Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:688/14.5BELLE
Secção:CA
Data do Acordão:07/04/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PRECEDÊNCIA E PREVALÊNCIA DE LEI
PODER REGULAMENTAR
ANTENAS DE TELECOMUNICAÇÕES
Sumário:
I - O regulamento administrativo é uma norma jurídica, de natureza secundária, de carácter geral e de execução permanente dimanada de uma autoridade administrativa sobre matéria própria da sua competência, nos termos da lei.
II – A norma regulamentar constante do artigo 10º (Validade de autorização) do Regulamento da CMVRSA, publicitado no DR. IIª Série, nº145, de 22.06.2004, sujeita todo e qualquer ato administrativo de autorização para instalação de antenas de telecomunicações - emitido no âmbito do procedimento do Decreto-Lei nº11/2003 - a um termo (final) máximo de validade de cinco anos.
III - O fundamento jurídico do poder regulamentar externo assenta na lei. Constitucionalmente, o princípio da legalidade da administração pública, no que aos regulamentos respeita, analisa-se tipicamente em três subprincípios: 1°- o regulamento não pode invadir os domínios constitucionalmente reservados à lei, isto é, aquelas matérias que, segundo a Constituição, só a lei pode regular (reserva de lei); 2°- o regulamento supõe sempre uma lei antecedente, que ele visa regulamentar ou ao abrigo da qual é emitido (precedência da lei); 3°- o regulamento não pode contrariar a lei, designadamente a lei que aquele visa regulamentar ou ao abrigo da qual foi emitido (prevalência da lei).
IV - O princípio da preferência ou preeminência da lei significa que o regulamento não pode contrariar um ato legislativo ou equiparado (cf. o n.º 7 do artigo 112.º da Constituição). A lei tem absoluta prioridade sobre os regulamentos.
V - O cit. regulamento municipal reporta-se, na verdade, ao Decreto-Lei nº 11/2003 e impôs, no artigo 10º, um termo à autorização municipal inerente à instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações, e respetivos acessórios, fixando à mesma “a validade máxima de cinco anos, podendo ser prorrogada por iguais períodos ou inferiores períodos de tempo…”.
VI – Assim, o cit. art. 10º do Regulamento aditou ao regime uniformizador e nacional constante de norma legislativa um comando normativo inovatório, com eficácia externa, criando a sujeição a um termo final, necessário, no ato administrativo de autorização de instalação de antenas de telecomunicações, assim alterando o âmbito e o alcance deste ato administrativo tal como se encontra configurado no Decreto-Lei nº 11/2003, nomeadamente nos seus artigos 6.º, 7.º e 10.º.
VII – Desse modo desvirtuou o objetivo uniformizador nacional do Decreto-Lei nº 11/2003 e, ainda, constringiu ilegalmente as posições jurídicas subjetivas das empresas interessadas.
VIII – Pelo que o art. 10º do Regulamento cit. é inconstitucional na parte em que fixa um termo à autorização municipal regulada no Decreto-Lei nº 11/2003, devendo, por isso e nessa parte, ser aqui desaplicado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I – RELATÓRIO

M………., S.A. [anteriormente designada O………., S.A.] interpôs no T.A.F. de Loulé a presente ação administrativa especial contra o MUNICÍPIO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO.

A pretensão formulada foi a seguinte:

- a desaplicação, por ilegalidade, do artº10º do Regulamento de Autorização Municipal para Instalação e Funcionamento das Infraestruturas de Suporte das Estações de Radiocomunicações e Respetivos Acessórios da CMVRSA, publicado no dia 22 de junho de 2004, na II Série, nº145, do Diário da República.

- que seja [...]declarado nula ou anulável o ato da autoria do Sr. Vereador J………….., da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António , datado de 13 de junho de 2014, apenas na parte em que lhe opôs um termo (de 5 anos), para que reste na ordem jurídica o ato de deferimento de 13.6.2014, mas sem o termo de cinco anos.

Na sentença recorrida, o T.A.F. de Loulé decidiu julgar a ação improcedente e, como tal, foi indeferido o peticionado.

*

Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A) A sentença do tribunal a quo decidiu, pela não ilegalidade do ato, estando na base de tal decisão o entendimento, não suportado em qualquer estudo científico, as que as infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações consubstanciam um "risco para a saúde pública" e que aos municípios cabe apreciar e decidir em matéria cie Licenciamento radioelétrico das estações de radiocomunicações.

B) O tribunal a quo parte de um pressuposto errado ao não distinguir entre infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações, em que a competência para a sua autorização é das câmaras municipais e as próprias estações de radiocomunicações, cujo licenciamento não é da competência dessas entidades.

C) Não é às Câmaras Municipais que cabe adotar medidas que condicionem a instalação de infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações por suposta emissão das estações de radiocomunicações, desde logo, porque essas infraestruturas não emitem criam campos eletromagnéticos!

D) A sentença do tribunal a quo ao decidir que a parte do ato impugnada não é ilegal por não ser ilegal o art.º10° do Regulamento com os fundamentos que invocou, viola os artigos 1º, 6°, n° 9 ex vi art.15°, n°4, todos do Decreto-Lei n° 11/2003, de 18 de Janeiro, bem como viola também o Princípio da Legalidade da Administração previsto nos arts.241.° e artigo 3°, n°3, da Constituição da República Portuguesa.

E) Acontece que o Regulamento aqui em causa- no que respeita ao seu artº10º- não só viola o Princípio da Prevalência da Lei, como carece, em absoluto, de norma habilitante, violando o princípio da precedência de lei (nenhuma das leis invocadas no preâmbulo permitem a regulamentação de matérias a que se reporta do DL 11/2003, de 18/1)

F) O regime previsto no Decreto-Lei n°555/99, de 16/12, não se aplica à instalação de infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações.

G) A disposição regulamentar em causa- art.º10º do Regulamento -carece de norma habilitante (princípio da precedência de lei), nos termos do n°7 do artigo 112° da Constituição da República Portuguesa, o que é sancionado com a respetiva nulidade.

H) O artº10° do Regulamento, ao introduzir um novo condicionalismo no âmbito do procedimento de autorização municipal definido no Decreto-Lei nº11/2003, de 18 de janeiro — condicionalismo esse de duração de apenas 5 anos das autorizações municipais —, viola de forma flagrante o Princípio da Prevalência da Lei previsto no artigo 112°, nº 5 da Consumição da República Portuguesa.

I) Assim, a sentença do tribunal a quo viola o disposto nos números 5 e 7 do artº112° da Constituição da República Portuguesa, bem como o Princípio da Precedência de Lei ínsito no art.3°, nº1do CPA.

J) É pacífico que a ilegalidade de uma norma regulamentar pode ser suscitada incidentalmente na impugnação de um ato administrativo que a aplique, nos termos do artigo 268°, n°4 da Constituição.

K) Sem prescindir do fato, do tribunal a quo não fundamentar, o seu entendimento sobre a não violação do art.121° do CPA, a sentença do tribunal a quo ao não ter anulado a parte do ato que a Recorrente impugnou, violou o artº121° do CPA em vigor à data da prática do ato, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare a invalidade dessa parte do ato em crise nos autos.

L) O termo de cinco anos oposto ao ato de autorização municipal é ilegal por violação do artº266°, n°2 da Constituição e arts.2°, nº5 e 5°, n°2, ambos do CPA, em conformidade, a sentença do tribunal a quo, ao não ter assim decidido, viola o art.266°, nº2, da Constituição e arts. 2°, n° 5 e 5°, n° 2, ambos do CPA.

M) Fundamentando-se a parte do ato impugnada no artigo art.10° do Regulamento e sendo tal norma ilegal não existe fundamento legal para o deferimento apenas por cinco anos quanto as antenas aqui em causa logo, o tribunal a quo ao não ter decidido que a parte do ato impugnada é ilegal por falta de fundamentação de fato, viola a al. d), do n°1 do artº123° e 125°, ambos do CPA.

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O recorrido MUNICÍPIO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO contra-alegou, concluindo assim:

A) - As infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicação e respetivos acessórios têm sempre na sua utilização, as licenças das estações cuja estrutura suportam, sendo esta válida por um período de 5 anos, sendo que, a conjugação da autorização dessas infraestruturas com o licenciamento das próprias estações, que é concedida pelo ICP- ANACOM, não representa qualquer limitação de autorização.

B) - Não se verifica qualquer violação dos artigos 1°, 6° n° 9, 15° n° 4 do DL n°11/2003 de 18 de Janeiro e artigos 112° n° 5 e 7 da Constituição da República Portuguesa, porquanto o "Regulamento de Autorização Municipal para Instalação e Funcionamento das Infraestruturas de Suporte das Estações de Radiocomunicações e Respetivos Acessórios", foi publicado no n° 145 do Diário da República de 22 de Junho de 2004, mantendo-se em vigor, não tendo sido requerida qualquer declaração de ilegalidade da norma emitida ao abrigo de disposições de Direito Administrativo;

C) - Não se verifica qualquer contradição entre o mencionado Regulamento e a restante legislação aplicável, nomeadamente o disposto no Decreto-Lei 11/2003 de 18 de janeiro e o Decreto-Lei 151-A/2000 de 20 de julho;

D)- A autorização municipal para a construção das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicação, encontra-se dependente de licença (título) emitido pelo ICP-ANACOM no que respeita ao funcionamento da respetiva estação de radiocomunicação;

E) - O artigo 10° do Regulamento não representa qualquer violação das normas dos respetivos Decretos cabendo ao Município, no exercício do seu poder regulamentar próprio estabelecer os critérios para a referida autorização;

F) - Não se verifica qualquer ilegalidade relativamente à parte do ato administrativo que deferiu a autorização pelo prazo de cinco anos, podendo ser prorrogados por iguais ou inferiores períodos de tempo, não podendo a mesma ir além do período de validade do título emitido pelo ICP-ANACOM quando existente, nos termos do Decreto-Lei n° 151-A/2000 de 20 de Julho.

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade:

A) Na Informação, de 2014.06.04, elaborada pelo Técnico Superior da Entidade Demandada, E……….., com o assunto “Processo de autorização municipal - art°15° do Decreto-Lei n°11/2003, de 18 de Janeiro, pode ler-se, in fine, designadamente, o seguinte: (….) considero que estão reunidas as condições para ser concedida a autorização municipal requerida" (cfr. fls 302 a 304 do processo administrativo);

B) Na Informação referida em A), foi exarado pelo Sr. Vereador da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, J………, o despacho de 2014.06.13, que autorizou 5 Infraestruturas de Suporte de Estações de Radiocomunicações da Autora, instaladas no concelho, pelo prazo de 5 anos (cfr. doc n°1 junto com pi);

C) Pelo ofício de 2014.06.17, a Autora foi notificada pela Entidade Demandada do despacho referido em B) e da Informação Jurídica de 2014.06.04 que o suportou (cfr doc n° 1 junto com pi);

D) Em 2003.06.15, a O………. requereu ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, autorização municipal para a instalação das Infraestruturas de Suporte às Estações de Radiocomunicações, instaladas no concelho (cfr doc n°2 junto com pi);

E) Em 2014.07.28 a Autora interpôs recurso hierárquico do ato de 2014.06.13, pedindo a revogação do prazo de 5 anos que lhe foi fixado (cfr Docs de fls.75 a 80 dos autos físicos).

Consignou-se ainda na sentença recorrida sob a menção “Factualidade não provada” que «Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão do mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados»

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso - cf. artigos 144º-2 e 146º-4 do CPTA, artigos 5º, 608º-2, 635º-4-5 e 639º do CPC-2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA -, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo - cf. artigos 73º-4, 141º-2-3, 143º e 146º-1-3 do CPTA. Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

Ora, tudo visto, a questão a dirimir é a de saber se a sentença recorrida que entendeu ser de aplicar um termo de 5 (cinco) anos à autorização municipal para a instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações, por via da aplicação do artigo 10º do Regulamento Camarário publicado na II Série do DR. nº145, de 22.06.2004, enferma de erro de julgamento de direito nas seguintes vertentes:

(i) Em violação do disposto nos nºs 5 e 7 do artigo 112º da Constituição da República Portuguesa e do princípio da Legalidade Administrativa, plasmado nos artigos 241º e 3º, nº3, todos da lei fundamental;

(ii) Por errada interpretação do disposto nos artigos 1º 6º, 9º e artigo 15º, nº4 do Decreto-Lei nº 11/2003 e artigo 121º, do CPA;

(iii) Por interpretação errónea do princípio da proporcionalidade, vertido nos artigos 2.º, n.º 5 e 5º, nº2, ambos do CPA e o disposto no artigo 266º, nº2 CRP; e

(iv) Ao considerar fundamentado o despacho impugnado, com violação da al. d) do nº1 do artigo 123 e 125º, ambos do CPA, na versão aplicável.

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Temos presente tudo o que já expusemos, bem como: (1º) que o Direito – tendo uma dimensão real-social e uma dimensão ideal de justiça - é uma ciência social da decisão que se refere a um conjunto de regras e princípios jurídicos, ordenado em função de um ou mais pontos de vista (sistema), sendo o ordenamento jurídico um sistema social (no sentido do jurista e sociólogo N. Luhmann: um sistema da sociedade moderna, funcionalmente diferenciado, autopoiético, coerente e racional, cuja função é manter estáveis as expectativas socio-normativas independentemente da sua eventual violação), mas um sistema aberto e alterável, nomeadamente, através de novos objetivos políticos e do acoplamento estrutural entre sistemas sociais; (2º) que há uma correta metodologia jurídica para decidir processos jurisdicionais (cf. artigos 1º a 3º, 9º, 110º/1, 112º, 202º/1/2, 203º e 204º da CRP e artigos 10º, 342º e 343º do CC); (3º) que são nuclear o princípio estruturante da dignidade da pessoa humana (cf. artigo 1º da CRP), o princípio estruturante do Estado democrático e social de Direito (cf. artigo 2º da CRP), o princípio formal da segurança jurídica (cf. artigos 1º e 2º da CRP), o princípio jurídico geral e máxima metódica da igualdade sujeita ao dever de fundamentação dos argumento racionais (cf. artigo 13º da CRP) e a máxima metódica da proporcionalidade fora das vinculações jurídicas estritas, sujeita ao dever de fundamentação dos argumentos racionais (cf. artigos 1º, 2º e 18º/2 da CRP); destaca-se ainda, nesta Jurisdição, o princípio jurídico geral da prossecução do interesse coletivo (bem comum) por parte das atividades de administração pública (cf. artigos 266º e 268º/3/4 da CRP).

Passemos, assim, à análise do recurso de apelação.

A 1ª questão a resolver é de saber se o TAF de Loulé errou, quando concluiu que o artigo 10º do “Regulamento de Autorização Municipal para Instalação e Funcionamento das Infraestruturas de Suporte das Estações de Radiocomunicações e Respetivos Acessórios” [também e doravante “Regulamento”] da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, publicitado no DR. IIª Série, nº145, de 22.06.2004, não colide com os princípios constitucionais da prevalência da lei e da precedência de lei, vertidos nos nºs 5 e 7 do artigo 112, e com o princípio da legalidade administrativa plasmado nos artigos 241º e 3º, nº3, todos da CRP.

Observemos em primeiro lugar um resumo da matéria de facto mais relevante – que não foi posta em causa.

A autora e aqui recorrente intentou no TAF de Loulé a presente ação administrativa, com vista a anular o despacho de 13-6-2014, proferido pelo Vereador da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António [doravante, CMVRSA], em delegação de competências, na parte em que, por via da aplicação do artigo 10º do Regulamento Camarário, divulgado no DR. IIª Série, nº145, de 22-6-2004, impôs o termo de cinco anos à autorização municipal que lhe foi concedida, em decorrência do pedido que havia apresentado ao abrigo do artigo 15º do Decreto-Lei nº11/2003, de 18-1.

Entende a recorrente que o artigo 10º do aludido Regulamento Municipal é orgânica e formalmente inconstitucional, por extravasar o âmbito da normação próprio dos regulamentos – artigos 112º, nºs 5 e 7 da CRP.

Vejamos o que dizer.

O princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a atuação administrativa» [vide Diogo Freitas do Amaral e Outros, in Código do Procedimento Administrativo Anotado, 6.ª edição, 2007, Almedina, p.40].

