Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:116/16.1BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:05/25/2017
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:CONTRATO DE ARRENDAMENTO/PENHORA/VENDA EM EXECUÇÃO FISCAL/REGISTO/DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
Sumário:I - O contrato de arrendamento urbano que tenha por objecto o gozo de imóvel vendido no âmbito de execução fiscal, subsiste a essa venda, mesmo que tenha sido celebrado após a constituição e registo de hipoteca, desde que essa celebração tenha ocorrido em momento anterior à concretização da penhora e, estando o contrato de arrendamento sujeito a registo, este se tenha efectuado.
II – Mesmo que o contrato de arrendamento esteja sujeito a registo e este não tenha sido realizado, é oponível ao terceiro adquirente até ao terminus do 6.º ano subsequente à sua vigência, por força do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, al. m), e 5.º, n.º 5, do Código de Registo Predial.
III – A alegação, por parte do arrendatário, de que é pessoa de provecta idade e que padece de doença grave e/ou incapacidade, não constitui fundamento de anulação do acto de venda, ainda que eventualmente possa vir a constituir fundamento de diferimento da desocupação do imóvel.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

I. Relatório

M..., inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente a reclamação judicial que, ao abrigo do disposto no artigo 276º do Código de Procedimento e Processo Tributário, interpôs contra o despacho do Chefe de Finanças de ..., que determinou que procedesse à entrega das chaves do imóvel penhorado e vendido ao B..., S.A., no âmbito do processo de execução fiscal nº... (e apensos), apresentou o presente recurso jurisdicional.

Tendo alegado, aí concluiu nos seguintes termos:

«I. Perante a factualidade dada como provada, em especial, dos factos cujo teor se mostra transcrito nos artigos 1º a 5º, entende a Recorrente, que se impunha ao Tribunal a quo uma decisão distinta daquela que foi proferida.

II. Em 15 de Janeiro de 2016, a ora Recorrente foi notificada, por correio, de que deveria proceder à entrega das chaves do imóvel no qual reside e que tomou de arrendamento (cfr. Doc. n.º1, junto com a Petição Inicial).

III. A notificação referida foi efectuada no âmbito do processo de execução fiscal nº..., que corre os seus termos junto do Serviço de Finanças de ... (cfr. Doc. nº1, junto com a Petição Inicial).

IV. De acordo com a informação inscrita na notificação emitida por parte da AT, a ora Recorrente deveria proceder à entrega das chaves do imóvel que corresponde à morada da Reclamante, no prazo de 10 dias, uma vez que, alegadamente existe um ónus anterior ao contrato de arrendamento, o qual determina ou justifica a invalidade do contrato de arrendamento.

V. Sucede, porém que não pode a Recorrente conformar-se com tal decisão, a qual veio a ser confirmada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, uma vez que a mesma não só é ilegal, como extravasa largamente aquilo que são as competências e atribuições do órgão de Execução Fiscal, sendo que o teor da mesma fere, de forma irreversível os direitos, as expectativas e as garantias da Recorrente.

VI. A Recorrente é uma pessoa idosa e reside no prédio identificado há mais de 50 anos, embora tenha mudado para a fracção em causa apenas há cerca de 4 anos, iludida por um pedido do senhorio, que pretendia vender a casa onde primitivamente residia.

VII. Com efeito, a Reclamante nasceu a 11 de Agosto de 1931, contanto nesta data 85 anos.

VIII. A Reclamante é doente oncológica, conforme oportunamente se referiu, encontrando-se em tratamento e recuperação de cirurgia de amputação.

IX. A Reclamante tem uma incapacidade superior a 90%, com sérios problemas de locomoção e necessitada de acompanhamento médico permanente, conforme oportunamente se referiu ao órgão de execução fiscal.

X. Todo o processo de execução fiscal no âmbito do qual a venda executiva teve lugar é alheio à Recorrente, devendo esta ser considerada um terceiro de boa-fé, uma vez que nunca teve qualquer conhecimento da existência de qualquer ónus que onerasse a referida fracção previamente à outorga do referido contrato de arrendamento, tendo-lhe tal facto sido omitido.

XI. Ainda que se diga que o acto de constituição de hipoteca é um acto público, não poderá deixar de se compreender que a Recorrente, que à data da assinatura do contrato de arrendamento tinha 81 anos, não tendo o ensino primário completo, não tinha o discernimento, capacidade e conhecimento para perceber que poderia existir um ónus anterior que onerasse o imóvel.

XII. A Recorrente assinou um contrato de arrendamento convencida que iria viver a sua velhice e finais anos de vida descansada, no prédio onde casou, viveu e criou o filho e os netos.

XIII. O Tribunal a quo não considerou na sua decisão nenhum destes factos e salvo o devido respeito, entende a Recorrente que a instância administrativa não será o lugar apropriado para ver julgada a sua pretensão de fundo relativamente à validade do contrato, e ainda para produzir toda a prova que repute conveniente, o qua apenas lhe será garantido, na sua plenitude, no eventual recurso aos meios civis.

XIV. O contrato de arrendamento que subscreveu, apresentava exactamente as mesmas condições do anterior relativo à fracção do 1º Andar, justamente porque a Recorrente foi iludida e quase forçada pelo anterior proprietário a transitar para a fracção correspondente ao R/c direito, apenas por conveniência deste.

XV. Nunca teve a Recorrente conhecimento de qualquer hipoteca que onerasse o imóvel, uma vez que tal facto nunca lhe foi transmitido, nem tem a Recorrente capacidade e discernimento para o compreender.

XVI. A venda realizada pelo Serviço de Finanças de ... e a própria condução do processo de venda foi deficiente e levou a Recorrente a não reagir, baseando-se em informações incorrectas transmitidas pelo Órgão de Execução Fiscal.

XVII. Com efeito, o Serviço de Finanças de ... notificou a Reclamante para exercer o seu direito de preferência, na qualidade de arrendatária - Cfr. Doc. Nº 2, junto com a Petição Inicial e facto provado sob a alínea L).

XVIII. Estranha a Recorrente que assim tenha procedido o Órgão de Execução Fiscal na medida em sempre teve conhecimento que o imóvel se encontrava hipotecado a uma qualquer entidade bancária.

XIX. O órgão de execução fiscal também tinha conhecimento que o imóvel se encontrava arrendado, porque o contrato de arrendamento foi participado e à Autoridade Tributária.

XX. Para além da notificação para preferir, a Recorrente foi, igualmente notificada do aviso de venda do qual constava a referência ao contrato de arrendamento da Reclamante e do prazo do mesmo, nos seguintes termos:

"A referida fracção encontra-se arrendada. O contrato teve início em 2011-01-01 e tem a duração de 30 anos" - cfr Doc. Nº3 o qual se dá por reproduzido para todos os efeitos legais

XXI. Ora, tais factos, revelam uma condução do processo manifestamente deficiente, ou pelo menos susceptível de incutir no espirito da Recorrente uma sensação de segurança, na medida em que esta estava certa que o contrato de arrendamento, por válido, iria acompanhar a eventual transmissão da propriedade do imóvel.

XXII. Por outro lado, se considerarmos que não se trata de negligência ou de uma deficiência no procedimento adoptado, deparamo-nos com problemas e hipóteses bastantes mais sérias, na medida que que na venda judicial foi referido um ónus que na verdade o órgão de execução entende que não existe, o que certamente afastou outros interessados em adquirir o imóvel.

XXIII. É absolutamente legítimo concluir que a Reclamante foi conduzida a não exercer o seu direito de preferência, por actos praticados pelo órgão de execução fiscal, actuação que, a manter-se, produzirá danos irreparáveis na esfera de terceiro, entenda-se, da Recorrente.

XXIV. É igualmente legítimo concluir que a entidade bancária adjudicante também teve conhecimento do arrendamento antes da venda.

XXV. Os actos e a forma de actuar supra descrita revelam uma manifesta falta de interesse da Autoridade Tributária no cumprimento e exercício dos direitos de cidadãos, sejam eles ou não devedores, ou, como no caso em apreço, terceiros de boa-fé.

XXVI. A presente decisão, a manter-se e produzindo os danos irreparáveis, de entre os quais se destacam o despejo de uma senhora de 85 anos com uma pensão de cerca de 200 euros, é geradora de responsabilidade civil e criminal, não prescindindo a Reclamante de exercer tais direitos e de dar a conhecer a presente decisão e processo de condução da venda.

XXVII. Não compete, nem nunca competiu ao órgão de execução fiscal ou à Autoridade Tributária decidir pela validade ou invalidade de um contrato.

XXVIII. A discussão relativa à validade de um contrato de arrendamento compete aos tribunais civis (cfr. art.º64 do Código de Processo Civil), encontrando-se tal discussão da dependência da interposição de uma acção com esse objecto e causa de pedir, o que nunca aconteceu.

XXIX. Para além da ilegalidade intrínseca que fere a decisão do órgão de execução fiscal, por falsidade da informação transmitida aos interessados e igualmente porque extravasa, em larga escala as competências do órgão de execução fiscal, julga-se, ainda assim, incorrectamente interpretada a questão de direito subjacente à decisão proferida.

XXX. Nos termos do artº10579 do CC "o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador".

XXXI. A venda do locado não faz cessar o arrendamento, pois o respectivo adquirente sucede ex lege na posição do senhorio (sub-rogação legal no contrato).

XXXII. Relativamente ao locatário, por seu turno, a situação jurídica de que é titular subsiste intocada, não obstante a alienação do direito, ocorrendo tão-somente uma modificação subjectiva quanto à pessoa do locador.

XXXIII. E como se trata de uma transmissão por efeito da lei o acordo do locatário não é necessário, como seria a regra nos termos do artº424º, nº1, do CC.

XXXIV. O arrendamento celebrado é oponível ao novo proprietário do locado, a transmissão da fracção autónoma não constitui fundamento de impossibilidade de cumprimento do contrato.

XXXV. Aqui chegados, não pode o Recorrente concordar, de forma alguma, com a sentença proferida, devendo a mesmo ser substituída por outra decisão que anule o acto praticado pela AT.

XXXVI. É objectivo, face aos factos retratados e documentos juntos, o quão prejudicial é a actuação da AT quanto aos direitos e interesses legalmente protegidos da Recorrente.

XXXVII. Em suma, a notificação agora reclamada é manifestamente ilegal, por violação do disposto nos artigos artº1057º do CC e ainda o artº64º do CPC, pelo que tal acto deverá ser revogado em toda a sua extensão.

XXXVIII. Em sequência, e como corolário do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos da Reclamante, requer-se que seja imediatamente ordenado a anulação do despacho aqui posto em crise.

XXXIX. Na verdade, caso assim não se entenda, e ainda que não seja este o lugar ou a sede para se verterem estados de espírito, sempre se deverá considerar que existem casos limite, perante os quais aplicação de uma determinada disposição legal se mostra absolutamente desconforme com o princípio do estado de direito e da dignidade da pessoa humana.

XL. Com efeito, a manutenção da validade do presente acto e uma eventual acção posterior de despejo, terá como efeito desalojar uma idosa de 85 anos, doente oncológica, em tratamento, que aufere uma pensão de pouco mais de 200 euros, conforme é do conhecimento da AT.

XLI. Qualquer entendimento que não seja consentâneo com o exposto redunda numa diminuição irrazoável e desproporcionada e, ainda, irreversivelmente lesiva dos direitos do Reclamante.

XLII. A jurisprudência, mesmo em casos em que se defendeu o entendimento contrário ao da Recorrente, contemplou excepções, entendendo que situações há em se "justifica a suspensão da sua efectivação se a desocupação puser em risco, por razões de doença aguda, a vida do executado" - neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-10-2008, consultável em www.dgsi.pt.

XLIII. que acto reclamado deverá ser anulado, com as legais consequências.».

A recorrida, Fazenda Pública, foi notificada da apresentação do recurso jurisdicional não tendo, contudo, apresentado contra-alegações.

Neste Tribunal Central, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se, a final, no sentido da improcedência do recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atenta a natureza do processo [artigos 657.º do Código de Processo Civil (CPC) e 278.º, n.º 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)], cumpre, agora, decidir, submetendo-se, para esse efeito, os autos à Conferência.

II - Objecto de recurso 

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida) que se determina o âmbito de intervenção deste Tribunal.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635°, n°2, do CPC), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n°3 do mesmo art. 635°). Pelo que, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos por seguro que, in casu, o objecto do mesmo está circunscrito, desde logo, à questão de saber se o contrato de arrendamento celebrado com a reclamante após o registo da hipoteca de imóvel, mas antes da penhora, caduca com a venda do imóvel que foi efectuada ao credor hipotecário.

            Sendo afirmativa esta resposta, importará, então, saber se determinadas circunstâncias de facto que emergem dos autos, designadamente, as formalidades desenvolvidas e actos praticados no âmbito do processo de execução no âmbito do qual foi vendido o imóvel objecto do contrato de arrendamento e de venda e o facto de a arrendatária ter 85 anos, ser doente oncológica e ter reconhecida uma incapacidade de cerca de 90%, provadas que sejam, legitimam, só por si, que o Tribunal declare inválido o despacho do Chefe de Finanças que, com fundamento na referida caducidade do contrato de arrendamento, determinou a entrega das chaves do imóvel.

III. Fundamentação de facto

3.1. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou provada e com relevo para a apreciação do mérito dos autos a seguinte factualidade (sendo de nossa autoria o negrito aposto em vários dos factos infra transcritos):

A) Em 21-6-2009, foi instaurado em nome de "P... Combustíveis, Lda." no Serviço de Finanças de ... o processo de execução fiscal n°... - cfr. fls. 33 dos autos.

B) Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de ... desde 6-7-2009, a aquisição por parte de F... do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº3030 - cfr. fls. 41 dos autos.

C) Desde 6-7-2009, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de ..., a constituição da hipoteca voluntária a favor do B..., S.A., no valor de 107.880,00€ relativa ao imóvel indicado na alínea anterior - cfr.  Ap. 3614, constante na certidão do registo predial a fls. 41 e 42 dos autos.

D) Em 3-5-2010, o Chefe do Serviço de Finanças de ... proferiu o despacho constante a fls. 38 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte: «(...) Face às diligências de fls. 45 e estando concretizada a audição do(s) responsável(veis) subsidiários (s), prossiga-se com a reversão da execução fiscal contra F... contribuinte nº..., morador em R ... na qualidade de responsável subsidiário, pela dívida abaixo discriminada.

(...)

Identificação da dívida em cobrança coerciva

N.º de Processo o principal ...

Total da quantia exequenda: 144.813,18 EUR

(...)».

E) Em 31-10-2010, foi outorgado entre F... e a Reclamante, o instrumento junto a fls. 47 a 48 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, intitulado "Contrato de Arrendamento Habitacional", ali identificados, como primeiro e segundo outorgantes.

F) Pelo instrumento referido na alínea anterior, o primeiro outorgante declarou dar de arrendamento, pelo prazo de 30 anos, por uma renda mensal de 11€, o imóvel sito no r/c dto., do prédio no ..., n°3, ..., correspondendo ao artigo matricial nº5985 do conselho de ...;

G) Em data não concretamente apurada mas antes de 15-5-2011, no âmbito do PEF n°..., o Serviço de Finanças de ... remeteu para F... por carta registada com aviso de recepção, o instrumento constante a fls.39 dos autos, denominado de "Citação (Reversão)", cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte « (...) Pelo presente fica citado(a) de que é EXECUTADO(a) POR REVERSÃO, nos termos do art.160°do C.P.P.T, na qualidade de Responsável Subsidiário para, no prazo de 30 (trinta) dias a contar desta citação, PAGAR a quantia de 144.813,18 EUR de que era devedor (a) o (a) executado(a) infra indicado(a) , ficando ciente de que nos termos do nº5 do artigo 23°da Lei Geral Tributária (LGT), se o pagamento se verificar no prazo acima referido não lhe serão exigidos juros de mora nem custas. (...)».

