Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:304/13.2BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:06/09/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:REVERSÃO
GERÊNCIA DE FACTO
EFICÁCIA NO ATAQUE DA SENTENÇA
Sumário:I - O exercício efetivo de funções de gestão é um dos pressupostos da responsabilidade tributária subsidiária dos gestores.
II - Cabe à AT o ónus da prova do exercício efetivo de funções de gerente por parte do revertido.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 30.06.2015, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, na qual foi julgada procedente a oposição apresentada por M...(doravante Recorrido ou Oponente), ao processo de execução fiscal (PEF) n.º 1074-2011/01037510, que o Serviço de Finanças (SF) de Lagos lhe moveu, por reversão de dívidas de imposto municipal sobre imóveis (IMI), atinente ao ano de 2010, da devedora originária R..., Lda.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1. A douta sentença recorrida decidiu pela procedência do pedido fundamentando com o facto de que havia que concluir pela falta de liquidez para pagar o imposto em dívida nos autos, IMI do ano 2010, o que sempre lograria afastar a presunção de culpa;

2. Para avaliar a culpa do oponente ou ausência da mesma, o Mmº Juiz “a quo” utilizou o critério previsto no art.º 487º n.º 2 do CC, qual seja, o da diligência de um bom pai de família face do condicionalismo próprio do caso concreto;

3. Constam dos autos, documentalmente provados, factos que no entender da FP contrariam tal diligência;

4. Desde logo, o facto do oponente ser gerente quer da cooperativa que era a única cliente da devedora originária quer desta sendo que as decisões tomadas na segunda eram-no em função dos fins da cooperativa, conforme prova testemunhal produzida nos presentes autos;

5. Por outro lado, na douta P.I. invoca o Oponente que a sociedade devedora, executada originária, detinha bens suficientes para garantir o crédito exequendo e acrescido;

6. Não obstante, não logrou provar que a venda de tais bens fosse por si ordenada nem se ficou a conhecer da confrontação das respostas às notificações para o efeito, quem ordenou a venda dos bens e onde foi aplicado o respectivo produto;

7. Quando, segundo o devido critério de um bom pai de família, ao ter conhecimento, como o tinha o Oponente, das dificuldades financeiras da cooperativa dominante que culminaram na sua insolvência, ao invés de apresentar a devedora originária à insolvência para acautelar os direitos dos credores, renunciou ao cargo de gerente em simultâneo com os restantes, criando um vazio legal denunciado na douta sentença que declarou a insolvência inserta nos autos;

8. Com efeito, foi a Caixa ..., CRL que requereu, em 28-07-2011, a insolvência da devedora originária!

9. A “desculpabilização” concedida pelo Mmº Juiz “a quo” ao comportamento do oponente no exercício das suas funções de gerente não considera os factos supra expostos que se encontram documentalmente provados e não identificados no probatório;

10. Não o tendo feito, incorreu o julgador da 1ª instância em erro de julgamento e violou o disposto no n.º 1 b) do art.º 24º da Lei Geral Tributária por considerar que o Oponente logrou provar que não lhe foi imputável a falta de pagamento do IMI em dívida;

Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida e substituída por outra que considere o pedido improcedente como é de inteira JUSTIÇA”.

O Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“1. O recorrido não era gerente de facto da devedora R..., Lda a partir da insolvência da U..., sua principal sócia, em Dezembro de 2010.

2. A Fazenda não conseguiu demonstrar que o recorrido fosse gerente de facto em Dezembro de 2010 ou na altura do pagamento da primeira prestação do tributo em Abril de 2011, o que lhe competia.

3. O recorrido não tinha quaisquer meios para pagar o tributo em causa.

4. Nenhuma culpa pode ser assacada ao recorrido pelo não pagamento do tributo.

5. Nenhuns vícios, erros ou irregularidades inquinam a douta sentença recorrida.

6. Improcedem todas as conclusões da recorrente Fazenda Nacional”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há erro na decisão proferida sobre a matéria de facto?

b) Há erro de julgamento, em virtude de se não ter sido afastada a presunção de culpa do Oponente, prevista no art.º 24.º, n.º 1, alínea b), da Lei Geral Tributária (LGT)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“ 1.

Em 4 de Março de 2013, o Processo de Execução Fiscal n.º 1074-2011/01037510, instaurado no Serviço de Finanças de Lagos contra R..., Lda., reverteu contra M...– cfr. fls. 41 e 44 do apenso.


2.

Em causa está a cobrança de € 9.942,58, relativos a IMI de 2010, cujas data limite de pagamento ocorreu em 30 de Abril de 2011 – cfr. fls. 44v do apenso.
3.

A maioria do capital social da R... , Lda., pertencia a U... – Cooperativa Abastecedora de Produtos Alimentares, CRL – cfr. fls. 8 dos autos.

4.

M...era o presidente da direcção da U... – Cooperativa Abastecedora de Produtos Alimentares, CRL – facto confessado no artigo 18.º da PI.

5.

Em Dezembro de 2010, a U... – Cooperativa Abastecedora de Produtos Alimentares, CRL, foi declarada insolvente, tendo sido nomeado um administrador de insolvência – facto admitido por acordo.

6.

Em 10 Dezembro de 2010, vários trabalhadores da R... , Lda., suspenderam os seus contratos de trabalho por falta de pagamento dos salários de Outubro e Novembro – cfr. fls. 25-26 dos autos.

7.

No dia 21 de Dezembro de 2010, R... , Lda., tinha a sua situação tributária regularizada – cfr. fls. 30 dos autos.

8.

No início do ano de 2011, o administrador de insolvência da U... comunicou no processo de insolvência que as participações sociais que detinha na R... , Lda., seriam alienadas – cfr. fls. 15 dos autos”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Os documentos referidos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade”.

II.C. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração (1).

Nesse seguimento, passa a ser a seguinte a redação do facto 1, transcrito em II.A:

1. Em 07 de março de 2013, o Processo de Execução Fiscal n.º 1074-2011/01037510, instaurado no Serviço de Finanças de Lagos contra R..., Lda., reverteu contra M..., conforme despacho do chefe do mencionado Serviço de Finanças, do qual consta, designadamente, o seguinte:

“FUNDAMENTOS DA REVERSÃO

Fundamentos de emissão central.

Insuficiência de bens da devedora originária (art.º 23/2 e 3 da LGT): decorrente de situação líquida negativa (SLN) declarada pela devedora originária na última declaração referente à Informação Empresarial Simplificada (IES) e/ou em face de insolvência declarada pelo Tribunal.

Gerência (administrador, gerente ou director) de direito (art.° 24/1/b) da LGT), no terminus do prazo legal de pagamento ou entrega do imposto em questão, conforme cadastro da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT);

Gerência de facto, decorrente da remuneração da categoria A, auferida ao serviço da devedora originária no período em questão (direito constante nos artigos 255.° e/ou 399.° do Código das Sociedades Comerciais” – cfr. fls. 41 e 44 do apenso.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se aditar a seguinte matéria de facto provada:

9. O PEF mencionado em 1. foi instaurado a 22.05.2011 (cfr. fls 2. do documento com o número de registo no SITAF neste TCAS 000224734).

II.E. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto

A Recorrente, ao longo das suas alegações, vai afirmando que determinados factos ficaram provados, quando os mesmos não resultam da decisão proferida sobre a matéria de facto.

No entanto, adiante-se desde já que a FP não procedeu à efetiva impugnação de tal decisão.

Com efeito, considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão (2).

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados (3).

Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos.

Com efeito, o que é escrito, ao longo das alegações, é que determinada factualidade, não especificamente densificada, ficou provada com base em determinados elementos de prova, que não indica com precisão – quer no que toca à prova documental, quer no que toca à prova testemunhal.

Assim sendo, não se está perante uma efetiva impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pelo que, nessa parte, o recurso é rejeitado.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, ao afirmar que a falta de liquidez para pagar o imposto em dívida nos autos, IMI do ano 2010, logra afastar a presunção de culpa do Recorrido, prevista no art.º 24.º, n.º 1, alínea b), da LGT.

In casu, como resulta provado, foi instaurando um PEF em 22.05.2011 contra a sociedade devedora originária.

No que concerne à responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores de sociedades pelas dívidas tributárias, somos remetidos para o art.º 24.º, n.º 1, da LGT, nos termos do qual:

“1. Os administradores (…) e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento”.

À semelhança do que já decorria do art.º 13.º do CPT, o art.º 24.º, n.º 1, da LGT determina que a simples gestão de facto é suficiente para acionar a responsabilidade em causa, não sendo, por outro lado, suficiente a mera gerência ou administração de direito.

O art.º 24.º da LGT demarca duas situações, nas duas alíneas do seu n.º 1.

A primeira, correspondente à sua al. a), refere-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções quer no momento de ocorrência do facto tributário, quer após este momento, mas antes do término do prazo de pagamento da dívida tributária, sendo esta responsabilidade pelo depauperamento do património social, de molde a torná-lo insuficiente para responder pelas dívidas em causa. A culpa exigida aos gerentes ou administradores, nesta situação, é uma culpa efetiva — culpa por o património da sociedade se ter tornado insuficiente. Não há qualquer presunção de culpa, o que nos remete para o disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que cabe à administração tributária (AT) alegar e provar a culpa dos gerentes ou administradores.

A segunda, constante da al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, refere­-se à responsabilidade dos gerentes ou administradores em funções no período no qual ocorre o fim do prazo de pagamento ou entrega do montante correspondente à dívida tributária. No art.º 24.º, n.º 1, al. b), da LGT, presume-se que a falta de pagamento da obrigação tributária é imputável ao gestor. Assim, atentando na al. b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, o momento relevante a considerar é o do termo do prazo para pagamento voluntário. Esta presunção de culpa é ilidível, cabendo ao gestor revertido o ónus de a ilidir.

In casu, o despacho de reversão proferido foi-o ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT, ou seja, considerando os potenciais responsáveis à data do término do prazo para pagamento voluntário (cfr. facto 1.).

Como se referiu anteriormente, o regime da responsabilidade tributária tem subjacente o exercício efetivo de funções por parte do gestor.

Trata-se do ponto de partida de aplicação do regime, sendo que, depois de demonstrada a gestão de facto [cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06)], aplicar-se­-á, num segundo momento, a al. a) ou a al. b), do n.º 1 do art.º 24.º da LGT.

Cabe à AT, desde logo e em primeira linha, o ónus da alegação e prova da efetiva gerência ou administração por parte dos revertidos.

Essa prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelos potenciais revertidos, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.

Durante vários anos, prevaleceu o entendimento de que, demonstrada que fosse a gestão de direito, a AT beneficiaria de uma presunção de gestão de facto, cabendo, segundo este entendimento, ao revertido demonstrar não ter exercido efetivamente as referidas funções.

Na sequência do Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 28.02.2007 (Processo: 01132/06), operou-se uma alteração jurisprudencial, no sentido de que “… [a] presunção judicial não tem existência prévia, é um juízo casuístico que o julgador retira da prova produzida num concreto processo quando a aprecia e valora. (...) Ninguém beneficia de uma presunção judicial, porque ela não está, à partida, estabelecida, resultando só do raciocínio do juiz, feito em cada caso que lhe é submetido. (...) Do que se trata é de censurar a aplicação que fez de um regime legal, afirmando a existência de uma presunção judicial e retirando, maquinalmente, de um facto conhecido, outro, desconhecido, como se houvesse uma presunção legal, que não há; e afirmando a inversão do ónus da prova, quando tal inversão não ocorre, no caso, na falta de presunção legal”.

Como tal, continua o referido Acórdão do Pleno:

“Quando, em casos como os tratados pelos arestos aqui em apreciação, a Fazenda Pública pretende efectivar a responsabilidade subsidiária do gerente, exigindo o cumprimento coercivo da obrigação na execução fiscal inicialmente instaurada contra a originária devedora, deve, de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, provar os factos que legitimam tal exigência.

(…) [N]ada a dispensa de provar os demais factos, designadamente, que o revertido geriu a sociedade principal devedora. Deste modo, provada que seja a gerência de direito, continua a caber-lhe provar que à designação correspondeu o efectivo exercício da função, posto que a lei se não basta, para responsabilizar o gerente, com a mera designação, desacompanhada de qualquer concretização(sublinhado nosso).

Face a este entendimento, unânime na jurisprudência atual, a que se adere, decorre, como referido, que cabe, em primeira linha, à AT alegar e demonstrar que o revertido exerceu, nos termos consignados no n.º 1 do art.º 24.º da LGT, efetivas funções de gerência, entendidas como funções de gestão e representação da sociedade. (cfr., para as sociedades por quotas, os art.ºs 192.º e 252.º do Código das Sociedades Comerciais).

O mesmo resulta da interpretação do art.º 11.º do Código do Registo Comercial (CRCom).

Com efeito, nos termos desta disposição legal, “[o] registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida”.

Atentando na finalidade inerente ao registo comercial e, nesse seguimento, chamando à colação o art.º 1.º do CRCom, do seu n.º 1 resulta que “[o] registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.

Sendo certo que é legalmente obrigatória a inscrição da nomeação dos membros dos órgãos de administração de sociedades comerciais, nos termos do art.º 3.º, n.º 1, al. m), do CRCom., da leitura conjunta das disposições legais referidas resulta que as mesmas visam dar publicidade a uma situação jurídica e não a uma situação de facto (4). Assim, e no que ao registo da nomeação de uma determinada pessoa como gerente de uma determinada sociedade a presunção que decorre do art.º 11.º do CRCom é uma presunção da gestão de direito (“situação jurídica”), e não da de facto.

Portanto, também por esta via, não se pode extrair da gerência de direito a gerência de facto.

Posto este enquadramento, cumpre apreciar o caso em concreto.

Desde já se adiante que não assiste razão à Recorrente.

Com efeito, a Recorrente imputa erro de julgamento ao decidido pelo Tribunal a quo quanto à culpa do Recorrido.

No entanto, nada é dito no recurso quanto à falta de demonstração, por parte da AT, do exercício efetivo de funções por parte do oponente, sendo que a decisão recorrida se sustentou também nesta questão.

Na verdade, o Tribunal a quo, a este respeito, refere:

“[C]abe à Administração Tributária provar que:

a) O membro de corpo social ou responsável técnico revertido exerceu efectivamente funções de gerência (artigo 24.º, n.º 1, parte inicial); e que

b) O prazo legal de pagamento ou entrega das dívidas exequendas terminou no período de exercício do seu cargo (artigo 24.º, n.º 1, alínea b ), primeira parte).

E desde já se diga que a inscrição da nomeação de gerência no registo comercial apenas constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida (artigo 11.º do Código do Registo Comercial), isto é, que o nomeado obteve mandato e é o titular do cargo, que não que exerce efectivas funções de gerência. O que pode eventualmente acontecer – cfr. o acórdão do STA de 10 d e Dezembro de 2008, processo n.º 861/08 (…).

Ora, no ponto, a Administração socorre-se precisamente do registo comercial, mas não é possível, a partir dela, realizar a pretendida presunção judicial, uma vez que a cooperativa que dominava a devedora originária, e de que o revertido era presidente da direcção, foi declarada insolvente no final de 2010, altura em que foi nomeado um administrador para gerir os seus destinos.

É, pois, muito verosímil a alegação do Oponente de que, a partir da nomeação do administrador de insolvência, tendo terminado o seu mandato como presidente da cooperativa dominante, tenha igualmente cessado, de facto, a sua gerência na sociedade dominada”.

Portanto, o Tribunal a quo refere na sentença que a AT não cumpriu o seu ónus probatório no tocante ao exercício efetivo de funções por parte do Recorrido, o que não foi minimamente posto em causa pela Recorrente.

Ora, como já deixamos explanado supra, trata-se de questão fática basilar para a aplicação de qualquer uma das alíneas do n.º 1 do art.º 24.º da LGT.

Não tendo a FP atacado este fundamento da sentença, suficiente, per se, para sustentar o desfecho do processo, carece de qualquer pertinência apreciar o alegado, porquanto tal carece de efeito útil, dado que, ainda que lhe assistisse razão, o desfecho nos autos não mudaria, por não ter sido posta em causa a falta de demonstração da gestão de facto por parte da AT.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 09 de junho de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)

(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
(2) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.
(3) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada.
(4) V. a este respeito o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.02.2019 (Processo: 357/09.8BELRS), bem como o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11.03.2010 (Processo: 00349/05.6BEBRG).