Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I Relatório
M........., devidamente identificada nos autos, intentou Ação Administrativa Especial contra a Caixa Geral de Aposentações - CGA, tendente à “(...) anulação do ato de 2012-01-17, que ordenou o reembolso do valor de €75.506,40”, em resultado da acumulação da Pensão de Aposentação com as remunerações que auferiu no SUCH de 2003.11.03 a 2011.07.31.
Por Sentença proferida no TAC de Lisboa em 2 de setembro de 2021, foi decidido julgar a Ação procedente.
A CGA, inconformada com a decisão proferida, veio em 12 de outubro de 2011, Recorrer, aí concluindo:
“1. Como resulta da letra do artigo 78.° do EA, o conceito de exercício de funções públicas abrange todos os tipos de atividade e de serviços, independentemente da sua duração, regularidade e forma de remuneração, e todas as modalidades de contratos, independentemente da respetiva natureza, pública ou privada, laboral ou de aquisição de serviços e traduz o exercício de funções em ou para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas.
2. O exercício de funções no SUCH consubstanciam “funções públicas remuneradas” nos termos e para os efeitos dos artigos 78.° e 79.° do Estatuto da Aposentação.
3. Tal entendimento resulta, com clareza, da lei que qualifica expressamente o SUCH como pessoa coletiva de utilidade pública administrativa.
4. Assim sendo, decidindo em sentido contrário, a sentença que ora se impugna violou o disposto nos artigos 78.° e 79.° do Estatuto da Aposentação.
Nestes termos, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e revogada a douta decisão recorrida, com as legais consequências.”
A Autora, enquanto Recorrida veio apresentar as suas Contra-alegações de Recurso em 15 de novembro de 2011, concluindo:
“A. A sentença recorrida jugou a ação totalmente procedente, pelo que anulou o ato impugnado, não só com base em violação de lei - por erro nos pressupostos de facto e de Direito (artigo 78.° do Estatuto da Aposentação) -, mas também por falta de fundamentação;
B. A Recorrente não impugnou, nas suas conclusões e alegações, a decisão relativa à procedência do vício de falta de fundamentação, pelo que, nesta parte, a sentença transitou em julgado;
C. Consequentemente, mesmo que o Recurso seja julgado procedente quanto ao vício de violação de lei (o que não se admite), não terá qualquer efeito útil, pois está definitiva e irreversivelmente declarada a anulação judicial do ato impugnado, por falta de fundamentação;
D. Consequentemente, o Recurso interposto é perfeitamente inútil, devendo ser liminarmente indeferido; Sem conceder,
E. O SUCH era, à data dos factos, e é ainda hoje, uma pessoa coletiva privada, de natureza associativa, não sendo, por isso, aplicável à Recorrida o artigo 78° do Estatuto da Aposentação, que baseou o ato administrativo impugnado;
F. A interpretação que a Recorrente faz desta norma é ilegal, porque, por um lado, ignora a natureza jurídica do SUCH e, por outro, se baseia num erro grosseiro de interpretação do conceito de utilidade pública administrativa.
G. Quanto à natureza jurídica do SUCH, a doutrina, a Procuradoria-Geral da República e a jurisprudência - incluindo o Tribunal de Contas - são unânimes em reconhecer o SUCH como pessoa coletiva de direito privado;
H. O que não surpreende porque, nem em termos orgânicos, nem funcionais, o SUCH pode ser qualificado como pessoa coletiva pública, na medida em que o SUCH não foi criado pelo Estado, não pertence à estrutura do Estado, nem o Estado exerce qualquer jus imperii sobre o SUCH;
I. O Estado não tem, de facto, quaisquer poderes de decisão, de controlo prévio ou a posteriori, de orientação, de fiscalização efetiva, nem de tutela de mérito - tem, na verdade, um papel perfeitamente residual;
J. Da análise dos estatutos do SUCH resulta que os poucos elementos juspublicistas do seu regime não são, pela sua concreta configuração, preponderantes, pelo que são claramente insuficientes para lhe conferir natureza pública;
K. Quanto ao critério do fim, é unânime na doutrina que as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa não são pessoas coletivas públicas, pois as pessoas coletivas públicas não precisam de ter um estatuto especial de utilidade pública;
L. Mas, mesmo que assim não fosse, a doutrina é unânime em concordar que o fim é critério insuficiente para, por si só, qualificar qualquer entidade como pessoa coletiva pública, atenta a tendência mundial para a participação do sector privado na prossecução dos fins públicos, servindo precisamente o reconhecimento de utilidade publica administrativa para formalizar esta realidade diferenciada;
M. Assim, nenhum critério jurídico permite a qualificação do SUCH como pessoa coletiva pública, pois não só não é formalmente uma pessoa coletiva pública, como o seu regime jurídico não contém elementos de natureza administrativa suficientemente relevantes, seja em qualidade ou quantidade, que permitam atribuir-lhe essa qualificação;
N. Mais, a própria evolução dos estatutos do SUCH demonstra que a vontade do legislador foi afastá-lo da Administração Pública e não aproximá-lo;
O. Finalmente, e mais relevante no caso concreto (face à ratio do artigo 78.° do Estatuto da Aposentação), as receitas do SUCH são exclusivamente privadas, pelo que os vencimentos por ele assegurados são financiados por fundos privados;
P. De facto, ficou provado nos autos que o SUCH tem receitas exclusivamente privadas e a Recorrente não contestou este facto em recurso, antes o ignorou estrategicamente, por bem saber que a ratio da norma é a evitar a duplicação de rendimentos a cargo do Estado relativamente ao mesmo beneficiário;
Q. Efetivamente, a norma em causa não proíbe a acumulação de remunerações por prestação de serviços de interesse público, proíbe sim que o Estado remunere duplamente um aposentado, conforme resulta do Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 137/2010 de 28 de dezembro;
R. Não sendo uma pessoa coletiva pública e não recebendo sequer financiamento público, é incontornável reconhecer que o SUCH não está literalmente abrangido pelo disposto no artigo 78.° do Estatuto da Aposentação, nem pode, por via interpretativa, ser incluído no seu âmbito de aplicação;
S. Não obstante, sempre se dirá que a forma como a Recorrente litiga é profundamente censurável, pois a própria Recorrente reconhece, no seu Ofício-Circular n.° 2/2011, que as entidades abrangidas pelo artigo 78.° do Estatuto da Aposentação, além das expressamente referidas na norma, são apenas as que prossigam fins públicos, com base em recursos patrimoniais também públicos;
T. Portanto, a Recorrente sabe (ou tem obrigação de saber) que o critério essencial in casu é a (in)existência de recursos patrimoniais públicos, não a prossecução de fins de interesse público, porém, ignora-o categoricamente; Consequentemente, em suma,
U. É incontornável reconhecer que a Recorrente litiga em contradição frontal não só com a letra e o espírito da lei, com a doutrina, a Procuradoria-Geral da República e toda a jurisprudência, mas até com o seu próprio entendimento, expondo à saciedade a falta de fundamento da sua pretensão;
V. O exercício de funções no SUCH não consubstancia a prestação de "funções públicas remuneradas" nos termos e para os efeitos dos artigos 78.° e 79.° do Estatuto da Aposentação, primeiro, porque o SUCH não é uma pessoa coletiva publica, segundo, porque o SUCH não tem receitas públicas, pelo que não houve in casu acumulação de rendimentos pagos - direta ou indiretamente - pelo Estado;
W. Consequentemente, é manifesta a ilegalidade do ato impugnado por erro nos pressupostos de facto e de Direito, pelo que a sentença de anulação não merece censura.
Termos em que, e nos melhores de Direito, deve o Recurso ser liminarmente indeferido, por inutilidade, ou, caso assim não se entenda, julgado improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.”
O Ministério Público, notificado em 23 de dezembro de 2012, nada veio dizer, requerer ou Promover.
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
Importa verificar os vícios recursivamente suscitados pela CGA, que se consubstanciam no entendimento de que “de que o tribunal o fez uma interpretação deficiente da lei”, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.
III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo considerou a seguinte factualidade, como provada, a qual aqui se reproduz:
“A) Em 2002-11-19, a Entidade Demandada reconheceu o direito à aposentação da A.: cfr. doc. 1 junto com a Petição Inicial - PI;
B) De 2003-11-03 a 2011-07-31, a A. exerceu funções de escriturária principal no Serviço de Utilização Comum dos Hospitais - SUCH, auferindo a respetiva remuneração: por acordo (vide fls. 296 dos autos) e doc. 3 junto com a PI;
C) Em 2011-05-27, a Entidade Demandada oficiou a A. de que deveria optar, nos termos do art. 78° do Estatuto da Aposentação - EA, pela remuneração auferida pelo SUCH ou pela pensão de aposentação, nos seguintes termos:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º n 6 CPC)
cfr. doc. 4 junto com a PI;
D) Em 2011-06-17, a A. apresentou à Entidade Demandada, exposição de que ressalta:
Face ao exposto, a ora Subscritora defende que o SUCH - pessoa coletiva de entidade pública administrativa - é uma entidade de direito privado, não estando os seus colaboradores abrangidos pelo regime de incompatibilidades estabelecido pela atual redação dos artigos 78° e 79° do Estatuto de Aposentação
Nestes termos, a ora Subscritora solicita a V. Exa. o acolhimento da posição aqui explanada, com possibilidade de acumulação da pensão por aposentação com a remuneração auferida pelo desempenho de funções na pessoa coletiva de Direito Privado que é o SUCH.
Sem prejuízo do exposto, e só por mera hipótese de os argumentos supra plasmados não serem acolhidos, a ora Subscritora opta pela pensão de aposentação, com consequente cessação, com efeitos a partir do final do corrente mês, do contrato de trabalho que tem celebrado com o SUCH.
cfr. doc. 5 junto com a PI;
E) Em 2011-09-09, a Entidade Demandada oficiou a A. nos seguintes termos:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º n 6 CPC)
cfr. doc. 6 junto com a PI;
F) Ato impugnado:
Em 2012-01-17, a Entidade Demandada determinou o valor em divida, notificando a A. para regularização, nos seguintes termos:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º n 6 CPC)
cfr. doc. 7 junto com a PI;
G) Em 2012-02-17, a Entidade Demandada oficiou a A. de que:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º n 6 CPC)
H) Em 2012-03-29, o SUCH emitiu declaração, nos seguintes termos:
O SUCH - Serviço de Utilização Comum dos Hospitais, associação privada de utilidade pública administrativa sem fins lucrativos, com sede no Parque de Saúde de Lisboa, Av. do Brasil, 53 - Pavilhão 33-A, em Lisboa e pessoa coletiva nº ...................., declara ao abrigo dos seus estatutos que anexa ao presente documento, que constituem receitas da sua exploração as constantes do artº 280 a saber:
a) As quotas dos associados;
b) O rendimento dos bens próprios,
c) Os proveitos das vendas e das prestações de serviços:
d) As comparticipações, as dotações e os subsídios provenientes de quaisquer entidades, associadas, ou não, do SUCH;
e) As doações, heranças ou os legados que lhe sejam destinados;
f) Quaisquer outros rendimentos ou valores que provenham da sua atividade ou que, por lei ou contrato, lhe devam pertencer.
e que nas explorações dos últimos anos financia a sua atividade de forma maioritária (e muito expressiva) por proveitos resultantes da prestação de serviços que efetua aos associados e clientes como se comprova pelos seus relatórios de contas (que se anexam referentes aos últimos 3 anos). Por ser verdade e porque nos foi solicitado
cfr. doc. 13 junto com a PI;
I) Em 2012-03-30, a A. instaurou a providência cautelar que neste Tribunal correu sob o n.° 832/12.7BELSB, peticionando a suspensão da eficácia do ato agora impugnado: cfr. fls. 296 dos autos;
J) Em 2012-04-17, a A. intentou, neste Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a presente ação administrava especial: cfr. fls. 1 a 187 dos autos;
K) Em 2012-05-11 foi julgada procedente a providência cautelar acima melhor identificada e, em consequência, foi ordenada a suspensão dos efeitos do ato administrativo agora impugnado: cfr. fls. 296 dos autos.”
IV – Do Direito
No que aqui releva, discorreu-se no discurso fundamentador da decisão Recorrida:
“(…) DA VIOLAÇÃO DE LEI - erro sobre os pressupostos de facto e de direito:
(…) O erro nos pressupostos de facto e de direito, constitui uma das causas de invalidade do ato administrativo, consubstanciando um vício de violação de lei que configura uma ilegalidade de natureza material, pois é a própria substância do ato administrativo, que contraria a lei.
Tal vício consiste na divergência entre os pressupostos de que o autor do ato partiu para prolatar a decisão administrativa final e a sua efetiva verificação na situação em concreto, resultando do facto de se terem considerado na decisão normas não aplicáveis e/ou factos não provados ou desconformes com a realidade.
O que sucedeu no caso concreto: cfr. alínea A) a K) supra.
Na exata medida em que, reduzindo a vexatia questio aos seus termos mais simples, o regime de incompatibilidades, ínsito nos invocados art. 78° e art. 79° do EA (tempus regit actum), não se aplica à situação de facto em análise, dado que o SUCH não é uma pessoa coletiva pública - como o exigia a legislação à data aplicável -, tendo assim sido consideradas na decisão em crise, normas que não eram aplicáveis ao caso concreto: cfr. alínea A) a K) supra.
Na verdade, os estatutos do SUCH caraterizavam, à data, tal entidade como pessoa coletiva de utilidade pública administrativa e não como pessoa coletiva pública: cfr. DL n.° 12/93, de 15 de janeiro e art. 1° dos Estatutos do SUCH, DR, 2.ª série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum).
Mais, acresce que, a natureza de pessoa coletiva de direito privado, de tipo associativo, sem fins lucrativos e de utilidade pública administrativa do SUCH se mantém na presente data: cfr. art. 1° do Estatutos, publicados no DL n.° 209/2015, de 25 de setembro.
E, pese embora se possam encontrar - aliás como bem sublinha a Entidade Demandada -, traços juspublicísticos no regime jurídico do SUCH (v.g. quanto à sujeição à fiscalização por banda do Tribunal de Contas e à existência de Tutela) o facto é que, dos elementos carreados para os autos e dos diplomas ao tempo aplicáveis, nenhum outro traço de direito administrativo se mostra contemplado: cfr. DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; DR, 2.ª série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum);
Decorre ainda dos autos e o probatório elege que os fins prosseguidos pelo SUCH são alcançados com base em recursos patrimoniais que resultam: das quotas dos associados; do rendimento de bens próprios; dos proveitos das vendas e das prestações de serviços, das comparticipações, dotações e subsídios provenientes de quaisquer entidades, associadas ou não; das doações, heranças ou legados que lhe sejam destinados e de quaisquer outros rendimentos ou valores que provenham da sua atividades: cfr. DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; art. 24° dos Estatutos do SUCH, DR, 2.a série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum); alínea A) a K) supra, sobretudo alínea H) supra.
Pelo que, contrariamente à tese defendida pela Entidade Demandada, o SUCH não era, à data da prolação do ato em crise, pessoa coletiva pública e não prosseguia fins públicos com base em recursos patrimoniais também públicos: cfr. DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; art. 24° dos Estatutos do SUCH, DR, 2.a série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum); alínea A) a K) supra, sobretudo alínea H) supra.