Constitucionalmente, o princípio da legalidade da administração, no que aos regulamentos respeita, analisa-se tipicamente em três subprincípios (v. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4a ed., pp. 673 e segs):

1°- o regulamento não pode invadir os domínios constitucionalmente reservados à lei, isto é, aquelas matérias que, segundo a Constituição, só a lei pode regular (reserva de lei);

2°- o regulamento supõe sempre uma lei antecedente, que ele visa regulamentar ou ao abrigo da qual é emitido (precedência da lei);

3°- o regulamento não pode contrariar a lei, designadamente a lei que aquele visa regulamentar ou ao abrigo da qual foi emitido (prevalência da lei).

O fundamento jurídico do poder regulamentar externo assenta na lei. A este propósito citemos Afonso Queiró: «O poder regulamentar é um poder público - e não há poder público que não seja o poder supremo (a Constituição ou a lei) ou que não se baseie no poder supremo. A lei constitucional ou ordinária é o poder ou a fonte de todos os poderes. O poder regulamentar, como poder público, não pode, pois, deixar de ter o seu fundamento jurídico na lei (constitucional ou comum), expressa ou implicitamente» [“Revista de Direito e de Estudos Sociais”, janeiro-março de 1986, ano I (2.ª série), n.º 1, pp. 11 e 12].

O princípio da primariedade ou precedência da lei relativamente à atividade regulamentar encontra afirmação no n.º 7 do artigo 112.º da Constituição da República, que dispõe que «Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão.»

Comentando o texto constitucional, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: «O princípio da primariedade ou precedência da lei é claramente afirmado no n.º 7 [do artigo 112.º], onde se estabelece: (a) a precedência da lei relativamente a toda a atividade regulamentar; (b) o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta dupla exigência torna ilegítimos, não só os regulamentos carecidos de habilitação legal, mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente este fundamento» [in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume II, 4.ª edição revista, p. 75.]

Devendo todos os regulamentos mencionar as leis que os legitimam, a falta dessa menção traduz a ausência de um elemento constitucionalmente necessário, pelo que tais regulamentos padecem de inconstitucionalidade formal.

A CRP não se limitou, porém, a obrigar os regulamentos a respeitar a lei. Determina também (art.º 112°, nº 5) que “Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”. Ou seja, nem a própria lei pode autorizar a sua revogação, derrogação, suspensão, etc., por outra via que não outra lei, estando vedados, portanto, os chamados "regulamentos delegados". Trata-se de afirmar o princípio de preeminência da lei, mesmo contra a própria lei, que o não pode afastar.

Dito por outras palavras, nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.

O princípio da preferência ou preeminência da lei significa que "o regulamento não pode contrariar um ato legislativo ou equiparado. A lei tem absoluta prioridade sobre os regulamentos, proibindo-se expressamente os regulamentos modificativos, suspensivos ou revogatórios das leis" (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, pp. 672).

Estabelece o artigo 241º da Constituição: que «As autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar.”

Este poder regulamentar é uma expressão da autonomia local. O núcleo da autonomia local consiste no poder de aprovar regulamentos administrativos, os quais são normas jurídicas aprovadas pelas autarquias locais no exercício dos seus poderes administrativos.

O regulamento é, na classificação do Prof. Marcello Caetano, a «norma jurídica de carácter geral e execução permanente dimanada de uma autoridade administrativa sobre matéria própria da sua competência» (cfr. Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10ª ed., Coimbra Editora, pág., 95).

Daqui resulta que, do ponto de vista material, os regulamentos são normas jurídicas que encerram as características da generalidade e abstração típicas dos atos normativos, tal como as leis. No entanto, não se confundem com estas, porque os regulamentos são editados no exercício do poder administrativo e as leis a que se refere o artigo 112º, nº1 da CRP, são aprovadas no exercício da função legislativa.

Existem vários critérios para se classificarem os regulamentos. Dividem-se, quanto ao seu domínio de aplicação, em gerais, se dimanam do Governo para vigorar em todo o território do Estado, ou locais, se aplicáveis numa parte do território.

Os regulamentos das autarquias locais só podem ser, pela natureza das coisas, aplicáveis no território coberto pela autarquia, ou seja, serão sempre regulamentos locais. Estes regulamentos das autarquias locais podem classificar-se como internos e externos.

Os regulamentos internos esgotam a sua eficácia jurídica no seio da Administração «dirigindo-se exclusivamente para o interior da organização administrativa, sem repercussão direta nas relações entre esta e os particulares» - vide Diogo Freitas do Amaral, ob cit., vol. III, p. 25. Enquanto os regulamentos externos são bilaterais, isto é, vinculam a Administração Pública e os particulares ou entes públicos, gozando da característica da bilateralidade ou lateralidade. Precisam sempre de uma norma legal habilitadora, devendo indicar a lei ao abrigo da qual são emanados, de acordo com o disposto no artigo 112º, nº7 da CRP.

Relativamente ao critério de dependência face à lei, os regulamentos podem ser de execução ou independentes.

Os regulamentos de execução visam a boa execução das leis, isto é, visam proporcionar as condições necessárias à boa aplicação das leis, de acordo com a vontade da lei ou do legislador e de um modo uniforme. Interpretam a lei, integram eventuais lacunas e dotam a lei de pormenores técnicos de aplicabilidade. Não acrescentam nada de novo à lei, são secundum legem e devem sempre indicar, expressamente, qual a lei que remete para a sua regulamentação pelas autarquias locais – artigo 112, nº7, da Lei Fundamental.

