Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 2062/08.3BELRS |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 11/07/2024 |
Relator: | ÂNGELA CERDEIRA -Relatora por vencimento |
Descritores: | FUNDAMENTOS DE IMPUGNAÇÃO FALTA DE NOTIFICAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO INEXISTÊNCIA DE FACTO TRIBUTÁRIO VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA TRIBUTAÇÃO PELO LUCRO REAL |
Sumário: | I - A falta de notificação do ato de liquidação contende não com a sua legalidade, mas com a sua exigibilidade, pelo que, ainda que se verificasse, a mesma não atingiria a validade do ato impugnado, sendo que em sede de impugnação é apenas aferível esta última. II - Não é possível concluir pela inexistência de facto tributário, em sede de IRC, apenas com base no facto de o estabelecimento comercial ter sido encerrado no mês de fevereiro do exercício a que respeita a liquidação. III - Ao aplicar “cegamente” a presunção estabelecida no artigo 83º, nº 1, alínea b) do CIRC, sem atender às especificidades do caso concreto, a Administração Tributária incorreu na violação do princípio da tributação pelo lucro real. |
Votação: | COM VOTO DE VENCIDO |
Indicações Eventuais: | Subsecção Tibutária Comum |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | I – RELATÓRIO
A Fazenda Pública, doravante “Recorrente”, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, em 12.03.2021, que julgou procedente a Impugnação Judicial intentada por F........., Lda. (doravante “Recorrida”), representada pela única sócia-gerente, M.........., e, em consequência, anulou a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [IRC] e respetivos juros compensatórios, relativa ao exercício de 2004, no total de € 48.105,68. Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: ««A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial à margem identificada, deduzida por M.........., na qualidade de sócia-gerente da F.........., LDA., NIPC 50.........., na sequência da notificação do indeferimento do recurso hierárquico por si deduzido contra a liquidação oficiosa referente ao IRC do exercício de 2004, no valor total de €48.105,68. B. Ora, salvo o devido respeito, a douta sentença incorre em erro de julgamento que resulta não só da incorreta fixação e valoração da factualidade assente, como também da errónea interpretação e violação da lei. Vejamos então, C. A primeira premissa em que se baseou a douta sentença de que ora se recorre para julgar a impugnação procedente foi a de que a Impugnante não foi notificada da liquidação em crise nos presentes autos, por justo impedimento, em virtude da detenção da sua sócia gerente em 05.02.2004, tendo concluído pela “…inexigibilidade da dívida exequenda, nos termos previstos na alínea i) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.” D. Ora, a falta de notificação da liquidação não põe em causa a sua validade, mas tão só a sua eficácia, sendo que em sede de impugnação judicial, a eficácia invalidante da notificação só é relevante quando esteja em causa a apreciação da caducidade do direito à liquidação, questão que não é do conhecimento oficioso nem foi suscitada nos presentes autos. E. A singela alegação de ocorrência de falta de notificação da liquidação não se configura como um fundamento de impugnação, mas sim de oposição à execução (cfr. art.º 204.º, n.º 1, al. e) ou i), do CPPT), não tendo, pois, a virtualidade de pôr em causa a validade da liquidação impugnada, pelo que considera a Fazenda Publica que houve erro de julgamento nesta parte. F. Considera igualmente a Fazenda Pública que o douto tribunal procedeu a uma deficiente fixação e valoração da prova produzida com o inerente erro no sentido da decisão final, no que respeita ao cumprimento por parte da impugnante do ónus da prova que sobre si impendia quanto ao justo impedimento para o recebimento das notificações da liquidação que lhe foram remetidas, ao entender que da detenção da impugnante em 05.02.2004, e que da certidão emitida pelo SF da Amadora 1, a atestar que a impugnante apenas levantou as cópias das cartas em 10.09.2008, resultava a ilisão da presunção dos n.ºs 5 e 6 do art. 39º do CPPT. G. Desde logo, pelo doto tribunal não foi relevado que, em 07.02.2004 foi determinada a prisão preventiva da sócia-gerente da Impugnante, tal como resulta da Deliberação nº230/2004, publicada no DR de 27/2/2004, do INFARMED, (Cf. Anexo II junto aos autos com o libelo inicial), e tal facto porque relevante, deveria constar do probatório assente, porquanto, do art. 125º do C.P.Penal, resulta que a prisão preventiva está sujeita a prazos máximos de duração. H. Por outro lado, também não foi devidamente valorado pelo douto tribunal o facto de não constarem dos autos quaisquer elementos de prova que permitam aferir o período em que se manteve a detenção da sócia-gerente da Impugnante nem quando ocorreu o seu términus, I. Ora, tais factos, mostram-se de extrema relevância para a decisão dos presentes autos, pelo que deveriam ter sido tidos em consideração pelo douto tribunal a quo, uma vez que dos mesmos resulta, em conjugação com os restantes elementos dos autos, que a prisão preventiva da sócia-gerente determinada em 07.02.2004, pode ter terminado muito antes de 17.04.2006, data da emissão da liquidação em crise nos presentes autos. J. A existência do justo impedimento tem de ser provada por quem a invoca, nos termos legalmente exigidos (art. 341º e 342 do C. Civil), prova essa que a impugnante não logrou, pelo que, salvo o devido respeito, mal andou o douto tribunal ao concluir pela ilisão da presunção do n.º 5 do art. 39º do CPPT. K. Por fim, importa ainda referir que, contrariamente ao entendimento preconizado pelo douto tribunal, da certidão emitida pelo Serviço de Finanças a atestar que a impugnante apenas levantou as cartas em 10.09.2008, apenas resulta que foram levantadas às cópias das cartas nessa data, mas de tal certidão, ainda que conjugada com a detenção da sócia-gerente da impugnante em 05.02.2004, não resulta que a impugnante não tivesse conhecimento da liquidação em crise nos presentes autos, em data anterior a tal levantamento, pois note-se que a impugnante, não conformada com a liquidação, apresentou Reclamação Graciosa em 12.06.2006, ou seja, quase um mês após a emissão da liquidação, e que na sequência da notificação do seu indeferimento apresentou em 05.06.2008 recurso hierárquico. L. Ora, tais factos não foram igualmente devidamente valorados pelo douto tribunal, pois dos mesmos resulta que a liquidação chegou, efetivamente, ao conhecimento da ora recorrida em data anterior ao do levantamento das cópias das cartas em 10.09.2008. M. Sem conceder, a segunda premissa em que se baseou a douta sentença para julgar a impugnação procedente foi considerar que resultava provado nos autos que a Impugnante apenas exerceu a sua atividade até 29.02.2004, concluindo que “Não tendo tido atividade comercial, não existe facto tributário, pelo que, não pode haver tributação.” N. Não pode a Fazenda Pública, com o devido respeito, conformar-se com o assim decidido, por ser seu entendimento que, in casu, a liquidação de IRC do ano 2004 e a respetiva falta de atividade da Impugnante, não padecer do enquadramento legal que lhes vem apontado pela sentença recorrida, designadamente, pela falta de prova da Impugnante de que não foi exercida qualquer atividade geradora de imposto, respeitando o seu ónus da prova, designadamente pela apresentação de qualquer documentação contabilística que comprovasse tal facto, não sendo suficiente a referida deliberação do INFARMED que determina o encerramento imediato da impugnante, com apreensão do respetivo alvará e com o consequente não fornecimento de medicamentos ao público, para derrogar o respetivo ónus da prova da Impugnante, porquanto O. não se poderá olvidar, em matéria de valoração da prova produzida nos autos, que os documentos contabilísticos, fundamentados e baseadas em critérios objetivos, abalizados por técnico oficial de contas, assim como todos os elementos secundários ou laterais à atividade de uma sociedade, são as provas por excelência da situação económico-financeira de uma determinada sociedade. Logo, são os documentos da contabilidade organizada que permitem, como prova suficiente e idónea, demonstrar que não existiu facto tributário ou se verificou excesso de liquidação no ano em discussão, para efeitos de anulação da liquidação, em sede reclamação ou impugnação, nos termos do n.º10 do art.83.º do CIRC. P. No caso concreto, resulta demonstrado nos autos de primeira instância que a AT provou os pressupostos legitimadores da sua atuação. Por seu lado, a Impugnante, ora recorrida, não logrou demonstrar qualquer documento contabilístico ou similar que comprove que não teve qualquer tipo de atividade geradora de imposto em 2004. Q. E, não obstante, a impugnante ter cessado a sua atividade para efeitos de IVA em 29.02.2004, o certo é que de tal decisão não resulta a prova de que a impugnante não tenha retomado a sua atividade nesse mesmo ano, pois não resultam dos autos quaisquer elementos que permitam aferir o que sucedeu após tal deliberação do INFARMED. R. Ora, cabe à Impugnante o ónus da prova dessa ilegalidade, comprovando que não foi exercida qualquer atividade geradora de imposto (cfr., nesta linha, acórdão do STA de 22.04.2015, processo nº 0826/13 e acórdão do TCAN de 16.10.2014, processo nº 00333/11.0BEAVR, in www.dgsi.pt)., e sendo inequívoco que a Impugnante não apresentou qualquer documentação contabilística, e que a contabilidade e os elementos fiscais são um dos principais meios de provas para atestar a atividade e rendimento da sociedade, daqui decorre que é inegável que pela Impugnante não foi apresentada qualquer prova desse espetro. S. Com efeito, a impugnante não produziu prova, a apresentar juntamente com a citada deliberação do INFARMED, de que a cessação da sua atividade se verificou em 29.02.2004 (v.g.escritura de dissolução e liquidação da sociedade reportada a essa data), mais se devendo levar em consideração que é ao contribuinte que incumbe o ónus da prova do direito que invoca (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.). T. Acresce que o douto tribunal também não considerou o facto da impugnante ter exercido a sua atividade até 29.02.2004, o que por si só determina a existência do facto tributário, pois nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 8º do CIRC, na redação vigente à data, o período de tributação pode, ser inferior a um ano. U. E tendo a AT emitido a liquidação oficiosa por falta da entrega da declaração de rendimentos referente ao exercício de 2004, se a impugnante não concordava com os valores resultantes da mesma, por serem inferiores, então deveria ter questionado a fixação da matéria tributável, o que não fez V. Por todo o exposto, a douta sentença ao julgar procedente a presente impugnação fê-lo incorrendo em erro de julgamento de facto, atenta a errónea apreciação dos factos pertinentes para a decisão no que se refere não só à alegada prova do justo impedimento para efeitos de ilisão da presunção da notificação da liquidação mas também quanto à prova da falta do exercício de atividade da impugnante no ano de 2004, mais incorrendo em erro de julgamento de direito por violação do disposto nos artigos 8º, 55º e 74º todos da LGT, art. 342º do C. Civil e arts. 8º, 83º/1, b), 109º e 115º (atuais 117º e 123º) todos do CIRC Pelo que se peticiona o provimento do presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, assim se fazendo a devida e acostumada, JUSTIÇA!»
Regularmente notificada do despacho de admissão de recurso, a Recorrida não apresentou contra-alegações. *** O DIGNO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso. *** Colhidos os vistos legais, vem o processo à conferência. São as seguintes as questões a decidir:
a) Há erro de julgamento em virtude de a falta de notificação não contender com a legalidade da liquidação? “Caso assim não se entenda”, aa) O tribunal a quo procedeu a uma deficiente fixação e valoração da prova produzida ao concluir pela ilisão da presunção do n.º 5 do art. 39º do CPPT, uma vez que a impugnante não logrou provar o justo impedimento da sua sócia-gerente para o recebimento de tais notificações? b) Há erro de julgamento quanto à premissa da inexistência de facto tributário, porquanto, a Impugnante não apresentou a devida prova da falta do exercício de atividade geradora de imposto em 2004, designadamente, qualquer documentação contabilística que comprovasse tal facto. Caso se decida em substituição, nos termos do disposto no art.º 665.º, do CPC: c) A liquidação em crise incorreu na violação do princípio da tributação do lucro real?
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto: 1) A Impugnante não entregou a declaração periódica de rendimentos relativa ao exercício de 2004, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 109.º do Código do IRC, até ao final do último dia útil do mês de Maio de 2005; 2) A administração fiscal procedeu à competente liquidação oficiosa; 3) Em 12 de Junho de 2006, a ora Impugnante apresentou reclamação graciosa - cfr. doc. de fls.11 a 15 do processo de reclamação graciosa (PRG) ínsito no processo administrativo (PA) apenso aos autos; 4) De acordo com o despacho do Chefe do Serviço de Finanças competente, o pedido foi indeferido liminarmente, por ter sido considerado intempestivo - cfr. doc. de fls. 33 do PRG ínsito no PA apenso aos autos; 5) Em causa está a colecta de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do ano de 2004, no montante de €49.722,36, cuja data limite de pagamento terminou em 26.05.2006; 6) Notificada do indeferimento da reclamação graciosa a Impugnante apresentou recurso hierárquico a que foi dado o n.º 233/07 - cfr. doc. de fls. 2 a 7 do processo de recurso hierárquico(PRH) ínsito no PA apenso a este processo; 7) O mesmo foi indeferido - cfr. PRH; 8) O despacho de indeferimento foi notificado à Impugnante em 24 de Setembro de 2008, através do ofício n.º10901 de 5.6.08 de folhas 83 do processo de recurso hierárquico apenso; 9) A sociedade “F.........., LD.ª”, NIPC: 50…….., só levantou as cartas registadas com aviso de receção em causa, no serviço de Finanças - Amadora 1 em 10.09.2008 - cfr. doc. de fls.9 dos autos; 10) Por Deliberação nº 230/2004, publicada no DR de 27/2/2004, do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) foi ordenado o encerramento imediato da FARMÁCIA de que a Impugnante era sócia gerente, com apreensão do respectivo alvará e com o consequente não fornecimento de medicamentos ao público em 09.02.2004 - cfr. doc. de fls.17 dos autos; 11) A ora Impugnante foi detida em 5.02.2004 - cfr. doc. de fls.17 dos autos; 12) A sociedade “F.........., LD.ª”, NIPC: 50………, encerrou a sua atividade em 29.02.2004 - cfr. doc. de fls.9 dos autos; 13) A presente impugnação judicial deu entrada no tribunal em 23 de Dezembro de 2008.» * Refere-se ainda na sentença recorrida:
«Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados».
Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto: “Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se na prova documental junta aos autos, e no processo administrativo em apenso identificados em cada um dos factos». * II – APRECIAÇÃO DO RECURSO Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a Impugnação Judicial intentada por F………, Lda. e, em consequência, anulou a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [IRC] e respetivos juros compensatórios, relativa ao exercício de 2004, no total de € 48.105,68. Para o efeito, considerou o tribunal de 1.ª instância que “dúvidas não restam que a falta de notificação da liquidação de IRC relativa ao exercício a que respeitam os rendimentos, efetuada nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 83.º do CIRC, por falta da entrega da declaração de rendimentos, nessa medida, gera a inexigibilidade da dívida exequenda, nos termos previstos na alínea i) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.” Mais acrescentando que “[n]ão tendo tido atividade comercial, não existe facto tributário, pelo que, não pode haver tributação.” A Fazenda Pública não se conforma com o decidido, invocando, desde logo, que “a falta ou invalidade da notificação não é fundamento válido de impugnação, dado que esse é um ato comunicativo exterior e posterior ao ano notificado e, portanto, a invalidade da notificação não contende com a validade da liquidação, mas apenas com a sua eficácia” (conclusões A a E das alegações do recurso). E, efectivamente, assim é. Como se pode ler no acórdão deste Tribunal Central Administrativo de 28.02.2019, processo 1382/12.7BELRA, disponível em www.dgsi.pt, “[a] falta de notificação do ato contende não com a sua legalidade, mas com a sua exigibilidade (art.º 77.º, n.º 6, da LGT), pelo que, ainda que se verificasse, a mesma não atingiria a validade do ato impugnado, sendo que em sede de impugnação é apenas aferível esta última. Aliás, em sede de impugnação judicial, a eficácia invalidante da notificação só é relevante quando esteja em causa a apreciação da caducidade do direito à liquidação, questão que não é do conhecimento oficioso nem foi suscitada nos presentes autos. Assim, a alegação singela de ocorrência de falta de notificação das liquidações não se configura como um fundamento de impugnação, mas sim de oposição à execução (cfr. art.º 204.º, n.º 1, al. e) ou i), do CPPT), não tendo, pois, a virtualidade de pôr em causa a validade das liquidações impugnadas, o que é visado pelos impugnantes em sede de impugnação judicial.” Como tal, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento nesta parte. Quanto à segunda premissa em que se baseou a sentença recorrida para julgar a impugnação procedente – a inexistência de facto tributário - a Fazenda Pública também não se conforma com o assim decidido, “por ser seu entendimento que, in casu, a liquidação de IRC do ano 2004 e a respetiva falta de atividade da Impugnante, não padecer do enquadramento legal que lhes vem apontado pela sentença recorrida, designadamente, pela falta de prova da Impugnante de que não foi exercida qualquer atividade geradora de imposto, respeitando o seu ónus da prova.” Desde já se adianta que assiste razão à Recorrente. O IRC incide sobre os lucros das sociedades comerciais que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola - cfr. artigo 3.º, n.º 1, al. a), do CIRC. Ora, a própria sentença recorrida reconhece (pág. 11) que “resulta da matéria de facto considerada provada por este tribunal, que a Impugnante exerceu a sua atividade até 29.02.2004”. Por conseguinte, verificando-se que a farmácia exerceu efetivamente a atividade normal nos meses de janeiro e fevereiro, não é possível concluir sem mais, como fez o tribunal a quo, pela inexistência de lucro tributável no exercício de 2004, sendo certo que tal prova cabia à Impugnante.
