos últimos meses a relação começou a degradar-se, mormente, a partir de Abril/Maio de 2006, altura em que o arguido iniciou uma relação extraconjugal, manifestando a intenção de se divorciar;
- pouco tempo após a mulher encetou relação extramatrimonial e comunicou ao marido o propósito de se divorciar;
- a situação agravou-se, sendo frequentes as discussões e agressões, que não tinham um sentido só, degradando-se a relação ao ponto de o menor ter sido institucionalizado em Setembro, ficando de seguida aos cuidados da irmã mais velha;
- tendo o arguido arranjado um novo emprego como caseiro, a mulher acabou por ir com ele, encetando o arguido nova ocupação profissional em 02-12-2006;
- dois dias depois, após uma acesa discussão relativa à situação actual em confronto com a anterior, o arguido muniu-se de um machado, com o qual agrediu na cabeça por várias vezes a mulher, causando várias fracturas com afundamento ósseo, sem que aquela tivesse tido hipótese de se defender ou de fugir;
o apurado comportamento do arguido, não substanciando nenhuma das situações exemplares enunciadas nas (à data dos factos) onze als do n.º 2 do art. 132.º do CP, revela completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida da companheira e esposa de anos, acentuado desvalor da acção e da conduta, estando, com a forma de cometimento do crime, documentadas no facto qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas, sendo de concluir estar preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132.º, n.º 1, do CP.
Decisão Texto Integral:


No âmbito do processo comum colectivo nº 488/06.6GCTVD do 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Torres Vedras foi submetido a julgamento o arguido AA, viúvo, filho de BB e de CC, residente na Rua ..............., n.° ...,.... Algueirão Mem-Martins, Sintra, preso à ordem deste processo desde 5 de Dezembro de 2006, e recluso, desde 20-12-2007, no Estabelecimento Prisiona........... - fls. 749.
Por acórdão do Colectivo do Círculo Judicial de Torres Vedras, de 13 de Novembro de 2007, de fls. 652 a 689, depositado na mesma data, foi deliberado condenar o arguido como autor material de:
a) Um crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152°, n° 2, do Código Penal com referência ao n° 1 do mesmo preceito, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
b) Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 131° e 132°, n° l, do Código Penal, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão;
c) Um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254°, n° 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
d) Operando, nos termos do disposto no artigo 77° do Código Penal, o cúmulo jurídico das penas impostas ao arguido, foi condenado na pena única de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Foi ainda julgado o pedido de indemnização civil parcialmente procedente por provado e condenado o arguido demandado a pagar ao demandante AA a quantia de 45000 € (quarenta e cinco mil euros), acrescida de juros à taxa legal desde a data do acórdão até efectivo e integral pagamento.

Irresignado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, abrangendo apenas a parte criminal, embora no final peça a absolvição também do pedido de indemnização civil - fls. 712 a 727.
Por acórdão de 22 de Abril de 2008, o Tribunal da Relação de Lisboa deliberou - fls. 775 a 814 - negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra o acórdão recorrido.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 818 a 829, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição, incluindo os realces):
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, por força das disposições conjugadas dos artigos 131° e 132°, d) e i) do Código Penal.
Acontece que não foram dados como provados quaisquer factos susceptíveis de consubstanciar um homicídio qualificado.
Com efeito, da prova produzida resulta que o recorrente não agiu com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados e que não persistiu na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Assim como resulta que o recorrente não foi determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.
O Tribunal de 1ª Instância reconhece de sobremaneira que não estão preenchidos os elementos do tipo de um homicídio qualificado, pois, diz o Acórdão recorrido que: "A única situação que poderia minimamente se enquadrar na alínea seria o arguido ter morto a vítima levado por motivo torpe ou fútil."
E nenhumas outras circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade foram provadas.
Pelo que, salvo melhor opinião, não estão preenchidos os elementos subjectivos da prática de um crime de homicídio qualificado 131° e 132°, d) e i) do Código Penal.
Resulta da prova feita nos autos que a DD ameaçou de morte o recorrente.
A testemunha EE referiu que a DD lhe telefonava constantemente para o telemóvel a insultá-la e a fazer ameaças, dizendo designadamente que ela era uma "puta" e que "deveria ir para o Intendente".
10°
Assim como lhe terá dito: “o meu Marido não vai ser meu mas não vai ser seu nem de ninguém”.
11°
Ora o que aconteceu no dia 04 de Dezembro de 2006, foi tão só o corolário e a tentativa de concretização de todas estas ameaças por parte da DD, a qual tentou matar o marido com um cutelo.
12°
O recorrente actuou pois para repelir uma agressão actual e ilícita contra a sua vida, ou seja actuou em legitima defesa, sendo esta uma das causas de exclusão da ilicitude nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 31° e 32° do Código Penal.
13°
E ainda que assim se não entendesse, haverá que com o devido respeito concluir, que a existe um erro na determinação da norma aplicável ao homicídio ao entender ser essa norma o artigo 132° do Código Penal, quando na realidade os factos praticados não consubstanciam um homicídio qualificado, mas sim um homicídio privilegiado e, consequentemente, a norma aplicar é o artigo 133° do Código Penal.
14°
Sendo que o Tribunal não teve em devida consideração que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como, que na determinação concreta da pena o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, (vide artigo 71° do CP.)
15°
Ora, no caso dos autos tratou-se de um acto isolado sendo as exigências de prevenção geral e especial praticamente inexistentes e a culpa do recorrente reduzida.
16°
Também não foi tido em consideração o facto de o recorrente ser primário, ser uma pessoa trabalhadora, respeitada e admirada por todos aqueles que com ele se relacionam no dia a dia, e ter filhos menores que precisam da sua assistência e carinho.
17°
Pelo que o Acórdão recorrido viola o disposto nos artigos, 31°, 32°, 132°, 133°, 71° e 72° do Código Penal, normas essas que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas conforme exposto.
No provimento do recurso pede a revogação da decisão recorrida e a sua absolvição.

O Mº Pº junto da Relação de Lisboa apresentou a resposta de fls. 836 a 838, dizendo que as questões suscitadas no presente recurso já o tinham sido no recurso interposto do acórdão da 1ª instância, sendo a argumentação agora utilizada a que o foi no anterior recurso, finalizando com as seguintes conclusões:
1 – O Tribunal de 1ª instância fez uma correcta apreciação da prova, com observância do disposto no art. 127º do CPP.
2 – Face à matéria de facto provada não merece censura a qualificação jurídico-penal feita pelo acórdão de 1ª instância.
3 – As penas parcelares e pena única aplicadas afiguram-se justas e adequadas pelo que não merece censura a decisão recorrida.
4 - Não merece pois censura o douto acórdão deste Tribunal da Relação ao negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
5 – Deve negar-se provimento ao presente recurso e confirmar-se o Acórdão recorrido.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer de fls. 865 a 870, pronunciando-se pelo acerto da qualificação do crime de homicídio, invocando o acórdão de 21-05-2008, processo n.º 1224/08-5ª, embora parecendo propugnar o preenchimento das qualificativas de motivo fútil e de uso de meio especialmente perigoso, admitindo a colocação da questão de recorribilidade no que toca à pena pelo crime de maus tratos, e defendendo a procedência parcial do recurso no que concerne à medida da pena, por entender justificar-se alguma redução, ainda que ligeira das penas.

Cumprido o artigo 417º, n.º 2, do CPP, o arguido silenciou.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


A deliberação recorrida ocorreu já em plena vigência do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007, sendo aplicável o novo regime, por não se colocar qualquer das situações previstas no n.º 2 do artigo 5.º do CPP.
Passou a dispor o n.º 5 do artigo 411º, do CPP: “No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação que pretende ver debatidos”.
Não tendo sido requerida audiência por qualquer dos recorrentes, e aplicando-se a lei nova, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos do artigo 419º, n.º 3, alínea c), do CPP.
*

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, referidos no artigo 410º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.


Questões a decidir

Face às conclusões enunciadas pelo recorrente no presente recurso, as questões a apreciar e decidir são:

I - Errada valoração da prova - arguição conducente a integração de legítima defesa – conclusões 8ª a 12ª.

II – Alteração da qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado, pugnando pela desqualificação ou integração no crime de homicídio privilegiado – conclusões 1ª a 7ª e 13ª.

III - Medida da penaredução das penas aplicadas pelo homicídio qualificado e maus tratos? - conclusões 14ª a 16ª.


Questões prévias


I -Oficiosamente, colocar-se-á a questão da admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso por reedição/renovação da motivação e das conclusões apresentadas no anterior recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, o que foi anotado pelo Mº Pº, na sua resposta, embora sem extrair daí qualquer consequência.

II - Por outro lado, no que tange à medida das penas, será de colocar a questão da recorribilidade do acórdão condenatório na parte em que aplica pena de prisão pelo crime de maus tratos a cônjuge - artigo 400º, nº 1, alíneas e) e f), do CPP.

Factos Provados

Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se o adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.
Com uma excepção apenas e que tem a ver com a duração do casamento do arguido e vítima.
Logo no início do ponto I deu-se por provado que “eram casados entre si, vivendo como marido e mulher durante onze anos.”
Mais abaixo no segmento “Mais se provou que”, no § 7, deu-se como provado - matéria extraída da contestação do arguido - que “O arguido e DD viveram maritalmente um com o outro durante mais de 10 anos e estavam casados há mais de 5 anos”.
Ora, no que respeita ao casamento, na fundamentação da decisão de facto, a fls. 12 do acórdão e fls. 663 dos autos, consignou-se que “O Tribunal teve em consideração o teor do assento de nascimento do arguido onde se mostra averbado o casamento com a vítima”, não se referenciando a sua localização no processo.
O casamento só pode provar-se por via documental, constituindo a certidão comprovativa documento autêntico com força probatória plena - artigos 363º, n.º 2, 369º e 371º, do Código Civil – estando em causa prova tarifada.
Em tempo oportuno não foi junta a certidão competente e por iniciativa do Juiz Presidente, por o documento “se mostrar essencial para a decisão da causa já que dele depende a qualificação jurídica de factos”, após tentativas sem sucesso, que determinaram inclusive o adiamento da leitura do acórdão, a fls. 622, acabou por ser junta a certidão de fls. 650, exactamente na véspera da nova data de leitura. De tal certidão resulta que o arguido e a DD casaram em 01-09-2004, pelo que à data dos factos eram casados há dois anos e três meses.
Com esta rectificação/correcção feita ao abrigo do artigo 380º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do CPP, mostram-se assentes definitivamente os seguintes factos:
I

AA e a ora falecida DD eram casados entre si, vivendo como marido e mulher durante onze anos.
Ao longo da vivência conjugal, várias foram as situações em que o ora arguido empregava violência no trato com a mulher, física e psicológica, ofendendo a sua saúde e integridade física, designadamente através de murros e pontapés.
Esta violência, que se traduzia em agressões verbais e físicas, embora tivesse tido lugar desde o início do casamento, aumentou de intensidade a partir de Abril-Maio de 2006, altura em que o arguido iniciou uma relação extra-conjugal tendo, nesta altura o arguido dito à ofendida DD que não tinha qualquer interesse em manter o casamento e o relacionamento conjugal e que tencionava divorciar-se desta.
O arguido, por diversas vezes, deu "apertões" nos braços de DD
, assim como pontapés nas pernas, puxões de cabelo e murros.
Por mais de uma vez, durante o Verão de 2006, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da DD, acusando-a frente ao patrão desta de manter um relacionamento amoroso com um outro homem.
II
Efectivamente, em Maio de 2006, por não querer mais qualquer relacionamento com a mulher, o arguido comunicou a DD que pretendia o divórcio.
Para esse efeito, chegou mesmo a consultar e a pedir conselho ao advogado masDD disse então ao arguido que nunca lhe daria o divórcio tendo-lhe pedido que não a abandonasse nem a ela, nem aos filhos.
III
Em dia não concretamente apurado mas seguramente anterior e próximo de 27 de Julho de 2006, na Rua ........., n.° ., ........ B, Algueirão - Mem Martins, em Sintra, local onde viviam, tendo o arguido conhecimento que a ofendida mantinha uma relação extra-matrimonial e na sequência de uma conversa entre ambos em que a DD afirmou não querer mais viver com o arguido e pretender o divórcio, este desferiu-lhe de imediato um número não concretamente determinado de murros e pontapés.
Como resultado dessa conduta, DD sofreu múltiplos hematomas nos braços, pernas e pescoço, que lhe determinaram 15 dias de doença e 5 dias de incapacidade, a contar do dia 2 de Agosto de 2006.
Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas, o arguido também tentou obrigar DD a ingerir um produto não especificado, ainda assim logrando com a utilização daquele produto causar na DD ardor na face e eritema ligeiro.
IV
O arguido destruiu o bilhete de identidade, o cartão de contribuinte, o cartão de eleitor e a carta de condução de DD.
No mês de Julho de 2006, o arguido retirou o cartão de multibanco à mulher, solicitou ao banco a anulação de outro cartão de multibanco que DD possuía e retirou todo o dinheiro das contas bancárias, de que ambos eram titulares.
V
No dia 2 de Setembro de 2006, pelas 05h00, no referido local o arguido dirigindo-se a DD, disse-lhe "vou chamar homens para te sustentar, sua puta"
No dia 6 de Setembro, cerca das 17h00, na residência já referida, o arguido pegou num vidro e arremessou-o contra a DD, acertando-lhe nas costas.
Pouco depois, o arguido atirou DD ao chão e quando esta se levantava, aquele cerrou o punho e desferiu um soco no olho direito da mulher.
Ainda no mesmo dia e local, cerca das 11 horas, o arguido dirigiu-se à sua mulher e apertou-lhe o pescoço.
Na sequência desta conduta do arguido, DD ficou com um corte nas costas, o olho direito negro, um hematoma no pescoço e um hematoma no braço esquerdo.
VII
Com todas estas condutas, o arguido sabia que causava maus-tratos físicos e psíquicos a DD, com quem estava casado, assim como também sabia que tal não lhe era permitido, ainda assim não se abstendo de, querendo atingir a DD na sua saúde e integridade física e psicológica, agir como efectivamente o fez.
VIII
Em Novembro de 2006, o arguido celebrou um contrato de trabalho a fim de exercer as funções de caseiro na Quinta do Alto dos Ais, em Carmões, Torres Vedras, solicitando ao empregador que deixasse também DD passar a viver aí.
A DD acedeu em acompanhar o arguido por terem ambos acordado refazer a vida em comum.
O arguido e DD mudaram-se para o referido local no dia 2 de Dezembro de 2006, passando a residir numa casa sita a 1 quilómetro de distância da aldeia mais próxima.
No dia 4 de Dezembro de 2006, cerca das 13 horas, o AA dirigiu-se até junto da mulher, que se encontrava no interior de uma estufa da Quinta e aí teve lugar uma discussão quando o arguido comentou com DD, que já tinham tido uma vida boa e agora andavam a tratar de animais, em consequência de terem deixado tudo devido às agressões e ao consumo de drogas desta. Tais palavras levaram a uma acesa discussão e foi então que o arguido empunhou um machado e com ele desferiu vários golpes na cabeça de DD, que então colocou as mãos na cabeça e tentou fugir na direcção da porta.
Ainda assim o arguido continuou a desferir diversos golpes com o machado nas mãos e na parte posterior do ombro esquerdo de DD, que caiu ao chão, ficando com a cabeça pendente para a frente, desferindo ainda o arguido, sempre com o machado, vários golpes na nuca de DD.
Na sequência desta conduta do arguido, resultou na DD:
Múltiplas feridas corto-contusas e inciso contusas no couro cabeludo;
Ferida corto-contusa de forma elíptica fusiforme, oblíqua e localizada no osso occipital à direita, com cerca de 7 centímetros de comprimento e fractura exposta do crânio;
Ferida corto-contusa na região posterior do ombro esquerdo;
Ferida corto-contusa profunda no punho esquerdo;
Ferida/laceração extensa, corto-contusa na região metacárpica direita de 3.°, 4.° e 5.° espaços interdigitais;
Equimoses múltiplas nas regiões frontais, cervical e dorsal;
Afundamento ósseo na região temporo-parietal direita;
Infiltração hemorrágica da aponevrose epicraniana frontal, temporal e occipital direitas;
Fractura com afundamento dos ossos parietal e frontal direitos com laceração do encéfalo temporal e com infiltração hemorrágica local;
Fractura com esquirola do occipital direito com laceração do encéfalo occipital e infiltração hemorrágica;
Fractura dos andares anteriores e médio da base do crânio;
Focos de contusão do encéfalo temporal direito,
Determinando a sua morte as referidas fracturas do crânio com lacerações do encéfalo.
IX
O arguido dirigiu-se então ao interior da casa, de onde voltou trazendo três lençóis, com os quais embrulhou o corpo da mulher, atando-os;
Após o que carregou o corpo às costas e rodeou o anexo até à traseira deste, onde soterrou o corpo, tapando-o com terra e gravilha.
O arguido regressou então ao barracão e aí lavou com água o machado, o chão, os sapatos e as calças.
X

O arguido AA sabia que ao desferir inúmeros golpes com o machado no corpo de DD, sobretudo na cabeça desta, lhe retiraria a vida, não sem antes lhe causar medo e dor, o que efectivamente quis e logrou.
O arguido AA sabia que ao soterrar/enterrar o corpo de DD, o fazia sem qualquer autorização e em local diferente do legalmente estabelecido para o efeito, com o fim de ocultar o crime de homicídio que praticou, mais representando como consequência necessária de tal conduta que faltava ao respeito devido aos mortos.
O arguido conhecia a ilicitude das suas condutas, que sabia serem proibidas e puníveis por lei penal, ainda assim agindo sempre de modo deliberado, livre e consciente.

Mais se provou que:

À DD sobreviveu AA, nascido aos 04.04.1998, filho comum do casal.
Devido às constantes agressões e discussões havidas entre os progenitores, ao menor havia sido aplicada a medida de promoção e protecção de acolhimento institucional, nos termos do Processo n.° 9849/06.OTMSNT, no início de Setembro de 2006, sendo que em Outubro passou a residir com a irmã Vanessa e com o companheiro desta, a quem foi confiado no âmbito desse mesmo processo.
A perda da progenitora causou ao demandante grande transtorno e sofrimento,
A DD tinha 40 anos de idade, era saudável, com uma esperança de vida não inferior aos setenta e cinco anos, interrompida pela conduta do arguido.
Desempenhava, sazonalmente, as funções de cozinheira em restauração.
À data da morte, na sequência do acordado com o patrão do marido, deveria começar a trabalhar no Lar de Idosos de S. Domingos de Carmões.
O arguido e DD viveram maritalmente um com o outro durante mais de 10 anos e estavam casados há mais de 5 anos.
Quando do início da relação que os uniu, passaram por dificuldades, nomeadamente dificuldades económicas, em virtude de terem nessa altura 4 crianças menores a seu cargo e de não terem empregos estáveis e vencimentos que permitissem fazer face a todas as dificuldades.
Foi o esforço, dedicação e força de carácter do arguido que permitiu que fossem criadas condições estáveis para criarem os menores que tinham a seu cargo, proporcionando-lhes alimentação, educação e vestuário e permitindo que crescessem sem que nada lhes faltasse.
O arguido sempre foi pessoa de bem, trabalhador, honesto e preocupado com a saúde e bem-estar da sua família, tendo chegado a trabalhar 13 a 14 horas por dia.
Em data não apurada do ano de 2006, no âmbito de uma discussão com o filho do arguido, AA, a ofendida agarrou num corta papéis e avançou na direcção daquele tendo sido agarrada pelo arguido.
O arguido deslocou-se ao Hospital Amadora-Sintra em 02.09.2006 apresentando ferida incisa no antebraço esquerdo, tendo sido assistido.
Em data indeterminada do Verão de 2006, na sequência de uma discussão entre ambos, DD agrediu o arguido na cabeça, acertando-lhe uma pancada com um pote de cerâmica.
Em consequência desta agressão o arguido sofreu um traumatismo craniano e voltou a ser assistido no Hospital Amadora Sintra.
No final do mês de Agosto de 2006, DD pretendeu levar o carro do casal do sítio onde estava estacionado.
Nessa ocasião, porque as relações entre o casal eram más, quer o arguido, quer a vítima não curavam pela manutenção do lar, designadamente não adquiriam comida em quantidades suficientes. Face a tal e naquele dia, a filha do arguido FF tentou impedir DD de levar o veículo e foi também alvo de uma agressão por parte da DD que lhe deu algumas chapadas.
Em 29 de Agosto de 2006, DD foi despedida do emprego na Santa Casa da Misericórdia de Sintra, na sequência de um processo disciplinar que lhe havia sido instaurado por esta Instituição por a mesma entender a que vítima entrou de baixa médica mas manteve-se a trabalhar num restaurante, por haver faltado injustificadamente 6 dias, por a mesma haver utilizado o telemóvel e veículo de serviço sem autorização patronal para se deslocar ao seu segundo emprego e por a mesma ter feito do veículo a sua residência.
Numa primeira fase o arguido tencionava ir sozinho para a Quinta do Alto dos Ais, em Carmões, Torres Vedras mas mais tarde acabou por solicitar ao proprietário da quinta que DD também fosse.
O arguido acabou por se entregar voluntariamente às autoridades.
Antes de vir para São Domingos de Carmões, a mãe do menor ausentava-se de casa durante longos períodos, de dia e de noite para trabalhar e eram os irmãos quem cuidava do menor.
Factos não provados

Em diversas ocasiões, o arguido por várias vezes se dirigiu à mulher dizendo-lhe: «Como andei nos Comandos sei de muitas maneiras de fazer as coisas. Sei dar sumiço de um corpo. Vou-te levar ao cabo da Roca e atiro-te para as rochas. Depois dizem que é suicídio».
Os factos que culminaram com a tentativa de ingestão pela vítima de um produto não especificado hajam ocorrido em 27 de Julho de 2006, entre as 12h e as I4h30.
O produto que o arguido tentou que a vítima ingerisse fosse tóxico tipo 605 forte.
No dia 2 de Setembro o arguido disse à DD "vou-te por a atacar sua puta, vais ter que fazer broches para me sustentares, sua puta».
Como a DD permaneceu fechada no quarto e não respondeu ao arguido, este entrou no quarto e empurrando-a repetidamente disse-lhe: «sai puta queres que te vá pôr a atacar».
Na sequência da atitude do AA, a DD, já receosa pela sua saúde e vida, encaminhou-se para a porta, sendo então impedida pelo arguido que, de imediato, lhe desferiu um pontapé nas costas e lhe puxou os cabelos.
No dia 15 de Setembro de 2006, cerca das 02h40, na sua residência, o arguido entrou no quarto onde DD dormia e começou a bater-lhe.
Em momento não concretamente determinado, mas anterior a Dezembro de 2006, o arguido decide matar a mulher, dizendo-lhe ser melhor para ambos tentar refazer a vida noutra cidade.
A circunstância do arguido estar a residir em Carmões a 1 quilómetro da aldeia mais próxima foi por este reputada de favorável à execução do seu plano.
A conduta do pai sempre causou grande transtorno, medo e inquietação na formação e personalidade do menor, mais receando constantemente pela sua saúde e integridade física.
A DD não era pessoa de bem, trabalhadora, honesta e preocupada com a saúde e bem-estar da sua família.
Foi apenas há aproximadamente dois anos que começaram a verificar-se desavenças entre o casal, as quais deram origem a violentas discussões.
O arguido disse à DD que a ia matar.
À data da morte da DD, o arguido não tinha qualquer interesse em manter o casamento e relacionamento conjugal com DD e tencionava divorciar-se desta.
Desde o início de 2006 que devido aos problemas do casal mantinha um relacionamento extra-conjugal com outra pessoa junto de quem encontrara apoio e conforto.
A DD disse ao arguido que este havia de ficar com ela fosse de que forma fosse.
O arguido fez então tudo o que estava ao seu alcance para conseguir uma separação e sair de casa mas DD tudo fez para impedir essa saída de casa do arguido, nomeadamente, ameaçando de morte o arguido e ameaçando suicidar-se também.
Foi DD quem, nos últimos anos de convivência, veio a demonstrar um comportamento perturbado e violento, não admitindo ser contrariada nas mais pequenas coisas do dia a dia e tendo passado a ameaçar e agredir frequentemente o arguido.
Comportamentos esses que estiveram na base da decisão do arguido de se divorciar.
Foram também estas perturbações psicológicas e comportamentos de extrema violência da parte de DD - que se manifestaram de forma mais acentuada e grave durante o ano de 2006 - que estiveram também na origem do falecimento desta em 04 de Dezembro de 2006.
Durante o ano de 2006, DD passou a consumir drogas, tendo mesmo o arguido descoberto no carro um produto que entregou às autoridades policiais.
Em Maio de 2006, DD, no seguimento de uma violenta discussão, tentou atingir o filho do arguido, AA com uma faca.
Foi o arguido quem conseguiu retirar-lhe a faca - evitando uma tragédia - e acalmar DD.
Nos meses de Julho e Agosto de 2006, DD retirou da casa do casal vários bens que eram propriedade comum desta e do arguido desconhecendo o arguido qual o destino dado a esses bens.
Em Agosto de 2006, em dia que não se consegue precisar com exactidão, DD tentou matar o arguido com uma faca.
O arguido defendeu-se com as mãos e com os pés à frente do tronco e conseguiu retirar a faca das mãos de DD.
No final desse mesmo mês de Agosto de 2006, DD agrediu o arguido violentamente na cabeça, acertando-lhe uma pancada com um cinzeiro.
Estas e outras agressões aconteciam frequentemente e surgiam em regra na sequência da insistência do arguido para que DD lhe desse o divórcio.
Em todas essas ocasiões DD dizia ao arguido que havia de o matar.
Também no final do mês de Agosto de 2006, DD pretendeu levar o carro do casal do sitio onde habitualmente estava estacionado e sem dar qualquer conhecimento ao resto da família.
Nessa ocasião, a filha do arguido Jacqueline Saúde tentou impedir DD de levar o veículo e foi também alvo de uma agressão com arma branca.
DD desaparecia também de casa durante vários dias, sem se preocupar com os filhos que tinha ao seu cuidado e deixando-os entregues ao arguido que era quem tomava conta destes nessas ocasiões.
Nesses dias era normal dormir no carro e na praia.
Em consequência destes comportamentos e perturbações, DD apresentava um aspecto físico desleixado e pouco cuidado.
O despedimento ficou a dever-se aos comportamentos agressivos da DD para com o arguido e filhos destes e a perturbações psicológicas da vítima.
No princípio de Setembro de 2006, o filho de DD, filho de um anterior casamento, GG, foi atingido por uma faca, quando tentava impedir que a mãe atingisse o arguido e foi transportado de ambulância para o Hospital Amadora Sintra tendo sido assistido a vários cortes profundos numa mão.
Desta agressão não foi apresentada qualquer queixa uma vez que o ofendido era filho da agressora e não quis apresentar essa queixa.
As agressões perpetradas por DD eram em regra efectuadas com facas afiadas e com mais de 15 a 20 cm de lâmina.
Por tudo isto o arguido temia constantemente pela vida, de dia e de noite, não dormindo descansado, tal a frequência com que se repetiam as ameaças e as agressões.
Em Novembro de 2006, por DD continuar a recusar-se a dar-lhe o divórcio, o arguido quis afastar-se da mesma razão pela qual celebrou o contrato de trabalho mencionado na acusação para exercer as funções de caseiro na Quinta do Alto dos Ais, em Carmões, Torres Vedras.
O arguido só levou a Paula para a Quinta por insistência e pena dela.
Apesar do "inferno" em que vivia o arguido preocupava-se com a DD a quem queria ajudar a encontrar um equilíbrio emocional que lhe permitisse reorganizar a sua vida.
Na sequência da discussão havida na estufa mais uma vez DD descontrolou-se e voltou a ameaçar o arguido de morte.
O arguido para acabar com a discussão afastou-se de imediato e foi a casa fazer uma sandes para comer.
Aproximadamente meia hora depois o arguido voltou à estufa e com medo de entrar, chamou DD várias vezes do lado de fora da estufa, não tendo obtido qualquer resposta.
O arguido acabou por entrar na estufa, a medo, tendo sido imediatamente atacado pela mulher que com um cutelo na mão tentou atingi-lo e gritava: "agora é que eu te mato".
Em acto contínuo, o arguido acabou por agarrar num machado que estava na entrada da estufa em cima de uma mesa de trabalho e a partir dai só se recorda de se ter tentado desviar do cutelo e de por sua vez ter atingido DD com o machado.
O arguido entrou num profundo estado de desespero emocional.
Desde há muito tempo que a falecida DD, mãe do menor AA, não se preocupava minimamente com o bem-estar e saúde dele.
O arguido tratava do filho menor AA e pensa nele todos os dias e a toda a hora, desejando apenas que este se encontre bem.

Apreciando.

Questão Prévia I
In (Admissibilidade) do recurso por reedição/renovação no presente recurso da motivação e das conclusões apresentadas no anterior recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa

Vindo o presente recurso interposto de acórdão da Relação de Lisboa, ao cotejarmos a motivação e as conclusões ora apresentadas com as que foram formuladas no recurso dirigido ao acórdão do Colectivo de Torres Vedras, ressalta a quase total coincidência entre umas e outras, estando-se perante um quase mero decalque, uma “nova edição”, revista apenas em pormenores sem relevo e consequências, e não melhorada, do recurso anterior.
Como salienta o Mº Pº junto do Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente limita-se, apenas, a retomar e a repetir a argumentação que expendera na Relação, e a fazer pequenos ajustamentos.
Vistas as motivações de um e outro recurso (fls. 713 a 727 e 818 a 829) a segunda repete a primeira, de tal modo que o único ponto diferenciador é a consideração quanto ao crime de maus tratos de que a pena terá sido exagerada e desajustada.
No que respeita a conclusões, verifica-se que as conclusões enunciadas no segundo recurso são praticamente a repetição das conclusões do anterior recurso, com a diferença de que agora se suprimiram as conclusões 6ª, 9ª a 16ª, 19ª a 21ª, 23ª, 24ª, 26ª, 27ª, 30ª e 33ª.
As conclusões 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 9ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª, 14ª, 15ª e 16ª, do presente recurso, correspondem a uma reprodução absolutamente integral, ipsis verbis, das conclusões 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 7ª, 8ª, 22ª, 25ª, 17ª e 18ª, 28ª, 29ª, 31ª, 32ª e 34ª, que já constavam do recurso dirigido à Relação de Lisboa, fazendo apenas pequenos ajustamentos face ao novo recurso, como substituir nas conclusões 1ª, 3ª e 4ª “arguido” por “recorrente”; na conclusão 1ª substituir “acusado” por “condenado”; na conclusão 3ª a expressão “do douto acórdão” por “da prova produzida”, e na conclusão 5ª substituir “o Tribunal”, por “o Tribunal de 1ª instância”.
Em termos globais, o presente recurso mais não é do que a mera repetição do recurso anterior.
Sendo os argumentos agora utilizados na sua esmagadora maioria exactamente os mesmos que foram dirigidos ao primeiro acórdão, tal significa que em rigor o recorrente não impugna o acórdão da Relação, fazendo tábua rasa do aí decidido, esquecendo-se que a decisão agora em reexame é esta e não a da 1ª instância – sintomático desta postura é o vertido na conclusão 5ª, onde o recorrente se refere expressamente a “Tribunal de 1ª instância”.
Reeditando os argumentos e as questões anteriormente postas à consideração da Relação, limita-se o recorrente a devolver ao STJ as mesmas questões colocadas à Relação de Lisboa, como se estivesse a recorrer, afinal, da decisão do Colectivo de Torres Vedras.
A discordância nesta sede só fará sentido se dirigida à solução perfilhada pela Relação, com argumentos novos, específicos, explicitando razões jurídicas novas, dirigidas à nova decisão, agora recorrida, que infirmem os fundamentos nesta apresentados, pois agora é o acórdão da Relação o objecto de recurso e não a já reapreciada decisão da 1ª instância.
Tendo esta sido objecto de conhecimento e decisão na Relação, o recurso com tais características só poderá ser entendido como mera repristinação do inconformismo com o decidido pela 1ª instância.
No caso presente, no essencial, não há um novo esforço argumentativo, limitando-se o recorrente a repetir a linha argumentativa explanada junto do Tribunal de 2ª instância, ignorando a existência do acórdão da Relação de Lisboa, relativamente ao qual no fundo não diz rigorosamente nada de novo ou diverso.
Nestes casos é de colocar a questão de saber se o recurso é de rejeitar por manifesta improcedência.
Para uma corrente jurisprudencial o recurso nestas condições é de rejeitar.
Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14-11-2002, processo n.º 3092-5ª, “Quando o STJ é confrontado com um recurso da Relação, são os fundamentos do decidido em 2ª instância que importa verificar e, não, os da decisão de 1ª instância já sufragados pelo tribunal recorrido.
Daí que quando o recorrente se limita a uma espécie de recauchutagem (…) dos fundamentos de recurso que apresentou perante a Relação, sem nada de novo trazer à discussão, verdadeiramente não apresenta motivação.
O recurso que em tudo reedita o pretenso inconformismo do recorrente perante o deliberado em 1ª instância não pode ser conhecido - não deveria, mesmo, ter sido admitido – por carência absoluta de motivação - arts. 411º, nº 3 , 414º, nº 2, e 417º, nº 3, al. a), do CPP”.
No mesmo sentido, o acórdão de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209, onde se pode ler “é de rejeitar o conhecimento do recurso interposto para o STJ, no qual o recorrente se limita a reeditar toda a argumentação já expendida no recurso antes interposto para o Tribunal da Relação e à qual aí se deu a necessária resposta”.
E igualmente no sentido de falta de motivação se pronunciou o acórdão de 22-09-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 158, onde se sintetiza: “No recurso interposto do Tribunal da Relação para o STJ devem-se especificar as razões de discordância com o ali decidido, pelo que a renovação da argumentação da impugnação interposta inicialmente para aquele Tribunal, sem qualquer novidade, equivale a falta de motivação, conducente à sua rejeição liminar”.
Ou, como se extrai do acórdão de 24-01-2007, processo n.º 4812/07- 3ª : «A repetição das conclusões ante as instâncias de recurso, particularmente as da Relação perante o STJ, ignorando o teor da decisão proferida na Relação, a qual subsiste inimpugnada e não contrariada em ordem à reparação do erro, conduz à rejeição do recurso por manifesta improcedência, tudo se passando como se a motivação estivesse ausente».
Ainda neste sentido, podem ver-se os acórdãos de 12-04-2007, nos processos n.ºs 255/07 e 516/07, ambos da 5ª secção, e de 02-10-2008, processo n.º 4725/07 - 5ª, onde se afirma: «Quando, no recurso para o STJ, o recorrente nada acrescentou ao que já havia alegado quando se dirigiu à Relação, limitando-se a repetir a motivação, à qual, nesse anterior recurso, já fora dada cabal resposta, que o recorrente ignorou em absoluto, o recurso apresenta-se como manifestamente infundado, por isso sendo rejeitado».
Em sentido oposto pode citar-se, v.g., o acórdão de 10-10-2007, no processo n.º 3315/07-3ª (com um voto de vencido), aí se defendendo que a hipótese de rejeição em caso de reprodução da argumentação do recurso dirigida à Relação não está prevista na lei, explicitando, a propósito: “…os casos de rejeição do recurso, atenta a sua finalidade de reparação de eventual erro judiciário, de melhor decisão no pano substancial, ultrapassando o fim de mero “refinamento” teórico, levam a que se tenha presente que o recorrente pode discordar da decisão da Relação, repetindo os fundamentos antes invocados, por estar convicto de que aquela lhe não deu resposta, justificando a sua duplicação para o STJ e que, sem mais, se não lance mão daquele expediente radical”.
No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do mesmo dia e secção, no processo n.º 2684/07, conhecendo-se, ainda, por obviamente admitidos, de recursos nestas condições, nos acórdãos de 17-10-2007, no processo n.º 3265/07 e de 17-04-2008, nos processos n.ºs 677/08 e 823/08, todos da 3ª secção, podendo ainda ver-se o acórdão de 22-10-2008, processo n.º 3274/08-3ª.
Acolhendo-se a segunda orientação (e revendo-se a posição assumida nos acórdãos de 10-10-2007, no processo n.º 3197/07 e de 12-03-2008, no processo n.º 112/08, já, aliás, revista e assumida nos acórdãos de 30-04-2008, no processo n.º 4723/07, de 25-06-2008, no processo n.º 449/08 e de 03-09-2008, processo n.º 3982/07), por a repetição/renovação de motivação, como ora ocorre, não dever ser equiparada à sua falta e não estar prevista a possibilidade de rejeição de recurso para os casos em que o recorrente se limita a repetir a argumentação já apresentada no recurso interposto para o Tribunal da Relação, reexaminar-se-ão as questões suscitadas.
Pelo exposto, entende-se não ser de rejeitar o recurso, não sendo de colocar o óbice da inadmissibilidade do recurso por esta razão.


Questão Prévia II
Da recorribilidade quanto à pena aplicada, e confirmada, pelo crime de maus tratos a cônjuge

O recorrente considera a pena aplicada pelos maus tratos como exagerada e desajustada, atendendo ao clima de violência existente no seio familiar, com culpas de parte a parte.
Como se referiu na questão prévia anterior, a discordância expressa em relação a este aspecto apenas neste recurso foi manifestada, constituindo a colocação de uma questão nova.
A propósito da questão da aplicação do direito intertemporal, no que respeita à lei processual aplicável no que tange a recorribilidade, as secções criminais deste Supremo Tribunal convergiram para uma solução de compromisso, expressa no acórdão de 29-05-2008, processo n.º 1313/08-5ª, que no fulcro se reconduz à afirmação de que «a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido»; em sentido idêntico, podem ver-se, inter altera, os acórdãos de 05-06-2008, processo n.º 1151/08 - 5ª, com o mesmo relator do precedente, in CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 251; de 10-07-2008, processo n.º 2146/08 - 3ª; de 03-09-2008, processo n.º 2192/08 - 3ª e de 29-10-2008, processo n.º 2827/08-3ª.
De acordo com tal posição é de ter em consideração o regime em vigor à data da prolação de decisão na 1ª instância, ou seja, datando esta de 13-11-2007, estando em vigor o novo regime processual, será de aplicar o regime decorrente da Lei n.º 48/2007.
Ocorrendo que, no caso concreto, a solução será sempre a da irrecorribilidade, face à lei anterior ou à actual, como reforço de argumentação, ter-se-ão em consideração os dois regimes.
Sabendo-se que pelo crime de maus tratos a cônjuge o arguido foi condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, haverá que atender à medida abstracta (penalidade, pena aplicável ou moldura penal) prevista para tal crime.
Para o crime de maus tratos a cônjuge, p. p. pelo artigo 152º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na versão da Lei nº 7/2000, de 27-05, a pena aplicável é a de prisão de 1 a 5 anos.
Adiante-se que para o crime de profanação de cadáver, p. p. pelo artigo 254º, do Código Penal, que aqui não está em causa, a penalidade é de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.
Atendendo à moldura legal aplicável ao crime em causa, ter-se-ão em vista as disposições das alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do CPP.
Convocar-se-ão as citadas alíneas, nas versões antiga e actual, apenas para concluir pela irrecorribilidade face a uma e outra.
Estabelecia o artigo 400º, nº 1, alíneas e) e f), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto:
Nº 1 - Não é admissível recurso:
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3.
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.

As referidas alíneas, a partir da alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007, passaram a ter a seguinte redacção:
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena privativa de liberdade;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

Como se referiu o crime em questão é punível com pena de prisão de máximo inferior a 5 anos de prisão, estando-se aqui face a criminalidade de pequena gravidade.
Não indo a pena aplicável no caso em análise além, no máximo possível, de 5 anos de prisão, a irrecorribilidade, à luz do regime anterior, era a prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 400º.
Neste caso, como se especificava no acórdão do STJ, de 14-01-2004, processo n.º 3870/03-3ª, o elemento de referência da lei é a natureza e dimensão da pena aplicável a um crime, com a limitação, no caso de recurso para a Relação, apenas a dois graus de jurisdição a possibilidade de apreciação e julgamento dos crimes de pequena e média gravidade para os quais não esteja prevista (seja aplicável) uma pena superior a 5 anos de prisão.
No mesmo sentido de que não indo a pena aplicável além dos 5 anos de prisão, a irrecorribilidade estava prevista na alínea e), e actualmente, face à nova alínea f), fica o crime definitivamente julgado pela Relação, sendo insindicável a decisão pelo Supremo, podem ver-se os acórdãos de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 204, de 06-03-2008, processo n.º 4634/07 - 5ª; de 13-03-2008, processos n.ºs 3307/07 e 1016/07, ambos da 5ª secção; de 19-06-2008, processo n.º 438/08-5ª, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 258; de 05-11-2008, processo n.º 3451/08 - 3ª; de 13-11-2008, processo n.º 4455/07 - 5ª; de 26-11-2008, processo n.º 2884/08 - 3ª.
Neste regime, condenado o arguido por vários crimes, uns puníveis com pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos e outros puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, tendo sido interposto recurso para a Relação, o recurso, em 2º grau, da decisão desta para o STJ ficava limitado aos crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos de prisão.
Nestes casos o recurso não podia ser conhecido na parte respeitante aos crimes puníveis mais levemente, tornando-se definitivo o decidido neste segmento.
O Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do 400º, nº 1, alínea e), do CPP, no acórdão nº 49/2003, processo n.º 81/2002 (3ª), in DR, II Série, de 16-04-2003, onde se refere que os crimes em causa têm uma gravidade não acentuada, o que explica a diferença entre as alíneas e) e f) e que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas, no mesmo sentido se pronunciando o acórdão nº 390/2004, de 02-06-2004, processo n.º 651/03 (2ª), in DR, II Série, de 07-07-2004, seguido no acórdão nº 140/2006, processo n.º 601/2005 (2ª), in DR II Série, de 22-05-2006 e ainda nos acórdãos de 20-09-2006, no processo nº 487/06 (2ª) e de 16-11-2006, no processo n.º 626/06 (2ª).

No caso em apreciação há identidade de decisão, pois que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou na íntegra o acórdão do Colectivo de Torres Vedras, estando-se perante dupla conforme condenatória, mostrando-se cumprido o duplo grau de jurisdição exercido pela Relação em via de recurso.
O princípio da dupla conforme impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais.
Este princípio é assegurado através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2ª instância, a precedente decisão.
O acórdão da Relação, proferido em segunda instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição.
As garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o 3º grau de jurisdição, por a Constituição, no seu artigo 32º, se bastar com um 2º grau, já concretizado no caso dos autos, aquando do julgamento pela Relação.
Actualmente não existe norma equivalente à anterior alínea e), restando a alínea f), que veio impor maior restrição ao recurso, referindo a pena aplicada e não já a pena aplicável.
Não há dúvida de que a condenação por tal crime, a ser este julgado isoladamente, não seria recorrível, colocando-se a questão de saber se será cognoscível quando inserta numa decisão em que é uma das componentes da pena conjunta.
Mais recentemente, o STJ tem-se pronunciado no sentido de que não é recorrível a pena parcelar aplicada inferior a 5 anos, mesmo que “integrada” em concurso de infracções e em cúmulo jurídico.
Assim neste sentido, podem ver-se, v. g., o acórdão de 13-11-2008, processo n.º 3381/08-5ª, donde se extrai que «No caso de concurso de infracções, tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ, nos termos do art. 400º, n.º 1, alínea f), do CPP, na versão da Lei 48/2007, de 29-08, sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aquele limite.
Segundo o acórdão de 19-11-2008, processo n.º 3776/08-3ª, as penas parcelares englobadas numa pena conjunta só podem ser objecto de recurso para este STJ desde que superiores a 5 anos de prisão. No recurso para o STJ só poderá estar em causa a forma como se produziu a pena conjunta de concurso superior a 5 anos de prisão e não qualquer pena parcelar relativamente à qual tenha sido cominada pena inferior àquele limite - cfr. os acórdãos de 17-01-2007, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 172; de 10-07-2008, processo n.º 2146/08 - 3ª; de 03-09-2008, processo n.º 2380/08 - 3ª; de 16-09-2008, processo n.º 2383/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1016/07 - 5ª.
No acórdão de 15-07-2008, processo n.º 816/08-5ª, defende-se a obrigatoriedade de reponderação da medida da pena do concurso, se a aplicada nesse âmbito for superior a 8 anos de prisão, ainda que os crimes que fazem parte desse concurso, singularmente considerados, tenham sido punidos na 1ª instância com penas inferiores ou iguais a tal limite e confirmadas pela Relação.
Tendo em consideração o exposto, é de concluir que o recurso quanto a reapreciação da medida da pena relativa ao crime de maus tratos, como de resto ocorreria quanto ao de profanação de cadáver, é inadmissível, nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea f), do CPP, na redacção da Lei nº 48/2007.
De resto, há que dizer que no plano prático, como se verá infra a propósito da pena conjunta, esta questão não assume grande relevância.
Nestas condições a pretensão do recorrente quanto à medida da pena aplicada apenas poderá ser reapreciada no que tange ao crime de homicídio qualificado.
A pena parcelar aplicada pelo crime de maus tratos a cônjuge manter-se-á, pois.


Decididas estas questões prévias, vejamos então as suscitadas pelo recorrente.


I. ª Questão - Errada valoração da prova

O recorrente coloca esta questão nas conclusões 8ª a 12ª, mas por precedência lógica desta questão com referência à qualificação, começar-se-á por esta.
O recorrente invoca novamente o problema da prova, pretendendo discuti-la de novo, e tendo como objectivo enquadrar a sua conduta como tendo actuado em legítima defesa.
Já nas conclusões 3ª, 4ª e 5ª o recorrente refere-se ao que na sua óptica resultou da prova produzida, mas aqui o que está em causa no fundo é algo que resulta anódino, pois que se pretende o afastamento das duas circunstâncias agravadoras do homicídio, que vinham imputadas na acusação, mas que o Colectivo de Torres Vedras afastou, insistindo o recorrente nesta questão, a exemplo do que já fizera para a Relação, sem qualquer justificação, tendo a qualificação na 1ª instância sido feita por reporte ao n.º 1 do artigo 132º do Código Penal, sem apoio em qualquer dos exemplos padrão previstos no n.º 2 do preceito.
O que no fundo o recorrente pretende é uma vez mais suscitar a questão da valoração das provas, não podendo deixar de ter-se em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do CPP.
Na realidade o que o recorrente faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada, pretendendo alterar a matéria de facto assente, olvidando por completo a regra da livre apreciação da prova ínsita no aludido artigo 127º do CPP, invocando nesta sede o que terá dito a testemunha EE – conclusões 9ª e 10ª.
A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada - acórdãos do STJ, de 19-09-1990, BMJ 399, 260, de 21-06-1995, BMJ 448, 278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório), de 01-10-1997, processo n.º 876/97-3ª, de 08-10-1997, processo n.º 874/97-3ª, de 06-11-1997, processos n.ºs 666/97 e 122/97, de 18-12-1997, processos n.ºs 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, vol. II, p. 156, 158, 216 e 220 e de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, de 19-01-2000, processo n.º 871/99-3ª, de 06-12-2000, processo n.º 733/00. Ou como se dizia no acórdão de 18-12-1997, processo n.º 701/97, Sumários, ibid., p. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.
Como se extrai do acórdão de 08-02-2006, processo n.º 98/06-3ª, a deficiente apreciação da prova produzida é matéria que escapa aos poderes do Supremo Tribunal de Justiça.
Fazendo aplicação destes princípios podem ver-se os acórdãos de 05-12-2007, processo n.º 3406/07; de 12-03-2008, processo n.º 112/08; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07; de 05-12-2008, processo n.º 2507/08, todos da 3ª secção.
Daqui resulta que se revelam processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes as considerações contidas nas conclusões 8ª a 12ª.
A impossibilidade deste Tribunal sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento, que assim, digamos, tem um objecto impossível, devendo ser rejeitado, nos termos do artigo 420º, nº 1, do CPP, preceito que nesta perspectiva não padece de inconstitucionalidade - cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nº 352/98, de 12-05-1998, processo n.º 106/97-2ª secção, in DR, II Série, n.º 160, de 14-07-1998 e BMJ 477, 18 e nº 165/99, de 10-03-1999, processo n.º 412/98-3ª secção, in DR-II Série, de 28-02-2000 e BMJ 485, 93.
Como se referia no acórdão do STJ de 30-03-1995, BMJ 445, 355, é de rejeitar o recurso por manifesta improcedência quando o recorrente se limita a discutir matéria de facto e a livre apreciação do tribunal.
De igual sorte o acórdão de 21-06-1995, BMJ, 448, 278: “Apresenta-se como manifestamente improcedente, e, portanto, deve ser rejeitado, o recurso cuja fundamentação se circunscreve à interpretação da prova que se diz ter sido produzida em audiência, indicando-se os factos que deveriam ter sido considerados provados, em vez dos que foram dados por provados”.
Nesta parte o recurso é manifestamente improcedente.
Estabelece o artigo 420º, nº 1, alínea a), do CPP, na versão actual, que o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência.
A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de invocação contra a matéria de facto directamente provada, de discussão processualmente inadmissível sobre a decisão em matéria de facto, ou de o recurso respeitar à qualificação e à medida da pena e não ser referida nem existir fundamentação válida para alterar a qualificação acolhida ou a pena que foi fixada pela decisão recorrida – acórdão do STJ, de 22-11-2006, processo n.º 4084/06 - 3ª .
Ou, quando, através de uma avaliação sumária dos fundamentos do recurso, se puder concluir, sem margem para dúvidas, que o mesmo será claramente votado ao insucesso, que os seus fundamentos são inatendíveis – acórdãos de 17-10-1996, processo n.º 633/96, de 06-05-1998, processo n.º 113/98, de 05-04-2000, processo n.º 47/00.
Improcedem, assim, as conclusões 8ª a 12ª, sendo de rejeitar o recurso neste segmento, por manifestamente improcedente.


II.ª Questão – Alteração da qualificação jurídico-criminal – Homicídio qualificado? Homicídio simples? Homicídio Privilegiado?

Nas conclusões 1ª a 7ª entende o recorrente que não há lugar à integração da sua conduta nas alíneas d) e i) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, chegando a defender na conclusão 13ª estar-se face a um homicídio privilegiado, embora no final termine por pedir a sua absolvição.
Acontece que o arguido não foi condenado nesses termos, isto é, a qualificação do homicídio não se operou a partir da conclusão da verificação das situações padrão previstas nas citadas alíneas.
O arguido fora acusado, para além do mais, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131º e 132º, n.º 1 e n.º 2, alíneas d) e i), do Código Penal.
O recorrente, laborando em manifesto equívoco, a exemplo do que fizera no recurso para o Tribunal da Relação, na conclusão 1ª refere ter sido condenado pelo crime de homicídio assim qualificado, quando na verdade foi afastada a verificação de tais circunstâncias agravativas, tendo o recorrente sido condenado pela autoria material de um crime de homicídio qualificado, mas nos termos do artigo 132º, n.º 1, do Código Penal.
O que reconduz à temática do homicídio qualificado atípico.

O Crime de Homicídio Qualificado

Estabelece o artigo 132º, n.º 1, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, vigente à data da prática dos factos:
1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena da prisão de 12 a 25 anos.
No n.º 2 enumeram-se as “entre outras”, (então onze) circunstâncias, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, passando com a alteração de 1998 para a alínea d) o teor da antiga alínea c) com o aditamento infra referido e para a alínea i) o teor da antiga alínea g), cuja redacção inicial, originária de 1982, fora entretanto substituída pela que lhe fora dada pela 3ª alteração do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03 (conferir alínea 88) do artigo 3º- B, da Lei nº 35/94, de 15-09 - Lei de autorização legislativa de que emanou aquele Decreto-Lei), sendo o seguinte o seu teor:
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer outro motivo torpe ou fútil
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

Com a versão conferida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, actualmente em vigor, estas qualificativas passaram, respectivamente, para as alíneas e) e j), e para além do mais, foi aditada uma nova circunstância que passou a integrar a alínea b) do seguinte teor:
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau.

A Doutrina e a maioria da Jurisprudência nunca consideraram que a relação conjugal pudesse ser encarada como abrangida pela alínea a) do nº 2 do artigo 132º, do seguinte teor: «Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima».
Teresa Serra, in Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, 1995/1996, CEJ, edição de 1998, pág.152, nota 31, referia-se à anacrónica qualificação do homicídio em função dos laços familiares, bem como a dificuldade e o desconforto do legislador quando é obrigado a lidar com a criminalidade no meio familiar, quando a questão que se coloca com maior acuidade é a dos maus tratos de crianças e mulheres no meio familiar.

A nova formulação do elenco de factores índice, com a introdução da nova alínea b), “reivindicada” por Manuela Valadão Silveira, no trabalho Sobre o crime de maus tratos conjugais, Revista de Direito Penal, volume I, n.º 2, ano 2002, edição da Universidade Autónoma de Lisboa, pág. 44, vem consagrar a inserção, de forma autónoma, no quadro das situações padrão, do conjugicídio e situações paralelas, para além de outras, o que se justificará, como referimos no acórdão de 02-04-2008, no processo n.º 4730/07, como corolário da evolução legislativa, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), violência familiar e os maus tratos familiares, como mais especificamente decorre das seguintes iniciativas e diplomas legais:
- Anexo II - Exposição de Motivos Relativa ao Projecto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família - elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, do Conselho da Europa, aprovado na 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais (Abril de 1984), abordando a questão da violência intra-familiar (cfr. BMJ n.º 335, págs. 5-22).
- Lei nº 61/91, de 13 de Agosto (protecção às mulheres vítimas de violência).
- Resolução da Assembleia da República nº 31/99, de 25 de Março, in DR, I-A, nº 87, de 14-04-1999, proclamando a necessidade de regulamentação da legislação que garante a protecção às mulheres vítimas de violência.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/99, de 27 de Maio, publicada no DR, Série I-B, n.º 137, de 15 de Junho de 1999, aprovando o I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica.
- A alteração ao Código Penal, com a nova redacção dada ao artigo 152.º, e ao Código de Processo Penal, com a reformulação da redacção dos artigos 281.º e 282.º, operada pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio.
- I Relatório Intercalar de Acompanhamento do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, elaborado pela Comissão de Peritos para o acompanhamento da execução de tal plano, em Maio de 2000, definindo violência doméstica - cfr. “Violência Doméstica”, Seminário realizado em Lisboa, em 16 de Junho de 2000, promovido pela Procuradoria - Geral da República e pelo Ministério para a Igualdade.
- Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, definindo medidas de protecção para as situações de união de facto.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2003, publicada no DR, Série I-B, n.º 154, de 07-07-2003, aprovando o II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, e definindo a violência doméstica.
- Resolução da Assembleia da República nº 17/2007, de 12-04-2007, in DR- I Série, nº 81, de 26-04-07, pronunciando-se sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”.
- Resolução do Conselho de Ministros nº 82/2007, de 06-06-2007, aprovando o III Plano Nacional para a Igualdade - Cidadania e Género (2007-2010) – DR, I Série, nº 119, de 22-06-2007.
- Resolução do Conselho de Ministros nº 83/2007, de 06-06-2007, aprovando o III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010) - DR, I Série, nº 119, de 22-06-2007.
- Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto – DR, I Série, nº 168 - que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio – DR, I Série, nº 99 - que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, proclamando como objectivo específico reduzir a violência doméstica, englobando os casos de violência doméstica entre os crimes de prevenção e de investigação prioritária, como resulta dos artigos 2.º, 3.º, alínea a) e 4.º, alínea a) e respectivo Anexo.

Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, 2ª edição, actualizada em Setembro de 2007, AAFDL, 2008, de fls. 100 a 103, a propósito da inclusão em 2007 no artigo 132º de casos em que a maior gravidade do facto depende de qualidades ou relações especiais do autor, expende: “É evidente que a ideia, antes expendida, de que a família poderia ver-se incólume ao agravamento no caso de homicídio entre cônjuges claudicou. Sensível ao problema criminal dos maus tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente, e coerente com a sua incriminação de uma forma agravada, o legislador vem entender que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o homicídio é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132º.
Ora trata-se sem dúvida de comportamentos cuja incriminação em sede de homicídio qualificado se articula com a especial ilicitude, que o legislador reconhece aos crimes de maus-tratos e de violência doméstica (hoje vertidos no artigo 132º com a epígrafe genérica de violência doméstica). Temos, assim, que a qualidade ou relação especial do autor com a vítima, que reconhecidamente agrava a ilicitude deste crime, repercute na nova alínea do artigo 132º”.

No acórdão do Colectivo de Torres Vedras, no final do enquadramento jurídico criminal, no que pertine ao crime ora em causa, referiu-se que “Face à Lei actualmente vigente o crime continuaria qualificado atento o disposto no artº. 132º nº 2 al. b) do Código Penal”, tratando-se de afirmação que não será de sufragar.
A questão em apreciação no presente recurso não poderá ser obviamente vista à luz desta nova solução legal, que alargando a listagem existente, inclui, além do mais, o uxoricídio entre os exemplos-regra, tratando-se de um novo padrão, indício, sintoma, guia, exemplo, modelo, indicador de situação, que abstractamente poderá ser susceptível de indicar, de sugerir – e apenas isso - que a acção do agente atinge o grau (especial) de culpa revelador de especial censurabilidade ou perversidade.
A nova agravativa será de ter em conta apenas para futuro, atento o princípio ínsito no comando constitucional expresso no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição e concretizado nos artigos 1.º, n.º 1 e 2.º, n.º 4, do Código Penal.

*

Segundo opinião dominante o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131.º, do Código Penal, que constituirá, pois, a matriz, o tipo base, fundamental.
O Código Penal de 1982, em matéria de qualificação do homicídio, seguiu um método de combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão - Figueiredo Dias, em Parecer (Homicídio Qualificado - Premeditação – Imputabilidade - Emoção Violenta), publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, 1987, tomo 4, págs. 49 a 55.
Aí expende o Autor – fls. 52 - que “a agravação da culpa tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples”.

A aceitação de utilização de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados, a não taxatividade das circunstâncias alinhadas no n.º 2, a concepção de tipo com carácter aberto, em suma, a compatibilidade do artigo 132º do Código Penal com o princípio da legalidade tem suscitado dúvidas na Doutrina, no que toca ao respeito pelo princípio da tipicidade/legalidade e da possibilidade da analogia e interpretação declarativa.
Logo no início, foram as críticas refutadas por Figueiredo Dias e Eduardo Correia, defendendo que as circunstâncias apontadas no n.º 2 não integram a ilicitude do facto, sendo antes elementos da culpa, pelo que a elas não será de opor o princípio da legalidade, que vale apenas para o tipo, e este encontra-se delimitado no nº 1.
Lopes Rocha, Jornadas de Direito Criminal, Fase I - A Parte Especial do Novo Código Penal, CEJ, Abril de 1983, pág. 354, referindo-se ao artigo 132.º, diz que “O n.º 2, como se ponderou no seio da Primeira Comissão Revisora, corresponde à intenção de colocar nas mãos dos juízes alguns critérios com base nos quais possam dar aplicação ao estatuído no n.º 1. A enunciação é por isso meramente enunciativa e exemplificativa, e não taxativa.
A solução foi criticada, por perigosa, e por permitir o arbítrio do juiz, se não mesmo por contrariar certos princípios gerais como o do «nullum crimen sine lege» e o da proibição da analogia.
Foi respondido que o n.º 2 não pretende alargar o tipo, representado no n.º 1 com a máxima amplitude, e que as circunstâncias daquele número deveriam ser tidas como elementos da culpa e não do tipo”.
Conclui: “Sendo assim, já não há lugar a arbítrio quando se segue uma enumeração não taxativa”.
Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, 1983, Revista do Ministério Público, ano 4.º, volume 15, pág. 59, relativamente à natureza da agravação do homicídio qualificado, defende tratar-se de “agravação da ilicitude e da culpa, conjuntamente. A descrição típica do homicídio qualificado não indica um conteúdo preciso para a agravação da ilicitude que prevê. Baseia a agravação da ilicitude num conceito normativo de contornos vagos «censurabilidade» ou «perversidade» do agente. Por isso ela terá de ser contrária ao princípio da legalidade, por deixar nas mãos do julgador a construção do tipo”.
E no final da conferência, a págs. 74, dizia que “as dificuldades que ela (técnica legislativa usada) nos anuncia devem pôr-nos já no caminho da sua reforma”.
Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, págs. 121/3, a este propósito escreveu: «Reprovar a existência de uma enumeração exemplificativa de circunstâncias, acusando-a de violar a proibição da analogia, conduziria, no caso em apreço, não a uma verdadeira, mas a uma falsa aporia», traduzida nas palavras do ditado popular “Preso por ter cão e preso por não o ter”.
Defende uma nova leitura do preceito, porque “as duas partes do mesmo complementam-se entre si”, havendo que “atentar no preceito no seu conjunto”.
«Com a conjugação de uma cláusula geral e de uma enumeração exemplificativa, a técnica dos exemplos-padrão logra atingir uma unidade nova e superior evidenciada no preceito do artigo 132º, a que, por razões óbvias, não podem já ser dirigidas as mesmas críticas”, consubstanciadas na consideração de que no carácter exemplificativo dos exemplos-padrão (com a admissibilidade da existência de outras circunstâncias, para além das que constam no n.º 2 do artigo 132.º, susceptíveis, também elas, de revelarem a especial censurabilidade ou perversidade do agente, conducente à aceitação de um homicídio atípico) residiria um convite à ampliação sem limites desses exemplos, numa instigação à analogia em direito penal - cfr. págs. 121/2.
Nessa visão, a enumeração exemplificativa concretiza e determina a cláusula geral e o critério generalizador delimita a enumeração exemplificativa; cada uma das partes do preceito exerce uma interacção ou influência decisiva na outra, conduzindo a um resultado qualitativamente novo – cfr. págs. 122 e 127- conclusão 13.
Prossegue, a págs. 123, dizendo: “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente está perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2. Por via de uma conclusão por analogia («Analogieschlusse») ou pela verificação de um efeito de analogia («Analogiewirkung»), tais circunstâncias são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, podendo, nesse caso, afirmar-se a existência de um homicídio qualificado atípico” - cfr. pág. 126 - conclusão 8, in fine.
Finaliza a Autora, concluindo dever “afirmar-se a inteira compatibilidade dos exemplos-padrão com o princípio da legalidade e a função de garantia da lei penal, designadamente com a exigência da máxima determinação da lei penal e da proibição da analogia em Direito Penal” – cfr. pág. 127 - conclusão 14 - e pág. 123, in fine.
Alguns anos após, aquando das modificações introduzidas pela terceira alteração do Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 01-10-1995, em Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (30-10-1995 a 02-05-1996), CEJ, edição de 1998, Volume II, a mesma Autora retoma a defesa do entendimento de que a interpretação do artigo 132.º tem de considerar o preceito no seu conjunto: a enumeração exemplificativa concretiza a cláusula geral e a cláusula geral delimita a enumeração exemplificativa.
A propósito da tendência da jurisprudência, que se abordará infra, de considerar como homicídio qualificado o facto cometido pelo agente desacompanhado de qualquer das circunstâncias previstas no nº 2, mas acompanhado de outras que eventualmente se enquadrem no nº 1 do mesmo preceito, afasta a possibilidade de aplicação da interpretação extensiva e da analogia à mais gravosa norma incriminadora prevista no Código Penal, o que seria inadmissível e, desde logo, inconstitucional - págs.155 a 157 e nota 41.
Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 28, afirma que o método utilizado se revela incensurável à luz do princípio da legalidade, citando Teresa Serra nas passagens assinaladas, a propósito da interacção dos dois números do artigo 132º (págs. 122 e 127), sendo violador da legalidade o procedimento traduzido em fazer um apelo directo à cláusula geral.
Esclarece que ao indagar-se da integração no tipo qualificado não se poderá “fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, antes deve-se em primeiro lugar fazer passar o caso pelo crivo dos exemplos-padrão e a fim de comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132º ou de uma situação valorativamente análoga”.
Neste sentido, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2008, 2ª edição, revista e actualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, a págs. 58, refere: “Em relação ao modus operandi deste tipo de crime pressupõe que em primeiro lugar se procure enquadrar o caso concreto em alguma das circunstâncias padrão previstas no n.º 2, e, depois de obter esse enquadramento, é necessário analisar se o n.º 1 está preenchido, sendo sempre insuficiente o enquadramento numa das circunstâncias tipo que são apresentadas para qualificar o homicídio, pois este só é qualificado em função do critério de uma culpa mais grave”.
João Curado Neves no ensaio Indícios de culpa ou tipos de ilícito? – A difícil relação entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, expende a págs. 722: «Caso se queira continuar a entender que a agravação da moldura penal prevista no artigo 132.º decorre de um teor de culpa superior ao que subjaz à forma básica do artigo 131.º, só resta a alternativa de defender que a previsão do n.º 1 constitui um tipo de culpa e não de ilícito».
Relativamente à compatibilidade do artigo 132.º com o princípio da legalidade, aborda o tema de fls. 747 a 757, defendendo a págs. 749 que os problemas que têm surgido na aplicação do artigo 132.º revelam que a utilização das diversas alíneas como padrões que orientem a inclusão de casos não previstos se revela difícil ou inconvincente, e a págs. 752, que a interpretação com recurso a raciocínio analógico é contrária ao princípio da legalidade e incompatível com o n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, pelo que deve o preceito, a ser interpretado nesse sentido, ser julgado inconstitucional.
Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, 2ª edição, actualizada em Setembro de 2007, AAFDL, 2008, a fls. 56/7, indica como os principais traços do art. 132º a exclusão da aplicação automática, a aferição da qualificação por um critério de culpa e a permissão do recurso à analogia, afirmando que “quem preenche uma das alíneas do art. 132º não “entra” automaticamente no âmbito da norma”, só entrando quando, sujeito ao «crivo normativo» do nº 1, se ajuíze que “há mesmo uma culpa especial”, sendo a aplicação do art. 132º uma “incumbência judicial”, outorgando-se ao juiz a possibilidade de construir ele próprio mais circunstâncias agravadoras.
A Autora, a fls. 78 a 82, coloca a questão de saber “até onde deve aceitar-se a virtualidade expansiva dos exemplos-padrão, que ao legislador não repugnou nada ver proliferar por analogia”, até onde o julgador pode ir, criando analogicamente novos exemplos padrão, e até onde deve aceitar-se aquela virtualidade, e porque a proliferação dos exemplos constitui uma brecha no princípio da máxima determinação típica e um risco, entende não se dever «cometer uma vocação ampliadora às circunstâncias do art. 132º», já que não parece possível «vislumbrar um denominador comum, um tertium comparationis, ou seja, uma regra capaz de aferir da estreita compatibilidade entre uma eventual circunstância nova latente e as já patentes na lei».
Augusto Silva Dias, Materiais para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, nº 5, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, pág. 24, começa por referir que “A técnica utilizada na qualificação do homicídio consiste numa cláusula geral de agravação (nº 1), a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente e um elenco de exemplos-padrão, exemplos-regra ou exemplos típicos (nº 2)”.
Numa leitura próxima da interacção e apreciação do preceito no seu conjunto a que alude Teresa Serra expende: “A qualificação resulta de uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos explicitam o sentido da cláusula agravante e esta, por sua vez, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles”.
A págs. 25/6, exprime a opinião de que “a compatibilização da abertura possibilitada pela expressão «entre outras» com o princípio da legalidade só é assegurada se ela não conduzir à dissolução do vínculo do juiz à lei (…) e se os exemplos das diversas alíneas puderem funcionar como padrão ou regra e não como exemplificação avulsa. Para que isso suceda, ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do n.º 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão. Nestes casos é absolutamente vedado o recurso ao chamado «homicídio qualificado atípico», isto é, à qualificação do homicídio sem passar por nenhum dos exemplos-padrão do nº 2, procedimento corrente na jurisprudência do STJ”.
O Autor invoca como exemplos os acórdãos de 23 de Maio de 2002 e de 14 de Janeiro de 2004 - nota 22, a págs. 26. (Não obstante o esforço colocado no sentido de se verem estes acórdãos, não se conseguiu alcançar tal objectivo, devendo-se a dificuldade a eventual lapso de escrita).
Prossegue a págs. 30: “…Quando se trata de saber se um dado caso preenche ou não um dos exemplos típicos a questão de se a atitude do agente é especialmente censurável ou perversa fica suspensa. Esta só é considerada uma vez resolvida aquela, pois, se não é preenchido nenhum exemplo típico, não é legítimo indagar se o agente revelou uma especial censurabilidade ou perversidade”.
Fernando Silva, loc. cit., pág. 54, defende que o recurso do legislador à técnica dos exemplos padrão – que funcionam para orientar o julgador, apontando factos e situações que podem fundamentar o juízo para uma culpa agravada - permite fundamentar a qualificação em factos que não estejam previstos no nº 2 sem que haja violação do princípio da legalidade.
Mais à frente, a págs. 61, a propósito do carácter aberto do tipo, expende: “A forma como o tipo está construído permite que se faça uma analogia em relação ao tipo orientador, ou seja, que a partir do padrão previsto nas várias alíneas se consiga enquadrar, no âmbito do Leitbild que está presente em cada uma, circunstâncias diferentes das expressamente referidas. Neste sentido admite-se que se faça uma analogia, mas sempre a partir de um dos três tipos de circunstâncias previstas (relações agente/vítima, motivações do agente, modo de execução do facto)”.
Especifica depois, a págs. 65, dizendo: “Admitimos a analogia para concluir que determinada circunstância, embora não prevista expressamente, também se revela susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, mas o tipo ainda não está preenchido, ele concretiza-se pelo critério da culpa mais grave. O tipo, em si, está consagrado no n.º 1 e concretiza-se pela especial censurabilidade; se o agente a revela não se chega a fazer analogia em relação ao tipo incriminador, a qualificação opera em sede de culpa que não necessita de estar tipificada como juízo de censura que é”.
E finaliza, a págs. 65, in fine: “É a conjugação da técnica de um tipo de culpa agravada baseado no modelo dos exemplos-padrão que resulta uma maior clareza, que conduz à admissibilidade da compatibilidade do tipo de crime com os ditames do princípio da legalidade”.
Victor Sá Pereira, Código Penal, Notas e Comentários, Livros Horizonte, 1987, págs. 176/180, comentava: «A especial ou maior gravidade é efeito da especial censurabilidade ou perversidade do agente (nº 1), tanto quanto esta decorre dos padrões (determinados) do nº 2 - ou de circunstâncias paralelas (indeterminadas) -, em clara actuação silogística. Mas, assim, a afirmação de que o tipo (sem mais) se encontra no nº 1 não se ajusta à natureza indiciária e subsidiária do nº 2, sedeado no terreno da culpa… A relação que se estabelece entre o nº 1 e o nº 2 exigem que eles disponham de natureza e posição por assim dizer comuns, no limbo do facto punível. Doutro modo, na verdade, o último seria diverso do primeiro e não poderia alimentá-lo. Por conseguinte, se o nº 2 enquadra elementos da culpa, à culpa terá de referir-se o nº 1.
Dizer que o tipo (sem mais) se resolve em cláusula geral com enumeração exemplificativa poderia aparentar a vantagem de exprimir, com a segunda a interceder na abrangência da primeira, a função de garantia, em face de qualquer atitude arbitrária.
Mas, sem falarmos na antítese entre ilicitude e exemplificação (ou entre elementos e exemplos), não andaríamos longe, assim, da área dos tipos abertos, que a melhor doutrina firmemente rejeita. Ademais, a tipicidade do ilícito resultaria integrada ou interferida por dados exteriores, da província da culpa e despidos da fixidez ou certeza que lhe modela o ser, na mais pura incongruência, ou com substancial agressão dos princípios da legalidade e da tipicidade, como, ao cabo, pois, da citada função de garantia».
*

Pesem embora todas as críticas dirigidas ao recurso a exemplos padrão, a verdade é que esta técnica legislativa, com utilização de enunciados meramente exemplificativos e de conceitos indeterminados nos exemplos padrão, não só se tem mantido, como tem sido ampliada/reforçada ao longo destes mais de 26 anos de vigência do Código Penal, o que aconteceu por quatro ocasiões, com a adição não só de novos exemplos típicos, com abertura/expansão do catálogo, como também de outras previsões normativas mais abrangentes e compreensivas dos sintomas pré-existentes.

Assim aconteceu com o Decreto-Lei nº 101-A/88, de 26 de Março, que emergiu da autorização legislativa conferida pela Lei nº 43/97, de 28-12, que introduziu então as novas circunstâncias agravativas das alíneas h) e i), que vieram a dar origem à alínea h), na redacção de 1995, e correspondente à actual alínea l), acentuando-se no relatório desse diploma que a indicação das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º é meramente exemplificativa e que as mesmas não são de funcionamento automático.
Justifica a inclusão dos novos exemplos-padrão por poder revestir-se de particular eficácia preventiva e proporcionar ao julgador um critério legal preciso quando tiver de se decidir pela qualificação do homicídio.

Neste sentido veja-se ainda o que resultou da terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
No ponto 7 do exórdio do diploma lê-se: “A mais importante alteração reside no abandono do modelo vigente de recurso a conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais de valor enquanto critérios de agravamento ou de privilégio, de modo a obviar as dificuldades que têm sido reveladas pela jurisprudência e a que o legislador não se pode manter alheio”.
O legislador referia-se então ao crime de furto e criminalidade patrimonial.
Mas na mesma revisão, tendo-se abandonado essa técnica quanto ao crime patrimonial, manteve-se a mesma no homicídio qualificado, condensando numa única alínea - h) - o que constava das anteriores alíneas h) e i) introduzidas pelo diploma de 1988, “expandindo” as previsões constantes das alíneas d) e e), e alterando a redacção da alínea g), com a exclusão do vocábulo “premeditação”, como ainda operou “a consagração de um tipo de ofensa à integridade física qualificado por circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, a exemplo do que sucede no homicídio”.
O artigo 146.º do Código Penal (actual artigo 145.º) “importou” para o domínio das ofensas à integridade física a técnica e o fundamento da qualificação do homicídio, passando a dispor o n.º 2: “São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”
Teresa Serra, em Homicídios em Série, Jornadas …, 1998, supra citado, reportando-se à alteração de 1995, considera não muito felizes as alterações introduzidas no n.º 2 do artigo 132.º, critica as soluções introduzidas e a ausência de outras (como a eliminação da expressão entre outras do corpo do n.º 2), assinalando o que em seu entender corresponde a uma tendência para a subversão da técnica dos exemplos padrão, para além da surrealista alínea h) – “acusação” não aceite por Figueiredo Dias, no Comentário …, pág. 41 - e de ser altamente criticável o facto do artigo 146.º operar uma remissão pura e simples para as circunstâncias do artigo 132.º - págs.148, 150 e 153.