H) O aviso de recepção referido na alínea anterior foi assinado a 15-5-2011 — cfr. fls. 40 dos autos.

I) Encontra-se registada desde 28-7-2011, no âmbito do PEF ..., na Conservatória do Registo Predial de ..., uma penhora a favor da Fazenda Nacional relativa ao imóvel referido em B) - cfr. fls. 42 dos autos.

J) Em 14-9-2015, foi subscrito pelo Chefe de Finanças de ..., o instrumento constante a fls. 43 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte: «Ordeno a venda por meio de leilão electrónico (artigo 248° CPPT) do prédio urbano, artigo matricial 607 da União de freguesias de ... e ..., ... e ..., pelo valor de:

Venda                                Penhora                    Valor Tributável             Valor Base Venda (70%)

....2015.379                ....2011.752                  84.231,58 €                     58.962,11€

devendo, no entanto, o valor base a anunciar para venda ser determinado de  harmonia com o artigo 250º nº4 do CPPT (valor patrimonial x 70% = valor base venda).

Para a conclusão do leilão - que decorrerá nos quinze dias anteriores à venda - acto a que podem assistir o executado, os licitantes, as pessoas citadas nos termos do art.239º) e 242° do CPPT e os titulares do direito de preferência e remição, designo o dia 13/11/2015, pelas 10h. (...)».

K) Em data não concretamente apurada, mas antes de 15-9-2015, foi subscrito pelo Chefe de Finanças de ..., o instrumento constante a fls. 50 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, denominado de "Edital -Venda e Convocação de Credores" no qual consta o seguinte:

«Nº da Venda: ....2015.379 - Fracção autónoma de prédio sito no ..., n°3 em ..., designada p ela letra "B", constituída por um R/C Direito com a área de 88 m2. Serviço de Finanças de ...-1. - [1554]- União das freguesias de ... e ..., ... e .... Prédio Urbano, Artigo 607 "B" (ex 595, Fracção B, da freguesia de ...). Registada na CR Predial de ... sob o nº3030.

A referida fracção encontra-se arrendada. O contrato de arrendamento teve início em 2011-01-01 e tem a duração de 30 trinta anos

Teor do Edital:

J..., Chefe de Finanças do Serviço de Finanças ...-..., sito em PRAÇA MARQUES DE ..., ..., faz saber que irá proceder à venda por meio de leilão electrónico, nos termos dos artigos 248º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e da portaria nº219/2011 de 1 de Junho, do bem acima melhor identificado, penhorado ao executado infra indicado, par a pagamento de divida constante em processo(s) de execução fiscal. É fiel depositário (a) o (a) Sr (a) F..., residente em ..., o(a) qual deverá mostrar o bem acima identificado a qualquer potencial interessado (249°/6CPPT), entre as 18:00 horas do dia 2015-09-14 e as 16:00 horas do dia 2015-11-12

O valor base da venda (250° CPPT) é de € 58.962, 11.

As propostas deverão ser apresentadas via Internet, mediante acesso ao "Portal das Finanças", e autenticação enquanto utilizador registado, em www.portaldasfinancas.gov.ptna opção "Venda de bens penhorados", ou seguindo consecutivamente as opções "Cidadãos", "Outros Serviços", "Venda Electrónica de Bens" e "Leilão Electrónico". A licitação a apresentar deve ser de valor igual ou superior ao valor base da venda e superior a qualquer das licitações anteriormente apresentadas para essa venda.

(...)

Identificação do Executado:

N° de Processo de Execução Fiscal: ... (e apensos) NIF/NIPC: ....

Nome: F... Morada: R ... 124 – ... (...)»;

L) A 6-10-2015, no âmbito do PEF ... e ap., o Serviço de Finanças de ... remeteu para a reclamante, por carta registada com aviso de recepção, o instrumento constante a fls. 28 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte:

«Na qualidade de titular do direito de preferência enquanto arrendatário (artº1091 nº1 a) do Código Civil (CC)) do bem colocado em venda judicial no processo executivo supra referido, a saber artigo urbano 595 FRACÇÃO B da extinta freguesia de ..., actual art. urbano nº607 FRACÇÃO B da União de freguesias de ... e ..., ... e ... - venda ....2015.379, identificado no edital cuja cópia se junta, fica por este meio notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no artº819º do Código do Processo Civil (CPC), de que no próximo dia 2015-11-13 pelas 10:00 horas e neste Serviço de Finanças, far-se-á a abertura e adjudicação da venda judicial por meio de leilão electrónico deste bem, devendo, querendo exercer os seus direitos, estar presente naquele acto.

O exercício do direito de preferência enquanto arrendatário deverá ser efectuado nos termos do artº1028° do CPC até ao momento da abertura e aceitação das propostas. Só após se mostrar pago o preço na totalidade e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, nomeadamente as obrigações fiscais de pagamento de IMT e Imposto de Selo, (...)»;

M) Em data não concretamente apurada, o Chefe de Finanças de ... subscreveu o auto de adjudicação constante a fls. 61 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, através do qual procedeu à adjudicação do imóvel referido em B) ao ....

N) Em 13-11-2015, foi subscrito pelo Chefe de Finanças de ..., o instrumento constante a fls. 62 dos Autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte:

«AUTO DE TRANSMISSÃO DE BENS

(artigo 827º C.P.C.)

Aos treze dias do mês de Novembro do ano de dois mil e quinze, B..., SÁ, contribuinte n° ..., com morada sede na ..., adquiriu, por meio de Leilão Electrónico, nos termos do artigo 248 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pelo preço total de € 112.200,00 os bem; abaixo mencionados, vendidos judicialmente através do processo de execução fiscal n° ...... e Apensos, em que é exequente a Fazenda Nacional, representada por este Serviço de Finanças, e executado F..., NIF ..., com morada em ... -por REVERSÃO de "P... , Lda".

Verba nº1

Prédio Adquirido na Venda Judicial ....2015.379, pelo preço de €112.20000: "Fracção autónoma de prédio sito no ..., n°3, em ..., designado pela letra "B", constituído por um R/C Direito, com a área de 88 m2. Serviço de finanças de ... 1. Prédio urbano, artigo 607 "B" da União das freguesias de ... e ..., ... e ... (ex 595, Fracção "B", da freguesia de ...). Descrito na CRP de ... sob o nº3030º. O preço foi pago em 2015.11.17 através do Documento Único de pagamento nº151021...7222110000017.1, na importância de € 112.200,00.

O Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis foi pago em 2015.11.17, pelo documento nº160315257999030, pelo valor de € 0,00 (Isento art°8°, n°1 do CIMT).

O Imposto de Selo da Verba 1.1 da respectiva Tabela Geral, também foi pago no mesmo dia dezassete de Novembro, pelo documento n°1.6361513 7868116, no valor de €897,60.

Por despacho de 2015.11.17, e hoje transitado em julgado, foi autorizado o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de todos os ónus ou encargos que oneravam o prédio, nos termos do n°2 do artigo 824º do Código Civil, nomeadamente os conhecidos: AP:3614, de 2009.07.06 e respectivos averbamentos de 2009.07.24 e AP4036, de 2011.07.28. (...)».

O) Em 11-12-2015, no âmbito do PEF ... e ap., o Serviço de Finanças de ... remeteu para a reclamante, por carta registada com aviso de recepção, o instrumento constante a fls. 69 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte:

«Assunto: NOTIFICAÇÃO PARA ENTREGA DE CHAVES

Proc. Execução Fiscal ... e Aps. Venda ....2015.379

Executado: F...

Decorreu no passado dia 13 de Novembro a venda judicial, por Leilão Electrónico, do bem penhorado nos autos - artigo urbano 607, fracção B, da União de freguesias de ... e ..., ... e ..., concelho de ..., tendo sido adjudicado a B..., SA, NIF ..., com morada/sede no Porto.

Assim, e porque solicitadas pela entidade adquirente, fica o senhor contribuinte, por este meio notificado, na qualidade de inquilino, para no prazo de 10 dias a contar do 3° posterior ao registo, entregar/remeter ao Serviço de Finanças de ... 2 as respectivas chaves de acesso, ficando ciente de que se não forem entregues, proceder-se-á ao arrombamento e mudança de fechadura nos termos do nº 2 do artigo 840 do Código Processo Civil.

