Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2806/17.2BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/14/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO DE CONTRATOS PÚBLICOS
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. Relatório

O Senhor Juiz do Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF e artigo 111º, nºs 1, do CPC, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo de contratos públicos. Ambos os Magistrados se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que a sociedade C………- C ………………….., Lda. intentou no TAC de Lisboa contra o Município …………………….

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista ao Digno. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, o qual promoveu que fosse proferida decisão.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o juízo administrativo de contratos públicos.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 18.12.2017, a sociedade C ……………………, LDA. intentou no TAC de Lisboa contra MUNICÍPIO ……………….., uma acção administrativa comum, na qual pede a condenação da edilidade a pagar-lhe o montante global de €8.185,49, (sendo desta 6.730,95€, a título de capital e €1.454,54, a título de juros já vencidos) acrescido do pagamento de juros de mora até efetivo e integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, a condenar o Réu, por via do instituto do enriquecimento sem causa, a pagar-lhe a quantia de capital de €6.730,95, acrescida dos juros de mora, desde a citação do Réu até efetivo e integral pagamento. (cfr. pi, e 28 documentos juntos, a páginas n/numeradas).

2. A coberto do despacho do Juiz Desembargador Presidente do TAC de Lisboa, nº4/2020, de 01.09, os presentes autos “foram atribuídos em Lote” em 03.09.2020 a uma das Magistradas afectas ao Juízo de contratos públicos (cfr. consulta ao SITAF).

3. Por sentença datada de 23.12.2021, a Senhora Juíza do juízo de contratos públicos a quem os autos foram distribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele juízo e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente para apreciar a presente acção (cfr. páginas n/numeradas).

4. Nessa sequência o Magistrado do juízo administrativo comum do TACL por decisão datada de 07.03.2022, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao juízo dos contratos públicos (idem).

5. Em 28.03.2022, o Senhor Juiz do juízo administrativo comum TACL, requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do juízo de contratos públicos (ibidem).

6. As decisões em conflito transitaram em julgado (cfr. consulta do SITAF).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual: caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo de contratos públicos, a execução de um contrato de procura pública com interesse concorrencial. Por isso o legislador utilizou a expressão “contratação pública”, para o que nos remete para o Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos (CCP).

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc. n.º 11/2006).

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

Recorde-se que a causa de pedir na presente acção administrativa funda-se num contrato de assistência técnica (na área informática) celebrado em 1.02.2006, entre a Autora, C ………………………., LDA. e G ……………………….. , contrato esse que foi sujeito ao regime do disposto no artigo 1154º do CC (vide artigos 2º e 3º da petição inicial e doc.1 junto com o r.i) e que na sequência da deliberação da Assembleia Municipal da Edilidade, realizada em 6.02.2013, a referida empresa municipal foi dissolvida/liquidada, tendo em 1.8.2014 cedido, com consentimento da ora Autora, a sua posição contratual ao Município de ………….. (cfr. artigos 13 e 14º da p.i). A cedente assumiu dever à Autora o montante de €10.273,35, mas comunicou-lhe que apenas iria pagar a quantia de €3.542,40 (cfr. artigo 16º, 17 e 18º e doc. n.º 3 junto com o r.i.), razão pela qual a Autora insta agora o Município Réu (que como cessionário aceitou o contrato-base- inicial tal qual este fora celebrado) a pagar-lhe as facturas descriminadas no artigo 19º da p.i., as quais foram emitidas antes da cessão da posição contratual.

Resulta assim evidente que o contrato em dissidio nos presentes autos não se encontra sujeito ao regime da contratação pública nos termos previstos no artigo 275º do código dos Contratos Públicos. Ou seja, está em causa os termos relacionados com a execução do contrato base e alegado incumprimento pelo cessionário.

O que vale por dizer que o quadro normativo da contratação pública não é convocado para a apreciação e decisão da matéria em causa na presente acção administrativa, não sendo, por conseguinte, o juízo dos contratos públicos competente para conhecer o presente litígio.

Como insistentemente se tem repetido noutros processos apreciados neste Tribunal Superior (vide a decisão de 29.04.2022, no processo n.º 2712/15.5 BELSB, apenas para referir a mais recente) o critério definidor para que uma causa seja da competência do juízo de contratos públicos é a de que o dissidio entre as partes emerja de um contrato de procura pública com interesse concorrencial.

Efectivamente, para que se considere que um determinado contrato está sujeito às normas da contratação pública é necessário que haja procura pública, no sentido de corresponder esta à satisfação de um interesse próprio e de uma necessidade da entidade adjudicante (cfr., a este propósito, Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, 4.ª ed., 2020, p. 312 e s.). O que não é seguramente o caso dos presentes autos, como acima já se deixou estabelecido.

Em face do que fica dito, teremos que concluir, perante o teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º alínea a) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa.

Sem custas.

Notifique.

Em 14 de Junho de 2022,

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques