Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1511/10.5BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:11/07/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:DESTINO ADUANEIRO
ABANDONO DA FAVOR DA FP
FAZENDAS DEMORADAS
Sumário:I. Sendo invocadas, apenas em sede de recurso, duas questões, nunca antes alegadas, que não são de conhecimento oficioso, as mesmas não podem ser conhecidas pelo Tribunal ad quem, dado tratar-se de questões novas (ius novorum).

II. A expressão destino aduaneiro tem um significado próprio que não se confunde com o fim comercial ou o destino de facto dado a um determinado bem.

III.Tendo sido dado a uma mercadoria o destino aduaneiro de abandono à FP, não podia ter a Recorrente procedido à sua venda, configurando tal atuação uma subtração da mercadoria à fiscalização aduaneira.

Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

M................................. - Máquinas ……….., Lda. (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 28.06.2019, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto liquidação oficiosa de fazendas demoradas, imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e respetivos juros compensatórios.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nas suas alegações, a Recorrente concluiu nos seguintes termos:

“A) A recorrente deduziu impugnação judicial contra o ato de liquidação de “Fazendas Demoradas”, IVA e Juros Compensatórios, no montante global de 17.684,99 euros, emitido pela Alfândega de Alverca, tendo o tribunal a quo julgado totalmente improcedente a impugnação, contudo não pode a recorrente concordar com a decisão do tribunal à quo .

B) O Tribunal a quo , retirando-o da al. C) dos factos provados, afirma que a Impugnante identifica, o ato de liquidação visado no seio da mencionada reclamação graciosa respeita “à mercadoria que circulou a coberto do regime de trânsito comunitário externo e que [a Impugnante] recebeu nas suas instalações”, o que, ainda que visando a mesma “mercadoria” em causa nos autos, não coincide com o facto tributário que motivou a liquidação subjacente à presente impugnação, que se traduz na alegada “subtração à fiscalização aduaneira” da sobredita mercadoria.

C) Ainda que assim se considerasse, é de anotar que mesmo que os objectos das acções fossem considerados diferentes, subtracção da mercadoria à fiscalização, por um lado e omissão de apresentação da mercadoria, por outro, o certo é que o procedimento que levou à chegada da mercadoria à impugnante não foi considerada “introdução irregular” no território aduaneiro da comunidade, sendo que tal também se retira dos factos constantes das al B) e C) dos factos provados e dos documentos a que os mesmos se referem juntos aos autos a flls.

D) Ora tendo assim sido decidido e tendo a impugnante sido levada a dar destino á máquina , assim o fez, não sem que antes se inteirasse junto das instâncias aduaneiras sobre a melhor forma de o fazer , conforme consta do relatório final da própria AT a fls 5 do mesmo e do seu anexo IV que se encontram junto aos autos onde pode ler-se que:

« Texto no original»

Devendo tal facto ser dado como provado e acrescentado aos factos dados como provados.

E) Deveria também constar dos factos provados que a Impugnante tentou por diversas vezes que a proprietária da máquina extrusora 42- 48 RV (melilla Brick SARL ) retirasse a mesma das suas instalações , conforme cartas que seguem :

« Texto no original»

F) Igualmente deveria o Tribunal a quo ter dado como provado que a Impugnante exportou a máquina em questão para Angola através de um terceiro, a S…………..importação e exportação Lda porquanto tal encontra-se devidamente comprovado pelos documentos juntos com o PA que se seguem :

« Texto no original»

G) provados os factos constantes das conclusões supra , como bem disse o ilustre Procurador do MP no seu parecer de fls dos autos, a impugnante viu-se envolvida numa situação que a tudo foi alheia , vendo na exportação da máquina para angola através de um terceiro a única solução legal para regularizar a situação.

H) A impugnante não subtraiu a mercadora (maquina) à fiscalização, nem omitiu a sua apresentação, apenas lhe deu um destino tal como lhe foi exigido pela Alfandega ,não lhe cabendo qualquer responsabilidade pelo introdução da maquina em território comunitário, e a existir alguma irregularidade que lhe seja imputável apenas deverá ser sancionada em sede de contra-ordenação.

I) Jamais podendo ser liquidado Iva à impugnante atento o destino dado à máquina (Angola).

J) Ainda que assim não fosse as exportações usufruem de isenção de IVA no caso de transmissões de bens expedidos ou transportados:

-Para fora da Comunidade pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste;

-Para fora da Comunidade por um adquirente sem residência ou estabelecimento em território nacional ou por um terceiro por conta deste (exceto bens destinados ao equipamento ou abastecimento de barcos desportivos e de recreio, de aviões de turismo ou de qualquer outro meio de transporte de uso privado).

K) Se as empresas pretendem exportar para fora da comunidade, mas não possuem uma estrutura adequada para o fazer, podem recorrer a empresas de trading, ou seja, empresas intermediárias. Nesta situação, o exportador passa a ser a empresa de trading, usufruindo esta da isenção de IVA.

L) Existe, no entanto, uma exceção, descrita no artigo 6º do Decreto-Lei n.º 198/90. Estão isentos de IVA, as vendas de mercadorias superiores a 1.000€ efetuadas por um fornecedor a um exportador nacional, exportadas no mesmo estado, desde que se cumpram os seguintes requisitos: Máximo de 30 dias entre a data da fatura (emitida pelo fornecedor) e a data de aceitação da declaração aduaneira de exportação; Máximo de 60 dias para as mercadorias saírem do território aduaneiro da Comunidade (desde a data de aceitação da declaração aduaneira de exportação).

M) Pelo que a impugnante estava isenta de IVA na operação.

N) E deveria o tribunal à quo ter julgado totalmente procedente a impugnação

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA A IMPUGNAÇÃO DA ORA RECORRENTE JULGADA TOTALMENTE PROCEDENTE.

Vossas Excelências farão a costumada justiça”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“A. O regime de trânsito titulado pelo documento de trânsito TI n.° ……………….810 de 05/09/2007 terminou corretamente em 05/12/2007. Após essa data, a mercadoria identificada pela designação comercial "Extrusora 42-48 RNV" por se tratar de mercadoria não comunitária passou à situação de mercadoria em depósito temporário sob fiscalização aduaneira.

B. O que significa que com o fim do regime de trânsito no destino não determina, automaticamente, a libertação da mercadoria da fiscalização aduaneira. Estas continuam sujeitas à fiscalização aduaneira, e, no caso vertente, estamos perante uma mercadoria não comunitária que circulou a coberto do regime de trânsito externo (Tl) e, por isso, continuou sob fiscalização aduaneira.

C. A recorrente vendeu a mercadoria a uma empresa denominada "S……………., Lda." tratando a mercadoria como se ela possuísse o estatuto comunitário.

D. A saída da mercadoria não comunitária das instalações da recorrente em 20/07/2009 configura a subtração da mercadoria à fiscalização aduaneira.

E. A subtração é o facto constitutivo de dívida aduaneira que se considera constituída no momento em que a mercadoria é subtraída à fiscalização aduaneira nos termos do n.° 1 e 2 do art.° 203.° do CAC.

F. E o sujeito passivo da relação tributária é a pessoa que subtraiu a mercadoria à fiscalização aduaneira, ou seja, a ora recorrente.

G. A recorrente com a sua atuação em subtrair a mercadoria à fiscalização aduaneira, desde 20/07/2009, violou o disposto no art.° 37.° em conjugação com os art.°(s) 48.° e 59.° todos do CAC.

H. A presente situação tem enquadramento no § 5 do art.° 638.° do Regulamento das Alfândegas, aprovado pelo Decreto n.° 31730 de 15/12/1941, com a redação dada pelo D.L. 483E/88, de 22/12) que prevê a cobrança de uma taxa ad valorem de 10% sobre o valor aduaneiro da mercadoria, em função da sua condição de abandonada a favor do Estado, pela não atribuição de um destino aduaneiro, no prazo previsto na alínea b) do n.° 1 do art° 49.° do CAC.

I. Daí que, bem decidiu a sentença ao julgar a impugnação improcedente e, em consequência absolver a Fazenda Pública do pedido.

J. Em suma, a sentença recorrida decidiu bem e, por isso, merece ser confirmada na ordem jurídica, na medida em que, a liquidação oficiosa com o número de registo 2010/9001630, com data de 09 de Julho de 2010, no montante total de €17.684,99 (Dezassete mil, seiscentos e oitenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos), a que corresponde €5.620,00 de Fazendas ………………, €11.484,00 relativos a IVA e €579,19 relativos a Juros Compensatórios, praticado em 06/07/2010, pela Alfândega de Alverca, não enferma de qualquer vício, que afete a sua validade.

Nestes termos e nos demais de direito, e com o douto suprimento de V. Exas, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos precisos termos em que foi proferida.

Só, assim, será respeitado o direito e feita JUSTIÇA!”

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há erro na decisão proferida sobre a matéria de facto?

b) Verifica-se erro de julgamento, porquanto não houve introdução irregular no consumo e a exportação sempre seria isenta de IVA?

c) Há erro de julgamento, em virtude de a Recorrente não ter subtraído a mercadoria à fiscalização nem omitido a sua apresentação, limitando-se a dar-lhe um destino?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) A Alfândega de Alverca emitiu em nome da Impugnante liquidação oficiosa com o registo n.º ………./.........346, de 30.06.2008 – conforme documento a folhas 44 a 46 do processo físico, cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

B) A Impugnante deduziu “reclamação graciosa” contra a liquidação a que se alude em A), a qual correu termos sob o processo n.º REC/GRAC/03/2008 – conforme documentos a folhas 44 a 48 do processo físico, cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

C) A Direção de Serviços de Regulação Aduaneira, da Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), prestou informação no âmbito do processo a que se alude em B), da qual consta conforme segue:

«(…)

« Texto no original»

(…)» - conforme documento a folhas 44 a 46 do processo físico, cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

D) Sobre a informação a que se alude em C) foi exarado despacho do diretor-geral da DGAIEC, do qual consta conforme segue:

«Concordo. Proceda-se como é proposto. (…)» - conforme documento a folhas 44 a 46 do processo físico, cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

E) A Alfândega de Alverca realizou ação de fiscalização à Impugnante, visando a “confirmação do destino de máquina apresentada à Alfândega pelo T1 n.º …………………..810” – conforme documento a folhas 108 a 120 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

F) No âmbito da ação de fiscalização a que se alude em E), à qual corresponde o n.º ………..060, foi elaborado “relatório final”, do qual consta conforme segue:
«(…)

« Texto no original»



to temporário para esta mercadoria, por força da aplicação do Artº. 57º, nº 1 CAC;

· A mercadoria encontra-se em situação “mercadoria abandonada” por força da aplicação do § 2º do nº 5 do Artº. 638º do Regulamento das Alfândegas aprovado pelo Decreto nº 31730 de 15-12-1941.

(…)» - conforme documento a folhas 108 a 120 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

G) A Alfândega de Alverca remeteu à Impugnante ofício sob o assunto “ANF 2009-0060 Relatório Final”, do qual consta conforme segue:

«(…)

(…)» - conforme documentos a folhas 106 e 107 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

H) A Alfândega de Alverca realizou ação de fiscalização à Impugnante, visando a «regularização da situação aduaneira da mercadoria identificada como extrusora “42-48 RNV”» – conforme documento a folhas 82 a 93 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

I) No âmbito da ação de fiscalização a que se alude em H), à qual corresponde o n.º 2010-0107, foi elaborado “relatório final”, do qual consta conforme segue:

«(…)

« Texto no original»

(…)» - conforme documentos a folhas 82 a 148 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

J) Sobre o “relatório final” a que se alude em I) foi exarado despacho da Diretora da Alfândega de Alverca, datado de 06.07.2010, do qual consta conforme segue:

«Visto. Concordo.

Proceda-se como proposto. (…)» - conforme documento a folhas 82 a 93 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

K) Do relatório a que se alude em I) consta, sob o seu “Anexo I”, ofício remetido pela DGAIEC à Impugnante, datado de 28.12.2009, do qual consta conforme segue:

«(…)

« Texto no original»




(…)» - conforme documentos a folhas 95 e 96 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

L) Do relatório a que se alude em I) consta, sob o seu “Anexo I”, ofício remetido pela Impugnante à DGAIEC, datado de 07.01.2010, sob o assunto “Regularização da situação aduaneira da Extrusora 42-48 RNV”, do qual consta conforme segue:

«(…)

« Texto no original»

(…)» - conforme documentos a folhas 97 a 102 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

M) Do relatório a que se alude em I) consta, sob o seu “Anexo IX”, documento denominado “Cálculo Discriminado da Dívida”, do qual consta conforme segue:

«(…)

« Texto no original»

(…)» - conforme documentos a folhas 146 e 147 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

N) A Alfândega de Alverca remeteu à Impugnante ofício do qual consta conforme segue:

«(…)

(…)» - conforme documentos a folhas 78 a 81 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

O) O ofício a que se alude em N) foi recebido em 15.07.2010 – conforme documentos a folhas 78 a 80 do P.A., cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido;

P) A petição da impugnação foi remetida por correio ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria e aí recebida em 12.10.2010 – conforme carimbo aposto a folhas 1 do processo físico, cujo teor se dá, aqui, por integralmente reproduzido”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Factos não provados: Inexistem”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“O Tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos provados, com base nos documentos constantes dos autos, acima identificados, os quais não foram impugnados”.

II.D. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

Entende a Recorrente que a decisão proferida sobre a matéria de facto padece de erro, uma vez que da mesma deveriam constar os factos que identifica nas conclusões D), E) e F).

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (1).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (2).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus foram minimamente cumpridos, pelo que se irá proceder à apreciação do requerido.

Refira-se, previamente, que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.

Feito este introito, cumpre apreciar o requerido:

¾ Facto a aditar mencionado na conclusão D):

O aditamento referido carece de qualquer pertinência, se isoladamente considerado, dado que pretende refletir uma realidade que não corresponde inteiramente ao ocorrido.

Como tal, defere-se o aditamento requerido, que será acompanhado de aditamento a título oficioso, ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC.

Como tal, são de aditar os seguintes factos:

Q) A Impugnante remeteu à Alfândega de Alverca mensagem de correio eletrónico, datada de 12.05.2009, da qual consta designadamente o seguinte:

“No seguimento da reunião mantida no passado dia 06/05/2009 (...) formalizamos, desde já, o compromisso em fazer sair do território comunitário o referido equipamento de extrusão, destinando-o a um país terceiro.

Neste momento estamos a analisar a possibilidade de vender a extrusora 42-48 RNV, no seu actual estado, para um cliente que, embora esteja sediado em território nacional, iria expedir a máquina para a República de Angola, facultando-nos, depois, esses mesmos documentos que comprovariam a expedição. De salientar que a máquina seria vendida a um cliente português, que expediria o referido equipamento, titulando a expedição com a sua designação social.

Gostaria de saber se, observando-se este procedimento, regularizaríamos a situação …” (cfr. fls. 87 do processo administrativo).

R) Na sequência do referido em Q), a Alfândega de Alverca remeteu à Impugnante mensagem de correio eletrónico, datada de 27.05.2009, da qual consta designadamente o seguinte:

“- Tal como referido na reunião tida no passado dia 2009-05-06, a M................................., Lda deverá titular e promover as soluções aventadas naquela reunião.

- A transacção comercial entre a M................................., Lda e um seu cliente é alheia à Alfândega de Alverca, contundo nunca poderá ocorrer antes que a situação aduaneira da mercadoria se encontre regularizada por V. Exas.

- Recordamos ainda que, dado o estatuto não comunitário a mercadoria em epigrafe só poderá sair das V. instalações, onde se encontra em Depósito Temporário, ao abrigo de regime suspensivo de trânsito, procedimento que deverá ser formalizado junto da Alfândega de Alverca” (cfr. fls. 87 do processo administrativo).

¾ Facto a aditar mencionado na conclusão E):

O que se pretende aditar tem a ver com os contactos entre a Recorrente e a proprietária da máquina, em 2007. Factos que se afiguram irrelevantes para a decisão do presente caso, que se centra, sim, nas consequências resultantes do facto de a Recorrente ter vendido uma máquina que era da propriedade da sociedade marroquina ali mencionada e que estaria nas instalações da Recorrente para reparação.

Como tal, indefere-se o requerido.

¾ Facto a aditar mencionado na conclusão F):

O que se pretende aditar tem a ver a venda da máquina à S…………….., Lda e sua exportação subsequente para Angola.

Ora, esse facto não só não é controvertido, como representa o ponto de partida fático com que todas as partes concordam, ainda que com leituras diferentes de direito.

Logo, indefere-se o requerido aditamento, dado que se trata de facto que se extrai da factualidade assente, designadamente dos factos H) e L).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A título prévio, para um mais correto enquadramento da situação a apreciar, cumpre sublinhar que o Tribunal a quo conheceu três questões:

a) Da existência de caso administrativo decidido;

b) Da circunstância de a Impugnante não ser sujeito passivo dos tributos em causa;

c) Da não violação do art.º 52.º do Código Aduaneiro Comunitário (CAC).

Quanto à apreciação da primeira questão, a Recorrente faz menção à posição do Tribunal a quo [cfr. conclusão B)], mas não lhe aponta qualquer erro. Como tal, essa apreciação não vem posta em causa no presente recurso.

Quanto à segunda questão, o Tribunal a quo entendeu que houve violação do art.º 638.º, n.º 1, do Regulamento das Alfândegas, no que toca ao destino de produtos que se encontrem em depósitos de regime aduaneiro, quando seja excedido o prazo de armazenagem, porquanto a máquina que está na origem do litígio era mercadoria abandonada. A Recorrente não põe em causa que a S………….. foi a exportadora da máquina e que foi via S……………… que vendeu a referida máquina. Ainda assim, e de forma pouco densificada, é sobre esta parte que a Recorrente se insurge.

No tocante à apreciação da terceira questão, ou seja, da violação do art.º 52.º do CAC, que impunha regras de manipulação de mercadorias em depósito temporário, o Tribunal a quo considerou que tal não constituiu a fundamentação da liquidação em crise, sendo, pois, em seu entender irrelevante tudo o invocado a esse respeito. Também nesta parte nada foi apontado pela Recorrente à sentença.

A Recorrente vem agora, no entanto, invocar que a situação controvertida não foi considerada como introdução irregular no território da comunidade e que, de todo o modo, a exportação nunca estaria sujeita a IVA, por ser isenta.

Ora, in casu, o que o Tribunal a quo entendeu foi que a venda da máquina, efetuada pela Recorrente, não podia ter sido feita pela mesma, dado que se tratava de mercadoria abandonada e que, como tal, deveria ter sido vendida pela autoridade aduaneira.

É aqui que, na perspetiva do Tribunal a quo, radica o facto tributário. Aliás, como resulta da petição inicial, foi a própria Recorrente quem tomou a decisão de informar a proprietária da máquina que, caso esta não a levantasse, a máquina seria declarada perdida a seu favor (cfr. art.º 21.º da petição inicial).

Ora, como decorre da leitura da petição inicial, nunca a Recorrente alegou que não houve consideração de que a mercadoria foi introduzida irregularmente no território da comunidade nem que a exportação estivesse isenta de IVA.

Assim, as questões referidas tratam-se de questões novas (ius novorum).

Com efeito, o processo civil português consagra o chamado princípio da preclusão, ao qual subjaz o ónus de alegação no momento oportuno dos factos essenciais(3), sem prejuízo, naturalmente, das questões que sejam de conhecimento oficioso ou supervenientes.

Por outro lado, consagrando o nosso ordenamento um modelo de recurso de reponderação(4), o Tribunal ad quem deve produzir novo julgamento sobre os factos alegados perante o Tribunal a quo. Este modelo de recurso não é um modelo puro, na medida em que, como já mencionado, podem ser apreciadas pelo Tribunal ad quem questões de conhecimento oficioso e pode ser admitida a junção de documentos, desde que supervenientes, cuja influência pode ditar alteração do julgamento de facto.

Neste seguimento, salvo as exceções a que já se fez menção, o Tribunal ad quem não se pode confrontar com questões novas, apenas devendo ser confrontado com questões que, em momento oportuno, foram discutidas pelas partes.

“Quando respeitem à matéria de facto mais se impõe o escrupuloso respeito de tal regra, a fim de obviar a que, numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas” (5).

In casu, verifica-se, pois, que na presente instância foram efetivamente invocadas as já referidas questões novas, que, como já referimos, não foram oportunamente invocadas.

Assim, sendo questões novas e não sendo as mesmas do conhecimento oficioso, não podem ser aqui apreciadas, votando ao insucesso o alegado pela Recorrente a este propósito.

Portanto, há apenas que apreciar o alegado quanto ao facto de a Recorrente considerar que não subtraiu a máquina à fiscalização e que lhe deu um destino.

III.A. Do erro de julgamento

Entende, assim, a Recorrente que não subtraiu a mercadoria (máquina) à fiscalização, nem omitiu a sua apresentação, apenas lhe deu um destino, tal como lhe foi exigido pela autoridade aduaneira, não lhe cabendo qualquer responsabilidade pela introdução da máquina em território comunitário. Entende que, a existir alguma irregularidade que lhe seja imputável, apenas deverá ser sancionada em sede de contraordenação.

Vejamos.

Do ponto de vista fático e como se extrai dos elementos coligidos em sede de fiscalização, não postos em causa, temos o seguinte:

a) A máquina foi recebida nas instalações da Recorrente, ao abrigo do regime de trânsito comunitário externo;

b) O regime de trânsito foi considerado findo a 05.12.2007;

c) Nessa data, a mercadoria passou à situação de mercadoria em depósito temporário;

d) A 06.06.2008, a mercadoria passou à situação de mercadoria abandonada a favor da Fazenda Nacional, dado não lhe ter sido atribuído qualquer destino aduaneiro;

e) Em 2009, a Recorrente vendeu a máquina à sociedade S.................., Lda, que, por seu turno, a vendeu para Angola.

Como já referimos, o Tribunal a quo entendeu que houve violação do art.º 638.º, n.º 1, do Regulamento das Alfândegas, no que toca ao destino de produtos que se encontrem em depósitos de regime aduaneiro, quando seja excedido o prazo de armazenagem, porquanto a máquina que está na origem do litígio era mercadoria abandonada a favor da FP. A Recorrente não põe em causa que a S.................. foi a exportadora da máquina e que foi via S.................. que vendeu a referida máquina. Ainda assim, e de forma pouco densificada, é sobre esta parte que a Recorrente se insurge.

Ora, no caso, a mercadoria entrou em território português ao abrigo do regime de trânsito externo, então previsto nos art.ºs 91.º e ss. do CAC, o que nunca foi posto em causa pela Recorrente.

Tendo sido considerado findo o regime de trânsito, as mercadorias passaram a estar em depósito temporário, nos termos do n.º 2 do art.º 37.º do CAC, o que também nunca foi posto em causa.

Veja-se que o regime de depósito temporário, densificado nos art.ºs 50.º a 53.º do CAC, refere-se, justamente, a mercadorias que aguardam que lhes seja atribuído um destino aduaneiro (cfr. o art.º 4.º, n.º 15, do CAC para um elenco dos vários destinos aduaneiros de uma mercadoria).

A 06.06.2008, a máquina passou à situação de mercadoria abandonada a favor da FP, por não lhe ter sido atribuído outro destino aduaneiro (cfr. art.º 182.º, n.º 1, terceiro travessão, do CAC e art.º 638.º, n.º 5, § 2.º do Regulamento das Alfândegas).

Toda esta situação fática não foi posta em causa e a verdade é que a mercadoria ficou numa situação de ausência de destino aduaneiro, em virtude de ter chegado ao fim o regime de trânsito, que sustenta a circunstância de ter sido considerada abandonada nos termos referidos – veja-se que, nos termos do art.º 4.º, n.º 15, do CAC, o abandono, tal como referido, configura um destino aduaneiro de uma mercadoria.

Logo, a Recorrente não podia ter vendido em 2009 a mercadoria abandonada a favor da FP, nos termos ocorridos.

Deveria ter a Recorrente promovido junto da autoridade aduaneira a regularização da mercadoria, o que não ocorreu. Foi isso que decorreu da troca de mensagens de correio eletrónico mencionadas em Q) e R). A Recorrente, simplesmente, vendeu uma máquina que tinha sido abandonada a favor da FP.

Ou seja, a Recorrente desrespeitou o destino aduaneiro da máquina, atribuído por força da sua própria inércia – o que, necessariamente, implica que, ao violar tal destino aduaneiro, a Recorrente tenha subtraído a mercadoria à fiscalização aduaneira.

A consequência não se centra apenas em termos contraordenacionais, mas também em termos tributários, dado que, no fundo, e como é referido pela administração aduaneira, a Recorrente atuou como se a mercadoria tivesse sido introduzida em livre prática, o que não aconteceu. Assim, há lugar à liquidação das Fazendas Demoradas previstas no art.º 638.º, 5.º, § 5 e, bem assim, do IVA respetivo.

Foi, no fundo, este o entendimento do Tribunal a quo, não atacado de forma eficaz, na medida em que nada foi alegado pela Recorrente (nem consequentemente provado) que permita concluir que a sua atuação foi dentro do que lhe era possível fazer.

Não foi dado pela Recorrente um destino aduaneiro à mercadoria (que não se confunde com o destino de facto dado pela Recorrente à mercadoria), o que levou a que a mesma fosse declarada perdida a favor da FP. Logo, a Recorrente não poderia ter vendido a mercadoria nos termos efetuados e, ao fazê-lo, passou a ser devedora de todos os encargos aduaneiros atinentes a tal atuação (como, aliás, se extrai do disposto no art.º 203.º do CAC).

Como tal, não assiste razão à Recorrente.


IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 07 de novembro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Ana Cristina Carvalho)

(Teresa Costa Alemão)

(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
(3) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 454.
(4) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pp. 395, 396 e 460, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 106; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 119.
(5) António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pp. 119 e 120.