Pelo exposto, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento também neste segmento. * Dispõe o nº 2 do artigo 665º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 281º do CPPT, que “se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”. No caso concreto, lida a petição inicial, verifica-se que a Impugnante invocou a violação do princípio da tributação do rendimento real, sustentando neste âmbito que o “o IRC, do ponto de vista da incidência real, incide sobre os rendimentos obtidos (máxime, o lucro) e, que o nº 2 do artigo 104º da Constituição da República Portuguesa (CRP), estabelece ao princípio da tributação do rendimento real, ou seja, que “A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”, perguntar-se-á como é possível tributar a sociedade como se tivesse tido actividade em todos o exercício, quando pelos factos carreados para o processo, se retira que a actividade foi encerrada pelo INFARMED, em 29/02/2004”. Por se afigurar revelante para a apreciação da questão em causa, aditam-se os seguintes factos ao probatório: 14) Em 17/10/2005, por carta registada com aviso de receção assinado em 18/10/2005, V.......... remeteu à AT uma carta manuscrita e assinada por si, na qual, além do mais, informa que não apresentou a declaração periódica de rendimentos relativa ao ano de 2004 porque se encontra impossibilitada de o fazer por a Farmácia ter sido fechada pelo Infarmed no início de fevereiro de 2004 e ela própria ter sido detida pela Policia Judiciária, que levou a documentação para o Tribunal da Boa Hora, tendo depois sido objeto de outro processo, no Tribunal de Loures, que mandou selar as instalações e entregar a documentação e mercadoria a um fiel depositário, os quais não recuperou até então – fls. 16 e 17 do processo de reclamação graciosa que integra o PA apenso ao processo físico. 15) Em 17/4/2006 a administração fiscal procedeu à liquidação oficiosa nº ………05, relativa ao IRC de 2004, e respetivos juros compensatórios, tendo apurado o saldo de € 48.105,68 – fls. 21 e 36 do PA anexo; Decidindo. O princípio da tributação das empresas pelo rendimento real está consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual “A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”. A Constituição proíbe, pois, que a determinação da matéria colectável, nos rendimentos empresariais, assente no rendimento normal, desligado da realidade concreta do sujeito passivo. Porém, a Constituição não proíbe que o rendimento real seja determinado por forma indirecta, quer dizer, que se apure um rendimento real presumido, em vez de um rendimento real efectivo. Tanto um como outro são ainda rendimento real, apenas se diferenciando pela intensidade do apelo que fazem a elementos objectivos ou objectivados pela declaração e registos dos sujeitos passivos e demais suportes disponíveis – cfr. José Xavier de Basto, O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, consultável in www.isg.pt. No caso dos autos, a liquidação foi efectuada oficiosamente pela AT por falta de entrega da declaração de rendimentos relativa ao exercício de 2004 e o cálculo do imposto teve por base a totalidade da matéria colectável do exercício de 2003, nos termos do disposto nos artigos 82º, alínea b), e 83º, nº 1, alínea b) do CIRC. Trata-se, assim, de uma liquidação que tem por base um rendimento presumido por inexistirem, no prazo legal, elementos declarados pelo sujeito passivo – cfr. acórdão do TCA-Sul de 15.02.2024, processo 951/10.4BELRS, disponível em www.dgsi.pt. Todavia, a referida norma deve ser interpretada à luz do princípio da tributação do rendimento real e da regra da avaliação directa da matéria colectável, que visa a determinação do valor real dos rendimentos sujeitos a tributação, consagrada nos artigos 81.º, nº 1 e 83º, nº 1, ambos da LGT. O que significa que “se a Administração tem à sua disposição elementos que lhe inculquem a percepção de uma matéria tributável diversa, deverá realizar a liquidação oficiosa adoptando essa base” (cfr. Paulo Marques, Joaquim Miranda Sarmento e Rui Marques, IRC, Problemas Actuais, 2018, 2.ª edição, p. 163). Como salientam os referidos autores, “a aplicação do valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, da totalidade da matéria colectável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada, não pode nunca ser considerada ou tratada como uma sanção ao contribuinte relapso. Esse propósito apenas poderá ser seguido em processo contra-ordenacional”(ob. cit., p. 163). Assim, “se o Fisco dispuser de elementos que permitam uma configuração mais aproximada da realidade tributária do sujeito passivo, então torna-se mister que os mesmos sirvam de base à avaliação da matéria colectável” (ob. cit., p. 164). Ora, no caso dos autos resulta do probatório que, por carta registada de 17/10/2005, a representante legal da Impugnante/Recorrida comunicou à administração tributária que o estabelecimento comercial (“Farmácia”) havia sido encerrado pelo Infarmed no início de fevereiro de 2004 e que, por ordem do Tribunal de Loures, a “documentação e mercadoria” haviam sido entregues a um fiel depositário (facto aditado ao probatório sob o nº 14)). E, efectivamente, foi apurado nos autos que por Deliberação nº 230/2004, publicada no DR de 27/2/2004, do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) foi ordenado o encerramento imediato da FARMÁCIA de que a Impugnante era sócia-gerente, com apreensão do respectivo alvará e com o consequente não fornecimento de medicamentos ao público em 09.02.2004 (cfr. ponto 10)) e que a sociedade encerrou formalmente a sua atividade em 29.02.2004 (cfr. ponto 12)). Deste modo, no momento em que emitiu a liquidação impugnada (17/04/2006), a Administração Tributária já tinha conhecimento de que o estabelecimento comercial da Impugnante/Recorrida havia sido encerrado em fevereiro de 2004, o que tornava inverosímil o rendimento tributável estimado com base na totalidade da matéria colectável no ano anterior, razão pela qual ao aplicar “cegamente” a presunção estabelecida no artigo 83º, nº 1, alínea b) do CIRC, sem atender às especificidades do caso concreto, a Administração Tributária incorreu na violação do princípio da tributação pelo lucro real. Como tal, assiste razão à Impugnante, padecendo a liquidação impugnada de vício de violação de lei, conducente à sua anulação. E, assim, formulamos as seguintes conclusões/Sumário: 1. A falta de notificação do ato de liquidação contende não com a sua legalidade, mas com a sua exigibilidade, pelo que, ainda que se verificasse, a mesma não atingiria a validade do ato impugnado, sendo que em sede de impugnação é apenas aferível esta última. 2. Não é possível concluir pela inexistência de facto tributário, em sede de IRC, apenas com base no facto de o estabelecimento comercial ter sido encerrado no mês de fevereiro do exercício a que respeita a liquidação. 3. Ao aplicar “cegamente” a presunção estabelecida no artigo 83º, nº 1, alínea b) do CIRC, sem atender às especificidades do caso concreto, a Administração Tributária incorreu na violação do princípio da tributação pelo lucro real.
IV. Decisão
Sem custas. Registe e notifique. Lisboa, 7 de novembro de 2024 Ângela Cerdeira (relatora por vencimento)
Margarida Reis
Rui A. Ferreira (relator vencido nos termos da declaração que junta) Assinaturas electrónicas na 1ª folha VOTO VENCIDO porque não concordo com a fundamentação nem com o sentido do segmento decisório que fez vencimento. Não concordo com o entendimento de que a legalidade da notificação da liquidação não pode constituir fundamento válido de impugnação judicial (com a reconhecida exceção dos casos de caducidade do direito de liquidar o tributo). É para mim absolutamente claro que ao dispor que a impugnação se pode fundar em qualquer ilegalidade, o artigo 99º do CPPT admite, não só, qualquer fundamento que contenda com a validade da liquidação, como será o caso da caducidade do direito de liquidar o tributo, como também qualquer fundamento que contenda com a admissibilidade da própria impugnação, como será o caso da tempestividade da reclamação graciosa subjacente à impugnação. De facto, no caso concreto, o sujeito passivo deduziu reclamação graciosa invocando justo impedimento por a sua única gerente ter estado detida criminalmente, mas esse pedido foi indeferido por intempestividade; pelo que, na sequência, deduziu a presente impugnação judicial invocando erro na decisão. A sentença recorrida reconheceu a invalidade da notificação da liquidação devido ao justo impedimento para a receber e para deduzir atempadamente a reclamação graciosa e determinou a anulação do ato tributário. É nesse contexto que a Fazenda Pública recorre agora alegando que a ilegalidade da notificação não constitui fundamento válido de impugnação. Alegação que a decisão que faz vencimento acompanha, Parece ser muito claro que, em situações como esta, tal fundamentação da impugnação é absolutamente essencial e deve ser conhecida pelo tribunal como pressuposto de admissibilidade da instância. Na verdade, não reconhecendo esse fundamento, a decisão que agora faz vencimento só tinha uma opção coerente: - concluir que a notificação por carta registada com aviso de receção devolvida à AT e repetida nos termos do artigo 39º, nº 5, do CPPT formou a presunção de notificação e que, portanto, a reclamação graciosa foi apresentada intempestivamente e, logo, a impugnação judicial deveria ter sido rejeitada por inimpugnabilidade do ato e a sentença que assim não reconheceu é ilegal e dever ser totalmente revogada. Isso implicava que o conhecimento de todas as restantes questões ficaria prejudicado. Por isso, eu decidiria, conforme projeto vencido, que a Fazenda Pública não tem razão nesta parte e conheceria as restantes questões. Tal como tinha proposto no projeto vencido, também decidiria que a sentença recorrida errou na parte em que julgou verificada a inexistência de facto tributário e também conheceria em substituição a questão relativa à possibilidade de convolação da reclamação graciosa em procedimento de revisão previsto no artigo 78º da LGT. A decisão que fez vencimento optou por não conhecer essa alegação e por chamar a si o poder de conhecer a questão do excesso de tributação oficiosa, nos termos dos artigos 82º, al. b), e 83º, nº 1, al. b), do CIRC, concluindo que a AT já sabia que o estabelecimento estava encerrado desde 9/2/2004 e, portanto, não podia aplicar cegamente a lei que aplicou porque isso viola o princípio da tributação pelo lucro real. Eu teria considerado que a AT estava colocada perante o dever constitucional da prossecução do interesse público de acordo os princípios da legalidade e demais princípios previstos nos artigos 266º da CRP e 55º da LGT, bem como o da tributação tendencial pelo lucro real. Entendo que a regra da prossecução do interesse público em conformidade com o princípio da legalidade não admite exceções, ao contrário da aplicação do princípio da tributação do lucro real, que apenas exige que a tributação incida “fundamentalmente”, mas não necessariamente, sobre o rendimento real das empresas (artigo 104º, nº 2, da CRP). Perante a falta de apresentação da declaração de rendimentos, modelo 22, do IRC, a AT estava legalmente compelida a efetuar a liquidação oficiosa nos termos da lei, isto é, considerando que a matéria coletável omitida corresponde à totalidade da matéria coletável do último exercício em que ela é conhecida, nos termos do artigo 88º, nº 1, al. e), do CIRC, sem prejuízo da possibilidade de retificação posterior. Essa norma impõe que a liquidação oficiosa incida sobre a “totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada”, não tendo a AT autoridade para liquidar com base apenas numa parte desse valor, sem prejuízo do poder dever de averiguação posterior da situação real, designadamente para efeitos de liquidação adicional, se for caso disso (note-se que a AT não tem o dever oficioso de inquisitório para averiguar a necessidade de anulação total ou parcial da liquidação em causa nos autos). Diversamente, a decisão que faz vencimento parece presumir, sem fundamentar factualmente, que o rendimento apurado oficiosamente corresponde ao exercício da atividade durante um ano completo, em manifesta desproporção com a atividade de pouco mais de um mês no ano 2004. Assim, considero que a liquidação oficiosa efetuada nos termos da lei é conforme ao princípio da tributação do lucro real porque a própria lei prevê a possibilidade de reclamar, rever oficiosamente e impugnar o ato tributário, concedendo ao sujeito passivo a possibilidade (que é um ónus seu) de comprovar o rendimento real efetivo. Não acompanho a decisão que fez vencimento na parte que conhece a questão sem apurar qualquer facto relativo ao rendimento obtido no ano 2004, dispensando, na prática, o ónus do contribuinte e anulando totalmente a liquidação, e sem contraditar o facto de esta ter sido efetuada nos estritos termos impostos pela lei (sobre a totalidade da matéria coletável conhecida). Por isso, eu decidiria revogar a sentença, anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e condenar a AT a praticar um novo ato que convole a reclamação em procedimento de revisão oficiosa, para apuramento da verdade material e emissão de decisão quanto ao mérito da liquidação, tudo em conformidade com os exatos termos decididos, em caso muito semelhante, pelo Acórdão do STA de 17/01/2018, proferido no processo nº 01377/14, disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/F2CD78DF5BFE90C8802582270053E099 e, em casos análogos, por este Tribunal Central Administrativo do Sul. Rui A. S. Ferreira, relator vencido. |