De igual modo deve proceder à remoção, do interior do imóvel, de quaisquer bens móveis que não constituam parte integrante do edifício, sob pena de, após o mesmo prazo, os mesmos virem a ser removidos pelo adquirente por conta e risco do executado/inquilino.(...)».

P) Em 12-1-2016, no âmbito do PEF ... e ap., o Serviço de Finanças de ... remeteu para a reclamante, por carta registada com aviso de recepção, o instrumento constante a fls. 27 dos Autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte: «Levo ao vosso conhecimento, por transcrição, o despacho do chefe deste S F que recaiu sobre a petição apresentada no dia 29 de Dezembro, assinada por advogado s/procuração:

"Em face do exposto e do requerido pelo adquirente do bem objecto da venda nº....2015.379, em que é executado F..., e tendo em atenção as instruções relativas aos procedimentos a adoptar na entrega dos bens imóveis aos adjudicatários dos mesmos, remetidas pelo oficio n° … de 2011/05/04 da DF Leiria - Divisão de Justiça Tributária, elaboradas com base nos artigos 824 do Código Civil e 827° do Código de Processo Civil e acórdão do STJ respeitante ao processo 0383450 de 2003/05/07, e tendo em atenção que o contrato de arrendamento é de 2010/10/01 e que a hipoteca que onerava o prédio objecto da citada venda tem o registo na Conservatória do Registo Predial de 2009/07/06, notifique-se a exponente para, no prazo de 10 dias, proceder à entrega das chaves do imóvel ao adquirente do mesmo. SF de ..., 12 de Janeiro de 2016. O chefe de finanças, J...".

Da decisão supra, pode, no mesmo prazo, ser deduzida Reclamação nos termos do artigo 276° do Código do Procedimento e Processo Tributário - sem efeito -suspensivo.

A entrega das chaves, mediante recibo, pode ser ainda feita junto do serviço de finanças ... 2 - .... (...)».

Q) Em 26-01-2016, foi subscrito pelo Chefe de Finanças de ..., o despacho constante a fls. 80 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual consta o seguinte: «(...) Da análise do alegado e pela consulta aos autos, verifico que após a detecção do Contrato de arrendamento do prédio objecto da venda, foi o tal facto devidamente publicitado no edital da venda. Porque o contrato de arrendamento tinha sido efectuado à mais de três anos, foi o arrendatário notificado do direito de preferência previsto no artigo 1091 do CC. Após a adjudicação veio o adquirente solicitar a entrega do bem. Tendo em consideração o disposto no artigo 824º do CC, porque existe garantia anterior à realização do Contrato de arrendamento foi o arrendatário notificado para a sua entrega. Relativamente às dificuldades alegadas pelo arrendatário pode este socorrer-se do disposto no artigo 862 do CPC. Assim, determino a remessa dos autos ao TAF. (...)».

R) O contrato de arrendamento referido em E) não foi objecto de registo - cfr. fls.250 dos autos, conjugado com análise crítica da certidão do registo predial constante a fls. 118 a 121 dos Autos;

S) A petição inicial foi apresentada em 26-1-2016 junto do Serviço de Finanças de ... - cfr. fls. 3 dos autos.

3.2. Mais ficou consignado, a título de «Motivação da decisão de facto», que «A convicção que permitiu dar como provados os factos acima descritos assentou no teor dos documentos constantes nos autos, conforme discriminado em cada uma das alíneas dos Factos Assentes.

Em particular foi efectuada a análise ponderada e detalhada do teor da prova documental junta aos autos, e de onde se extraíram a generalidade dos factos provados, cujo valor não foi abalado por qualquer outra prova junta.

Ainda, foi tido em conta a resposta da Reclamante a fls. 250, a qual esclareceu que tanto quanto é do seu conhecimento, o contrato de arrendamento apenas terá sido declarado para termos fiscais, o que conjugado com a certidão predial de fls. 118 a 121 permitiu provar o facto R).»

E que «Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados».

IV. Fundamentação de direito

A recorrente, como ressalta claramente das conclusões de recurso que deixámos transcritas, está inconformada com o julgado. Em bom rigor, o mais correcto é dizermos que a recorrente está, mais uma vez, inconformada com o julgado, uma vez que, como se constata dos autos, sobre o presente litígio foram, anteriormente, proferidas sentença deste mesmo Tribunal a quo julgando improcedente a reclamação judicial e acórdão deste Tribunal Central anulando, por défice instrutório, essa decisão e determinando que fosse apurado se o contrato de arrendamento tinha ou não sido objecto de registo, factualidade que se entendeu ser essencial para aferir da caducidade do mencionado contrato e, consequentemente, da validade do despacho de entrega do imóvel que então, e ora, vem posto em crise.

Nesta segunda sentença, como se surpreende dos factos apurados, esse facto mostra-se devidamente apurado na alínea R) do probatório, pelo que, no que respeita à primeira das questões enunciadas na delimitação do objecto do recurso, a resposta deste Tribunal é inequívoca no sentido de que o contrato efectivamente caducou e, consequentemente, com fundamento na subsistência da sua validade, não pode o recurso jurisdicional obter procedência.

Para que fique clara esta nossa decisão, é importante, antes de mais, que recuperemos o fio condutor do julgamento por nós anteriormente realizado, que aqui recuperamos e mantemos enquanto apreciação e decisão da primeira questão neste recurso colocada [o contrato de arrendamento celebrado com a reclamante após o registo da hipoteca de imóvel, mas antes da penhora, caduca com a venda do imóvel que foi efectuada ao credor hipotecário?]

«Com linearmente decorre do ponto I e II supra, através desta reclamação judicial pretende a reclamante, ora Recorrente, reagir ao despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Leiria nos termos do qual lhe foi ordenado que procedesse à entrega da chave do imóvel sito no ..., n°3, em ... (designado pela letra "B", constituído por um R/C Direito, com a área de 88 m2. Serviço de finanças de ... 1. Prédio urbano, artigo 607 "B" da União das freguesias de ... e ..., ... e ... e descrito na CRP de ... sob o nº3030º) e com o qual discorda, fundamentalmente, por três ordens de razões: (i) o contrato de arrendamento que celebrou com o anterior proprietário do imóvel, contrariamente ao que foi entendimento da Administração Fiscal, e do juiz de 1ª instância, de cuja sentença recorre, mantém-se válido não obstante a venda judicial realizada; (ii) as diligências e actos desenvolvidos e praticados ao longo do processo de execução, especialmente no que a si respeita, mas também quanto a terceiros eventualmente interessados na aquisição do imóvel, incutiram em todos a convicção de que o arrendamento subsistira após a venda e, por fim, (iii) mesmo que assim se não entenda, o facto de a reclamante ter 85 anos de idade, ser doente oncológica, estar e recuperar de intervenção cirúrgica grave e deter uma incapacidade fixada em cerca de 90%, constituem factores que este Tribunal não pode deixar de ponderar e, com base neles, decidir, por “imperativo de justiça”, que no caso concreto o contrato de arrendamento permanece válido ou que a referida entrega das chaves e consequente saída da reclamante do imóvel se não deve concretizar.

Tudo, pois, fundamentos suficientes, em seu entender, para que o Tribunal, julgando inválido o despacho de entrega das chaves reclamado e o anule, assim o excluindo da ordem jurídica.

Vejamos, pois, o que se nos oferece dizer, começando, naturalmente, por enfrentar a questão essencial dos autos, isto é, por decidir se o contrato de arrendamento que a reclamante celebrou com o revertido caducou ou não com a venda a venda do imóvel objecto daquele contrato, uma vez que, sendo a resposta a tal questão negativa, a ordem de entrega das chaves destinada à reclamante, que se louvou na resposta afirmativa a essa questão, se deverá ter por ilegal, com a consequente anulação do acto objecto de reclamação e sem que sem que outras considerações, designadamente no que se refere às demais questões suscitadas, se revelem pertinentes.

Nesse sentido, importa reter, antes de mais, que o entendimento professado de validade do despacho reclamado vertido na sentença recorrida assentou, nuclearmente, no facto de a hipoteca sobre o imóvel arrendado ser anterior ao da celebração do contrato de arrendamento, o que torna este inoponível ao comprador em sede de venda judicial e determina a caducidade automática daquele contrato.

Para assim concluir, o Meritíssimo Juiz, após transcrever o preceituado no artigo 824.º do Código Civil («1 - A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. 2 - Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.3 - Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens»), expendeu o seguinte raciocínio fáctico jurídico:

«(…) de acordo com o legislador civil a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que constituídos em data anterior produzam efeito em relação a terceiros independentemente de registo.

Quer isso dizer que os direitos de garantia que incidam sobre os bens vendidos caducam após a venda, sendo que os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia (Cfr. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 4ª Ed, pág, anotação ao art. 824°).

Por outro lado, é entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência o de que o arrendamento deve ser considerado abrangido pelo n°2 do art° 824° do Código Civil (Cfr. JOSÉ ALBERTO Vieira, in Arrendamento de Imóvel dado em Garantia, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocência Galvão Telles, Volume IV, pág. 448 e ss.). Aliás, o ilustre professor da Escola de Lisboa bem nos explica que : «(...) O art. 824°, n° 2,do Código Civil, tem aplicação ao arrendamento de prédio dado de hipoteca. Não obstante não mencionado expressamente, o direito do arrendatário implica materialmente um gravame sobre a coisa muito semelhante, se não até maior, àquele que é posto pelos direitos reais ... Nenhum argumento se opõe a esta solução. Não o artº1051° ... , pois não existe uma tipicidade taxativa de casos de caducidade. E também decerto a posição do arrendatário. Não se esqueça que o direito deste é constituído após o registo da hipoteca. "O arrendatário de imóvel dado de hipoteca sabe ou pode saber que o direito com base no qual o arrendamento foi celebrado se encontra onerado e que a hipoteca pode vir a ser executada", concluindo, assim, que "o direito do arrendatário de prédio dado em garantia se extingue com a venda judicial, nos termos do art. 824°, n° 2, do Código Civil(...)».

Dito isto vejamos o caso dos Autos.

Está provado que desde 6/07/2009 encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de ... a constituição da hipoteca voluntária a favor do ..., relativamente ao imóvel em discussão nos Autos.

E consta do probatório que a Reclamante celebrou um contrato de arrendamento com o executado em 31/10/2010.

Assim sendo, e conjugando as disposições normativas supra referidas com os factos assentes podemos desde já concluir que a Reclamante não tem razão(…).».

Não cremos que esta sentença, pelo menos face aos factos apurados, possa manter-se, como, de resto, decorre dos próprios fundamentos adiantados como seu suporte, e que, salvo o devido respeito, não foram devidamente relevados pelo Tribunal. Desde logo, e contrariamente ao que decorre do discurso que sustenta a decisão, no caso concreto o facto essencial a relevar não é, pelo menos não o é em exclusivo, a hipoteca pré-existente à venda, assumindo, no mínimo, idêntico relevo, a penhora que no processo de execução foi efectuada, a circunstância de esta ser esta posterior quer à data de celebração do contrato de arrendamento quer à data da sua efectiva vigência e, por fim, e como bem afirmou inclusive o Meritíssimo Juiz a quo, socorrendo-se de diversa doutrina, ser para nós inquestionável que os direitos de gozo só caducam se, sendo obrigatório o seu registo, este não for anterior (para o que ora releva atenta a factualidade pertinente dos autos) à penhora realizada.

Explicitemos, então, porque assim o entendemos, deixando desde já claro que a questão dos efeitos substantivos da venda executiva sobre a relação de arrendamento, mais concretamente sobre a sua eventual extinção, por força daquela, ou a sua manutenção, por oponibilidade do contrato de arrendamento a terceiros, especialmente aos adquirentes do imóvel objecto do referido contrato, tem sido na últimas décadas alvo de múltiplos estudos, teses e acórdãos, não sendo hoje ainda possível chegar-se a uma conclusão que não seja a de que apenas está firmada uma posição maioritária.

E essa posição maioritária, afirmemo-lo já sem rodeios, é a que defende que a transmissão do imóvel em venda executiva onerado com garantia hipotecária registada em momento anterior à celebração do contrato de arrendamento determina a caducidade do referido contrato, abonada, fundamentalmente, em dois argumentos jurídicos. Por um lado, o preceituado no artigo 824° n° 2 do Código Civil e, por outro, por se estar perante situação análoga às previstas como causas de caducidade do contrato no artigo 1051° do Código Civil, argumentos através dos quais procura afastar a tese contrária da taxatividade alegadamente resultante do preceituado no artigo 1051° do Código Civil e a consequente aplicabilidade, em sede de venda executiva, da regra consagrada no artigo 1057° do CC, isto é, de mera sucessão do adquirente na posição de locador.

            Em recente acórdão da Relação de Lisboa[1], em que a temática em apreço foi exaustivamente analisada, através de uma profunda crítica das teses em confronto, escreveu-se o seguinte:

«Até 1998, a jurisprudência maioritária das Relações e do STJ era no sentido de que o arrendamento de prédio hipotecado, celebrado pelo devedor/proprietário já após a constituição da hipoteca, não caduca em caso de venda do mesmo prédio, ocorrida em processo de execução[2]. E, mesmo posteriormente, continuou a haver decisões das Relações e do Supremo que perfilharam o entendimento segundo o qual o Art. 824º, nº 2, do Cód. Civil não abrange o arrendamento, o qual tem natureza obrigacional e não real [3].

Porém, a partir de 1998, a tendência inverteu-se, sendo hoje maioritária a corrente que considera o arrendamento (registado ou não) incluído, por analogia, na expressão “direitos reais” constante do art. 824º, nº 2, do Cód. Civil [4].

Os argumentos em que se sustém a tese da inclusão do arrendamento posterior à constituição e registo da hipoteca no elenco dos direitos reais que caducam com a venda executiva são, nuclearmente, os seguintes:

- O Decreto n.º 4511, de 17.4.1919, dispunha, no § 1.º do artigo 36.º, que os arrendamentos sujeitos a registo “subsistem à transmissão do prédio por via executiva, se estiverem registados anteriormente ao registo do acto ou facto de que a transmissão resultou.”

- Com a reforma de 1930, o artigo 1022.º do Código de Seabra passou a ter a seguinte redacção: “Os ónus reais com registo anterior ao de qualquer hipoteca, penhora ou arresto…acompanham o prédio alienado.”

- A expressão “ónus reais” era também a preferida no artigo 856.º do Código de Processo Civil vigente ao tempo, sendo certo que o artigo 949.º, do Código Civil, então vigente, ao enumerar os ónus reais, incluía o “arrendamento por mais de um ano, havendo adiantamento da renda, e por mais de quatro anos não o havendo.”;

- Porém, tal expressão foi abandonada, no artigo 907.º do Código de Processo Civil de 1939, com preferência pela de “direitos reais”: “Os bens serão transmitidos livres dos direitos reais que não tiverem registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou hipoteca, salvo os que, tendo sido constituídos em data anterior, produzam efeito em relação a terceiros independentemente de registo.”

- Logo se constatou, todavia – cfr. Alberto dos Reis (in Processo de Execução, 2.º, pp. 395 e seguintes) – que a nova designação de “direitos reais” não correspondia totalmente aos direitos assim habitualmente designados: Razões de ordem histórica assentes nos preceitos supra citados e consideração de que se mantinha noutros do Código de Processo Civil a referência a “ónus reais” – nomeadamente naquele que mandava citar os credores a favor de quem existir registo de qualquer “ónus” e no outro que determinava que os eram adjudicados livres de “ónus e direitos que devam caducar” - assim levavam a pensar. “A verdade é que o dote e o arrendamento nas condições da alínea e) do § 2.º do artigo 949.º nem são direitos reais de gozo, nem direitos reais de garantia. São contudo ónus reais; e não se compreende que sobrevivam à arrematação, quando registados posteriormente a qualquer hipoteca, penhora ou arresto” (Alberto dos Reis in ob. e loc. citt.);

- Como se vê, com clareza, do cotejo dos respectivos textos, o dito artigo 907.º do Código de Processo Civil de 1939 constituiu a base do n.º2 do artigo 824.º do Código Civil de 1966: este surgiu como opção pela inclusão em diploma substantivo do que é substantivo, mas sem manifestação de qualquer rompimento com o se vinha entendendo.

