ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1507/10.7TBPNF.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/29/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR NUNO CAMEIRA

DESCRITORES ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
FACTO ILÍCITO
CRIME
PROCEDIMENTO CRIMINAL
CONTAGEM DE PRAZO

SUMÁRIO I - O alongamento do prazo de prescrição do direito à indemnização em consequência de danos ocasionados por facto ilícito que constitua um crime (art. 498.º, n.º 3, do CC) não vale para o exercício do direito de regresso da alínea c) do art. 19.º do DL n.º 522/85, de 31-12.

II - É certo que o elemento literal da norma não afasta em definitivo a aplicação do n.º 3 do art. 498.º às situações do n.º 2; mas é ilógica essa aplicação, dado que, na hipótese de exercício do direito de regresso, só está em aberto o direito da seguradora ao reembolso do que pagou ao lesado e não a determinação da responsabilidade extracontratual do lesante, ponto nesse momento já assente e indiscutido.

III - O alongamento do prazo de prescrição compreende-se quando esteja em causa o direito do lesado, mas não o direito de regresso da seguradora.

IV - Tendo em conta o princípio de adesão estabelecido no art. 71.º do CPP, segundo o qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos no art. 72.º do mesmo diploma, não faria sentido que o direito do titular à indemnização civil (a exercer no processo criminal) pudesse ser atingido pela prescrição estando ainda a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal, que em certo número de casos – cf. o art. 118.º do CP – é mais longo do que o fixado no n.º 1 do art. 498.º do CC.

V - Mas estas razões não colhem quando se está perante o direito de regresso da seguradora, realidade jurídica inteiramente distinta e autónoma em relação ao direito de indemnização do lesado; por isso mesmo é que no primeiro caso o prazo de prescrição se conta a partir da data do cumprimento da obrigação e no segundo do conhecimento do direito pelo lesado.

VI - Porque o direito de regresso nada tem que ver com a fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao cumprir o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado com o lesante, não se justifica, em tal eventualidade, o alongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art. 498.º, antes devendo prevalecer o interesse da lei na rápida definição da situação e na consequente punição da inércia da seguradora num lapso de tempo mais curto, que é o do n.º 2 do mesmo preceito.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

Em 20/7/10 AA – Companhia de Seguros, SA, propôs uma acção ordi­nária contra BB, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 58.455,54 €, acrescida de juros de mora à taxa legal até integral pagamento.

Em resumo, alegou que no exercício da sua actividade de seguradora celebrou com CC um contrato de seguro para cobertura de responsabilidade civil resultante da circulação do veículo ligeiro de passageiros ...LU e que no dia 29/10/05, na EN nº 319, em Escariz, Lagares, concelho de Penafiel, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o referido LU e os veículos de matrículas ...PP e …EU.

O acidente ficou a dever-se a culpa única e exclusiva do réu, que na altura, sendo de menor idade, conduzia o veículo segurado - no qual seguiam como passageiros dois amigos do réu, que sofreram lesões - sem estar habilitado com a carta de condução.

Por força do contrato de seguro, a autora pagou as importâncias que especifica na petição inicial, correspondentes ao valor do pedido, e a cujo reembolso se acha com direito em vir­tude do réu conduzir o veículo sem estar legalmente habilitado para o efeito.

O réu reconheceu a sua culpa no acidente e o direito da autora ao reembolso do que pagou, tendo proposto o seu pagamento em prestações, que a autora aceitou.

Contudo, apesar de interpelado por diversas vezes para proceder ao pagamento, não o fez até à data.

O réu contestou por excepção, alegando a prescrição do crédito accionado, e por impugnação, sustentando a improcedência da causa.

Houve réplica e tréplica.

No despacho saneador julgou-se procedente a excepção peremptória invocada, absolvendo-se o réu do pedido.

A autora apelou e a Relação, dando procedência ao recurso, julgou a excepção de prescrição improcedente e ordenou o prosseguimento da acção.

Deste acórdão pede o réu revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

1ª) O prazo de prescrição do direito de regresso da autora é o de três anos fixado no artº 498º, nº 2, do CC, dado que a responsabilidade que está em causa é de natureza extracontratual;

2ª) A circunstância de o facto ilícito constituir crime não justifica o alargamento do prazo previsto no nº 3 do mesmo preceito, pois o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extin­guiu a relação creditória anterior;

3ª) Considerando que os pagamentos efectuados pela recorrida ocorreram entre 17/11/05 e 15/6/07 o direito da autora está prescrito, motivo pelo qual a decisão da 1ª instância deveria ter sido mantida.

A recorrida contra alegou, defendendo a manutenção do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir. 

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

1) A autora, no exercício da sua actividade profissional de seguradora, celebrou com CC, em 3/9/05, um contrato de seguro titulado pela apólice nº …, para cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo ligeiro de passageiros, marca Subaru e com a matrícula ...LU.

2) No dia 29/10/05, pelas 14,30 horas, ocorreu um acidente de viação na EN 319, ao Km 38,500, em Escariz, Lagares, Penafiel, no qual intervieram o veículo supra referido, de matrí­cula ...LU, conduzido pelo réu BB, o veículo de marca Mer­cedes e matrícula ...PP, propriedade de DD e o veí­culo de marca Ford, modelo Transit, matrícula …EU, também propriedade de DD.

3) O réu, no momento do acidente, conduzia sem estar devidamente habilitado para o acto da condução.

4) À data do acidente, além do réu, seguiam no interior do veículo LU mais dois passa­geiros, EE e FF.

5) Em consequência do acidente os passageiros do veículo LU ficaram feridos.

6) A autora liquidou a EE o montante de € 45.000,00 a título de danos patri­mo­niais e não patrimoniais sofridos doc. de fls. 23 com data de pagamento em 15/6/07.

7) A autora efectuou o pagamento da quantia de € 3.710,12 pela assistência médica e hos­pitalar prestada a EE, na sequência do acidente – fls 24 a 34 – pagamentos efec­tuados em 2005/2006.

8) A autora pagou em 4/6/07 ao Instituto de Segurança Social a quantia de € 855,40.

9) A autora pagou a FF pelos danos patrimoniais sofridos na sequência do  acidente a quantia de € 175,00 e a título de despesas hospitalares do mesmo – ao Hos­pital Padre Américo a quantia de € 75,10 – fls 36 e 37 – efectuados os respectivos paga­mentos em 13/3/06 e 25/11/05.

10) A autora pagou a título de outras despesas provocadas pelo acidente a quantia de € 2.480,00 e a quantia de € 480,00 - fls 38 e 39 - esta última datada de 31/10/05.

11) A autora liquidou a DD a título de danos patrimoniais sofridos a quantia de € 3.069,27 - fls. 40 - com data de pagamento em 17/11/05.

12) A autora pagou ainda pela reparação das viaturas PP e EU a quantia de € 5.570,65 - fls 41 e 42 - com datas de pagamento em 25/12/05 e 9/1/06.

13) O último pagamento efectuado pela autora, na sequência do supra referido acidente, ocorreu no ano de 2007.

14) A presente acção foi instaurada em 20/7/10 e autuada um dia depois e a citação do réu verificou-se em 17/8/10.

b) Matéria de Direito

A questão a decidir no presente recurso é a de saber se o direito accionado pela autora se encontra ou não prescrito. A primeira instância, com a concordância do réu, decidiu que sim; a segunda, com o aplauso da ré, que não.

Ora, na parte que interessa, o artº 19º do DL 522/85 de 31/12, em vigor à data dos factos, dispunha que “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:

.....

c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estu­pefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”.

O artº 498º do Código Civil, por seu turno, estabelece o seguinte:

1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhe­cimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os res­ponsáveis.

3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”.

Assim, precisando melhor o problema a resolver, dir-se-á que se trata de apurar se o alon­gamento do prazo de prescrição do direito à indemnização em consequência de danos oca­sionados por facto ilícito que constitua um crime (nº 3 do citado artº 498º) vale ou não para o exercício do direito de regresso da alínea c) do também citado artº 19º do DL 522/85).

A nossa resposta, adiantamo-lo desde já, é negativa, na linha do que vem sendo decidido maioritariamente pela jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal, que não vemos razão para alte­rar: a título de exemplo, referem-se os acórdãos de 6/5/99 (Pº 99B356), 9/10/03 (Pº 03B2757), 4/11/08 (Pº 08A3119), 27/10/09 (Pº 844/07.2.TBOER.L1.S1), 4/11/10 (Pº 2564/08.1TBCB.A.C1.S1) 16/11/10 (Pº 2119/07.8TBLLE.E1.S1), e, por último, 17/11/11 (Pº 1372/10.4T2AVR.C1.S1).

É certo que o elemento literal da norma não afasta em definitivo a aplicação do nº 3 do artº 498º às situações do nº 2; mas é ilógica essa aplicação, dado que na hipótese de exercício do direito de regresso só está em aberto o direito da seguradora ao reembolso do que pagou ao lesado e não a determinação da responsabilidade extracontratual do lesante, ponto nesse momento já assente e indiscutido. Como bem observa Afonso Correia, “o direito de regresso conferido pelo artº 19º do DL 522/85, de 31 de Dezembro, à seguradora é mais um direito de reembolso do que ela pagou em circunstâncias que tornam legalmente inaceitável o risco assumido. A seguradora, na acção de regresso, não exerce um direito igual ao lesado que indemnizou, não propõe contra o réu uma acção de indemnização por danos, antes se limita a exigir o reembolso do que pagou, uma vez que o risco que contra­tualmente assumira não se compadece com condutores sem habilitações legais, com condutores que abandonam sinistrados, que agem sob a influência do álcool. Ou seja, é o desvalor da acção, que não o desvalor do resul­tado, que está no espírito da norma da referida alínea c)” [1]. O alongamento do prazo de prescrição compreende-se quando esteja em causa o direito do lesado, mas não o direito de regresso da seguradora. Na verdade, tendo em conta o princípio de adesão estabelecido no artº 71º do Código de Processo Penal, segundo o qual o pedido de indem­nização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos no artº 72º do mesmo diploma, não faria sentido que o direito do titular à indemnização civil (a exercer no processo criminal) pudesse ser atingido pela prescrição estando ainda a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal, que em certo número de casos - cfr. o artº 118º do Código Penal  - é mais longo do que o fixado no nº 1 do artº 498º do Código Civil. Ocorrendo uma situação enquadrável nas alíneas a), b) ou c) do nº 1 daquele artigo da lei penal, em que o prazo de prescrição do procedimento criminal é de, respecti­vamente, 15, 10 e 5 anos, seria irrazoável “discriminar negativamente”, se assim nos podemos exprimir, a apreciação da responsabilidade civil, negando ao lesado o ensejo de a efectivar judi­cialmente logo que decorridos três anos sobre a prática do facto ilícito. Vale aqui o ensi­namento de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, pág. 628):“desde que se admite a possibilidade de o facto, para efeito de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justifica que análoga possibilidade se não ofereça à apreciação da responsabilidade civil”. Mas é patente que estas razões não colhem quando se está perante o direito de regresso da seguradora, realidade jurídica inteiramente distinta e autónoma em relação ao direito de indemnização do lesado; por isso mesmo é que no primeiro caso o prazo de prescrição se conta a partir da data do cumprimento da obrigação e no segundo do conhecimento do direito pelo lesado. Porque o direito de regresso nada tem que ver com a fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao cumprir o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado com o lesante não se justifica, em tal even­tualidade, o alongamento do prazo de prescrição previsto no nº 3 do artº 498º, antes devendo prevalecer o interesse da lei na rápida definição da situação e na consequente punição da inércia da seguradora num lapso de tempo mais curto, que é o do nº 2 do mesmo preceito. Não temos qualquer dúvida em fazer nossas as seguintes consi­derações do já referido acórdão do STJ de 17/11/11 (Procº 1372/10.4T2AVR.C1.S1), com as quais concordamos inteiramente:

“Não vale aqui, manifestamente, o argumento de que, enquanto o facto ilícito pode ser discutido em sede penal, deve poder ser apreciado no âmbito da responsabilidade civil. Como se escreveu na sentença, “nenhuma razão existe para lhe aplicar [ao direito de regresso] um alargamento do prazo que pressupõe que a medida dessa responsabilidade possa ser ainda discutida em sede penal por mais tempo”;

.....

- Diferentemente do que sucede no âmbito da sub-rogação, na qual, segundo o disposto no nº 1 do artigo 593º do Código Civil, “o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam”, acompanhados das “garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inse­paráveis da pessoa” do credor (nº 1 do artigo 582º, aplicável por força do disposto no artigo 594º), o que sig­nifica que o direito do credor se transmite para o sub-rogado, conservando a extensão, os poderes, as garantias e outros “acessórios” (que, naturalmente, sejam susceptíveis de mudar de titular), o direito de regresso consti­tui-se ex novo, “sendo este direito de regresso independente da fonte da(…) obriga­ção extinta”  pela segu­radora (acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 16 de Novembro de 2010, já citado);

– Não é argumento a inserção sistemática do nº 3 do artigo 498º do Código Civil, cuja letra revela preten­der aplicar-se à hipótese prevista no nº 1. Mas ainda que se entenda retirar da localização do preceito um signi­ficado substancial, no que respeita à intenção do legislador, a verdade é que essa interpretação esbarra com a falta de fundamento material do alargamento do prazo. Além do mais, o prazo seria duplamente alongado, valendo a mesma ampliação para duas acções consecutivas”.

Resulta do exposto que, devendo responder-se negativamente à pergunta formulada de início, o acórdão recorrido não poderá subsistir. Só que também não é possível, ao menos por agora, fazer prevalecer a sentença da 1ª instância. Efectivamente, vê-se dos factos apu­rados que decorreram mais de três anos entre a data do último pagamento efec­tuado pela autora e a citação do réu. Todavia, a autora alegou nos artºs 26º, 61º e 62º da petição inicial e 15º a 20º da réplica que o réu reconheceu o seu direito, propondo-lhe até - o que foi aceite - o paga­mento da dívida em prestações; o réu, por seu turno, impugnou tais factos no artº 39º da contestação. Ora, impõe-se a sua averiguação uma vez que a prescrição, segundo dispõe o artº 325º, nº 1, do CC, é interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o res­pectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido, e a interrupção, consoante dispõe o artº 326º, nº 1, do mesmo diploma, inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido ante­riormente, começando a decorrer novo prazo a partir do acto interruptivo. À luz do direito aplicável tal como o definimos no presente acórdão, a proce­dência ou improce­dência da excepção de prescrição depende da prova que vier a produzir-se sobre os factos que se apontaram; mas como é da exclusiva competência das instâncias o julgamento da matéria de facto, há que observar o determinado pelos artº 729º, nº 3 e 730º, nº 1, do CPC.

III. Decisão

Com os fundamentos expostos concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e ordena-se a baixa do processo à Relação para ampliação da matéria de facto nos termos sobreditos e subsequente julgamento em harmonia com a decisão de direito aqui adoptada, se possível pelos mesmos juízes desembargadores.

Custas a final.

Lisboa, 29 de Novembro de 2011

Nuno Cameira (Relator)

(com a declaração de que revi a posição assumida, como adjunto, na Rev.ª 147/08.4TBANS)

Sousa Leite

(com declaração análoga à do relator)

Salreta Pereira

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[1] Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil - Direito de Regresso da Seguradora, em II Congresso nacional de Direito dos Seguros, pág. 204.