Quanto aos regulamentos autónomos ou independentes, o seu conteúdo não está predeterminado na lei, são inovadores, elaborados no exercício de competência própria e para o desempenho das atribuições normais e permanentes da autoridade administrativa. Note-se, contudo, que, como decorre do artigo 241º da CRP, estes regulamentos autónomos não podem violar as normas de valor superior já existentes, não podem em suma ser "contra-legem", e neles deve indicar-se a lei que confere esse poder regulamentar às autarquias, bem como a lei que especifica que as autarquias têm competência na matéria do regulamento em causa, ou seja, o mesmo é dizer a competência objetiva e subjetiva para a sua emissão (vide Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol I, Lisboa, 1980, pág. 118).

Diga-se, ainda, que a aprovação dos regulamentos depende de um procedimento administrativo, regulado no CPA, artigos 114º e ss (na atual versão do CPA, artigos 96º e ss). Além do procedimento, para que o regulamento seja válido tem de se verificar uma série de requisitos: (i) subjetivos – o órgão emissor têm que ter competência regulamentar, a qual só existe quando a lei lhe atribui essa competência; (ii) objetivos materiais –o conteúdo e objeto dos regulamentos têm que ser possíveis e inteligíveis, não podem dizer respeito a reversa de lei, nem contrariar o bloco da legalidade; (iii) objetivos formais – têm de ser escritos, e (iv) de eficácia - terão de ser publicitados no Diário da República ou no jornal oficial do município [vide Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, Atividade Administrativa, Tomo III , pág. 247 e ss.]

Feito este brevíssimo excurso sobre o regulamento e o poder regulamentar das autarquias locais, impõe-se agora convocar o “Regulamento de Autorização Municipal para Instalação e Funcionamento das Infraestruturas de Suporte das estações de Radiocomunicações e Respetivos Acessórios” da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, publicitado no DR. IIª Série, nº145, de 22.06.2004, reproduzindo o teor do seu artigo 10º.

Preceito esse, que sob a epígrafe “ Validade da autorização”, dispõe assim: “A autorização municipal a que se refere o presente Regulamento tem a validade máxima de cinco anos, podendo ser prorrogada por iguais períodos ou inferiores períodos de tempo, não podendo a mesma ir além do período de validade do título emitido pelo ICP- ANACON, quando existente, nos termos do Decreto-Lei nº151-A/2000, de 20 de Julho”.

É este o normativo que a recorrente afirma que viola de forma flagrante o Princípio da Primariedade ou da Precedência da Lei, ínsito nos nºs 5 e 7 do artigo 112º da CPR e no artigo 3º, nº1 da CPA -à semelhança do que já havia peticionado junto do TAF de Loulé.

Vejamos.

No introito do aludido Regulamento arrolam-se as disposições que, na perspetiva do Município recorrido, autorizam o exercício do seu poder regulamentar próprio, e, consequentemente, a emissão do Regulamento em dissídio [cfr. o artigo 241º da CRP; a al. a) do artigo 53º da Lei nº169/99, de18-9, na redação dada pela Lei nº5-A/2002, de 11-01; o artigo 3º do Decreto-Lei nº 555/99 de 16-12, na redação dada pelo Decreto-Lei nº177/2001, de 4-6 e a Lei nº42/98, de 6-8].

Em jeito de nota de rodapé, cabe dizer que a menção nessa exposição de motivos ao diploma que estabeleceu o regime jurídico da urbanização e da edificação [DL 555/99 de 16-12, na redação dada pelo Decreto-Lei nº177/2001 [RJUE] não tem aqui relevância após a data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º11/2003, de 18-01 [igualmente ali referido], que regulamentou o procedimento de autorização municipal para a instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações e respetivos acessórios [vide o seu artigo 1º], e que assim afasta, nesta matéria, a aplicação das normas do RJUE.

É sabido que os Municípios, através do órgão legalmente competente [in casu a Assembleia Municipal -artigo 53º, nº2, al)a da Lei 169/99, na redação dada pela Lei nº5-A/2000, de 11-1], podem por principio editar sobre a matéria de regulamentos com base unicamente no artigo 241º do CRC – ambos os preceitos foram convocados no introito do Regulamento em causa.

A este propósito referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, em anotação ao artigo 241º, que “é a própria Lei Fundamental que fornece a credencial constitucional para que as autarquias locais possam, com grande latitude, aprovar normas jurídicas primárias sobre matérias que integram o leque das atribuições específicas. E, assim sendo, na medida em que o poder regulamentar autárquico possa ser reconduzido ao disposto no artigo 241º, não se descortina o sentido de fulminar com um juízo de inconstitucionalidade os regulamentos que não cumpram a exigência que se extrai do nº7 do artigo 112º (cf. no sentido de que, fora da reserva de lei, os regulamentos autárquicos podem ser aprovados sem referencia especial, pelo que se deve afastar, em coerência, o dever de citação imposto pelo nº7 do artigo 112º, L. Cabral de Moncada, Lei e Regulamento, págs,1097-1098; cfr. ainda Nuno Piçarra, A reserva de Administração, in O Direito, 1990, pág., 599; A. Cândido de Oliveira, Direito das Autarquias Locais, págs., 294-295).

Sucede, porém, que o Regulamento aqui em exame indica no seu artigo 1º, sob o título “Âmbito e objeto”, que se dispõe a “…regula[r] a autorização municipal inerente à instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações, e respetivos acessórios, definidos no Decreto-Lei nº 151-A/2000 de 20 de Julho”.

De modo que, por natureza e por definição, não estamos no âmbito do artigo 241.º (Poder regulamentar) da Constituição, que respeita a “regulamentos independentes”, investindo as autarquias numa certa medida (variável) de normação primária ou inicial de factos jurídicos.

O caso dos autos apela, antes, a “regulamentos de execução” de uma específica lei- o Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho, alegadamente.

Recorde-se que os “regulamentos complementares ou de execução desenvolvem ou aprofundam a disciplina jurídica constante de uma lei. E, nessa medida, completam-na, viabilizando a sua aplicação aos casos concretos, sendo, como já se afirmou, ilegais os que contrariem o disposto na lei que desenvolvem ou executam, já que a lei prevalece sobre os regulamentos, sendo ainda insuscetíveis de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, revogar ou suspender qualquer preceito de lei, bem como alargar ou reduzir o seu âmbito - artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte, da Constituição” [vide Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, volume II, 2011, pág.185].

Ora, o Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho, estabeleceu o regime aplicável ao licenciamento de redes e estações de radiocomunicações.

E no seu artigo 20.º refere-se que a instalação de estações de radiocomunicações e respetivos acessórios, designadamente antenas, em prédios rústicos ou urbanos carece do consentimento dos respetivos proprietários, nos termos da lei e que não são dispensados quaisquer outros atos de licenciamento ou autorização previstos na lei, designadamente os da competência dos órgãos autárquicos [nºs 1 e 2].

No Preâmbulo deste diploma, esclarecia-se, esses atos de licenciamento ou autorização da competência dos órgãos autárquicos a que se alude «visam tutelar interesses diversos dos que estão cometidos à entidade gestora do espectro radioelétrico».

Só que há aqui um senão: em 18-1-2003 foi publicado o Decreto-lei nº11/2003, que veio regular “... a autorização municipal inerente à instalação das infra -estruturas de suporte das estações de radiocomunicações e respetivos acessórios definidos no Decreto -Lei n.º 151 -A/2000, de 20 de Julho, e adota mecanismos para fixação dos níveis de referência relativos à exposição da população a campos eletromagnéticos (OHz -300GHz)” (art.º 1). Definindo, no âmbito daquele diploma, «infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações e respetivos acessórios», no artigo 2.º, como o "conjunto de elementos que permitem a instalação e funcionamento dos equipamentos de radiocomunicações".

De acordo com o disposto no art.º 5 do Código Civil, esse diploma, por não ter disposição própria sobre a matéria, começou a vigorar no 5.º dia posterior à publicação (art.º 2, n.º 2 do DL 74/98, de 11.11, à data vigente), ou seja, em 23-1-2003, isto é, em momento anterior ao da publicitação [em 22.06.2004] e, consequente entrada em vigor, do “Regulamento de Autorização Municipal para Instalação e Funcionamento das Infraestruturas de Suporte das estações de Radiocomunicações e Respetivos Acessórios” da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, que foi em 6-7-2004.

Ademais, uma leitura mais atenta do “Regulamento”, permite-nos concluir que o seu conteúdo reproduz, na íntegra, o texto das normas ínsitas no artigo 1º, 1ª parte, e nos Capítulo II e V do Decreto-Lei nº 11/2003. E que a redação dos artigos 11 º e 12º espelham, com as devidas e necessárias adaptações, o regime de fiscalização e o regime sancionatório previsto no Capítulo IV daquele diploma.

Na verdade, o regulamento visa regulamentar o Decreto-Lei nº 11/2003, de 18-1.

O regime decorrente do Decreto-Lei nº 11/2003, de 18-1, regulamenta a autorização municipal da instalação e funcionamento de infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações, quer para as que se pretendiam instalar, quer para as já instaladas à data da entrada em vigor daquele diploma. Isto é o mesmo que dizer que existe uma lei especial – um ato legislativo - a normalizar a autorização administrativa, a camarária, a que aludia o artigo 20º, nº1 e 2, do Decreto-Lei nº151-A/2000, de 20-6.

Como resulta da exposição de motivos, o Decreto-Lei nº 11/2003, de 18-1 pretende “(…) dar resposta ao vazio legislativo relativo à autorização municipal para a instalação e funcionamento de infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações, tendo em conta a natureza atípica e específica das mesmas e a necessidade de uniformização da atuação dos municípios nesta matéria, garantido a celeridade de todo o processo, características fundamentais para o cumprimento das obrigações inerentes à prestação do serviço pelos operadores de telecomunicações móveis.”

E advém da “necessidade de uniformização da atuação dos municípios nesta matéria, garantindo a celeridade de todo o processo, características fundamentais para o cumprimento das obrigações inerentes à prestação do serviço pelos operadores de telecomunicações móveis. Deste modo, está patente que a intervenção municipal inerente à proteção do ambiente, do património cultural e da defesa da paisagem urbana ou rural e ao ordenamento do território, é conciliável com o respeito pela imperiosa necessidade de incentivo e apoio à prossecução e promoção do desenvolvimento da sociedade de informação e muito em especial do serviço público desenvolvido pelo sector das telecomunicações”.

Ou seja, o procedimento em causa serve a função primacial de “promover o serviço público” do sector das telecomunicações, prosseguindo assim um interesse público supramunicipal (nacional). E em coerência com a preponderância desse interesse de nacional, o legislador instituiu uma diretriz de “uniformização da atuação dos municípios” nesta matéria. Sem prejuízo de se prever a intervenção municipal para tutela de certos interesses locais especificados na lei e que têm a ver com a “proteção do ambiente, do património cultural e da defesa da paisagem urbana ou rural e ordenamento do território”. Preocupações que, de resto, estão bem patentes no n.º 6 do seu artigo 15º, que manda atender aos planos de ordenamento territorial, a quaisquer “normas legais ou regulamentares aplicáveis”, às agressões ao ambiente, ao património cultural e à paisagem”.

Pode, pois, concluir-se que o legislador pretendeu criar um regime uniforme em matéria das condições da “autorização municipal inerente à instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações, e respetivos acessórios”, condizente com a natureza nacional do bem público em causa e das obrigações inerentes à prestação do serviço pelos operadores de telecomunicações móveis, e que esse regime deve, tendencialmente, pôr em pé de igualdade todos os operadores no mercado, sob pena de perverter as leis do mercado.

Ora, esse desiderato, de instituir um regime uniforme, seria certamente posto em causa se, por via do autónomo exercício do poder regulamentar autárquico, cada município pudesse estabelecer condições diferenciadas quanto à autorização de instalação, em particular quanto ao respetivo termo, distorcendo, assim, as condições de concorrência no mercado de prestação deste serviço de interesse público, pelos operadores de telecomunicações móveis.

No DL nº 11/2003 prevê-se o seguinte:

Artigo 6.º - Procedimento

1 - O presidente da câmara municipal profere despacho de rejeição liminar do pedido no prazo de oito dias a contar da respetiva apresentação, sempre que o requerimento não seja instruído com os elementos referidos no artigo anterior.

2 - Compete ao presidente da câmara municipal promover, no prazo de 10 dias a contar da data de apresentação do pedido, a consulta às entidades que, nos termos da lei, devem emitir parecer, autorização ou aprovação relativamente à instalação.

3 - O requerente pode solicitar previamente os pareceres, autorizações ou aprovações legalmente exigidos junto das entidades competentes referidas no número anterior, devendo para o efeito disponibilizar os documentos mencionados na alínea c) do n.º 1 do artigo 5.º

4 - No termo do prazo referido no n.º 2, o interessado pode solicitar a passagem de certidão da promoção das consultas devidas, a qual será emitida pela câmara municipal no prazo de dois dias.

5 - Se a certidão for negativa, o interessado pode promover diretamente as consultas que não hajam sido realizadas, devendo em tal certidão ser enumeradas as entidades que devem ser consultadas.

6 - Os pareceres, autorizações ou aprovações das entidades consultadas devem ser recebidos pelo presidente da câmara municipal ou pelo requerente, conforme o caso, no prazo de 10 dias a contar da data de receção do pedido de consulta.

7 - Considera-se haver concordância daquelas entidades com a pretensão formulada se os respetivos pareceres, autorizações ou aprovações não forem recebidos dentro do prazo fixado no número anterior.

8 - O presidente da câmara municipal decide sobre o pedido no prazo de 30 dias a contar da data de receção do pedido.

9 - O ato de deferimento do pedido consubstancia a autorização para a instalação de infraestruturas de suporte de estações de radiocomunicações e respetivos acessórios.

10 - O disposto no número anterior não dispensa o pagamento de taxas administrativas de instalação exigíveis nos termos e montantes a definir em regulamento municipal, de acordo com os critérios definidos na lei.

Artigo 7.º - Indeferimento do pedido

O pedido de autorização é indeferido quando:

a) Não for cumprido o estabelecido no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho;

b) A instalação das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações violar restrições previstas no plano municipal de ordenamento do território ou no plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidão administrativa, restrição de utilidade pública ou quaisquer outras normas legais ou regulamentares aplicáveis;

c) O justifiquem razões objetivas e fundamentadas relacionadas com a proteção do ambiente, do património cultural e da paisagem urbana ou rural.

Artigo 10.º- Autorização limitada

1 - Nos casos em que se preveja a realização de projetos de utilidade pública ou privada no local indicado pelo requerente para a instalação da sua infraestrutura de suporte, pode o presidente da câmara municipal conceder uma autorização limitada, válida até à realização daqueles projetos.

2 - Uma vez definida a data para a realização daqueles projetos, deverá a câmara municipal notificar o titular da autorização para, dentro de um prazo não inferior a 60 dias, remover integralmente a estação em causa.

Este Decreto-Lei nº 11/2003 é uma “lei especial”, ou específica, no sentido em que institui um procedimento administrativo especial, de tipo autorizatório, que apenas prevê a sujeição a termo nos casos e condições previstas no seu artigo 10º (Autorização limitada), pelo que o Regulamento camarário em causa, na parte em que rege sobre esse procedimento administrativo, deve conter tão-somente normação secundária, precisamente para evitar a que se desvirtue a pretendida uniformidade de regime.

Porém, o Regulamento em crise impôs, no artigo 10º, um termo à autorização municipal inerente à instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações, e respetivos acessórios, fixando à mesma “a validade máxima de cinco anos, podendo ser prorrogada por iguais períodos ou inferiores períodos de tempo, não podendo a mesma ir além do período de validade do título emitido pelo ICP- ANACOM, quando existente, nos termos do Decreto-Lei nº 151-A/2000, de 20 de Julho”. [sublinhado nosso]

Não pode deixar de ter-se presente que foi vontade inequívoca do legislador de 2003 (na circunstancia do Decreto-Lei nº11/2003, expressa no seu preâmbulo) de uniformizar, em matéria das condições, o regime da “autorização municipal inerente à instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações, e respetivos acessórios”, que serve, recorde-se, a função principal de “promover o serviço público” do sector das telecomunicações, prosseguindo assim um interesse público nacional, que estaria posto em causa se por via do poder regulamentar autárquico cada município pudesse estabelecer condições diferenciadas quanto à autorização de instalação, em particular quanto ao respetivo termo, viciando assim as condições de concorrência no mercado de prestação deste serviço, que é de interesse público.

É este o motivo pelo qual se não pode aceitar que seja aposta à autorização municipal inerente à instalação e funcionamento das infraestruturas de suporte das estações de radiocomunicações, e respetivos acessórios de cláusulas, uma norma como a que consta no artigo 10.º do Regulamento emitido pela Entidade Recorrida, que prevê a sujeição a termo como elemento necessário da autorização municipal.

Ora, o artigo 112.º n.º 5 da Constituição proíbe a ingerência, com eficácia externa, de atos infra legislativos em matéria regulada por atos legislativos. Em particular, interdita aos atos infra legislativos a “modificação” de “qualquer dos (…) preceitos” constantes de atos legislativos.

Por outras palavras, institui assim uma modalidade de “reserva de lei”. Com efeito, segundo a melhor doutrina, “quando uma lei regula uma determinada matéria, ela estabelece, ipso facto uma reserva de lei, pois só uma lei ulterior pode vir derrogar ou alterar aquela lei (ou deslegalizar a matéria)” [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., revista, 67].

Assim sendo, no que agora importa, a norma regulamentar que operar tal modificação de ato legislativo infringe diretamente a proibição constitucional, configurando em sentido próprio um caso de inconstitucionalidade.

Como vimos, a norma regulamentar constante do artigo 10º (Validade de autorização) do Regulamento da CMVRSA, publicitado no DR. IIª Série, nº145, de 22.06.2004, sujeita todo e qualquer ato administrativo de autorização para instalação de antenas de telecomunicações -emitido no âmbito do procedimento do Decreto-Lei nº11/2003 de 18-1-, a um termo (final) máximo de validade de cinco anos (embora podendo ser renovado por iguais períodos, ou períodos inferiores).

Dito por outras palavras, adita ao regime legal, de motu próprio, uma previsão regulamentar inovatória com eficácia externa, que impõe a sujeição a termo final, necessário, do ato administrativo de autorização de instalação de antenas de telecomunicações, alterando este ato administrativo tal como se encontra configurado e configurável no Decreto-Lei nº 11/2003 de 18-1, nomeadamente nos seus artigos 6.º, 7.º e 10.º.

Assim, o cit. art. 10º do Regulamento vai além dos arts. 6º, 7º e 10º do Decreto-Lei nº11/2003, desvirtuando o seu objetivo uniformizador e constrangendo as posições jurídicas subjetivas das empresas interessadas.

O Decreto-Lei nº11/2003 permite “taxas administrativas de instalação”, o que é bem distinto de cada município estar legalmente autorizado a emitir, nesta mesma sede, atos administrativos de autorização temporária.

Assim e porque o Regulamento em crise pretende concretizar ou pormenorizar matéria que já foi regulada por um ato legislativo [apesar do teor do seu artigo 1º], não pode conter norma que desvirtue a disciplina legislativa do Decreto-Lei nº11/2003 de 18-1.

Mas não foi o que sucedeu no Regulamento dos autos, já que a norma regulamentar vertida no seu artigo 10º afeta negativamente os direitos regulados no DL nº 11/2003, maxime nos seus arts. 6º, 7º e 10º, e, assim, afronta a disposição constitucional plasmada no nº5 do artigo 112º da CRP, na parte em que este preceito proíbe a “modificação” de atos legislativos por atos de outra natureza, no caso regulamentar, e é, por conseguinte, formal e organicamente inconstitucional.

Do exposto resulta, assim, que o artigo 10º do” Regulamento” da CMVRSA, publicitado no DR. IIª Série, nº145, de 22.06.2004, é inconstitucional, pelo que se impõe a sua desaplicação com efeitos restritos ao caso dos autos, por força dos artigos 204º da CRP e 73º, nº2, do CPTA.

Perante a constatação da situação de inconstitucionalidade do artigo 10º do Regulamento, deve, de imediato, aferir-se a legalidade do ato impugnado - no estrito segmento em que impôs um limite de 5 anos à autorização municipal em causa nos autos- desconsiderando essa norma regulamentar.

Ora, antes e acima do Regulamento está, como já se viu, o Decreto-Lei nº 11/2003, que, apenas no seu artigo 10.º (Autorização limitada), prevê a sujeição a termo (final) do ato administrativo de autorização, e unicamente “Nos casos em que se preveja a realização de projetos de utilidade pública ou privada no local indicado pelo requerente para a instalação da sua infraestrutura de suporte”.

E, assim sendo, o pedido de reapreciação do processo de autorização municipal nº456/2003, apresentando pela recorrente, nos termos do artigo 15º do Decreto-Lei nº 11/2003, deve ser aferido à luz das normas contidas nesse diploma, motivo pelo qual o ato sindicado, ao impor um limite temporal (de 5 anos) aquela autorização administrativa, suportado no disposto no artigo 10º do Regulamento, enferma de erro sobre os pressupostos de direito, o que constitui vício de violação da lei e justifica a sua anulação (cfr. artigos 1º 6º, 9º e artigo 15º, nº4 do Decreto-Lei nº 11/2003 e artigo 135º do CPA, na versão em vigor à data). Deve ser, por isso, aqui desaplicado.

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A solução jurídica desta questão prejudica a apreciação das demais questões suscitadas respeitantes à ilegalidade do ato impugnado- no exato segmento em que o foi – por ter sido praticado com recurso a norma regulamentar inquinada de inconstitucionalidade (cfr. artigo 608º, nº2, do CPC)

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Procedem, pois, as conclusões da Apelante.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juízes do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença, anulando o ato administrativo sindicado apenas no segmento em que impôs o termo do prazo de cinco anos à autorização municipal concedida à Autora aqui Recorrente.

Custas a cargo do Município recorrido em ambos os tribunais.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 04-07-2019


Paulo H. Pereira Gouveia

Catarina Jarmela

Paula de Ferreirinha Loureiro