- Entretanto, vigorava o artigo 843.º do Código de Processo Civil de 1939 que dispunha sobre a administração dos bens penhorados: ali se previa, na falta de acordo, o arrendamento dos prédios, mas se tinha a cautela de estipular que o depositário não poderia fazer o arrendamento por prazo superior ao um ano;

- Evoluiu substancialmente a relação locatícia no sentido da duração do arrendamento e dos direitos do arrendatário à renovação contratual, de sorte que aquele prazo de um ano deixou de ter razão de ser; eliminou-o, por isso, o legislador com a reforma de 1967 e não o substituiu noutros termos;

- Daqui pode extrair-se o argumento de que os arrendamentos celebrados pelo depositário caducam, nos termos do artigo 1051.º, alínea c) do Código Civil: está aqui, por um lado, uma confirmação do que vinha sendo entendido e, por outro, um avanço no sentido de se dever ter como terminada a distinção – para efeitos do n.º2 do artigo 824.º - entre arrendamentos (a não ser os arrendamentos constituídos em data posterior à do registo da penhora, constante do próprio texto legal);

- Nessa sequência deve ser entendida a nova redacção do artigo 819.º, ainda deste Código, ao determinar que, sem prejuízo das regras do registo são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados: esta redacção veio a lume depois de efectivados os contratos que se discutem nos presentes autos, mas face à discussão, doutrinária e jurisprudencial, que vinha tendo tido lugar, bem pode considerar-se interpretativa do direito anterior - mormente daquele n.º2 do artigo 824.º - então com os efeitos do artigo 13.º, n.º1, ainda do mesmo Código.

Este n.º 2 do artigo 824.º, não distingue entre penhora e hipoteca, pelo que consideramos extensiva a esta o entendimento que acabamos de traduzir;

- Relativamente à hipoteca, ainda há a considerar, em reforço, o artigo 695.º do Cód. Civil, que mal se compreenderia se a oneração ali referida (nomeadamente a hipoteca) pudesse subsistir à venda executiva.

A mais destes argumentos de ordem histórica, também têm sido aduzidos estoutros argumentos:

- Embora a posição jurisprudencial e dogmática maioritárias sejam no sentido de que o direito ao arrendamento tem natureza obrigacional, a verdade é que a aplicação do disposto no nº 2 do artº 824º do Cód. Civil relativamente à caducidade dos arrendamentos celebrados em data posterior à do registo da hipoteca, não significa atribuição de natureza real a tal negócio jurídico;

- Trata-se, isso sim, de aplicação analógica do preceito indicado a tais arrendamentos;

- Ora, a semelhança das situações, jurídica e sócio-económica, justifica e exige o recurso à aplicação analógica do preceituado no falado nº 2 do artº 824º do C.Civil, quanto à caducidade dos contratos de arrendamento nos sobreditos termos;

- Isto porque - como aponta Romano Martinez (in Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 1996, pg. 158) -, apesar de se concluir que a locação, não obstante o poder de gozo atribuído ao locatário, é um direito obrigacional, «importa reconhecer que finalidade conseguida por este contrato pode ser atingida mediante o recurso a direitos reais menores» e, em segundo lugar, que «retira-se (do artº 1022º do C. Civil) que a locação é uma forma de proporcionar o gozo temporário de uma coisa»  características essas que, para além da notória semelhança funcional e sócio-económica, têm por denominador comum, a repercussão no valor económico dos bens onerados com um arrendamento ou com outros ónus reais que sobre eles incidam, sendo certo que - como ainda refere Romano Martinez (ibidem) - «a transitoriedade, sendo uma característica do contrato de locação, muitas das vezes, pode perdurar por vários anos».

Importa considerar todos e cada um destes argumentos, para ajuizar da sua bondade e valia intrínsecas.

a) A letra do Artigo 824º- 2 do Código Civil:

O nº 1 do Art. 824º do Cód. Civil estabelece o princípio de que, uma vez realizada a venda dos bens penhorados (seja ela feita judicial ou extrajudicialmente), os direitos do executado sobre a coisa penhorada, quer se trate dum direito de propriedade, de crédito, de usufruto, ou de qualquer outro, transferem-se para o adquirente.

Por sua vez, o nº 2 do mesmo preceito cura do destino dos direitos que incidam sobre os bens vendidos. Nos termos desta disposição, há que distinguir duas espécies de direitos incidentes sobre as coisas vendidas na execução.

Quanto aos direitos de garantia (consignação de rendimentos, penhor, hipoteca, privilégios creditórios especiais e direito de retenção), caducam todos, sem restrição nem distinção, tenham registo ou não tenham, transferindo-se para o produto da venda dos respectivos bens (cfr. o nº 3 do mesmo Art. 824º).

Porém, os direitos reais de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias. Deste regime exceptuam-se aqueles direitos reais que produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, porque estes também não caducam, se tiverem sido constituídos anteriormente ao mais antigo daqueles actos[5].».

Assim, não caduca um usufruto sobre os bens imóveis vendidos, se o direito estiver registado antes do registo de qualquer arresto, penhora ou garantia. Também não caduca um usufruto sobre bens móveis, constituído antes do arresto, penhora ou garantia, visto esse usufruto não estar sujeito a registo»[6].

Quid juris quanto ao direito do arrendatário ?

Tem-se por certo que «este regime [da caducidade instituído no cit. Art. 824º- 2] só é aplicável a direitos reais, não a qualquer ónus ou encargo registável». «Assim, o arrendamento sujeito a registo (arts. 1029º, nº 1, alínea a) do Código Civil, art. 2º, nº 1, alínea p do Código do Registo Predial: arrendamento por mais de 6 anos) sobrevive à venda executiva»[7].

Isto porque, na doutrina portuguesa, tirando as opiniões isoladas de OLIVEIRA ASCENSÃO[8] e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO[9], todos os Autores convergem no entendimento de que o direito do arrendatário tem natureza obrigacional, que não real [10].

Acresce que a evolução legislativa iniciada com a publicação do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo DL. nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e continuada com o NRAU [Novo Regime do Arrendamento Urbano] aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, e, mais recentemente, com a reforma do NRAU operada pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto) restituiu ao arrendamento urbano a sua característica da temporaneidade, aproximando-o novamente das situações creditícias[11].

Não se tratando, pois, dum direito real (de gozo), o arrendamento está fora da previsão do cit. Art. 824º- 2 do Cód. Civil. «Não sendo direito real, à locação, mesmo na modalidade de arrendamento, não se aplica o disposto no art. 824º, nº 2, CC, pelo que o bem vendido em execução é transmitido sem afectar o direito do locatário»[12].

b) A tese da aplicação analógica do Art. 824º- 2 à locação:

Os arestos que pugnam pela aplicação do disposto no nº 2 do artº 824º do Cód. Civil aos arrendamentos celebrados em data posterior à do registo da hipoteca, confrontados com a natureza obrigacional (que não real) do direito do arrendatário, procuram tornear essa dificuldade, defendendo a aplicação analógica do preceito a esses arrendamentos.

Para tanto, invocam a apregoada semelhança das situações, jurídica e sócio-económica:

“Não se trata aqui do uso da analogia para colmatar lacuna legal (interpretação analógica) mas da semelhança notória do arrendamento com um direito real de gozo tal como o uso e habitação, além da sua tendencial longa duração, como já atrás deixámos expresso.

Tal é a semelhança, que o saudoso Prof. Mota Pinto não hesitou em ver no arrendamento uma característica dominante dos direitos reais, o direito de sequela ou seguimento, ensinando que: «o direito de sequela existe no arrendamento; o direito do arrendatário está dotado dessa característica dos direitos reais, como claramente o revela o artº 1057º do actual código Civil;

... Quer isto dizer que o locatário pode continuar a exercer os seus poderes sobre a coisa, pode continuar a utilizar a coisa apesar de ela ter sido vendida ou por qualquer forma alienada pelo locador a terceiro. O seu direito, a sua posição jurídica, tem eficácia em relação ao novo adquirente da coisa» ( Op. cit., pg. 149).

(…)

É por força desta notável semelhança ou analogia das situações de base que se faz a interpretação extensiva do artº 824º, nº 2 do Código Civil, e não para a integração de qualquer lacuna legal.

Trata-se de uma modalidade da denominada interpretação correctiva, que abrange duas subespécies: a interpretação restritiva e a interpretação extensiva, de que ora nos ocupamos.

Esta interpretação tem lugar, como ensinava o nosso saudoso Mestre, o Prof. Dias Marques, quando o legislador «ao exprimir o seu pensamento, o legislador pode ter adoptado uma fórmula que não abranja toda a categoria lógico-jurídica que pretendia alcançar, sendo lícito ao intérprete apoiar-se nos elementos extra-literais e fazer uma interpretação extensiva da lei, despojando o termo por ela usado das circunstâncias restritivas em que se encontrava gramaticalmente circunscrito e tornando-o idóneo para abranger a generalidade das relações que verdadeiramente visa atingir» (Dias Marques, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1979 ( edição policopiada), pg 168).

Desta forma, quando se fala em analogia, não se quer visar necessariamente a interpretação analógica (integração de omissão por analogia), mas também a extensão da norma a situações análogas, tendo sempre a teleologia da norma, a ratio legis, que no caso do artº 824º, nº 2 é, sem dúvida, a tutela dos direitos dos credores titulares das garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia»[13].

Quid juris ?

Que não existe analogia entre o direito do arrendatário e os direitos reais de gozo contemplados no cit. Art. 824º/2 do Cód. Civil demonstrou-o o próprio Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 19/1/2004 proferido no Proc. Nº 03A4098 e relatado pelo Conselheiro AFONSO DE MELO (acessível in www.dgsi.pt):

«A analogia é um meio de preenchimento de lacuna legal - art. 10º, nºs 1 e 2, do C.Civil - que aqui não há.

Não previu o art. 824º n.º 2, a caducidade do arrendamento porque o art. 1057º do mesmo Código estabeleceu a regra da sua transmissão.

O art. 1057º do C.Civil prevê a transmissão da posição contratual do locador, determinando que a locação acompanha a transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato, sem prejuízo das regras do registo (emptio non tollit locatum).

O adquirente, sucedendo assim nos direitos e obrigações do locador, não pode invocar a ignorância do contrato de locação, salvo se [este] estava sujeito a registo que não foi feito, aplicando-se então o disposto no art. 1029º, n.º 2, do C.Civil, hoje art. 7º, n.º 3, do RAU, quanto ao prazo de oposição do contrato.

A venda executiva transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida - art. 824º, n.º 1, do C.Civil.

Trata-se de uma aquisição derivada, tal como sucede na venda voluntária.

Aplica-se-lhe o disposto no citado art. 1057º.»

Não se antolha, de facto, por que razão haveria o adquirente da coisa arrendada vendida em processo executivo de se encontrar numa situação totalmente distinta daquela em que se encontra quem a adquire por via de contrato celebrado directamente com o locador. Só se compreende e aceita que assim não suceda tratando-se de arrendamento sujeito a registo mas que não foi levado a registo – caso em que a locação efectivamente se extingue, se tiver sido constituída após o arresto, penhora ou garantia, dado ser inoponível à execução (nos termos do Art. 819º do Cód. Civil)»[14].

De resto – como bem observa MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[15] -, a solução que aplica analogicamente o regime do Art. 824º, nº 2, do Cód. Civil ao arrendamento não se compatibiliza com a nulidade da cláusula que proíbe o dono de onerar os bens hipotecados (art. 695º do Cód. Civil), os bens cujos rendimentos foram consignados (art. 665º do mesmo diploma), os próprios bens penhorados (art. 678º do mesmo Código) e os bens afectos a privilégios creditórios (art. 753º do Cód. Civil).

O que tudo concorre para evidenciar a inexistência, quanto ao arrendamento, duma lacuna justificativa do recurso à analogia.

            É este o entendimento que perfilhamos e que, se bem vemos, tem vindo a ser acolhido pela jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Administrativo.[16]

Assim, tendo-o presente, e revertendo ao caso dos autos, surpreende-se, sem esforço, na factualidade apurada nos autos, que a mesma é omissa quanto a um facto de extrema relevância, qual seja, o de saber se o contrato de arrendamento urbano celebrado, cuja subsistência jurídica vem invocada nos autos como fundamento de invalidade do despacho de entrega das chaves (e do locado), foi ou não objecto de registo.

            Efectivamente, face aos factos apurados, tudo quanto se pode concluir é que ao contrato de arrendamento (urbano) dos autos - celebrado entre o ante-proprietário e a ora Reclamante entre a data de constituição e registo da hipoteca e a data de realização e registo da penhora – foi atribuído o prazo de trinta anos (cfr. factualidade apurada em E do ponto II supra). O que significa que este contrato está sujeito a registo e, como tal, é passível de subsistir na ordem jurídica por oponível à execução (venda em execução fiscal), se aquele registo se tiver concretizado ou, pelo contrário, deve entender-se que caducou no caso de esse registo ter sido omitido.

            E não obstante concordarmos com a tese de que a inexistência de registo do contrato de arrendamento obrigatoriamente a ele sujeito não afasta em absoluto a sua oponibilidade relativamente a terceiros adquirentes (recorde-se que continuamos a ter presente a demais factualidade dos autos, isto é, situação de contrato de arrendamento celebrado posteriormente à constituição e registo de hipoteca mas anteriormente à concretização da penhora), por essa oponibilidade persistir até ao terminus do sexto ano de contrato (prazo a partir do qual o legislador entendeu ser o registo obrigatório – cfr. artigos 2.º, n.º 1, al. m) e 5.º, n.º 5, ambos do Código de Registo Predial)[17], período que, no caso concreto, ainda não decorreu (o contrato só iniciou a sua vigência a 1-1-2011, o que significa que o 6ª ano de vigência termina apenas a 1-1-2017 – cfr. factualidade apurada em F do ponto II supra), o certo é que uma decisão conscienciosa do caso sub judice e, em especial, o eventual reconhecimento integral da pretensão deduzida pela reclamante exige que se averigúe se houve ou não registo do contrato, nos termo do artigo 2.º, n.º 1, al. m), do Código de Registo Predial, ou se apenas foi realizada a declaração do mesmo para fins fiscais, a qual, de todo, não substitui, formal ou substantivamente, aquele nem produz para o arrendatário e/ou terceiros os mesmos efeitos e direitos.

            Só apurado tal facto, este Tribunal, insiste-se, estará em condições de, em definitivo, apreciar e decidir da questão que de forma fulcral lhe foi colocada e, posteriormente, sendo caso disso, apreciar e decidir das demais questões que igualmente vêm suscitadas.».

Ora, apurado que está, sem discussão, que o contrato em referência não foi objecto de registo e que há muito decorreu o prazo de 6 anos a que supra fizemos referência, forçoso é concluir, pois, pela referida caducidade e, consequentemente, pela validade, a esta luz, do despacho reclamado.

4.2. As questões que se podem colocar agora, e que a reclamante colocou, quer no recurso que anteriormente havia interposto, quer neste – as suas conclusões, neste recurso jurisdicional são, de resto, praticamente idênticas às formuladas no recurso anteriormente interposto – e que então julgámos prejudicadas pela anulação da sentença por défice instrutório, são as de saber, face à inquestionável caducidade do contrato, se as diligências e actos desenvolvidos e praticados ao longo do processo de execução, especialmente no que respeita à reclamante, afectam a validade do acto reclamado ou se, mesmo que assim se não entenda, o facto de a reclamante alegadamente ter 85 anos de idade, ser doente oncológica, estar e recuperar de intervenção cirúrgica grave e deter uma incapacidade fixada em cerca de 90%, constituem factores que este Tribunal não pode deixar de ponderar e, com base neles, decidir, por “imperativo de justiça”, que a referida entrega das chaves e consequente saída da reclamante do imóvel arrendado se não deve concretizar.

Este é, como se denota das conclusões do recurso, o entendimento professado pela recorrente.

Porém, não foi esse, como se se conclui da leitura da sentença ora recorrida, o entendimento do Tribunal a quo, que, sem deixar de ser sensível a essa eventual condição de vida da reclamante e, bem, o deixar expressamente consignado, não teve dúvidas em julgar que não existia fundamento para essa anulação.

E assim é. Se perscrutarmos com atenção o procedimento administrativo ou, mais propriamente, os factos apurados, facilmente se constata que não há qualquer acto praticado no seu seio que não constitua um rigoroso cumprimento do conjunto de actos que devem preceder a venda, presidir a esta, à adjudicação do bem penhorado e às posteriores diligências que se impõe ao órgão de execução fiscal para efectivar a sua entrega a quem foi vendido.

Efectivamente, no âmbito da execução, o proprietário e senhorio foi notificado do despacho de reversão, isto é, que contra si e a partir dessa data prosseguiria a execução originariamente instaurada contra a sociedade devedora, que a dívida cuja responsabilidade lhe era imputada não foi paga, que sobre o imóvel de que a reclamante era arrendatária foi efectuada e registada uma penhora, que esta foi notificada na qualidade de preferente para, querendo, adquirir, nas condições de facto e direito estipuladas, que lhe foram integral e claramente dadas a conhecer, o mesmo imóvel, que a reclamante não exerceu esse direito, razão pela qual veio a ser adjudicado a um credor hipotecário, na sequência de leilão electrónico, venda essa que, sem que tivesse sido posta em causa, se cristalizou na ordem jurídica [cfr. factos apurados sob as alíneas B) a N)  do ponto III supra e, em especial, artigos 23.º da LGT, 239.º a 243.º, 248.º a 253.º do CPPT, 1091.º, n.º 1, a), do CC e 819.º, 827.º e 840.º, do CPC].].

É, assim, neste contexto, que surge o pedido da sociedade adquirente para que o órgão de execução fiscal prossiga com as diligências necessárias à efectiva entrega do imóvel e que é proferido o acto objecto de reclamação de entrega das chaves [cfr. factualidade vertida na alínea O), do ponto III supra]

Em suma, não podemos concordar com a recorrida na parte em que alega que durante o procedimento a ela ou a terceiros foi criada a convicção de que o arrendamento subsistiria, convicção, de resto, sempre se diga, que para além de não ter sustento ao nível do procedimento, sempre seria irrelevante para efeitos de invalidade do acto reclamado, atento o que nesta matéria, e já o frisamos, determina a Lei.

Por fim, e quanto a uma eventual invalidade do acto fundada nas circunstâncias de vida da recorrente, designadamente, a sua idade e o seu estado de saúde, a mesma é manifestamente improcedente por, insista-se, essa factualidade, que foi efectivamente alegada – ainda que não resulte comprovada, sem que nessa parte a reclamante se tivesse insurgido - não ter, mesmo que comprovada, por si, a virtualidade de afectar a validade que já firmámos. No limite, sempre se diga, tudo quanto aquela poderá almejar é o deferimento da entrega do imóvel, que nos presentes autos nunca esteve em questão, nem foi peticionado, como claramente se depreende do seu objecto, recorrendo, se assim o entender, ao direito consagrado no artigo 864.º do Código de Processo Civil.

Confirmamos, pois, com a presente fundamentação, a sentença recorrida e, nessa medida, mantem-se válido na ordem jurídica o despacho reclamado.

V- Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que integram a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso jurisdicional, em manter na ordem jurídica o despacho reclamado.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Registe e notifique
Lisboa, 25-5-2017

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                              [Anabela Russo]


                                                          --------------------------------------------------------------------------------------                                         [Lurdes Toscano]






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              [Ana Pinhol]


[1] Acórdão da Relação de Lisboa, de 23-9-2014, proferido no processo n.º 394/12.5TBMTA.L1, publicado na Colectânea de Jurisprudência, do ano de 2014, tomo IV, pp. 74 a 79.

[2] Cfr., neste sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 19/1/1995 (sumariado in BMJ nº 443, p. 463), o Acórdão desta Relação de Lisboa de 15/5/1997 (in Colectânea de Jurisprudência, 1997, tomo III, p. 87) e o Acórdão do STJ de 7/12/1995 (Proc. Nº 087516; relator – JOAQUIM DE MATOS), acessível (apenas o sumário) in www.dgsi.pt.
[3] Cfr., neste sentido, nomeadamente, o Acórdão desta Relação de Lisboa de 2/11/2000 (in Colectânea de Jurisprudência, 2000, tomo V, p. 78), o Acórdão do STJ de 20/9/2005 (in Col. Jurispª 2005, tomo III, p. 29) e o Acórdão do STJ de 27/3/2007 (in Col. Jurispª, 2007, tomo I, p. 146).
[4] Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 3/12/1998 (in BMJ nº 482, p. 219), o Ac. do STJ de 6/7/2000 (in BMJ nº 499, p. 317 e na Col. de Jurispª. 2000, tomo II, p. 150), o Ac. da Rel. de Coimbra de 14/11/2006 (in Col. Jurispª. 2006, tomo V, p. 24), o Acórdão do STJ de 31-10-2006 (Proc. Nº 06A3241; relator – URBANO DIAS) - cujo texto integral está acessível in www.dgsi.pt; o Acórdão do STJ de 5/2/2009 (Proc. Nº 08B4087; relator – JOÃO BERNARDO) – cujo texto integral pode ser acedido in www.dgsi.pt – e o Acórdão do STJ de 19/5/2011 (Processo Nº 892/05; relator – ÁLVARO RODRIGUES) – cujo texto integral está acessível in www.dgsi.pt.
[5] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1997, p. 97.
[6] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ibidem.
[7] JOÃO DE CASTRO MENDES in Direito Processual Civil, Acção Executiva, edição da AAFDL, 1980, p. 188, nota 1).
[8] In Direito Civil. Reais, 5ª ed., Coimbra, 1993, pp. 534 e segs.
[9] In Da Natureza do Direito do Locatário, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1980, pp. 113 a 144.
[10] Cfr., neste sentido, entre muitos outros, PEREIRA COELHO (in Arrendamento. Direito Substantivo e Processual, Coimbra, 1988, pp. 17 e segs.), PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA in ob. e vol. citt., p. 342).
[11] Cfr., explicitamente neste sentido, PEDRO ROMANO MARTINEZ in Venda Executiva. Alguns aspectos das alterações legislativas introduzidas na nova versão do Código de Processo Civil (incluído in Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pp. 325/337 [p. 332]).
[12] PEDRO ROMANO MARTINEZ in Venda Executiva. Alguns aspectos das alterações legislativas introduzidas na nova versão do Código de Processo Civil cit., p. 334.
[13] Cfr., inter alia, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/5/2010 (Processo nº 5425/03.7TBSXL.S1; relator ÁLVARO RODRIGUES), acessível (o texto integral) in www.dgsi.pt.
[14] Cfr., neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in Acção Executiva Singular, Lisboa, 1998, p. 390.
[15] In ob. cit., p. 391.
[16] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-12-2013, proferido no processo n.º 1756/13, disponível na integra em www.dgsi.pt

[17] Cfr., Neste sentido, CARLOS LACERDA BARATA, in “Celebração do contrato de arrendamento no novo regime do arrendamento”, disponível em https://oa.pt/Conteudos/Artigos e ANA MARGARIDA FERREIRA CARVALHO inEFEITOS SUBSTANTIVOS DA VENDA EXECUTIVA DE IMÓVEL ARRENDADO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS ACTUAL”, Dissertação em Ciências Jurídico -Civilísticas, Menção em direito Civil”, Universidade de Coimbra, 2014, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt