ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
2916/06.1TACB.C1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/06/2011
SECÇÃO 1.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GREGÓRIO DA SILVA JESUS

DESCRITORES ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA PLENA
ESCRITURA PÚBLICA
PREÇO
PAGAMENTO
CONFISSÃO

SUMÁRIO I - Na acção de reivindicação incumbe ao autor a prova do seu direito de propriedade, não bastando que exiba título translativo, havendo ainda necessidade de demonstrar que o direito já existia no transmitente, o que poderá exigir a demonstração da existência de uma das formas de aquisição originária.

II - O possuidor ou detentor só poderá evitar a restituição peticionada naquela acção se conseguir provar uma de três coisas: a) que a coisa lhe pertence por qualquer dos títulos admitidos em direito; b) que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse; c) que a detém por virtude de direito pessoal bastante.


III - No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade.


IV - A escritura pública de compra e venda não fazendo prova plena do pagamento do preço à vendedora, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já ter recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão.


V - Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, a vendedora declarou já ter recebido o preço) – cf. arts. 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC.


VI - Se a vendedora alega que não recebeu o preço, impunha-se, ainda, alegar a falsidade do aludido documento autêntico (art. 372.º, n.º 1, do CC) para, deste modo, afastar a força probatória plena que advém da confissão nele exarada.


VII - Também o art. 359.º do CC prescreve outra via de impugnação da confissão extrajudicial, pela prova da falta ou vícios da vontade que inquinam a declaração constante de documento autêntico. E não basta para infirmar a confissão que o confitente alegue não ser verdadeiro o facto confessado. Para que a confissão seja impugnada há-de alegar-se e provar-se que, além de o facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou ou foi vítima de falta ou de vício da vontade.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – RELATÓRIO



AA-N... C... & P... – Construção Civil, Lda., com sede na Rua do Comércio, nº ..., lugar de C..., C..., L..., instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, residente na Rua da Alegria, nº 4, Marinha Grande, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se a autora legítima possuidora e proprietária do prédio melhor identificado no art.º 1º da petição inicial ;
b) Condenar-se a ré a reconhecer a posse e o direito de propriedade do mesmo imóvel a favor da autora, abstendo-se de, por qualquer forma, praticar actos ofensivos da mesma;
c) Condenar-se a ré a entregar à autora o citado imóvel livre de quaisquer pessoas e bens.
Alega para tanto, e em síntese, que:
É dona e legítima possuidora do prédio urbano composto de cave, rés-do-chão e sótão amplo para habitação e logradouro sito no lugar de Água de Madeiros, freguesia de Pataias, concelho de Alcobaça, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2364, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o número mil quatrocentos e trinta e oito, que adquiriu à ré e Celeste da Conceição Barros, por escritura pública de compra e venda outorgada em 29/03/2005, no Cartório Notarial da Marinha Grande, e se encontra registado, a seu favor pela inscrição G-5;
Porém, aquando da outorga da citada escritura pública, a ré solicitou à autora um prazo de cerca de trinta dias para entrega do imóvel, findo o qual o desocuparia e entregaria totalmente livre de pessoas e bens, o que a autora aceitou por mera tolerância;
No entanto, a ré não mais abandonou o citado imóvel, não o entregou, nem sequer deu qualquer satisfação à autora, e apesar de interpelada para fazer essa entrega, quer verbalmente, quer por escrito, até à data não o fez e nada disse.
Regularmente citada, a ré veio contestar, alegando, em resumo, que:
Não vendeu à autora o prédio objecto dos presentes autos, ocupa-o na qualidade de sua dona e legítima possuidora, e a autora nunca lhe entregou qualquer montante;
Assinou a escritura de venda do imóvel, tal como assinou uma outra escritura a favor de uma sociedade de que são sócios e gerentes os representantes legais da autora, convencida de que estava a assinar um documento necessário à obtenção de um futuro empréstimo;
A ré e a sua falecida mãe eram pessoas de idade avançada com grandes dificuldades económicas, e para fazer face a essa escassez de meios necessitavam, com urgência, de um empréstimo que lhes possibilitasse fazer obras prementes no imóvel que habitavam, sob pena de este vir a ruir;
Por essa razão, e por intermédio da Sr.ª advogada Sandra Silva – conluiada com os representantes legais da autora – a ré aceitou assinar diversos documentos, na firme suposição de que estaria a lidar com pessoas de bem, nunca com o intuito de vender, como de facto não vendeu, o que quer que fosse, mas apenas de prestar uma garantia.
Concluiu pedindo a improcedência da acção.
A autora replicou mantendo que a ré lhe vendera o imóvel pelo preço constante da escritura pública, e que, a pedido dela, lhe pagou em numerário.
Elaborado tabelar despacho saneador, procedeu-se à selecção da matéria de facto que não suscitou alguma reclamação.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, consequentemente declarando a autora dona e legítima possuidora do prédio identificado no art. 1º da petição inicial, condenando a ré ao reconhecimento de tal direito de propriedade, abstendo-se de, por qualquer forma, praticar actos ofensivos deste, e a entregá-lo à autora livre de quaisquer pessoas e bens.
Inconformada, apelou a ré, sem êxito, uma vez que a Relação de Coimbra, por unanimidade, em Acórdão de 11/01/11 confirmou a sentença recorrida (fls. 319 a 323).

Mantendo-se irresignada, recorre para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formula as seguintes conclusões:
1. Com dúvidas, é nosso entendimento de que comportando a escritura pública também natureza obrigacional, a recorrida no contrato de compra e venda estava obrigada a pagar o preço.
2. Dentro dessa natureza, cabe ao comprador provar que pagou tal preço.
3. Conforme resulta dos autos, a recorrida não fez prova de tal pagamento, apesar de ter alegado que o havia feito por meio de dinheiro vivo.
4. Sendo certo, no entanto, que facilmente o poderia fazer uma vez tratar-se de uma sociedade comercial onde necessariamente o registo de saída de dinheiro da mesma tem que estar legalmente documentado.
5. E, por isso, facilmente a recorrida disso podia fazer prova.
6. Tanto mais que, só faz prova plena a declaração de recebimento do preço, desde que a entrega do dinheiro ou o pagamento fosse feita perante o notário, e da escritura tal ficasse a constar, o que não se verifica.
7. Face a isso, se é certo que é obrigação da recorrente entregar a coisa, também é certo que cabe ao comprador entregar o preço da mesma.
8. Logo, não cumprindo este com o pagamento do preço, tem direito a recorrente de não entregar o imóvel enquanto aquele pagamento não tiver sido feito,
9. Quer por força da excepção do não cumprimento, quer pelo direito de retenção.
10. Foram violados, entre outros, os art°s. 342°, 371°, 373°, 397°, 879°, 885°, 131 Io do C. Civil.

A recorrida contra-alegou sustentando a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

Tendo em conta que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas (arts. 684º nº3 e 690º nº 1º do Código de Processo Civil[2] – por diante CPC), consubstanciam elas as seguintes questões:

a) A quem incumbe o ónus da prova do pagamento do preço;

b) Se a recorrente tem o direito de não entregar o imóvel enquanto não lhe for pago o preço.

      ª


II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Foram considerados provados os factos seguintes:

1 - Da matéria de facto dada como Assente:

1.1 – Pela inscrição G-5 de 13/02/2006, foi registada a aquisição a favor de AA- “N..., C... & P... – Construção Civil, Lda.”, por compra, do seguinte prédio: Urbano, sito em A... de M..., composto de casa de cave, rés-do-chão e sótão amplo, com a área coberta de 115 n2 e logradouro com 1.350 m2., a confrontar do norte com EE, do sul com FF, do nascente com caminho público e do poente com Associação B... de E..., prédio esse descrito na Conservatória do Registo Predial e Alcobaça sob a ficha nº ... da freguesia de P..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... da freguesia de P... - alín. A) ;

1.2 – Por escritura pública datada de 29 de Março de 2005, outorgada no Cartório Notarial de Marinha Grande, BB, declarou que, pelo preço já recebido de € 80.000,00 (oitenta mil euros), vende a AA-“N..., C... & P... – Construção Civil, Lda.”, representada por CC e DD, o prédio urbano, composto de cave, rés-do-chão e sótão amplo para habitação e logradouro, sito no lugar de Á... de M..., freguesia de P..., concelho de A..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo número ..., com o valor patrimonial tributável de 186,59 euros, descrito na Conservatória do Registo Predial de A..., sob o número mil quatrocentos e trinta e oito, da freguesia de P..., tendo os segundos declarado que para a sua representada aceitam a venda - alín. B) ;

1.3 – Em 19/10/2006, a autora solicitou a notificação judicial avulsa da ré para “proceder, no prazo de 10 (dez) dias, a contar da data da presente notificação, à entrega da chave do móvel identificado em 1º (imóvel descrito em A)), bem como desocupar o mesmo, deixando-o totalmente livre de pessoas e bens no referido prazo “, a qual foi efectuada em 06/11/2006 – alín. C) ;

2 – Da matéria de facto da Base Instrutória:

2.1 –Após a data da escritura pública referenciada em 1.2, a Autora solicitou à Ré, pelo menos por escrito, que entregasse o imóvel - resp. ponto 4º ;

2.2 – Em 18 de Setembro de 2006, a autora enviou carta registada à ré, interpelando-a para a entrega do imóvel, num prazo máximo de 10 dias úteis, a qual foi devolvida à autora, com a anotação “não reclamada” - resp. ponto 5º ;

2.3 – Os legais representantes da Autora aperceberam-se de que a Ré era uma pessoa de idade avançada - resp. ponto 8º ;

2.4 – O imóvel descrito em 1.1 é composto por uma casa com, pelo menos, 40 anos, que necessita de obras de remodelação - resp. ponto 16º.

ª

 DE DIREITO

A) A quem incumbe o ónus da prova do pagamento do preço

O presente recurso confina-se na sua essencialidade, e em termos práticos, à pretensão da recorrente em ver reconhecido que à autora/recorrida, na qualidade de compradora do prédio, competiria o ónus de provar que pagara o respectivo preço, e como o não satisfez tem a recorrente o direito de não entregar o imóvel enquanto aquele pagamento não tiver sido feito.

Para boa compreensão, não será despiciendo que, ainda antes de entrarmos directamente na análise da questão enunciada, façamos um esboço, se bem que grosseiro, do enquadramento jurídico da problemática tal como exposta pelas partes nos seus articulados.

A autora configura o presente pleito como uma acção de reivindicação, invocando como causa de pedir a celebração de um contrato de compra e venda do imóvel que identifica, registada a aquisição a seu favor, e a efectiva perturbação do seu direito real pela ré vendedora que não lho entrega, apesar de para tal interpelada verbalmente e por escrito.

Ora, prescreve o art. 1305º do Código Civil (CC) que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

A defesa judicial do direito de propriedade efectua-se, através da acção de reivindicação, que o artigo 1311º, do mesmo Código, no seu nº 1, concretiza, ao dispor que “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.

Na acção de reivindicação há, assim, “um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade no autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide.”[3].

São, pois, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o pedido principal, de efectivo reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (pronuntiatio), e o consequente pedido de restituição da coisa (condemnatio), apesar deste ser a consequência lógica daquele reconhecimento[4].

Incumbe, por isso, ao autor a prova do seu direito de propriedade e, para tanto, não basta que exiba um título translativo, havendo ainda necessidade de demonstrar que o direito já existia no transmitente, o que poderá exigir a demonstração da existência de uma das formas de aquisição originária.

Daí que, para o efeito de provar o domínio, no âmbito da aquisição derivada, não basta invocar, v.g., um contrato de compra e venda, ou uma doação, que não são constitutivos do direito de propriedade, mas tão-só translativos do mesmo, sendo antes obrigatório demonstrar que esse direito já existia no transmitente. Porém, porque tal prova em muitos casos é difícil de conseguir, é de excepcional importância a presunção legal resultante do registo, tal como da posse (art. 1268º do CC)[5].

Revertendo ao caso em apreço, constata-se que a autora demonstrou que o prédio em análise foi por si adquirido por escritura pública de compra e venda datada de 29 de Março de 2005, outorgada no Cartório Notarial de Marinha Grande (conforme facto 1.2), e que, pela inscrição G-..., de 13/02/2006, foi registada essa aquisição a seu favor (conforme facto 1.1).

Por isso, a autora goza da presunção da titularidade do direito à propriedade do prédio em questão, nos termos do estipulado pelo art. 7º, do Código do Registo Predial (CRP)[6].

Todavia, estatui o n.º 2 do citado art. 1311º que “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

Deste modo, na acção reivindicativa se o autor demonstrar o seu direito, o possuidor ou detentor só pode evitar a restituição pedida se conseguir provar uma de três coisas: a) que a coisa lhe pertence por qualquer dos títulos admitidos em direito; b) que tem sobre ela outro qualquer direito real que justifique a sua posse; c) que a detém por virtude de direito pessoal bastante[7].

A ré que na sua contestação, onde não deduz pedido reconvencional, impugna a factualidade invocada pela autora, empenhou-se em provar que detinha legitimamente o prédio porque não o vendera à autora, nem esta lhe entregara qualquer montante a título do preço declarado, contrariamente ao que consta da escritura pública celebrada. Mais, só assinara a escritura de compra e venda do imóvel porque estava convencida que assinava um documento necessário à obtenção de um futuro empréstimo, pelo que nunca agiu com o intuito de vender o que quer que fosse, pois a sua ideia era apenas a de prestar uma garantia.

Só que não logrou fazer tal prova, como lhe competia. Foi total a falência probatória do alegado pela ré conducente à efectiva verificação de quaisquer dos apontados vícios.

Na verdade, não foram dados como provados os factos que ela alegara para fundamentar pretensa divergência entre a vontade e a declaração efectivamente prestada, nomeadamente uma hipótese de simulação, aparentemente relativa, de erro na declaração, também chamado erro-obstáculo, ou de dolo (arts. 240º, 241º, 247º, 253º e 254º do CC), mantendo-se plenamente válida e eficaz a transmissão operada com a escritura pública de compra e venda, e consequentemente a presunção decorrente da inscrição registral.

O Tribunal de 1ª instância, como já se disse, julgou a acção procedente e, em consequência, declarou a autora dona e legítima possuidora do prédio identificado, condenando a ré ao reconhecimento de tal direito de propriedade, abstendo-se de, por qualquer forma, praticar actos ofensivos deste, e a entregá-lo à autora livre de quaisquer pessoas e bens.

Assim, apenas se mantém a discórdia da entrega deste à autora, o que a ré/recorrente não aceita, mas que o acórdão recorrido decretou, confirmando a sentença da 1ª instância.

ª

É altura de abordarmos, então, propriamente a questão nuclear suscitada nesta revista.

Cumpre ressaltar a alteração de estratégia da recorrente face ao aludido insucesso. Na contestação assumiu uma posição radical, não reconhecendo e não aceitando a venda. A escritura pública celebrada era fruto de um vício da vontade de que fora vítima.

Na apelação e revista conforma-se com a validade da escritura e, consequentemente, com a validade substancial da venda, para se postar na natureza obrigacional que o contrato de compra e venda também tem, e sustentar que cabia ao comprador, à autora, provar que pagou o preço da compra, prova que não fez, não obstante a sua declaração, da ré/recorrente, inserta na referida escritura pública de já haver recebido o preço de venda de 80.000,00€.

A Relação deu atenção a esta mudança de linha, chamou a atenção da recorrente para o que entendia ser uma questão nova que não poderia apreciar, bem como para o facto de a suposta falta de pagamento do preço pela compra não afastar a transferência da propriedade da coisa (arts. 874.º, 879.º e 408.º, n.º 1, todos do CC), pelo que, no seu entender, a questão do pagamento e respectivo ónus da prova até perdia acuidade dado que o que verdadeiramente importava apurar era se a autora é a proprietária do bem reivindicado e se a ré detém qualquer título que lho permita ocupá-lo.

Todavia, acabou por se pronunciar sobre o questionado ónus da prova, em termos dos quais a recorrente discorda, embora com confessadas dúvidas, e por isso o traz agora até este Supremo Tribunal.

Ponderando, então, é certo não ter a autora provado que, a pedido da ré, lhe pagou a quantia referida na escritura pública de compra e venda (cf., resposta negativa ao ponto 15º da base instrutória).