A redacção de 1998 – Lei nº 65/98, de 2 de Setembro - deixou intocados, quer o n.º 1, quer o proémio do n.º 2 e a alínea a), limitando-se a multiplicar e alargar o catálogo dos exemplos-padrão, o que acontece com as novas situações previstas nas então alíneas b), g) - com excepção da parte final “ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”, já constante da parte final da alínea f) na redacção de 1995 e para aqui deslocada - e alínea l), passando-se de oito para onze exemplos-padrão.
Para além destes novos índices, foi “expandido” o exemplo típico constante da alínea d) – ex-alínea c) – com o aditamento da expressão “ou de causar sofrimento” entre “matar” e “para excitação” e alterada a redacção da alínea j) – ex-alínea h) – colocando “Praticar” em vez de “Ter praticado” e retirando o qualificativo “público” que se seguia a “docente ou examinador”.
As situações – novas - constantes das alíneas b) e l), aliás, já haviam sido propostas em 1995 – cfr. Teresa Serra, Homicídios …, pág. 153.

A última alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro - para além de ter modificado a redacção da actual alínea f) – correspondente à ex-alínea e) - “expandindo” a agravação indiciada a (…) ódio (…) “gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual da vítima” e da actual alínea l), com extensão a “todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos”, a “membro de comunidade escolar”, a “juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas”, introduziu, como vimos, uma nova situação padrão com a inclusão da previsão da alínea b), susceptível de indiciar o critério orientador da especial censurabilidade ou perversidade, passando para doze os exemplos-padrão previstos no nº 2 do artigo 132º do Código Penal.

O homicídio qualificado constitui um tipo especial de culpa agravada, evidenciado nas circunstâncias enunciadas no nº 2, que têm carácter exemplificativo.

Para Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, tradução espanhola, edições Bosch, 1981, de Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde, a págs. 363, 367/8, os exemplos padrão (Regelbeispiele) correspondem a modalidade especial do tipo base, a uma variante dependente do tipo básico, a elementos adicionais, expressando agravação de culpabilidade do tipo base; constituem regras de determinação judicial da pena (aplicação da pena), com um duplo significado: por um lado, a concorrência dos elementos de um dos exemplos representa apenas um indício da presença de um caso especialmente grave, que pode ser afastado pelo juiz mediante a valoração global do facto e do seu autor; por outro, pode o juiz admitir um caso especialmente grave, ainda que não se preencham os elementos de nenhum exemplo padrão.
Segundo o mesmo Autor, ocorre caso especialmente grave sempre que as circunstâncias objectivas e subjectivas revelam a insuficiência da “penalidade típica ordinária” para a “retribuição judicial” do ilícito e da culpa, assim se justificando a formulação de exemplos típicos, que traduzem indício da presença dum caso especialmente grave.

O Professor Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, como se vê das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, edição da AAFDL, 1979, pág. 21, a propósito do artigo 138º (correspondente ao actual 132º), na sessão de 17-03-1966, na sequência de questão suscitada pelo Professor Figueiredo Dias, disse: “A inclusão do n.º 2 corresponde à intenção de colocar nas mãos do juiz alguns critérios com base nos quais possa dar aplicação ao estatuído no n.º 1. Assim, frisa-se que a enumeração de várias alíneas no n.º 2 não é taxativa, antes meramente enunciativa e exemplificativa. Referem-se nela apenas alguns indícios ou elementos que permitem revelar a censurabilidade ou a perversidade do agente. Daqui se retiram dois efeitos. Por um lado, as circunstâncias enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo antes elementos de culpa. Portanto não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se poder concluir pela «especial censurabilidade ou perversidade do agente». Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não descritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas no n.º 1».

Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 265, págs. 203 e ss., a propósito da técnica dos exemplos-padrão diz: “Trata-se de circunstâncias modificativas agravantes que o legislador se não contenta com indicar através de uma pura cláusula indeterminada de valor, mas que também não descreve com a técnica detalhada que utiliza para os tipos, antes nomeia através da sua exemplificação padronizada. Com uma dupla consequência. A de que, por um lado, a descrição feita constitui exemplo indiciador das situações que devem conduzir à agravação; podendo, todavia, o juiz negar aquele efeito indiciador mesmo a uma situação coincidente com um exemplo de que o legislador se serviu, se considerar – através da valoração global do caso – que a razão de ser da agravação se não verifica em concreto. E a de que, por outro lado, não sendo a enumeração da lei esgotante, mas só exemplificativa, o juiz pode no entanto considerar que a razão de ser da agravação vale apesar de a situação do caso não integrar a enumeração legal”.
“O nosso CP reconheceu claramente a técnica dos exemplos-padrão no art. 132º-2”, assinalando o autor a identificação essencial com o texto por parte da jurisprudência, a propósito da acepção de “circunstâncias exemplificativas”, de que fala aquela - § 266 e nota 55.
Já em 1987 no citado Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, tomo 4, págs. 49 e ss., dizia o mesmo Professor que “as circunstâncias contempladas no n.º 2 do art. 132º não são taxativas, nem implicam por si só a qualificação do crime; isto é, pode o juiz considerar como homicídio qualificado a conduta do agente que não se acompanhasse de qualquer das circunstâncias descritas, mas sim de outras, e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias”.
Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como aliás resultou da discussão no seio da Comissão Revisora e foi expressamente defendido pelo Autor do Projecto e por nós próprios”.
O mesmo Autor, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 26, refere: «…a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2».
Adianta que a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. E finaliza: “Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2”.
O Mestre de Coimbra remete então para a situação próxima, versada in Direito Penal Português, As Consequências…, II, §§ 444 e ss., a respeito da atenuação especial da pena.
Aí, § 453, pág. 306, a propósito das circunstâncias descritas nas alíneas do artigo 72º, nº 2, do Código Penal, que constituem exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuada contida na cláusula geral do artigo 73º, nº 1 (actual artigo 72º) diz o Professor: passa-se aqui algo de análogo - não de idêntico - ao que sucede com os exemplos padrão: por um lado, outras situações que não as descritas naquelas alíneas podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido.
Volvendo ao Comentário, págs. 26/27, defende que o método de qualificação seguido pelo legislador concede ao aplicador uma maior flexibilidade na valoração do caso concreto, permitindo um uso moderado e criterioso da qualificação, impeditivo da multiplicação ad nauseam das hipóteses respectivas.
Os exemplos padrão constantes do artigo 132º, n.º 2, configuram elementos constitutivos do tipo de culpa. Adianta que “muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º-2, em si mesmo tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado.
Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, a págs. 120 refere que “A técnica dos exemplos-padrão estrutura-se (…) sobre uma cláusula geral concretizada através de uma enumeração casuística exemplificativa” e como referia Eduardo Correia, in Actas, p. 25, sempre foi sua intenção considerar as circunstâncias do n.º 2 do artigo 138º (actual 132º) como simples elementos da culpa. “ O n.º 2 não pretende alargar o tipo. O n.º 1 representa a máxima amplitude. Se a enumeração passasse a ser taxativa, então inutilizar-se-ia o n.º 1.”.
As circunstâncias do n.º 2 têm uma função concretizadora da cláusula geral do tipo de culpa do n.º 1, introduzindo factores relevantes de determinação nessa cláusula geral que fundamentam o Leitbild dos exemplos-padrão. Nesta perspectiva, bem se compreende que a enumeração de circunstâncias do nº 2 deva ser exemplificativa. Caso contrário, a razão por que o legislador optou por recorrer à utilização da cláusula geral do nº 1 e os fins que pretendeu atingir com essa opção frustrar-se-iam em boa medida.
Cristina Líbano Monteiro na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano VI, Janeiro-Março, 1996, vol.1º, pág.121, em anotação ao acórdão do STJ, de 05-02-1992, pondo de lado o problema de saber se se encontra no artigo 132º um verdadeiro tipo qualificado ou apenas uma regra de determinação de uma moldura penal agravada para certos homicídios, expende: «O artigo 132º prevê, como pressuposto do funcionamento da sua consequência jurídica mais pesada, uma culpa concreta agravada do «causante» da morte. O critério material contido no preceito - a evidenciação de uma «especial censurabilidade ou perversidade do agente» - redunda na verificação de que a personalidade do autor patenteada no facto justifica uma censura jurídico-penal de severidade acrescida. O mesmo é dizer: nessas circunstâncias, a pena é mais grave por ser mais «forte» o juízo de culpa».
Faria Costa, no Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 250, em comentário ao artigo 146º do Código Penal, a propósito do lugar paralelo do crime de ofensas à integridade física refere ser necessário que para além das lesões da integridade física, simples ou grave, ou a ocorrência de um dos resultados que nos termos do art. 145º são susceptíveis de conduzir a uma agravação da responsabilidade do agente, necessário se torna que a conduta do agente revele uma “censurabilidade acrescida susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas pelo nº 2 do art. 132º, entre outras”, remetendo este Comentador no mais para o referido a propósito do artigo 132.º.


A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132º como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento.

O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 11-05-1983, BMJ 327, 458, pronunciou-se sobre o novo tipo, dizendo tratar-se de “homicídio qualificado, cujo tipo abarca uma série de casos que no Código de 1886 eram incriminadas autonomamente, como por exemplo, o parricídio, o infanticídio, o envenenamento…”, salientando então o seguinte:
1 - “As circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 132º não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa e, consequentemente, não são de funcionamento automático (Actas das sessões da Comissão Revisora, BMJ, 286, pág. 21).
2 - A enumeração dessas circunstâncias é meramente exemplificativa: outras circunstâncias (não indicadas) são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade e perversidade do agente”.
É entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa – vejam-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 08-02-1984, BMJ 334, 258 (os factos apontados no n.º 2 não são elementos constitutivos de um homicídio especial, circunstância modificativa do tipo fundamental; são apenas o indício, confirmável ou não, de uma intensa culpa); de 08-02-1984, BMJ 334, 267; de 24-10-1984, BMJ 340, 235; de 20-03-1985, BMJ 345, 248; de 07-05-1986, BMJ 357, 211; de 26-11-1986, BMJ, 361, 283; de 25-06-1987, BMJ 368, 340; de 26-04-1989, BMJ 386, 237; de 19-04-1990, BMJ 396, 253; de 06-06-1990, BMJ 398, 264 e 269; de 20-12-1990, processo n.º 41848; de 03-04-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, pág. 15; de 16 e 18-10-1991, BMJ 410, 341 e 367; de 12-12-1991, processo 42640; de 06-05-1992, processo n.º 43109; de 13-01-1993, BMJ 423, 222; de 04-02-1993, BMJ 424, 360 e CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 186; de 09-06-1993, BMJ 428, 284; de 23-06-1993, BMJ 428, 304; de 17-02-1994, BMJ 434, 292; de 17-03-1994, BMJ, 435, 518; de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222; de 25-06-97, processo n.º 1253/96; de 16-12-1997, processo n.º 102/98; de 02-07-98, processo n.º 37/98; de 15-04-1998, BMJ 476, 238; de 17-03-1999, processo n.º 420/98-3ª; de 07-12-1999, BMJ 492, 168 e CJSTJ 1999, tomo 3, pág. 234 (os exemplos regra, como elementos da culpa, implicam ainda um exame global dos factos de modo a chegar (ou não) à conclusão da especial censurabilidade ou perversidade); de 15-12-1999, processo n.º 946/99-3ª; de 11-05-2000, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 188; de 13-12-2000, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241; de 10-01-2001, processo n.º 3221/00-3ª; de 30-05-2001, CJSTJ 2001, tomo 2, pág. 215; de 15-05-2002, processo n.º 1214/02-3ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5ª; de 20-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 195; de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173; de 07-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 229; de 30-03-2006, processo n.º 783/06-5ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 229; de 05-09-2007, processo n.º 2430/07-3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3379/08 - 3ª.



A cláusula geral do nº 1 do artigo 132º do Código Penal

Subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação.
Vejamos algumas das abordagens da concretização do critério generalizador em questão.
Teresa Serra, Homicídio Qualificado…, págs. 63/64, expende: “… a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.
No artigo 132º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
A especial perversidade supõe “uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”.
A págs. 63, refere que, dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
Figueiredo Dias, Comentário…, Tomo I, pág. 29 “O especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.
O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.
Para Fernando Silva, loc. cit., págs. 52/53, especial censurabilidade prende-se
essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada.
A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto.

Na jurisprudência, vejam-se, i. a.: acórdão de 15-12-1999, BMJ, 492, 327 - a especial censurabilidade está relacionada com um especial tipo de culpa fundamentado na atitude especialmente desvaliosa do arguido e a especial perversidade com um especial tipo de culpa, tendo por base a expressão no facto de qualidades especialmente desvaliosas da sua personalidade.
Acórdão de 20-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 238 - «especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido.
Acórdão de 17-01-2007, processo n.º 3845/06-3ª - a especial censurabilidade repercute um mais acentuado desvalor do facto; a especial perversidade documente qualidades desvaliosas na personalidade do agente, na sua conformação com o dever-ser conforme ao direito.
Acórdão de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3ª - a especial censurabilidade, referenciada ao juízo de culpa, repercute os casos em que a conduta do agente traduz, ao nível da efectivação do facto, uma forma de realização de modo especialmente desvaliosa; a especial perversidade repercute no facto uma personalidade estrutural particularmente desconformada ao direito, a ela se reserva aquela conduta que espelha qualidades da personalidade de forma especialmente desvaliosa.

Volvendo ao caso concreto.
O acórdão da 1ª instância considerou não preenchidas as agravativas constantes da acusação, integrando a conduta do arguido no artigo 132º, n. 1, do Código Penal, sendo tal condenação, embora não expressa de modo claro, uma condenação por homicídio qualificado atípico, subsunção que mereceu o total apoio da Relação.
Cumpre averiguar se tal enquadramento se mostra correcto, ou se é de desqualificar e proceder a convolação, requalificando o homicídio como simples.


Homicídio qualificado atípico

Teresa Serra, Homicídio Qualificado …, a págs. 75, a propósito de homicídio qualificado atípico, refere que os critérios quanto a afirmação ou não da especial censurabilidade ou perversidade do agente na ausência de qualquer das circunstâncias exemplificadas no nº 2 deverão ser aferidos pelo Leitbild (tipo orientador) dos exemplos padrão.

“A exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado.
Com estas exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico”.
E depois explica, dizendo “… a própria lei encarrega-se de limitar tais hipóteses, ao adoptar, na descrição das diversas circunstâncias do nº 2 do art. 132º, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, para cujo preenchimento podem concorrer inúmeras diversas situações de facto, sem que para isso seja necessário recorrer à aceitação de um caso de homicídio qualificado atípico”, dando como exemplos as circunstâncias previstas nas alíneas b), c) e f). “O que significa que, nestes casos, nos encontramos nos limites de uma interpretação declarativa lata, ou seja, perante circunstâncias inominadas, mas ainda incluídas nos exemplo-padrão respectivos”.
Os exemplos padrão constituem eles próprios expressão de um Leitbild de um tipo ou critério orientador e não um tipo de ilícito
Trata-se de exemplos representativos que não esgotam o conceito que lhes subjaz, podendo, portanto, abranger outros exemplos para além daqueles que o exprimem incompletamente.
Segundo Fernando Silva, loc. cit., págs. 61, “ a não existência de uma das circunstâncias previstas no âmbito do nº 2 do tipo de crime de homicídio qualificado faz suscitar o indício negativo, ou seja, que em princípio o crime não será qualificado, o que apenas será contrariado por situações especiais que nos permitam concluir que a culpa do agente, naquelas circunstâncias em que actuou é igualmente mais grave…”.
E, a págs. 63, após citar o exemplo do acórdão do STJ, de 10-12-1997 (referenciado infra e publicado no BMJ 472, 142), diz julgar admissível que a qualificação da conduta se determine directamente por via do nº 1. «Ou seja, que embora a situação não se enquadre nem directamente, nem por analogia, num dos tipos expressivos venha a revelar um grau de gravidade e de censurabilidade que justifique a qualificação. O que à partida se afigura difícil, face à grande abrangência dos tipos expressivos, e ainda à amplitude que pode ser dada por circunstâncias análogas», não sendo, no entanto, de rejeitar, à partida, essa possibilidade.

A possibilidade de configuração de homicídio qualificado atípico na jurisprudência do STJ

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem defendido a possibilidade de configuração, na ausência de qualquer dos exemplos padrão, como crime de homicídio qualificado atípico, com formulações mais ou menos exigentes.
Assim, no acórdão de 19-06-1996, processo n.º 203/96: na presença de especial censurabilidade ou perversidade está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer daqueles indicadores; outras circunstâncias não indicadas são susceptíveis de revelar aquela especial censurabilidade ou perversidade, podendo ver-se neste sentido, os acórdãos de 11-05-1983, BMJ 327, 458; de 26-11-1986, BMJ 361, 283; de 16-05-2002, processo n.º 1071/02 - 5ª; de 15-12-2005, processo n.º 2978/05 - 5ª (Os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: «entre outras»); de 09-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 212; de 17-01-2007, processo n.º 3845/06-3ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 170; de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª.
Numa outra abordagem, alude-se à insuficiência da vertente qualidade/quantidade dos dados disponíveis para justificar de per si, isoladamente considerados, a integração como indicador ou índice, mas já podendo revelar tal possibilidade, se apreciados em conjunto.
Neste sentido, os acórdãos de 10-10-2002, processo n.º 3577/02; de 30-10-2003, processo n.º 3281/03; de 02-03-2006, processo n.º 472/06; de 21-05-2008, processo n.º 1224/08, todos da 5ª secção e do mesmo relator: “Pode dizer-se que se estará perante um crime de homicídio qualificado quando a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, estando presentes vários indicadores das alíneas do nº 2 do artigo 132º, que no seu conjunto o permitem afirmar, embora, individualmente, cada uma delas não reúna a qualidade/quantidade que justificou a sua inclusão como indicador”.
Numa outra posição mais restritiva, pode ver-se o acórdão de 20-11-2002, processo n.º 2818/02-3ª, em caso em que “real ou imaginada, a situação de infidelidade provocou a diminuição da culpa do agente uxoricida”, referindo-se: «Segundo a doutrina mais exigente, seguida por boa parte da jurisprudência, os exemplos-padrão devem exercer uma função delimitadora dos casos atípicos, daqueles se devendo apreender “não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa”; outras circunstâncias que aí se pretenda enquadrar devem revelar “igualmente um especial grau de gravidade da ilicitude ou da culpa”, sob pena de deixar o julgador sem critério de valoração, com o risco de caminhar para interpretações de tipo analógico».
E no acórdão de 15-05-2002, processo n.º 1214/02-3ª, expende-se: os exemplos enumerados nas diversas alíneas do nº 2 do art. 132º não são esgotantes, isto é, taxativos, no sentido de que a lista de sintomas pode ser alargada, por forma a abranger outras situações denunciadoras de igual grau de culpa, sem que o alargamento, porém, seja tão expansivo que se não afeiçoe de algum modo a um certo denominador comum que preside àquela enumeração legal, sob pena de se cair numa analogia perigosa e contrária ao princípio “nullum crimen sine lege”.
Nos acórdãos de 21-06-2006, nos processos n.ºs 1913/06 e 1559/06 da 3ª secção, diz-se: “Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza”. Adianta-se ainda: “Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor da atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado”.
Seguindo o expendido por Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense, pág. 28, afirma-se nestes dois acórdãos e ainda no de 13-07-2005, processo n.º 1843/05-3ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 251, versando aqui caso de ofensas à integridade física agravada, então p. p. pelo artigo 146º do Código Penal, e nos de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173 e de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3ª, todos do mesmo relator: “O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa – através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto ou de uma situação valorativamente análoga»”.
Noutra abordagem ainda, têm-se em conta as referidas posições de Figueiredo Dias citadas - fls. 28 do Comentário - e ainda de Teresa Serra e de Curado Neves, nos lugares citados, como ocorre com os acórdãos de 16-06-2005, processo n.º 553/05; de 23-06-2005, processo n.º 1301/05; de 07-07-2005, processo n.º 1670/05 e de 13-07-2005, processo n.º 1833/05, todos da 5ª secção e do mesmo relator, sendo este último publicado na CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 244, onde se diz que o crime de homicídio qualificado é definido a partir da enunciação de uma cláusula geral - especial censurabilidade ou perversidade - contida no n.º 1 do preceito e concretizada ou desenvolvida no n.º 2 através de exemplos-padrão. Esses dois critérios - um generalizador e outro especializador - são complementares e têm mútua implicação, podendo a partir deles sintetizar-se a estrutura do tipo agravado do seguinte modo: ocorre homicídio qualificado, sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no n.º 2, ou, tendo estes uma natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, qualquer outra circunstância substancialmente análoga, referindo-se que com esta formulação dual pretende assinalar-se a interacção recíproca que intercede entre o critério generalizador e os exemplos-padrão.
Não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem, por si só, ao preenchimento do tipo de culpa agravado.
Exige-se que essa atitude ou aspectos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. Seria violar a legalidade «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de por isso comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132º ou de uma situação valorativamente análoga»”.
Refere ainda o acórdão de 13-07-2005, no processo 1833/05-5ª, acolhendo a ideia expressa no ensaio de Curado Neves, não poder autonomizar-se o n.º 1 em relação ao n.º 2, de modo a, prescindindo dos exemplos-padrão ou circunstâncias valorativamente análogas, se criarem ad libitum tipos qualificados de crime de homicídio.
Ainda no mesmo sentido, cfr., os acórdãos de 13-07-2006, processo n.º 1926/06-5ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 244, aqui sintetizando: “Em última análise, o que vem a conferir ao tipo qualificado características de tipo de culpa é o facto de ser sempre decisivo que da actuação do arguido, preenchendo uma qualquer circunstância coincidente com a do exemplo-padrão ou circunstância de estrutura análoga, resulte uma especial censurabilidade ou perversidade, pois se, não obstante ocorrer uma circunstância do tipo aludido, se não verificar aquela, a realização do tipo qualificado tem-se por excluída”; e de 29-05-2008, processo n.º 827/08 - 5ª, e de 03-07-2008, processo n.º 1226/08 -5ª, ainda do mesmo relator dos precedentes; de 15-05-2008, processo n.º 3979/07 - 5ª; de 19-06-2008, processo n.º 2043/08 - 5ª.
Com aplicações destes princípios podem ver-se ainda os acórdãos de 10-07-2008, processo n.º 1785/08; de 12-11-2008, processo n.º 2826/08; de 26-11-2008, processo n.º 3706/08, todos da 3ª secção.

Passar-se-á a indicar agora acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça em que a conduta homicida foi integrada como crime de homicídio agravado atípico, nos termos do n.º 1 do artigo 132º do Código Penal.

Acórdão de 08-04-1987, publicado no BMJ 366, 280 (caso do Barreiro) - Colocando em dúvida, e por isso afastando, a verificação da circunstância “frieza de ânimo”, considerou-se revelarem especial censurabilidade ou perversidade do agente as circunstâncias de frieza e ausência de sentimentos demonstrados pelo réu, bem como a insistência em tirar a vida à vítima, apertando-lhe violentamente o pescoço por duas vezes, estando tais circunstâncias abrangidas na fórmula exemplificativa «entre outras» do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, atendíveis, por as circunstâncias qualificativas a que alude este preceito não serem elementos do tipo, mas sim da culpa.
Augusto Silva Dias, ob. cit., a págs. 27/8, citando este acórdão refere que a orientação nele seguida não deve ser aceite por duas ordens de motivos que explicita, finalizando: “O facto de a norma de sanção ter como destinatário o juiz não significa que a imputação se transforme de súbito num jogo sem regras, no qual o espaço de manobra do juiz é total e o arguido se encontra despido de qualquer protecção”.
A este respeito dir-se-á que o enquadramento jurídico criminal, e não só, não é um jogo, e muito menos um jogo sem regras, pois os juízes, únicos destinatários de normas de sanção, porque aplicadores únicos das mesmas, autores únicos do dizer o direito no concreto do dia a dia, no espaço de exercício dos poderes, mesmo que vinculados, que a lei lhes confere, ponderam aquilo que julgam ser, adentro do quadro concreto a apreciar caso a caso e considerando as várias soluções jurídicas plausíveis, a melhor, a mais adequada e justa solução do caso, não se esquecendo da aplicação de princípios básicos, como o princípio do acusatório, do contraditório, da vinculação temática, da descoberta da verdade material, in dubio pro reo e da presunção de inocência, dos princípios da necessidade, da proporcionalidade, da adequação das penas, da proibição do excesso, da proibição da reformatio in pejus, da injunção da imprescindível fundamentação, e do que é mais, dos ditames de uma das regras maiores neste conspecto, a observância do bom senso.

Acórdão de 22-03-1989, Tribuna da Justiça, n.ºs 4-5, Junho/Setembro de 1990, págs. 284/291.
Considerando-se qualificada a tentativa de homicídio pelas alíneas c) e f) do nº 2 do artigo 132º (motivo fútil e meio insidioso - uso de arma), é tida em conta outra qualificação nestes termos: “Como repetidamente tem sido decidido e expendido, a especial censurabilidade ou perversidade que está na base da qualificação do art. 132º do Código Penal pode ser aferida independentemente das circunstâncias previstas no nº 2 desse artigo, que são somente índices de censurabilidade ou perversidade. E esta censurabilidade ou perversidade patenteia-se no caso sub judicibus também através de outros índices reveladores, maxime através do modo traiçoeiro como as facadas foram desferidas, como é qualquer ataque pelas costas”.

Acórdão de 03-04-1991, BMJ 406, 314 e Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 2, pág. 15 – Uxoricídio
Considerada a integração do crime do artigo 132º, nº 1, do C. Penal, conferindo-se relevância a outras circunstâncias, para além das exemplificativamente enunciadas no nº 2, que se podem integrar no nº 1, por serem conducentes a um juízo de censurabilidade e (ou) de perversidade.
Em todos os casos de qualificação do crime de homicídio, impõe-se uma análise das circunstâncias que o rodearam e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura.
Considera-se ser merecedor de intensa reprovação o facto de a vítima de homicídio ser mulher do agente que, ao matá-la, violou gravemente o dever de respeito e de cooperação que a lei lhe impõe (artigos 1672º e 1674º do Código Civil), não se descortinando por parte daquela qualquer atitude que, mínima e humanamente, permita compreender a sua brutal atitude.

Acórdão de 26-06-1991, processo n.º 41910, AJ, nº 20 – Homicídio de companheira
“Comete o crime de homicídio qualificado, o arguido que não hesita em matar a mulher com quem vivia, no lugar de esposa, há mais de 20 anos. Essa convivência, como marido e mulher, deveria ter-lhe criado o sentimento de a proteger, de a amparar, de a tratar com carinho e não de lhe tirar a vida, por suspeitas, aliás, infundadas, de infidelidade. Apenas uma personalidade mal formada, perigosa e perversa procede desta forma, alheia ao respeito que os mais próximos lhe devem merecer”.

Acórdão de 07-05-1992, BMJ 417, 297
Considera-se, após afastar o exemplo-padrão motivo fútil, que a especial censurabilidade resulta do número e diversidade dos instrumentos utilizados, da persistência da acção criminosa, do grau de parentesco do arguido em relação à vítima (sobrinho /tia) e do facto de esta o haver recebido em casa a pedido dele.

Acórdão de 09-11-1994, BMJ 441, 36 e CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 239 - Subsumiu a conduta provada na cláusula geral, entendendo o homicídio qualificado apenas nos termos do nº 1 do artigo 132º.
Aí se expende: “pode julgar-se o crime qualificado, ainda que não provado qualquer dos exemplos padrão enunciados no artigo 132º do Código Penal, desde que os restantes factos provados revelem especial censurabilidade ou perversidade.
O julgador (…) pode decidir-se pela qualificação, mesmo que os factos concretos o não autorizem a concluir pela verificação de circunstâncias subsumíveis nos “exemplos tipo”.
Bastará, para tanto, que a particular conformação dos factos possa caber na cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade. Não é por acaso que no artigo 132º se contem a frase «se a morte for causada em circunstâncias que revelem…», que não pode deixar de apontar para qualquer circunstância permissiva dessa «revelação», ainda que não conste do elenco dos exemplos padrão!

Um breve parêntesis.

Teresa Serra, em Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 30-10-1995 a 02-05-1996), edição do CEJ, 1998, Volume II, a págs. 137 a 179 (neste particular págs. 155/6), cita os acórdãos de 3 de Abril de 1991 e de 9 de Novembro de 1994, como manifestações de uma tendência liberal inadmissível da jurisprudência (ao invés da tendência para uma interpretação restritiva do artigo 132º preconizada pela doutrina), na esteira de tomadas de posição da Escola de Coimbra mal compreendidas, situando-as nas intervenções de Eduardo Correia nas Actas de 1979 e do referido Parecer de Figueiredo Dias, de 1987, publicado na Colectânea, manifestando a autora o seu desacordo relativamente às conclusões retiradas pela jurisprudência, as quais – salienta - lhe merecem as maiores reservas e apontando para uma correcta delimitação do âmbito dos dois números do artigo 132º, repetindo a argumentação de 1990.
Explicita a fls.157: «A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente tem de limitar-se aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplos-padrão enunciados no nº 2.
De acordo com esta interpretação, a decisão do juiz é ainda uma decisão vinculada. Caso contrário, o juiz deixará de ter critérios seguros na sua decisão, e esta passa a ser discricionária: se não se guiar pelos exemplos-padrão previstos no nº 2, o juiz tenderá a guiar-se pelos seus próprios critérios do que seja censurabilidade ou perversidade» - cfr. supra o referido relativamente ao princípio da tipicidade/legalidade.

Prosseguindo com outros casos de homicídio qualificado atípico.

Acórdão de 10-12-1997, processo 1207/97-3ª, in BMJ 472, 142 (referenciado por Fernando Silva, loc. cit., pág. 63 - cfr. supra).
Neste caso, considerou-se ter-se o arguido constituído autor material de um crime de homicídio, p. p. pelo artigo 132º, nº 1, do C. Penal.
Fez-se suscitar o indício não a partir de nenhuma alínea em concreto, mas a partir do espírito global presente no n.º 2, atendendo à personalidade manifestada pelo agente, esgotando-se a hipótese de enquadrar concretamente a conduta em alguma das circunstâncias objectivamente previstas, maxime, a de meio insidioso, justificando-se o enquadramento no artigo 132º, nº 1, do C. Penal, por poderem outras circunstâncias, diversas das descritas nas diversas alíneas do nº 2, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas.
Ponderou-se então: “O circunstancialismo provado de o arguido ter continuado a desferir golpes na vítima depois de esta ter caído ao chão e, indiferente aos seus gritos e gemidos de dor, haver-se colocado em cima dela, sentando-se sobre as pernas e continuando a anavalhá-la pelas costas, traduz, só por si, um acentuadíssimo desvalor da personalidade do agente concretizada no facto, suficientemente caracterizador de especial perversidade e significante de um grau de gravidade equivalente à estrutura valorativa do Leitbild dos exemplos padrão plasmados no nº 2 do artigo 132º do Código Penal”.

Acórdão de 09-02-2000, BMJ 494, 207
Considerado integrado o crime de homicídio qualificado, p. p. pelo artigo 132º, nº 1, do Código Penal, com a seguinte justificação: “Os factos …, não substanciando frieza de ânimo, revelam completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida do semelhante, o que tanto basta para firmar a especial censurabilidade, por serem meramente exemplificativas as circunstâncias que a lei indica nas diversas alíneas do nº 2, a permitirem fundá-la”.

Acórdão de 28-02-2002, processo n.º 226/02-5ª – Uxoricídio
Após afastamento dos possíveis exemplos regra (meio particularmente perigoso e insidioso e frieza de ânimo) considera-se a configuração de homicídio agravado atípico tendo em conta uma realização do facto de forma especialmente desvaliosa, integrando-se a conduta no nº 1 do artigo 132º do C. Penal.

Acórdão de 26-06-2002, processo n.º 1868/02 - 3ª.
Em caso de tentativa de homicídio da mulher por parte do marido, é mantida a incriminação pelo artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal, entendendo-se que perante as circunstâncias apuradas, nomeadamente, o facto de o arguido encostar o cano do revólver à boca da ofendida sua mulher, com a intenção de lhe tirar a vida, no decorrer de uma discussão, e de haver disparado um tiro - quando a ofendida tinha ao colo uma filha de ambos, com 20 meses de idade – e os factos que se seguiram (a assistente pediu ao arguido para a socorrer, mas só passado algum tempo e depois de aquela lhe prometer que não relataria o que se havia passado, porque “senão para a próxima não errava” é que a conduziu ao Centro de Saúde), conferem à conduta do arguido uma especial censurabilidade.

Acórdão de 03-10-2002, processo n.º 2709/02 - 5ª, com o mesmo relator do anterior.
O acórdão visou um caso de “qualificação atípica” assente numa atípica “especial censurabilidade ou perversidade” retirada do quadro de facto tido no seu conjunto: « (…) se é certo que as agravantes típicas constantes dos “exemplos padrão” se não mostram verificados, como abundantemente demonstrou o tribunal recorrido, tal não impede que, não obstante, o homicídio possa ser qualificado. Basta que se configure em concreto uma especial censurabilidade ou perversidade”.
A conduta do arguido, dirigida a um filho, foi integrada como homicídio agravado atípico, sob a forma de tentativa, p. p. nos artigos 22º, 23º, 131º e no nº 1 do artigo 132º do Código Penal.

Acórdão de 30-10-2003, processo n.º 3252/03 - 5ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208, com o mesmo relator dos dois anteriores – Uxoricídio.
Versou igualmente um caso de homicídio qualificado atípico, concretamente de uxoricídio, e afirmando: afastados do caso os possíveis exemplos padrão de agravamento ou qualificação, não fica afastada a possibilidade de qualificação do homicídio, caso a realização do facto de forma especialmente desvaliosa, revele especial perversidade ou censurabilidade do agente.

Acórdão de 29-03-2007, processo n.º 647/07-5ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 238, sendo relator por vencimento o mesmo dos acórdãos de 28-02-2002, de 03-10-2002 e de 30-10-2003 supra referidos, estando em causa crime cometido contra a pessoa com quem o arguido vivia em comunhão de vida, em situação análoga à dos cônjuges, há cerca de 25 anos, considera-se não ser descabido considerar, nas apontadas circunstâncias, de ilicitude extrema, em que foi negada qualquer possibilidade de defesa por parte da vítima, o homicídio agravado, tendo em conta, no caso, uma realização do facto como ficou descrito, de forma especialmente desvaliosa, numa palavra, especialmente censurável, entendendo-se como integrado crime de homicídio agravado, p. p. nos artigos 131º e 132º, nº 1, do Código Penal, repondo-se a decisão da primeira instância.

Acórdão de 10-10-2007, processo n.º 3315/07-3ª, não estando em discussão a qualificação do crime como tentativa de homicídio qualificado, foi considerado acertado o tratamento jurídico da conduta dado pela 1ª instância e homologado pela Relação, por se mostrar preenchido não qualquer dos exemplos padrão enunciados no nº 2 do artigo 132º do Código Penal, mas um condicionalismo portador, em globo, de especial censurabilidade e perversidade, aquele marcado pela dissociação de actuação havida como padrão normal; o crime foi cometido em condições de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal, de acordo com os valores comunitariamente reinantes, com previsão na cláusula genérica de agravação prevista no nº 1, arredando o específico e exemplificativo exemplo padrão do motivo fútil, de que resulta uma imagem global do facto agravada.

Acórdão de 13-02-2008, processo n.º 4729/07 - 3ª, em que interviemos.
No caso é confirmada a qualificação feita pelas instâncias, integrando a conduta do condenado no artigo 132º, n.º 1, do Código Penal, em situação concreta em que releva o modo de execução, com o arguido a dar murros e pontapés na cabeça da ex-namorada, e então amiga que se deslocara a sua casa, arrancando-lhe vários tufos de cabelo, esganando-a com as próprias mãos, projectando álcool etílico sobre ela, ateando-lhe fogo quando ainda estava viva, determinando a violência dos golpes grande jorro de sangue, tudo revelador de uma enorme brutalidade, uma enorme crueldade para com a vítima e a denotar especial censurabilidade e perversidade.

Acórdão de 05-03-2008, processo n.º 210/08 - 3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243.
No caso a qualificação emergiu de três eixos essenciais: a vítima estar embriagada, ter o arguido espetado a forquilha três vezes e, já com a vítima no chão, ter desferido pancadas na cabeça e espetado a forquilha em várias partes do corpo e posteriormente ter procedido de forma a desfazer-se do corpo, relevando a persistência do arguido e a utilização repetida do instrumento do crime na concretização do homicídio, o que constitui um indício de um especial desvalor da acção.

Acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4730/07, relatado pelo relator do presente.
Caso em que o arguido, na cozinha da residência do casal, mata a mulher, disparando à distância de um metro um tiro de caçadeira dirigido às pernas, fazendo tombar a vítima e recarregando a arma e estando a mulher prostrada, ensanguentada, cerca de 3 ou 4 minutos após, dispara outro tiro, dirigido ao mesmo alvo, deixando-a a agonizar, tendo uma filha de 13 anos presenciado o primeiro disparo e acorrido logo na sequência do segundo tiro.


Noutros casos a hipótese de enquadramento no homicídio qualificado atípico é considerada, mas afastado no concreto este tipo de qualificação.

Acórdão de 27-05-2004, processo n.º1389/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 204.
Em caso de uxoricídio é afastada a qualificação atípica efectuada na primeira instância e corroborada pela Relação.
Fundamenta-se a opção nestes termos: “O recurso à figura jurídica do homicídio qualificado atípico, isto é, a sua qualificação sem recurso a nenhuma das agravantes padrão previstas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º do C. Penal deve ser feito ou levado a cabo com alguma parcimónia”, afastando-se no caso concreto a configuração da especial censurabilidade ou perversidade por actuar o arguido movido por motivos relacionados com a desconfiança da fidelidade da mulher.

Acórdão de 15-02-2007, no processo n.º 15/07-5ª, no voto de vencido do relator em que, na sequência do decidido nos acórdãos de 10-10-2002, processo n.º 2577/02, de 14-11-2002, processo n.º 3316/02, de 30-10-2003, processo n.º 3281/03 e de 15-12-2005, processo n.º 2978/05, todos da 5ª secção, expende que a especial censurabilidade ou perversidade constitui a matriz da agravação, por forma a que sem ela, esta não ocorre, e o critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador e que ao lado desse critério, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei “ é susceptível” (1ª parte do corpo do nº 2). Mas os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador “entre outras” no segmento final do corpo do nº 2. De concluir, pois, que nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do nº 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, que esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o nº 1; mas que na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer destes indicadores.
No caso considera que determinadas circunstâncias verificadas no concreto, mesmo que não enquadráveis em nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 132º, preencheriam os requisitos do nº 1, pelo que manteria a qualificação.

Acórdão de 24-05-2007, processo n.º 1602/07 - 5ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 206, com o mesmo relator dos acórdãos, supra citados, de 28-02-2002, de 03-10-2002, de 30-10-2003 (n.º 3252/03), de 27-05-2004 e de 29-03-2007.
Em caso de uxoricídio, é revogado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que configurara homicídio qualificado atípico, com consequente reposição do decidido em 1ª instância, por considerar que no caso concreto as circunstâncias de ilicitude e culpa encontram no tipo comum todos os elementos de valoração e por o arguido ter sido substancialmente atingido ao menos na honra por comportamentos censuráveis da vítima (insultos com que se sentia humilhado), afastando-se o quadro de uma actuação inteiramente «a frio».

Acórdão de 03-07-2008, processo n.º 301/08 - 5ª.
Em causa situação em que a morte por asfixia, na sequência de agressão iniciada de surpresa, dificultando à vítima a possibilidade de defesa, não podendo ser tida como análoga à do exemplo padrão da alínea b), não mostrando o arguido uma grande persistência na intenção de matar, nem se tendo provado que a morte foi levada a cabo com o objectivo de facilitar a apropriação dos bens e dinheiro da vítima, entende-se que não atinge o especial grau de censurabilidade ou perversidade que o legislador considerou inerente ao homicídio qualificado.
O afastamento é justificado nestes termos: «Os exemplos-padrão têm uma função delimitadora dos casos atípicos, deles se devendo apreender “não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa”(Ac. de 15-05-2002, processo n.º 1214/02-3ª). Por poder afectar o princípio da legalidade, não se permita, o “apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplo-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto ou de uma situação valorativamente análoga” (Ac. de 13-07-2005, processo n.º 1833/05-5ª).

Acórdão de 23-10-2008, processo n.º 2856/08-5ª, seguindo-se o entendimento, expresso, v.g., no acórdão de 27 de Maio de 2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 204, supra referido, de que o homicídio qualificado atípico «há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, “é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados (…)”» e considerando-se que o tipo especial de culpa, característico do homicídio qualificado, não se define pela negativa, entendendo-se que no crime base o agente manifesta quase sempre profundo desprezo pela vida humana, o homicídio qualificado há-de ter algo que se deva acrescentar à culpa (existente) já intensa, que a torne especialmente censurável.

Retomando o caso concreto.

Há que avaliar a conduta global do recorrente com vista a perscrutar uma especial censurabilidade da sua culpa - acórdãos de 03-04-1991, CJ1991, tomo 2, pág. 15 e BMJ 406, 314; de 18-10-1991, BMJ 410, 367; de 27-09-00, BMJ 499,122 e CJSTJ2000, tomo 3, pág. 179; a imagem global do facto, a que alude Figueiredo Dias, in Comentário…, pág. 26; a ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto, na expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado …, pág. 63: a ponderação final da atitude do agente, como refere Augusto Dias, loc. cit., pág. 29.

Já a decisão proferida na 1ª instância deu por justificada a integração da conduta no artigo 132º, n.º 1, do Código Penal.
Após fazer um excurso sobre o homicídio qualificado, seguindo de muito perto e transcrevendo o acórdão deste Supremo Tribunal, de 30-03-2006, processo n.º 783/06, publicado na CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 229, embora sem o citar, diz o seguinte:
«No caso dos autos há uma especial censurabilidade e a mesma existe não pelas razões directamente apontadas na qualificação jurídica do Ministério Público.
Na verdade, o arguido vem acusado da prática de homicídio qualificado por existir uma premeditação da sua parte mas na verdade não se logrou provar que assim seja, ou seja, não logrou o Ministério Público provar que o arguido persistiu na vontade de matar por mais de 24 horas. De igual sorte não se logrou a prova de que o arguido tenha agido determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil.
A única situação que poderia minimamente se enquadrar na alínea seria o arguido ter morto a vítima levado por motivo torpe ou fútil.
Ora, o que se apurou foi que o arguido e a vítima discutiram sobre a forma como o seu nível de vida diminuiu e que na sequência da discussão ou imediatamente a seguir à mesma o arguido matou a vítima. O que não se apurou foi o concreto motivo pelo que não nos é possível qualificar o motivo que levou o arguido a agir de torpe ou fútil pois que não sabemos sequer o que é que fez o arguido agir, o que é que, por assim dizer, fez transbordar o copo».
E após afastar as duas circunstâncias vertidas na acusação, explicita:
«No entanto, como referimos não é necessário o preenchimento objectivo de nenhuma das alíneas do n° 2 do art° 132° do Código Penal para que se possa qualificar o crime. Basta apenas e tão só que a acção do agente seja em si especialmente censurável ou perversa.
Ora, é nosso entendimento que a conduta do arguido preenche estes critérios porquanto não só a acção é levada a cabo sobre a pessoa da sua mulher, pessoa perante a qual, por via do casamento, tinha um especial dever de protecção (o casamento nascem deveres entre os quais avultam os deveres de respeito e assistência (art° 1672° do C.C.).
Ora, o que torna especialmente censurável e perversa a conduta do arguido não é apenas o facto de ter agido contra a mulher mas sim o de ter agido contra esta sendo ela quem era da forma que o fez, na sequência de uma discussão inconsequente usando um machado, agredindo, ora com a lâmina, ora com a cabeça do machado, agredindo repetidamente contra uma pessoa sem armas e agindo sempre e até mesmo quando a vítima já não reagia.
Cometeu assim o crime de homicídio qualificado.
Face à Lei actualmente vigente o crime continuaria qualificado atento o disposto no art° 132° n° 2 al. b) do Código Penal».

Sobre este aspecto assim discorreu o acórdão recorrido, a fls. 810 e 811:
«Entendeu o tribunal “a quo” não se verificarem as circunstâncias qualificativas referidas na acusação, mas que, em termos gerais, o conjugicídio, já no domínio de vigência da citada Lei 65/98 de 2 de Setembro, revela especial censurabilidade ou perversidade, mercê dos deveres legais de protecção e entre-ajuda entre os cônjuges.
Vejamos.
Como escreve o emérito Prof. Doutor Figueiredo Dias, apud Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 25 e segs, cuja lição aqui acolhemos, a agravação do crime de homicídio qualificado do art. 132º, n.º 1 e 2, do Código Penal, tem a ver com a forma de cometimento do crime aliada com a especial censurabilidade ou perversidade do agente, dando uma imagem global do facto agravada resultante da agravação da culpa suportada por (ou reflectida necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual quantitativa) do conteúdo do ilícito, a fixar pela jurisprudência casuisticamente.
Acolhemos no caso “sub judice” a incriminação do falado conjugicídio, dada pelo tribunal “a quo”, no art. 132. n.º 1, do Código penal, porquanto o cometimento desse crime com várias machadadas desferidas pelo recorrente AA no corpo e cabeça da vítima sua mulher DD, mesmo depois desta ter caído no chão como resultado dessas agressões, revela uma insensibilidade atroz e especial perversidade e censurabilidade do agente».

Relevo da relação conjugal

Resulta do exposto que as instâncias tiveram em conta na subsunção feita, por um lado, a relação conjugal existente entre agressor e vítima, e por outro, o modo de execução com a repetição das machadadas.

Um caso especialmente grave pode ser admitido como incluso no critério orientador ou cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade quando a gravidade do facto equivalha à gravidade dos casos mencionados nos exemplos típicos, devendo o julgador orientar-se a partir dos sinais fornecidos na exemplificação da norma constante de cada alínea, ou seja, perspectivar os factos através das diversas alíneas do nº 2) do artigo 132º e, através da ponderação do pleno das circunstâncias enformadoras do facto e da personalidade do agente, definida que seja a imagem global do facto, averiguar e avaliar se se está ou não perante um especial e acentuado desvalor de atitude, que se encontra dentro das fronteiras marcadas pela estrutura de sentido que modela o exemplo, ou se o caso se reconduz a uma situação análoga, paralela ou equivalente, se estamos perante circunstâncias de estrutura análoga, que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de um dos exemplos padrão, que marquem uma diferença, distanciamento e dissociação, relativamente ao padrão normal de actuação, ao tipo matriz, no sentido de um maior ou acentuado desvalor de atitude, na forma de especial censurabilidade ou perversidade e que possa, por isso, ser valorada em termos de conformar especial juízo de censura e especial tipo de culpa, agravada.

Vejamos do acerto da chamada à colação da “relação conjugal” feita pelo Colectivo de Torres Vedras e que mereceu o beneplácito da Relação, tendo-se por certo que apenas nos podemos mover no quadro da versão do artigo 132º do Código Penal dada pela Lei n.º 65/98, vigente à data dos factos.
Assim poderá fazer-se uma aproximação à única alínea – alínea a) - onde se poderá descortinar alguma possibilidade de integração daquela situação, por razões de proximidade, por poder revelar maior afinidade com o caso concreto, ou por outras palavras, procurar ver se face a uma situação em que esteja em causa relação conjugal é possível uma passagem pelo crivo de tal exemplo típico – circunstância de o agente “ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima” - por, no caso que nos ocupa, se tratar de um uxoricídio, estando em causa, pois, uma relação familiar em sentido amplo, ultrapassando o parentesco biológico ou natural.
Neste contexto, não seria de arredar hipótese de aproximação unicamente na base de não verificação de critérios de “jus sanguini”, uma vez que os mesmos, decididamente, não estão presentes no plano da relação adoptiva, o que significa que a razão de exclusão de integração no exemplo indiciador não se poderia ficar por este tipo de argumento.
No que respeita à integração directa da relação conjugal neste exemplo, a tarefa não logrará êxito, atento o “jus constituto” vigente à época, tratando-se de questão que suscitou controvérsia, sendo a resposta, no geral, negativa.
Na jurisprudência entendeu-se ser possível integrar a relação conjugal nesta alínea no acórdão do STJ, de 11-11-1993, BMJ 431, 214, com o argumento de que sendo o casamento uma fonte de relações familiares (artigo 1576º do Código Civil) e sendo tão fortes os laços jurídicos, morais, e sentimentais da união conjugal, que se compreende, sem dúvida de peso, que o uxoricídio possa igualmente ser punido, em abstracto, não pelo artigo 131º, mas em conformidade com a agravação do disposto no artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal (no caso reapreciado acabou por manter-se a condenação do arguido por homicídio simples, porque assim fora acusado e condenado na primeira instância).
No sentido de integração dessa relação de forma assumida no âmbito do exemplo-padrão da alínea a), veja-se o supra referido acórdão de 03-04-1991, CJ 1991, tomo 2, pág.15 e BMJ 406, 314.
De igual modo, no acórdão de 25-09-1997, BMJ, 469, 359, onde se ponderou que “embora se não possa aplicar directamente aqui a circunstância da alínea a) do artigo 132º do Código Penal, a verdade é que a enumeração deste normativo é meramente exemplificativa, como se infere da expressão “entre outras”, não podendo, pois, deixar de pesar, e gravemente, o facto de a vítima ser mulher do arguido e mãe dos seus filhos”.
Em sentido diverso, veja-se o acórdão do STJ de 19-06-2008, processo n.º 438/08-5ª, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 258, confirmando acórdão da Relação de Coimbra de 11-07-2007, que alterou a qualificação da 1ª instância, convolando para simples o homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 132º e 132º n.º 2, alínea d), concorrendo a circunstância qualificativa traduzida em o agente ser cônjuge da vítima, por correspondência de estrutura valorativa à alínea a) do mesmo n.º 2.
Fernando Silva, na 1ª edição da obra citada, de 2005, a págs. 65, - cfr. nota 45 a págs. 68 e pág. 69 da edição de 2008 - defendia que a relação entre cônjuges ficara de fora deste âmbito, sendo substancialmente diferente da prevista e duvidoso de que a mesma se pudesse integrar no âmbito do espírito do legislador, embora pudesse em determinados casos ser incluída no âmbito do art. 132º, mas carecendo de outra justificação e fundamentação, dando como exemplo o acabado de citar acórdão de 3 de Abril de 1991 (cfr. supra menção mais detalhada a este acórdão).
Augusto Silva Dias, loc. cit., a págs. 26, considera o conjugicídio, como de resto ocorre com o fratricídio, fora da estrutura de sentido e do concreto conteúdo de desvalor do exemplo - padrão, sendo ambos «candidatos negativos» à alínea a).
Como se referiu supra, a relação conjugal, actualmente, integra um novo exemplo típico (o duodécimo, por ordem de consagração) na previsão da alínea b), mas a considerar obviamente apenas para futuro.
No nosso caso, entende-se não caber o mesmo na alínea a), sendo a consideração da relação conjugal existente entre arguido e vítima, reportada ao concreto tempo da acção e ao quadro legislativo existente, um outro sintoma, uma circunstância paralela, uma situação análoga, um índice com estrutura valorativa semelhante ou aproximada ao previsto, que poderá contribuir, analisada no contexto de uma visão global do caso, e em conjugação com outros elementos, para avaliação da questão de saber se se estará perante, ou não, uma situação análoga demonstrativa ou indiciatória da existência/presença de uma especial censurabilidade ou perversidade, ou face tão só a matéria a ter em conta ao nível da dosimetria da pena.

Vejamos o que consta da matéria de facto provada.
O arguido era casado com a vítima desde Setembro de 2004, tendo convivido maritalmente um com o outro desde 1996, tendo então cada um, dois filhos de anteriores casamentos, e tendo tido um filho comum, nascido em 4 de Abril de 1998, que à data dos factos tinha 8 anos de idade.
Nos últimos meses a relação começou a degradar-se, mormente, a partir de Abril/Maio de 2006, altura em que o arguido iniciou uma relação extra conjugal, manifestando a intenção de divorciar-se.
Pouco tempo após é a mulher que enceta relação extra matrimonial e comunica ao marido o propósito de se divorciar.
A situação agravou-se, sendo frequentes as discussões e agressões, que não tinham um sentido só, degradando-se a relação ao ponto de o menor ter sido institucionalizado em Setembro, ficando de seguida aos cuidados da irmã mais velha.
Tendo o arguido arranjado um novo emprego como caseiro, a mulher acaba por ir com ele, encetando o arguido nova ocupação profissional em 2 de Dezembro de 2006.
Dois dias depois, após uma acesa discussão relativa à situação actual em confronto com a anterior, o arguido muniu-se de um machado, com o qual agrediu na cabeça por várias vezes a mulher, causando várias fracturas com afundamento ósseo, sem que aquela tivesse tido hipótese de se defender ou de fugir.

Face a este quadro factual, na análise a efectuar há que ter em atenção o modo de actuação do arguido e o reflexo da sua personalidade na conduta levada a cabo.
A não integração na alínea a) do n.º 2 do artigo 132º não impede que se tenha em consideração que sendo a vítima esposa do arguido, este violou o dever especial de não cometer o facto, por vinculado aos deveres conjugais, maxime, os de respeito e de cooperação (este traduzido na obrigação de socorro e auxílio mútuos) - artigos 1672º e 1674º do Código Civil.
A conduta do arguido traduz uma marca visível de sinal contrário aos deveres específicos emergentes da relação legal de igualdade de direitos e deveres para ambos os cônjuges consagrados na Constituição de 1976, tendo o Decreto-Lei nº 496/77, de 25-11, entrado em vigor em 01-04-1978, dado cumprimento ao imperativo constitucional dimanante do disposto no artigo 293º, nº 3, da CRP, dando satisfação aos princípios constitucionais que impõem a plena igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges.
Embora situada num outro plano de apreciação, não será despiciendo de todo, segundo nos parece, fazer uma aproximação com situação em que ocorre violação desses deveres, embora com outras consequências, por estar em causa a tutela da integridade pessoal do cônjuge, ou seja, com o crime de maus tratos conjugais.
No caso em apreciação ocorre até que o arguido foi igualmente condenado pela prática de tal crime.
Como se extrai do trabalho “Sobre o crime de maus tratos conjugais”, de Maria Manuela Valadão e Silveira, Revista de Direito Penal, volume I, nº 2, ano 2002, UAL, a págs. 34/35, a agravação da medida da pena de ofensas à integridade física simples do tipo incriminador do nº 2 do artigo 152º busca fundamento por conta da qualidade de cônjuge. A agravação é fundada “numa culpa mais pesada. Culpa essa consubstanciada num especial juízo de censura, que a ordem jurídica faz impender sobre o agente, considerando as suas relações de particular proximidade da vítima”.
Por outro lado, a maior gravidade do ilícito, relativamente ao que é descrito no art. 143º, decorre da qualidade de cônjuge e da relação de proximidade da vítima, concluindo que “o fundamento da agravação especial é um fundamento duplo de maior ilicitude do facto e, com isso, da maior culpa espelhada nesse facto”.
No caso presente o arguido tinha, pois, em relação à vítima especiais deveres de se abster de assumir comportamentos violentos, pois aquela era mãe do filho mais novo do arguido, facto que faz acrescer a intensidade dos deveres abstencionistas, sendo a conduta reveladora da especial intensidade da culpa do arguido.
Tratava-se da esposa e da companheira de anos que partilhou com o arguido, em conjunção com o do próprio, o acompanhamento dos filhos que já tinham.
Como refere Fernando Silva, loc. cit., pág. 70, «A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contra motivações acrescidas , manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge. O comportamento do agente que decide matar o seu cônjuge, perante o qual assumiu um especial compromisso que o coloca perante deveres de protecção e proximidade, é merecedor de um juízo de censura agravada».
Poderá eventualmente questionar-se da justeza deste tipo de considerações a propósito de violação de deveres conjugais, num quadro relacional em que a degradação completa se aproxima.
Cremos que tais considerações serão de manter enquanto permanecer a vinculação ao casamento, sendo um sinal nesse sentido o facto de o legislador de 2007, aqui invocado apenas como achega interpretativa, ter colocado no patamar da configuração de cláusula indiciadora, a situação do ex-cônjuge, equiparando-a a cônjuge, o mesmo acontecendo de resto com a relação análoga, abrangendo quem a mantenha e a tenha mantido.
Ademais, será de convocar o facto de, mau grado imperar a deterioração da relação, o arguido e a mulher terem acordado no sentido de esta acompanhar aquele para a Quinta do Alto dos Ais, a fim de refazer a vida comum, vivência que não ultrapassou dois dias.

A utilização pelo arguido de um machado, meio incomum de agressão que deixa à vítima uma margem de defesa reduzida, poderia convocar outra situação padrão, a saber, a da alínea g) na versão de 1998 – actual alínea h) – face a utilização de meio particularmente perigoso, neste sentido se pronunciando a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, sendo certo que a acusação não continha referência a tal circunstância, não abordada nas instâncias, quer nesta perspectiva, quer na de poder configurar, de per si, pelo menos circunstância paralela; neste contexto, o uso do machado apenas será considerado como manifestação de superioridade em razão da arma.

No que respeita ao motivo fútil que constava da acusação, a circunstância foi afastada pelas instâncias, discordando da mesma a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no douto parecer emitido, apontando uma contradição na fundamentação quando de seguida a esse afastamento se afirma que o arguido agiu na sequência de uma discussão inconsequente.
A discussão começou quando o arguido comentou a situação actual do casal, comparando a vivência anterior, em que tinham tido uma vida boa, com a situação degradada em que se encontravam agora, a tratar de animais, em consequência de terem deixado tudo devido às agressões e ao consumo de drogas da mulher, sendo tais palavras que levaram a acesa discussão, sendo então que o arguido empunhou o machado.
Não se tratou apenas de uma discussão inconsequente, mas de mais uma discussão em que uma vez mais se manifestavam as suas contradições e reacendia a conflitualidade que vinha de algum tempo; não se tratou de uma discussão acidental, esporádica, mas antes de verbalização expressiva de conflito que se inseria em todo o processo de desgaste da vida do casal e da vida familiar, levando à dispersão dos filhos, cujo sustento e educação tanto custara nos primeiros tempos.
Terá sido a representação de tudo isso que terá estado na base do transbordar do copo, para utilizar expressão da decisão de Torres Vedras, pelo que não nos parece estar-se face a motivo fútil, sendo certo que discussões inconsequentes terão sido todas as que tiveram, acompanhadas ou não de agressões, por vezes mútuas.

Resta o modo de execução do crime e a persistência na acção.
Resulta evidente a persistência na resolução com vários golpes de machado, evidenciando-se insistência na acção e na consumação, com utilização repetida do instrumento de agressão, sem dar qualquer hipótese de defesa ou fuga.
De ter em conta a zona do corpo atingida – a cabeça sobretudo, para além das mãos e na parte posterior do ombro esquerdo - desferindo o arguido novos golpes quando a mulher já se encontrava caída no chão com a cabeça pendente para a frente, sendo o crime cometido em circunstâncias que revelam brutalidade e grande violência, sendo elucidativas as lesões provocadas.
A actuação do arguido revela completa insensibilidade perante a vítima indefesa, desprotegida, completamente impossibilitada de resistir ao agressor armado, incapaz de se opor e absoluta indiferença e desprezo pelo valor da vida humana, pela integridade física e vida da mulher, pela sua sorte, actuando em manifesta superioridade em razão da arma.
Na apreciação global há que assinalar a firmeza da intenção criminosa, tratando-se de uma acção persistente, denotando conduta implacável, levada a cabo com determinação, não hesitando em suprimir a vida da mulher; a insistência em consumar a morte não deixa de traduzir culpa acrescentada.
A insensibilidade manifestada na execução do crime, a ausência de motivo forte mitigador da culpa, o desvalor da personalidade do recorrente mostram que este revelou na prática do crime um grau de censurabilidade maior do que o juízo de censura subjacente ao homicídio simples.

A conduta provada do arguido, não substanciando nenhuma das situações exemplares enunciadas nas então onze alíneas do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, revela completa insensibilidade e mesmo desprezo pela vida da companheira e esposa de anos, acentuado desvalor da acção e da conduta; com a forma de cometimento do crime no facto estão documentadas qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.
Conclui-se assim estar preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado, p. p. pelo artigo 132º, n.º 1, do Código Penal, sendo de manter a qualificação feita na primeira instância e sufragada no acórdão ora recorrido.

Face a este resultado, arredada fica naturalmente a hipótese de subsunção no tipo de homicídio privilegiado do artigo 133º do Código Penal, aventada pelo recorrente na conclusão 13ª (repetindo a conclusão 29ª do anterior recurso), sem contudo tal pretensão ser ancorada em qualquer fundamento, mínimo que fosse, pois que no texto da motivação nem uma palavra se lançou a tal propósito.
A matéria de facto assente não suporta tal subsunção, pois que o privilegiamento supõe uma acentuada diminuição da culpa assente numa menor exigibilidade expressa em quatro cláusulas redutoras, causas de diminuição da culpa, objectiva e taxativamente previstas, não tendo o arguido agido sob compreensível emoção violenta, ou por desespero, e muito menos, por compaixão ou outro motivo de relevante valor social ou moral.

III. ª Questão - Medida concreta da pena

Como vimos supra, não há que reponderar a pena aplicada pelo crime de maus tratos, o que se fará apenas relativamente ao crime de homicídio qualificado, com naturais reflexos na pena conjunta.
Subsistindo a incriminação do homicídio como qualificado, a moldura penal situa-se entre os 12 e os 25 anos de prisão - artigo 132º, n.º 1, do Código Penal.

No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência dizendo basear-se em posição do Prof. Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20) segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, de que são exemplos os acórdãos de 13-07-1983, BMJ 329, 396; de 15-02-1984, BMJ 334, 274; de 26-04-1984, BMJ 336, 331; de 11-11-1987, BMJ 371, 226; de 19-12-1994, BMJ 342, 233; de 10-01-1987, processo n.º 38627 - 3ª, Tribuna da Justiça, nº 26; de 11-11-1987, BMJ 371, 226; de 11-05-1988, processo n.º 39401 - 3ª, Tribuna da Justiça, nºs 41/42.
Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211.
Posteriormente e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se incorrecta a utilização, na graduação da medida da pena, do ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, o acórdão de 09-06-1993, BMJ 428, 284. Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g., os acórdãos de 21-06-1989, BMJ 388, 245 e de 17-10-1991, BMJ 410, 360.
A refutação daquele critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, nº 6, Junho 1985, págs. 8/9 e Alfredo Gaspar, em anotação ao acórdão de 02-05-1985, in Tribuna da Justiça, nº 7, págs. 11 e 13, dando-se conta em ambos os casos de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o acórdão da Relação de Coimbra de 09-11-1983, CJ 1983, tomo 5, pág. 73.
E no acórdão de 27-02-1991, A. J., nº 15/16, pág. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar.

H. H. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).

A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.

Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40º do CP, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum …, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
Está subjacente ao artigo 40º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.
Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o nº 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375º, nº 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368º, e aquela prevista no artigo 369º, com eventual apelo aos artigos 370º e 371º do CPP).
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.

Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.
Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.

Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, págs. 217/8, defende que a questão da determinação da espécie e da medida da sanção criminal redunda numa verdadeira questão de direito.

Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Ainda de acordo com o mesmo Professor, nas Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena.
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.
Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª.

Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita nos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97-3ª e de 20-05-1998, processo n.º 370/98-3ª, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e BMJ 477, 124, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”.
Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”


Versando o caso concreto.
A este propósito, e no que respeita ao homicídio, assim dissertou a decisão do Colectivo de Torres Vedras:
«Para a fixação da pena o Tribunal considera:
a) o grau de ilicitude da conduta que se reputa (dentro da qualificação operada) de mediana;
b) o dolo directo (sendo irrelevante a sua intensidade pois que a mesma foi elemento integrador da especial censurabilidade da conduta)
c) a ausência de arrependimento;
d) a incapacidade demonstrada de assumir a responsabilidade dos actos;
e) a ausência de motivo relevante para a comissão dos factos;
f) a ausência de antecedentes criminais;
Tudo visto e ponderado, o Tribunal impõe ao arguido, pela comissão deste crime, a pena de 17 anos de prisão.
(…)
Há, pois, que proceder a cúmulo jurídico considerando, no caso concreto, toda a conduta do arguido que maltrata a mulher, que em dado dia decide matar a mulher na sequência de uma discussão sem importância, que a mata, limpa o local, limpa os instrumentos do crime, enterra a mulher, muda de roupa e depois chama as autoridades.
Contra o arguido milita a sua incapacidade de tomar responsabilidade pelos actos que cometeu, de os aceitar e de assumir responsabilidades, demonstrando ser pessoa incapaz de se auto-censurar embora compreenda perfeitamente o alcance dos seus actos. Como atenuante considerar-se-á o facto dos crimes de homicídio e profanação de cadáver terem ocorrido no decurso de uma mesma acção física (embora existindo diversas resoluções criminosas).
O cúmulo tem como limite mínimo 17 anos de prisão e máximo de 19 anos e 9 meses de prisão.
Tudo visto e ponderado, o Tribunal julga adequada a pena de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão».

O acórdão recorrido, a fls. 813 e 814, “tendo em conta a gravidade elevada da ilicitude dos factos, e do dolo directo, e a ausência de antecedentes criminais do arguido”, entendeu por adequadas as penas parcelares aplicadas, “mantendo a pena unitária do cúmulo jurídico em consideração do conjunto dos factos e a perversidade da personalidade do agente”.

Vejamos se é de manter ou reduzir a pena aplicada pelo homicídio.
No caso presente é elevadíssimo o grau de ilicitude do facto.
O grau de culpa é muito acentuado, com forte intensidade do dolo, directo, pela manifestação da vontade firme dirigida ao facto, como pela insistência revelada.
O modo de execução, elemento agravativo a ter em conta nos termos do artigo 71º, nº 2, alínea a), do Código Penal) foi gravoso, com superioridade em razão da arma.
Ao tirar a vida a sua mulher e mãe do seu filho AA, para além da perda da vida daquela, e exactamente em resultado dessa privação, o comportamento do arguido conduziu à produção de efeitos colaterais com intenso grau de lesividade de direitos de personalidade do filho comum, bem como dos filhos da vítima, HH e GG, que ficaram privados da mãe, deixando-os na orfandade.
Foram graves as consequências do crime para os filhos da vítima e arguido.
Com a sua conduta o arguido fez extinguir o direito dos filhos a terem uma mãe – a sua Mãe – embora nos últimos tempos não assumisse um papel forte no protagonismo parental que se lhe impunha.
São intensas as necessidades de prevenção geral.
Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - artigo 24º da Constituição da República – estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.
Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.
Rui Abrunhosa Gonçalves, in Agressores conjugais: Investigar, avaliar e intervir na outra face da violência conjugal, RPCC, Ano 14, n.º 4, Outubro - Dezembro 2004, págs. 546 e 556, diz-nos: As estatísticas criminais continuam a evidenciar uma forte percentagem de homicídios conjugais. (Elza) Pais, refere-se a uma taxa de 15% em relação à totalidade dos homicídios em Portugal, mas no levantamento mais recente sobre os crimes cometidos no âmbito da violência doméstica para o ano de 2003, (..........) A...encontra uma percentagem de 32% de homicídios em 878 casos (em 31-12-2003) em acompanhamento pelo Instituto de Reinserção Social nesse ano.
(Os números resultam de um inquérito interno lançado por aquele Instituto com o objectivo de caracterizar a população a seu cargo que cometeu crimes no âmbito da violência doméstica, obtendo uma panorâmica do universo de agressores).
A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.
Como expende Figueiredo Dias em O sistema sancionatório do Direito Penal Português inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.
Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.
Versando a forte necessidade de prevenção geral no acórdão do STJ, de 17-03-1994, BMJ 435, 518, dizia-se: pode afirmar-se sem exagero que o homicídio voluntário se banalizou, constituindo, com o tráfico de droga, o tipo de ilícito que este Supremo Tribunal mais vem julgando ultimamente.
Como referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª, a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.
Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.
Está-se face a caso de criminalidade violenta, mediante o recurso a instrumento perigoso, pelo que se impõe uma pena com efeito dissuasor, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral
No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, a não assunção da intenção homicida, invocando ter agido em legítima defesa, o reduzido valor que atribui à vida humana, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização.
Como refere Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum …, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.
E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.

Nas condições pessoais teremos a considerar, para além da primariedade, com algum relevo, atenta a idade do arguido, o trajecto de vida pregressa do recorrente, que a avaliar pelo que ficou provado, foi um cidadão e pai cumpridor.
De realçar que os primeiros tempos de vivência em comum com a vítima não terão sido fáceis, bastando ter em atenção que, para além do filho comum nascido em Abril de 1998, já tinham então à sua conta quatro crianças de anteriores casamentos de ambos, que na altura teriam entre os 3/4 e os 10 anos de idade, tendo o recorrente afrontado a situação, dando-lhe, pelo seu esforço e dedicação, resposta positiva.
Relembrando o que foi dado por provado:
«Quando do início da relação que os uniu, passaram por dificuldades, nomeadamente dificuldades económicas, em virtude de terem nessa altura 4 crianças menores a seu cargo e de não terem empregos estáveis e vencimentos que permitissem fazer face a todas as dificuldades.
Foi o esforço, dedicação e força de carácter do arguido que permitiu que fossem criadas condições estáveis para criarem os menores que tinham a seu cargo, proporcionando-lhes alimentação, educação e vestuário e permitindo que crescessem sem que nada lhes faltasse.
O arguido sempre foi pessoa de bem, trabalhador, honesto e preocupado com a saúde e bem-estar da sua família, tendo chegado a trabalhar 13 a 14 horas por dia».
Por outro lado, há que atender à situação real vivida no lar familiar, traduzida num processo deletério, num crescendo de deterioração, a partir de Maio de 2006, que conduziu a discussões, agressões mútuas e destruições de bens na presença dos filhos, no facto de não curarem pela manutenção do lar, designadamente não adquirindo comida em quantidades suficientes e que teve por epílogo a institucionalização do menor AA, logo de seguida entregue aos cuidados da irmão Vanessa, de resto quem dele tratava.
Neste quadro, contextualizando toda a acção, há que dizer que tendo o arguido sido condenado por maus tratos ao cônjuge, não menos verdade é que essa relação de agressão física foi biunívoca, pois que a vítima também agrediu o arguido, que teve de se deslocar por duas vezes ao Hospital Amadora Sintra, com ferida incisa no antebraço esquerdo da primeira vez e com traumatismo craneano da segunda, para além da tentativa de agressão do filho do arguido, AA, com um corta papéis, e de chapadas dadas na filha do arguido, Jacqueline, o que tudo aconteceu em Agosto e Setembro de 2006.
A esse cenário acresceu o despedimento da DD em 29 de Agosto de 2006, na sequência de processo disciplinar.
O arguido acabou por se entregar voluntariamente às autoridades.

Nestas condições cremos que se poderá reduzir a pena aplicada pelo homicídio, fixando a mesma em 16 anos de prisão, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrido.

Efectuando o cúmulo jurídico com as demais penas, há que ter em consideração os factos no seu conjunto, processando-se os maus tratos a partir do momento em que um e outro passaram a ter relações extra matrimoniais, pretendendo divorciar-se, sendo evidente a conexão entre este crime e o de homicídio e deste com o de ocultação em acto seguido àquele, tudo se processando num quadro temporal relativamente curto, e a personalidade espelhada na prática dos factos, não se podendo olvidar o anterior processo de vida.
A moldura penal do concurso é de 16 anos a 18 anos e 9 meses de prisão.
Sopesados estes elementos, tendo em consideração a gravidade do ilícito global e fazendo incidir um factor de compressão de maior latitude do que o usado pelas instâncias, é proporcional e adequada a pena conjunta fixada em 17 anos de prisão.

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Rejeitar o recurso na parte em que é invocada errada valoração das provas, a que respeitam as conclusões 8ª a 12ª:
b) No mais, julgar improcedente o recurso, relativamente à pretensão de alteração da qualificação jurídica quanto ao crime de homicídio, mantendo-se a qualificação como homicídio qualificado atípico;
c) Julgar parcialmente procedente o recurso no que concerne à medida da pena do homicídio qualificado atípico, reduzindo-a para 16 anos de prisão;
d) Alterar em consequência a pena conjunta que se fixa em 17 anos de prisão:
e) Manter o mais decidido, incluindo a condenação no pedido cível de indemnização.
Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do CPP e artigos 74º, 87º, n.º 1, alínea a) e 89º do CCJ, sem prejuízo do apoio judiciário concedido – cfr. fls. 859/863.
Nos termos do artigo 420º, n.º 3, do CPP, vai o recorrente condenado na soma de 3 unidades de conta, atenta a rejeição parcial
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94º, nº 2, do CPP.


Lisboa, 21 de Janeiro de 2009


Raul Borges (relator)
Fernando Fróis