Aqui chegados, importa ter presente que o DL n.° 137/2010, de 28 de dezembro aprovou um conjunto de medidas adicionais de redução de despesa com vista à consolidação orçamental prevista no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) para 2010-2013, introduzindo, além do mais, alterações ao citado EA, aprovado pelo DL n.° 498/72, de 9 de dezembro, alterado pelo DL n.° 179/2005, de 2 de novembro, nos seguintes termos:
«Artigo 78.º[...]
1 - Os aposentados não podem exercer funções públicas remuneradas para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o sector empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas, exceto quando haja lei especial que o permita ou quando, por razões de interesse público excecional, sejam autorizados pelos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública. (...)
Artigo 79.°
Cumulação de pensão e remuneração
1 - Os aposentados, bem como os referidos no n.° 6 do artigo anterior, autorizados a exercer funções públicas não podem cumular o recebimento da pensão com qualquer remuneração correspondente àquelas funções.
2 - Durante o exercício daquelas funções é suspenso o pagamento da pensão ou da remuneração, consoante a opção do aposentado.
3 - Caso seja escolhida a suspensão da pensão, o pagamento da mesma é retomado, sendo esta atualizada nos termos gerais, findo o período da suspensão.
4 - O início e o termo do exercício de funções públicas são obrigatoriamente comunicados à Caixa Geral de Aposentações, I. P. (CGA, I. P.), pelos serviços, entidades ou empresas a que se refere o n.° 1 do artigo 78.° no prazo máximo de 10 dias a contar dos mesmos, para que a CGA, I. P., possa suspender a pensão ou reiniciar o seu pagamento.
(...)
2 - O disposto nos artigos 78.° e 79.° do Decreto-Lei n.° 498/72, de 9 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.° 179/2005, de 2 de novembro, tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, gerais ou excecionais, em contrário, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - É ressalvado do disposto no número anterior o regime constante do Decreto-Lei n.° 89/2010, de 21 de julho, durante o período da sua vigência, que permite aos sujeitos por ele abrangidos cumular a pensão com uma terça parte da remuneração base que competir às funções exercidas ou, quando lhes seja mais favorável, cumular a remuneração base que competir a tais funções acrescida de uma terça parte da pensão que lhes seja devida...”
Destarte, sucedendo, com sucede no caso em apreço, que a A., aposentada, exercia funções remuneradas para o SUCH (que, repete-se, é pessoa coletiva privada de utilidade pública administrativa e não pessoa coletiva pública) é imperativo concluir que o aludido regime de incompatibilidades - que eliminou a possibilidade de acumulação de vencimentos públicos com pensões do sistema público de aposentação - não se lhe mostra aplicável: cfr. art. 78° e art. 79° do EA (tempus regit actum); DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; DR, 2.ª série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum) e alínea A) a K) supra.
Vale isto por dizer que, aplicando o direito aos factos assentes e interpretando também textual, sistemática e racionalmente as normas aplicáveis, impõe-se concluir ocorrer falta de fundamento fáctico que permita a aplicação, no caso concreto, do referido regime de incompatibilidades: vide Coleção STVDIVM, Temas Filosóficos, Jurídicos e Sociais, Interpretação e Aplicação das Leis, FRANCESCO FERRARA, 4ª Edição, Arménio Amado - Editor Sucessor, Coimbra - 1987; Pareceres de Freitas do Amaral, de 2005-03-11 e de 2007-07-26; Parecer de Manuel Machado, Miguel Pedrosa Machado e João Tiago Machado de 2011-02-18; Pareceres n° 1/95 e n.° 145/2001 da Procuradoria-Geral da República; Acórdão n.° 7/10 do Tribunal de Contas, de 2010-03-09; art. 78° e art. 79° do EA (tempus regit actum); DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; DR, 2.ª série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum) e alínea A) a K) supra.
Dito de outro modo, o probatório evidencia que o ato impugnado ao considerar que a A., enquanto pensionista, incorreu numa incompatibilidade, espelha divergência entre os pressupostos de que a Entidade Demandada partiu para prolatar o ato em crise e a sua efetiva verificação na situação em concreto, uma vez que os factos em que se alicerçou não se mostram provados e, consequentemente, as normas em que se escorou não se mostram aplicáveis ao caso concreto: cfr. art. 78° e art. 79° do EA (tempus regit actum); DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; DR, 2.a série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum) e alínea A) a K) supra.
Termos em que o ato impugnado padece do assacado vicio.
DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO:
(…) Fundamentar é enunciar, explicitamente, as razões ou motivos que conduziram o órgão administrativo à prática de determinado ato, a exteriorização dos motivos do ato de modo a permitir a um destinatário normal perceber porque se decidiu em determinado sentido e não noutro.
A decisão estará devidamente fundamentada se das informações dos serviços e/ou dos relatórios constarem diretamente, ou por remissão, as razões por que se decidiu em certo sentido, permitindo assim a defesa posterior dos direitos e interesses legítimos dos destinatários: cfr. art. 124° e art. 125° do Código de Procedimento Administrativo - CPA (tempus regit actum); neste sentido vide CPA anotado por Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco Amorim, 2° edição, Almedina e Ac. do STA de 28-01-1998, proferido no Processo n.° 021331, disponível em www.DGSI.pt..
Equivalendo à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato: cfr. art. 124° e art. 125° do CPA (tempus regit actum); neste sentido vide CPA anotado por Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco Amorim, 2ª edição, Almedina e Ac. do STA de 28-01-1998, proferido no Processo n.° 021331.
É o que sucede no caso sub judice: cfr. alínea A) a K) supra, sobretudo alínea F) supra.
Posto que, não obstante o ato em crise mencionar anterior oficio, em nenhum dos ofícios se encontra a enunciação clara, coerente e completa das razões de facto e de direito em que o ato impugnado concretamente se alicerça, mas apenas, tão só e somente, a invocação genérica da aplicação ao caso concreto do regime das incompatibilidades decorrente - como resulta do supra aduzido - da desacertada caraterização do regime jurídico do SUCH por banda da Entidade Demandada: cfr. art. 124° e art. 125° do CPA (tempus regit actum); art. 78° e art. 79° do EA (tempus regit actum); DL n.° 12/93, de 15 de janeiro; DR, 2.a série, n.° 249, de 29 de dezembro de 2006 (parte especial) (tempus regit actum) e alínea A) a K) supra, sobretudo alínea D) a F) supra.
Ponto é que o ato impugnado expõe uma conclusão (a de a A. se encontra em divida para com a Entidade Demandada) sem, contudo, identificar os factos em que concretamente se sustenta ou sequer densificar como, casuisticamente, se apurou a quantia considerada em divida, sendo, por isso, também obscura e insuficiente a fundamentação em que se escora: cfr. art. 124° e art. 125° do CPA (tempus regit actum); alínea A) a K) supra, sobretudo alínea D) a F) supra.
Destarte, a fundamentação do ato impugnado não permite alcançar os motivos de facto, que justificaram o iter cognoscitivo adotado, não concretiza as razões por que se decidiu como se decidiu, nem identifica quais os concretos critérios em que a Entidade Demandada se fundou para decidir no sentido, e no modo, em que o fez: cfr. art. 124° e art. 125° do CPA (tempus regit actum) e alínea A) a K) supra, sobretudo alínea F) supra.
Deste modo, o ato sindicado padece também do invocado vicio.
Destarte, da confluência dos factos apurados com o direito aplicável resulta que o ato impugnado padece dos assacados vícios de violação de lei e de falta de fundamentação, sendo, por isso, cominado com o desvalor da anulabilidade: cfr. art. 133° a art. 136° do CPA (tempus regit actum) e alínea A) a K) supra.”
Vejamos:
A questão essencial aqui em causa prende-se com a natureza jurídica do SUCH, sendo que a própria lei que foi vigorando, foi ziguezagueando desde a sua constituição quanto a este aspeto.
Correspondentemente, no Recurso está em causa predominantemente saber se o SUCH é abrangido pelo artigo 78.° do Estatuto da Aposentação, de modo a que se possa concluir se a acumulação de remunerações da Recorrida enquanto aposentada e funcionária do SUCH foi licita.
Entende a CGA, enquanto Recorrente que o Tribunal a quo fez uma interpretação deficiente dos artigos 78.° e 79.° do Estatuto da Aposentação, advogando que o conceito de pessoas coletivas públicas abrange pessoas coletivas de utilidade pública administrativa de modo a enquadrar o SUCH nesse conceito.
O SUCH foi criado em 22 de Abril de 1966, sendo hoje consensualmente uma associação privada sem fins lucrativos, embora tutelada pelos Ministérios da Saúde e das Finanças, o que, desde logo, suscita alguma perplexidade, evidenciando alguma incoerência.
Como se discorre no Acórdão do STA de 5 de Maio de 1999. Apêndice de 2002-07-30, de 30 de julho:
“I - Quanto à natureza jurídica do SUCH, há que distinguir três fases na vida desse Serviço:
i. desde a sua criação, pelo DL n.º 46 668, de 24/1/1965, até ao DL n.º 70/75, de 19/2, em que assumiu a natureza de pessoa coletiva de utilidade pública administrativa;
ii. desde o DL n.º 70/75 até ao DL n.º 12/93, de 15/1, em que assumiu a natureza de instituto público; e
iii. a partir deste DL n.º 12/93, em que retomou a estrutura associativa e a natureza originária de pessoa coletiva de utilidade pública administrativa. (…)”
Mais se afirmou no referido Acórdão do STA que “O SUCH foi constituído, como se referiu, na sequência da publicação do Decreto-Lei n.º 46.668, de 24 de Novembro de 1965, associando entidades privadas e, mediante autorização, também instituições públicas - estabelecimentos hospitalares oficiais.
O Decreto-Lei n.º 12/93, de 15 de Janeiro, fez cessar a intervenção direta do Estado e fez regressar o SUCH ao seu substrato e à sua natureza associativa. E, por isso, também às finalidades estatutariamente definidas e moldadas, no essencial, ainda nas linhas orientadoras e programáticas do diploma de 1965.”
Também o Tribunal de Contas, no seu Acórdão n.º 35/2010, de 17 de Dezembro de 2010, do Plenário da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1825/2009) afirma o seguinte:
“Assistiu-se ao enfraquecimento dos poderes tutelares e de controlo do Estado, e reforçou-se a sua natureza privada e associativa:”
(…)
O SUCH é uma pessoa coletiva de direito privado”
"(...) o SUCH não só é uma pessoa coletiva de direito privado (...), como tem como associados um número relevante de entidades não públicas que notoriamente escapam aos controlos públicos."
(Cfr. Acórdãos n.° 7/10, 35/10, de 17/12/2010 e n.° 70/2011, de 28/11/2011, do Tribunal de Contas)
O SUCH não deixará de ser, hoje e à data dos factos aqui relevantes, uma entidade de direito privado, não obstante ser reconhecido como uma pessoa coletiva de utilidade pública administrativa o que se não mostra incompatível.
O objetivo da lei ao impedir a duplicação de rendimentos de pensões e remunerações por parte de qualquer beneficiário visa predominantemente evitar que o Estado cumule injustificadamente despesa.
Não obstante a anacrónica tutela ministerial relativamente ao SUCH, enquanto entidade privada, o que é facto é que, incontornavelmente, este não beneficia de financiamento público.
Efetivamente, e como vi-mos, o SUCH é hoje uma pessoa coletiva privada, de natureza associativa, o que desde logo afasta a aplicabilidade do artigo 78° do Estatuto da Aposentação.
Retira-se, pois, o afirmado no já aludido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de maio de 1999, onde lapidarmente se afirma ainda que "(...) o SUCH não reveste também atualmente natureza pública" (...) "O Decreto-Lei 12/93, de 15 de Janeiro, fez cessar a intervenção direta do Estado e fez regressar o SUCH ao seu substrato e à sua natureza associativa."
Esquematizando e sintetizando:
a. O SUCH foi criado pelos seus associados (cfr. Decreto-Lei n.° 46.668 de 24 de novembro de 1965) e não pertence à estrutura orgânica do Estado;
b. O SUCH visa satisfazer a necessidades dos seus próprios associados, públicos e privados;
c. Os membros nomeados pelo Estado para o Conselho de Administração do SUCH estão em minoria;
d. A tutela Ministerial sobre o SUCH só lhe garante pontuais poderes de homologação;
e. O SUCH está sujeito à fiscalização do Tribunal de Contas ao abrigo de norma especial, criada para contemplar associações privadas com associados públicos;
f. O SUCH não é financiado por qualquer entidade pública.
Aqui chegados, importa reiterar que o SUCH não é uma pessoa coletiva pública, sendo que nenhum dos critérios normalmente adotados para essa distinção, permite a sua qualificação como pessoa coletiva pública, pois não só não foi criado pelo Estado, como não pertence à estrutura orgânica do Estado, nem por este é financiado.
Assim, o SUCH não está abrangido pelo âmbito literal do artigo 78.° do Estatuto da Aposentação vigente à data dos factos, nem podendo, por via interpretativa, ser incluído no seu âmbito de aplicação.
Como resulta da Sentença Recorrida, o SUCH, além de não ter natureza pública, não beneficia de receitas públicas, pelo que, também por essa razão, não se enquadra no âmbito da aplicabilidade do artigo 78.° do Estatuto da Aposentação.
Aliás, é a própria CGA quem, em oficio dirigido no âmbito do presente procedimento à Vice-presidência do Governo da RAM, em 2011-03-22 (Doc. 12 PI), afirma, no que aqui releva, que as entidades abrangidas pelo artigo 78.° do Estatuto da Aposentação, além das expressamente referidas na norma, são também "outras entidades de natureza fundacional, associativa ou outra, que prossigam fins públicos, com base em recursos patrimoniais também públicos", o que não é, manifestamente, o caso do SUCH.
Com efeito, não é suscetível de ser confundido o reconhecimento de uma entidade como de interesse público, que tem a ver com os fins prosseguidos, com a sua natureza pública ou privada, a qual resultará já e predominantemente do seu estatuto jurídico e fontes de financiamento.
A qualificação do SUCH como pessoa coletiva de utilidade pública administrativa demonstra que o mesmo é, não uma pessoa coletiva pública, o que determinaria a aplicabilidade dos artigos 78.° e 79.° do Estatuto da Aposentação, mas antes uma pessoa coletiva privada de natureza associativa, tendente à satisfação de interesses públicos.
Incorre a CGA, pois, num equivoco, ao entender a "Natureza pública" de uma entidade, como sinónimo de "fins de interesse público", sendo que estes fins poderão ser prosseguidos por entidade de natureza pública ou privada, pois que as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa não são pessoas coletivas públicas, pois que se o fossem, não careceriam dessa acrescida qualificação, o que se mostraria redundante e inútil.
Face ao exposto, importa concluir que a Sentença Recorrida não merece censura, mantendo-se na ordem jurídica a determinada anulação do ato da CGA de 2012-01-17, que ordenou o reembolso por parte da aqui Recorrida de €75.506,40, correspondentes à acumulação da Pensão de Aposentação com as remunerações que auferiu no SUCH de 2003.11.03 a 2011.07.31.
V - Decisão:
Assim, face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da subsecção Social da secção de contencioso administrativo do TCA Sul, em negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se a Sentença Recorrida.
Custas pela Recorrente
Lisboa, 31 de outubro de 2024
Frederico de Frias Macedo Branco
Maria Helena Filipe
Maria Julieta França |