Mas, é dado assente que a recorrente na outorga da mesma escritura declarou que vendia à autora o prédio em causa “pelo preço já recebido de oitenta mil euros” (cf. 1.2 dos factos dados como provados).

A aludida escritura pertence indiscutivelmente à categoria dos documentos autênticos (art. 369º nºs 1 e 2 do CC) e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora (art. 371º, nº 1 do CC).

Mas este ponto merece cuidada ponderação.

O documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (art. 371º, nº 1, 1ª parte, do CC).

Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art. 371º, nº 1, 2ª parte, do CC).

Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram[8]. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

Trata-se de entendimento de há muito sustentado no direito português, daí que, sim, se possa dizer, como o faz a recorrente nas suas alegações, embora visando outro alcance, que só se o comprador tivesse entregue o dinheiro à vendedora perante o notário é que, ficando esse acto atestado na escritura, esta faria prova plena dessa entrega.

Só que, se na realidade não faz a mesma prova plena do pagamento do preço à vendedora/recorrente, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já haver recebido o preço[9], pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, beneficia a autora, e que o artigo 352º do CC qualifica como confissão.

Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2 do CC[10].

Acontece que a força probatória plena da confissão só pode ser contrariada por meio de prova do contrário, nos termos do disposto no art. 347º do CC que dispõe: “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (...)”.

Significa isto, “que o vendedor é admitido a destruir a força da confissão de haver recebido o preço mediante a prova de que, na realidade, o não recebeu; que o certo é outro facto contrário ao da afirmação que consciente e voluntariamente produziu perante o notário”[11].

Portanto, a escritura pública de 29/03/05 que deu forma ao contrato de compra e venda celebrado entre a autora, como compradora, e a ré, como vendedora, faz prova plena de que, nesse acto, a ré declarou já haver recebido o respectivo preço de 80.000,00€.

Esta declaração da ré constitui uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, tendo força probatória plena da realidade dessa declaração de recebimento do preço, uma vez que foi feita à própria compradora, na presença do notário que a documentou autenticamente.

Tal força probatória plena da confissão podia ser destruída mediante prova da realidade do facto contrário àquele que a confissão estabeleceu, tarefa que a recorrente não logrou.

Daí afigurar-se à recorrente que ao alegar que não recebera da autora qualquer quantia, apesar de ter confessado exactamente o contrário na escritura, não podia o Tribunal deixar de entender que àquela competiria a prova em contrário.

Mas, “para se admitir a prova do contrário, a lei exige nalguns casos que se alegue e prove a falsidade do meio de prova (cf. art. 372.º, n.º1 do art. 376.º e n.º 2 do art. 393.º[12], ou seja, à recorrente não bastava alegar que não recebeu o preço, impunha-se-lhe ainda alegar a falsidade do aludido documento autêntico (art. 372.º, nº 1 do CC) para, deste modo, afastar a força probatória plena que advém da confissão nele exarada.

Também o art. 359º do CC prescreve outra via de impugnação da confissão extrajudicial, pela prova da falta ou vícios da vontade que inquinam a declaração constante de documento autêntico. E não basta para infirmar a confissão que o confitente alegue não ser verdadeiro o facto confessado. Para que a confissão seja impugnada há-de alegar-se e provar-se que, além de o facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou ou foi vítima de falta ou de vício da vontade[13]. Já anotámos a falência probatória da recorrente nesta área.

Acresce que, como escreve Lebre de Freitas: “E, se a confissão for válida ou, sendo anulável, não for anulada, a presunção opera em pleno e a prova em contrário não é mais permitida. A confissão configura assim uma presunção juris et de jure (CC, art. 350-2) e nos casos em que uma prova em contrário é admitida, como vimos na simulação […] na fraude à lei […], na reserva mental […], na situação de necessidade […] na criação da expectativa duma contrapartida […] e no erro-vício […] visa-se, não contrariar uma presunção previamente estabelecida, mas preencher elementos constitutivos das próprias figuras em causa (desvio funcional do acto de confissão nos cinco primeiros casos, convicção errada no último deles). A força da prova plena obtida através de confissão traduz-se, pois, em não admitir prova em contrário, pelo que, mais que um meio de prova plena (a que temos vindo a chamar qualificada), ela constitui um meio de prova pleníssima[14].

Quer tudo isto dizer que não é aceitável a tese da recorrente, procurando omitir e tornear a confissão inserta na escritura pública, de que ao caso se aplicaria a regra de que ao comprador, no caso à autora, cabia provar que pagou tal preço, no objectivo de através do incumprimento desse ónus tornar ineficaz aquela confissão. Essa repartição do ónus da prova entre as partes ocorre, na regra geral, quando vendedor e comprador, em conflito, se encontram igualmente desarmados em acção condenatória destinada a obter o pagamento de um montante pecuniário, na qual o primeiro alega e prova a existência dos factos constitutivos do seu crédito. Ao réu, o comprador, competirá provar o respectivo facto extintivo, o pagamento do preço (art. 342º, nº 2 do CC).

Situação bem diferente é o caso sub judice, em que nesse confronto um deles se apresenta munido de valioso trunfo recebido do outro, a especialíssima força probatória atribuída à confissão. Nem faria sentido sendo a declaração confessória particularmente valorizada pelas grandes probabilidades que tem de ser verdadeira e exacta pois que contrária aos próprios interesses do confitente, e seria absurdo, incumbir à parte munida desse trunfo a obrigação de provar o que já se mostrava confessado, ultrapassada que se mostrava a razão de ser que justifica a regra da imputação ao comprador do ónus da prova de satisfação do preço.

Concluindo, nem a ré demonstra ter título válido que possa opor ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel em causa, formulado pela autora, nem provou que a afirmação que fez na escritura pública de compra e venda, de haver recebido o preço de 80.000,00€, não era verdadeira.

Consequentemente, improcede o recurso quanto a esta questão.

B) Se a recorrente tem o direito de não entregar o imóvel enquanto não lhe for pago o preço

Termina a recorrente as suas alegações recursivas sustentando ter o direito de não entregar o imóvel. Fá-lo no pressuposto de lhe ser reconhecida razão na anterior questão, de que caberia à autora/recorrida o ónus de provar o pagamento do preço constante da escritura pública, e não o satisfez.

Como acabámos de ver, não logrou tal desiderato.

Naturalmente que assim sendo o conhecimento desta questão está prejudicado (art. 660º, nº 2 do CPC).

Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, improcedem todas as conclusões das alegações da recorrente, sendo de manter o decidido no acórdãoimpugnado, que não violou quaisquer preceitos legais, “maxime” os referidos pela recorrente.



III – DECISÃO

Em face do exposto, nega-se a revista e confirma-se integralmente o Acórdão da Relação.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 6/12/2011.

Gregório Silva Jesus (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

______________________________
[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros: Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] No regime anterior ao introduzido pelo Dec. Lei nº 303/07, de 24/08, atenta a data de instauração da acção em 21/11/06 (cfr. arts. 11º e 12º do referido diploma).
[3] Segundo Manuel Rodrigues, A reivindicação no direito civil português, RLJ, ano 57º, pág. 144, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 114; cfr. ainda Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, págs. 238/ 239.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 113.
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 115.
[6] Não se torna necessária abordagem com maior desenvolvimento em torno deste tema porquanto a recorrente não controverte na revista tal presunção.           
[7] Cfr.Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, págs. 848/849; Acs do STJ, de 13/3/1986, BMJ 355º- 362, de 28/07/87, BMJ 369º- 547; de 24/10/06, Proc. nº 06A3284, de 5/07/07, Proc. nº 07A1746, no ITIJ.
[8] Vaz Serra, RLJ, Ano 111, pág. 302; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 327/328; Almeida e Costa, RLJ, ano 129º, págs. 350 a 352 e 360 a 362; Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, pág. 34 a 39.
[9] Salvo prova do contrário feita em incidente de falsidade, não suscitado nem demonstrado.
[10] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 318; Lebre de Freitas, ob. cit.., pág. 39.
[11] Ac do STJ de 3/06/99, na CJ de 1999-2-136; No mesmo sentido Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, págs. 543 a 548.
[12] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 310.
[13] Neste sentido, Antunes Varela, ob. cit., págs. 543 a 548; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 319; Almeida e Costa, loc. cit., págs. 361/362.
[14] A Confissão no Direito Probatório, 1991, Coimbra Editora, págs. 744/745.