Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3848/22.1BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:03/07/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
DESPACHO LIMINAR
TRÂNSITO EM JULGADO
Sumário:I-O despacho proferido pelo Juiz do TAC de Lisboa, pelo qual se declara incompetente para a apreciação da causa, ao abrigo do disposto no art. 20.º, n.º 5, do CPTA, considerando competente para a tramitação dos autos outro Tribunal, e ordena após trânsito, a remessa dos autos para o mesmo, faz caso julgado formal dentro do processo.

II-O Juiz do Tribunal considerado competente, após receber os autos, não pode reapreciar essa questão da competência.

III- Não obsta à cominação prevista no artigo 105.º, n.º 2, do CPC, a par da previsão e estatuição legal contidas no art. 625.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, o facto de a decisão ter sido proferida em sede liminar e, portanto, sem citação do réu.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. Relatório

M………………………, residente na Rua ………………….., nº 23, 1º andar, ………….., intentou no TAC de Lisboa a presente açcão de intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias contra o Ministério da Administração Interna, pedindo, a final, a intimação do réu a decidir a pretensão formulada pela autora a 31.03.2022, bem como a “emitir o título de residência do requerente com carácter urgente e sem mais delongas” e para o caso de o “ Tribunal não entender que o pedido do Autor foi objeto de deferimento, a declaração, por força do prazo legal para a decisão, do deferimento tácito do mesmo”. Mais requereu a imposição ao réu de uma sanção pecuniária compulsória a fixar pelo tribunal, por cada dia de incumprimento da sentença.

Veio o processo a este TCA Sul na sequência de despacho da Exma. Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do TAF de Sintra em que vem suscitada a resolução do conflito negativo de competência.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Com relevo para a decisão emergem dos autos as seguintes ocorrências processuais, documentalmente comprovadas:

1. Por decisão de 27.12.2022, a Senhora Juíza do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a quem estes tinham sido distribuídos, suscitou oficiosamente a incompetência do tribunal, em razão do território, para conhecer da presente acção, declarando competente para o efeito o TAF de Sintra (Secção Administrativa).

2. Essa decisão foi notificada à Autora e ao Ministério Público em 28.12.2022 e os autos foram remetidos electronicamente ao TAF de Sintra, em 25.01.2022.

3. Nesse Tribunal, a Senhora Juíza do juízo administrativo comum a quem os autos foram distribuídos, veio a proferir decisão com data de 1.02.2023, a declinar essa competência e a determinar a remessa da acção administrativa ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.

4. O Ministério Público e a Autora foram notificadas da decisão referida em 3..

5. A Autora fez chegar ao TAF de Sintra em 2.02.2023 um requerimento no qual requereu, com urgência, a remessa destes autos ao TAC de Lisboa.

6. Aqui chegados a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa exarou despacho em 15.02.2023, no qual sustenta que a decisão proferida nestes autos em 27.12.2023 [ponto1.] decidiu de forma definitiva o tribunal territorialmente competente para a instrução e conhecimento da presente acção administrativa, sendo “processualmente inadmissível a remessa dos autos ao presente Tribunal”.

7. Os autos foram de novo remetidos ao TAF de Sintra em 16.02.2023, tendo a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum, por despacho de 27.02.2023, suscitado a resolução do conflito negativo de competência e remetido o processo a este TCA Sul.



II.2. De Direito

No caso dos autos, tanto o TAC de Lisboa como o TAF de Sintra se atribuíram reciprocamente competência em razão do território, declinando a própria, para conhecer dos presentes autos de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, sendo que o réu não foi ainda citado para a acção.

Considerando que estamos perante uma situação de incompetência territorial importa, antes de mais, saber se a primeira decisão proferida no TAC de Lisboa transitou em julgado. Caso esta tenha transitado em julgado, aplicar-se-á a cominação prevista no artigo 105.º, n.º 2, do CPC, a par da previsão e estatuição legal contida no art. 625.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Com efeito, em caso de declaração de incompetência territorial, o tribunal tido por competente (mesmo que erradamente) não pode renunciar a essa competência. Trata-se da regra da prevalência do caso julgado mais antigo constante do art. 625.º CPC (n.º 1) e que se aplica também às decisões de natureza adjectiva conflituantes proferidas no mesmo processo (n.º 2).

Veja-se o que a este propósito se escreveu no acórdão do STA de 25.03.2021, proc. n.º 205/18.8BELRA: “(…) sempre houve unanimidade em conceder prevalência à decisão que primeiro transitar em julgado, independentemente de respeitar à relação material ou à relação processual, julgando ineficaz a sentença proferida sobre objecto já coberto pelo caso julgado nos termos determinados pelo artº 625º CPC/2013 (675º CPC/1939), ineficácia a declarar no segundo processo, isto é, no processo em que teve lugar a decisão de mérito que a excepção impediria. (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil – anotado, Vol. VI, Coimbra Editora/1981, págs.198 e 367; Anselmo de Castro, Direito processual civil declaratório Vol. III, Almedina/1982, págs. 392; Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora/1979, págs. 318; Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil - anotado, Vol. 2º Almedina/2018, págs.730-731, 766.)”.

Ou seja, no domínio da competência territorial dos tribunais, a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que tenha sido oficiosamente suscitada, devendo o processo ser remetido para o tribunal que foi julgado competente.

Por isso mesmo, a declaração de incompetência relativa (aqui em função da divisão territorial) nunca poderá desencadear um conflito negativo de competência, pela simples razão de que transitada em julgado a decisão, fica definitivamente resolvida a questão. Será sempre um conflito meramente aparente.

Ora, tal como resulta das ocorrências processuais supra consignadas, o réu – o Ministério da Administração Interna - não foi citado nos presentes autos; nem no Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, nem no Juízo administrativo comum do TAF de Sintra (tratou-se de decisão liminar). Porém, isso não invalida que se tenha formado caso julgado no processo relativamente à decisão liminar sobre a competência, proferida pela Exma. Senhora Juíza do TAC de Lisboa.

Como decorre do disposto no art. 259.º do CPC, a “instância inicia-se pela proposição da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida na secretaria a respetiva petição inicial” (n.º 1), sendo que “o ato da proposição não produz efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação, salvo disposição legal em contrário” (n.º 2). E a instância vai estabilizar-se com a citação do réu, nos termos do disposto no art. 260.º do CPC. Como ensina José Lebre de Freitas, “a relação jurídica processual só se converte de bilateral em triangular com o acto de citação” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 1999, p. 477).

Em suma, é com a citação que o acto de propositura da acção ganha eficácia perante o réu, que com ela fica constituído como parte, e a instância estabiliza nos seus elementos subjectivos e objectivos.

E é com a instauração da acção que, designadamente, se fixa a competência do tribunal, posto que, repete-se, a mesma só vai produzir efeitos em relação ao réu após a citação. Antes disso a relação jurídica processual é apenas constituída pelo autor e pelo tribunal.

Preliminarmente ainda, importa referir que sendo a incompetência relativa de conhecimento oficioso de acordo com o disposto no art. 89.º, n.º 4, al. a), do CPTA, e estando o processo sujeito a despacho prévio do juiz (art. 110.º, n.º 1, do CPTA), podia a Exma. Senhora Juíza do TAC de Lisboa conhecer da excepção de incompetência em razão do território (com essa decisão fica, também, prejudicado o conhecimento de outras questões). E ao julgar procedente essa mesma excepção, não admitindo, portanto, a petição, a citação do réu deverá ser promovida pelo tribunal territorialmente julgado competente, de acordo com o que resulta do art. 110.º, n.º 1, do CPTA e 105.º, n.º 2, do CPC.

Por outro lado, a remessa dos autos, em 25.01.2023, para o TAF de Sintra ocorreu após notificação, em 28.12.2023, da decisão de incompetência relativa à Autora e ao Ministério Público.

Assim, na ausência de impugnação por parte da Autora, considerando que, nesse momento, a relação processual constituída – a instância - não incluía (ainda) o réu, terá que concluir-se que se formou caso julgado sobre a mesma para efeitos do disposto no art. 628.º do CPC. Ou seja, foi fixada a competência, em razão do território, do TAF de Sintra para a tramitação e decisão do presente processo.

Trata-se de uma situação de caso julgado formal dentro do processo – de acordo com o art. 620.º do CPC, esta sentença, que recaiu unicamente sobre a relação processual, tem força obrigatória dentro do processo -, oponível à Autora que se conformou com a decisão, embora ainda ineficaz relativamente ao réu. Donde, quanto a este, não se encontrará precludido o direito de suscitar a excepção e de impugnar a decisão respectiva nos termos previstos no art. 105.º, n.º 4, do CPC; já o tribunal julgado competente está inibido de o fazer.

Tudo visto, como se procurou explicitar, a actuação do TAF de Sintra, pese embora o eventual mérito da fundamentação constante da sentença de 1.02.2023 proferida pela Exma. Senhora Juíza desse tribunal, não é correta em face das leis de processo. Ou seja, no presente processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a questão da competência está já decidida - bem ou mal não interessa agora aferir -, pelo que os autos devem ser tramitados no TAF de Sintra.

Em síntese, a remessa dos presentes autos a este tribunal superior não tem cabimento adjectivo, pois que não se está perante o conhecimento de um conflito previsto no art. 109.º, n.º 3, do CPC – o qual, aliás, sempre seria aparente -, nem veio o processo para decisão por via do incidente previsto no art. 105.º, n.º 4, do CPC.

A questão objecto do presente incidente resolve-se sim, como já afirmado supra, por via da aplicação do disposto no art. 625.º, n.º 2, do CPC.


III. Decisão

Pelo exposto, decidindo, declara-se a inexistência de conflito negativo de competência e ordena-se a baixa dos autos ao TAF de Sintra.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 7 de Março de 2023

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques