Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3541/23.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/31/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:PROCESSO CAUTELAR;
OCUPAÇÃO FORÇADA E SEM TÍTULO DE HABITAÇÃO PÚBLICA;
FALTA MANIFESTA DO “FUMUS BONI IURIS”;
NÃO ADOPÇÃO DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Sumário:I - No caso em que o requerente da providência cautelar ocupa abusivamente uma habitação municipal, sem título válido para tal (sem contrato ou sem acto administrativo autorizador ou atributivo da habitação social), nomeadamente, porque não se apresentou previamente a concurso em condições de igualdade com outros cidadãos igualmente carecidos de habitação, e ainda que esse requerente viva numa situação concreta de carência económica, nem o artigo 65.º da CRP, nem o artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, justificam que seja pedida a providência cautelar de abstenção ou inibição do Município proprietário do fogo social na prática de actos ou condutas que impeçam o Recorrente de ocupar o fogo social para a sua habitação própria e permanente, sobretudo, quando o procedimento administrativo tendente ao despejo ainda nem sequer se iniciou.
II - Dos comandos legais supra citados não decorre a sustentação legal da pretensão material que o requerente cautelar tenciona formular, depois, no processo principal, mormente, porque dos mesmos não resulta com clareza e precisão o clamado direito a habitar o fogo social do Município ora Recorrido nos termos em que o Recorrente actualmente o ocupa (em ocupação abusiva/sem título válido), nem se vê que a atribuição de uma casa municipal ao Recorrente esteja isenta dum juízo valorativo próprio da função administrativa, não competindo ao Tribunal substituir-se à Administração na formulação desse juízo.
III - O acima exposto significa, pois, que não se pode dar por verificado o requisito do “fumus boni iuris”, exigido pelo n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, requisito esse que, a par do “periculum in mora”, é de verificação cumulativa. Não se demonstrando o primeiro dos requisitos atrás aludido, não pode a providência cautelar requerida ser adoptada, soçobrando, com efeito, o processo, que deve ser julgado improcedente.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.
S..., doravante Recorrente, que deduziu no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa) processo cautelar contra o Município de Lisboa, doravante Recorrido, para a adopção da providência de intimação para abstenção de uma conduta, nomeadamente, para o ora Recorrido se abster de, por qualquer forma, criar obstáculos, impedir o normal uso do locado pelo ora Recorrente da casa sita na Avenida G...., 25 A, r/c A, 1....-....A....., para o fim a que se destina - habitação própria e exclusiva -, até que lhe seja atribuída uma nova habitação ou fixada uma renda para a actual morada de família, inconformado que se mostra com a sentença do TAC de Lisboa, de 27/01/2024, que decidiu julgar improcedente o presente processo e não adoptar a medida cautelar requerida, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):
1º. O recorrente ocupou o imóvel sito na Avenida G...., 25 A, r/c A, 1....-....A..... em 10.07.2023, por ter sido obrigado pela ex-companheira, devido a desavenças intransponíveis onde não se prevê o restabelecimento da vida conjugal a abandonar a antiga residência e por não ter outro sítio para onde ir.
2º. Apesar da alegação de o recorrente ser elemento autorizado a residir na habitação municipal sita na Avenida G...., nº 27, 6.ºA, 1…-…. A....., Lisboa, tal apenas resulta porque a habitação pertence à sua ex-companheira, e que, por os mesmos se encontrarem desavindos, tal incumbia à ex-companheira de alterar o agregado familiar associado àquela habitação, não podendo imputar-se ao recorrente o não ter feito.
3º. O recorrente não dispõe de qualquer outra habitação, não tendo outra alternativa, foi obrigado a encontrar um abrigo na sua atual habitação sem ter capacidade financeira para o arrendamento do mercado livre e a habitação social tem vindo a ser-lhe negada e prejudicar mais ninguém pois a casa estava devoluta há anos, ali permanecem até que os serviços da recorrida encontrem alguma alternativa.
4º. Neste contexto, não teve o recorrente outra alternativa senão entrar numa casa que se encontrava abandonada e com a porta aberta.
5º. O recorrente tem vindo a tentar que as recorridas o recebessem para assinar um contrato de arrendamento com uma renda apoiada e de acordo com os seus rendimentos, fazendo de tudo para que junto destas lhe fosse regularizada a situação visto que pretendia para a renda e naturalmente ter recibos na sua posse.
6º. O recorrente apenas aufere o RSI.
7º. O recorrente, ao concorrer durante os últimos meses e por estar em situação de desespero por ter não ter outro sítio onde viver, adquiriu a legitima expectativa de ter acesso a uma habitação social pois que está demonstrado que carece da mesma.
8º. Com base em estado necessidade o garantir a segurança, a saúde, e até o direito à vida do recorrente, faz com que se verifiquem os requisitos objectivos e subjectivos do estado de necessidade não apenas desculpante, mas verdadeiramente dirimente da responsabilidade criminal.
9º. Acresce ainda que tal como resulta do Acórdão do TCAS nº 383/19.9BELSB, estando demonstrada a efetiva carência habitacional tal como a recorrente alega, a entidade requerida GEBALIS enquanto entidade de gestora de um parque de habitação social está obrigada, quando confrontada com o requerimento da providência a averiguar a existência de efetiva carência habitacional e sendo a mesma evidente, deverá ser emitido juízo de prognose favorável por parte do Tribunal se a GEBALIS cumprir a obrigação legal imposta pela Lei nº 32/2016, de 24/8, facilmente concluirá que o recorrente afinal tem direito à atribuição de uma habitação social atenta a fragilidade da sua situação económica sob a forma de atribuição em emergência social.
10º. Em suma, a pretensão do recorrente com base no estado de necessidade e na situação de emergência social tem direito a que seja previamente ouvida a recorrida, a qual tem a obrigação não apenas de informar mas sobretudo de acompanhar e comunicar ao tribunal se afinal o recorrente tem ou não carência habitacional em situação de urgência e só depois, eventualmente apos a inquirição das testemunhas se pode concluir pela legalidade ou não do recurso à providencia cautelar de abstenção, a qual nos termos legais deveria merecer um despacho judicial no prazo de 48 horas de deferimento relegando-se para a fase posterior à oposição a apreciação do mérito da providência.
11º. Assim, por se afigurar que o recorrente tem direito ao deferimento provisório da providência e que o momento oportuno para se conhecer da legalidade ou não da pretensão só tem lugar após a apresentação da oposição por parte da entidade requerida, se requer a V. Exª se digne deferir provisoriamente a mesma.
12º. Se as recorridas não se dignar fixar o valor da renda ao recorrente, dentro dos parâmetros legais, a sobrevivência do agregado familiar estará grave e irremediavelmente afetada, nomeadamente a vida e o bem-estar.
13º. Nos termos do disposto no artigo 65º, nº 1 da CRP, todos têm direito para si e para sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
14º. Tal disposição tem como sujeito passivo o Estado e naturalmente que incumbindo-lhe competências quer para gerir um parque habitacional perfeitamente delimitado. Logo, a notificação da recorrida no que respeita à omissão culposa da regularização da situação não só era oportuna como perfeitamente ilegal ao abrigo da CRP.
15º. Efetivamente, ao abrigo da Lei nº 81/2014, de 19 de dezembro, que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2016, resulta do artigo 28º, nº 6 que os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais. Trata-se uma disposição naturalmente imperativa.
16º. Violou, assim, o Tribunal recorrido as citadas disposições legais.
O Recorrido apresentou contra-alegações, enunciando as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de contra-alegações inclusa no SITAF):
I. Em conformidade, o Recorrido acompanha integralmente o entendimento vertido na douta decisão recorrida.
II. O decretamento da providência requerida importa o preenchimento, além do mais, do requisito do “fumus boni iuris”.
III. De acordo com o disposto no art. 120.°, n.° 1, segunda parte, do CPTA, uma providência cautelar só poderá ser decretada se, para além de se verificar uma situação de fundado receio, for possível concluir, da prova indiciária produzida pela requerente, ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente.
IV. Dúvidas não subsistem ao Recorrido que bem andou a Mma Juiz ao concluir que é manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada pela Requerente, pela total ausência do requisito do fumus boni iuris.
V. Emerge da factualidade provada que o Recorrente ocupou a habitação social em apreço sem deter título válido de ocupação do imóvel (cf. alíneas A) e B) do ponto 9 do subtítulo III das presentes alegações), tanto que o próprio manifesta que pretende regularizar a situação, nomeadamente através da fixação de um valor mensal de renda.
VI. Ora, tendo a ocupação do fogo municipal em causa nos autos sido operada pelo Recorrente na ausência de título para o efeito, não lhe assiste o direito a permanecer na mesma, devendo a entidade gestora desencadear o procedimento administrativo com vista à desocupação, em conformidade com o estabelecido no citado artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 do RDHM e no artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro.
VII. Com efeito, o direito à habitação consagrado constitucionalmente no artigo 65º da CRP está dependente de concretização legal, só podendo exigir-se o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei.
VIII. Assim, não resulta de uma norma imediatamente exequível que impeça a desocupação de imóveis ocupados ilicitamente.
IX. Efetivamente, se é certo que o direito à habitação condigna está constitucionalmente consagrado em termos programáticos, o acesso ao mesmo está sujeito a regras.
X. E no Município de Lisboa, a atribuição das habitações municipais é feita nos termos do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal (RRAHM), publicado no BM de 21 de fevereiro de 2013, sendo precedida de procedimento concursal em que são apreciadas e classificadas as candidaturas em conformidade com as normas regulamentares aplicáveis, nos termos dos artigos 10º e seguintes do referido Regulamento.
XI. Por outro lado, atenta a factualidade enunciada no requerimento inicial, não existe qualquer ato administrativo, nem qualquer notificação no sentido do despejo.
XII. O Recorrente justificou o recurso à presente tutela cautelar apenas e tão só pelo facto de que tem vindo a assistir a inúmeras vagas de despejo entre vizinhos e familiares e de que foi informado por um conhecido das requeridas que a qualquer momento iria ser despejado, temendo pela sua integridade física e psicológica.
XIII. Razão pela qual é totalmente inócuo e desprovido de sentido jurídico a invocação do disposto no artigo 28.º, n.º 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de dezembro, dado que não existiu decisão de despejo quanto ao imóvel ocupado pelo Recorrente, logo, não se impõe às entidades requeridas a observância de tal preceito legal.
XIV. Sendo, assim, manifesta a ausência do fumus boni iuris essencial ao decretamento da providência cautelar requerida.
XV. A decisão proferida pelo tribunal a quo não merece qualquer censura.
O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento, sobretudo, por ter concluído pela falta de verificação do requisito do “fumus boni iuris”, tendo presente o disposto no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.
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III - Matéria de facto.
Considerando que a fixação da matéria de facto na decisão recorrida não foi impugnada, mormente, segundo o ónus prescrito ao Recorrente pelas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, nem há lugar a qualquer alteração dessa mesma factualidade, remetemos para os termos da decisão da 1.ª instância que a decidiu, por ser suficiente a sua consideração para a apreciação do presente recurso, conforme o disposto no n.º 6 do artigo 663.º do CPC, aplicáveis tais comandos legais “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA.
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IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito explanada na decisão recorrida, transcrevendo-se o seguinte trecho, por ser aquele que, de modo mais relevante, interessa à decisão do presente recurso:
(…) Revertendo ao caso dos autos, emerge da factualidade provada que o requerente ocupou a habitação social em apreço sem deter título válido de ocupação do imóvel – cfr. alíneas A) e B) do probatório, tanto que o próprio manifesta que pretende regularizar a situação, nomeadamente através da fixação de um valor mensal de renda.
É, assim, incontrovertido que a ocupação do fogo habitacional em causa nos autos, foi uma ocupação abusiva, mediante o uso da força. Em suma, estamos perante uma ocupação sem título e, portanto, não autorizada.
Acresce que, não resulta dos autos, contrariamente ao alegado pelo requerente que o mesmo tenha apresentado candidatura, para obter por via legal, a atribuição de uma habitaçãosocial. Antes resulta, que inexistem candidaturas a quaisquer programas de acesso à habitação – cfr. alínea C) do probatório.
Ora, tendo a ocupação do fogo municipal em causa nos autos sido operada pelo requerente na ausência de título para o efeito, não lhe assiste o direito a permanecer na mesma, devendo a entidade gestora desencadear o procedimento administrativo com vista à desocupação, em conformidade com o estabelecido no citado artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 do RDHM e no artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro.
Independentemente da alegada situação socioeconómica do requerente (relativamente à qual nada provou à semelhança das demais alegações apresentadas nos presentes autos), a verdade é não se pode desprezar as normas procedimentais para acesso e atribuição de habitação municipal, que pressupõem um procedimento concursal em que são apreciadas as candidaturas e classificadas de acordo com as normas regulamentares aplicáveis. A alegada situação de carência financeira e habitacional alegada pelo requerente apenas o habilita a solicitar a atribuição de uma habitação municipal, mas não o legitima a furtarem-se ao respetivo procedimento concursal e, sem mais, ocupar a dita fração.
Na realidade, a circunstância de o requerente invocar carecer de habitação social, estando até disponível para pagar um valor mensal a título de renda, não revela para efeitos da pretensão cautelar. Objetivamente, o procedimento de atribuição de arrendamentos sociais segue um regime específico de determinação do beneficiário, o qual é da competência exclusiva da entidade pública que promove o procedimento, não podendo o requerente, por vontade própria, sobrepor-se a esses critérios legais.
O sistema de providências cautelares previsto no CPTA não pode ser utilizado de forma a que o requerente possa atingir um resultado não consentido pelo ordenamento jurídico, designadamente, não se admite a possibilidade de o Tribunal poder ratificar ou dar a sua chancela a situações de ocupação clandestina de imóveis, sob pena de subverter os princípios da legalidade e da igualdade de oportunidades.
O ordenamento jurídico não pode tolerar um putativo direito de habitação que emerja de uma chantagem fáctica resultante de quem corre mais rápido a ocupar património público sem título para tal, colidindo, desta forma, com o Estado de Direito Democrático (cfr. artigo 2.º da CRP).
Importa, ainda, ter presente que a atribuição de uma habitação social não decorre imediata e diretamente do artigo 65.º da CRP antes depende de uma mediação e concretização legislativa que é operada pela Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro supra elencada.
O direito à habitação constitucionalmente consagrado não legitima o direito à ocupação ilícita de habitações.
Nesta conformidade, o fundamento invocado pela requerente para fundamentar a sua pretensão, consubstanciado no direito à habitação constitucionalmente consagrado, evidencia a improcedência dessa pretensão, na medida em que tal direito está dependente de concretização legal, só podendo exigir-se o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei, isto é, o direito à habitação constitucionalmente consagrado não é diretamente aplicável nem exequível por si mesmo, não conferindo à requerente um direito imediato a uma prestação efetiva, mediante a disponibilização de uma habitação, antes garantindo o estabelecimento de critérios objetivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo setor público – cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, p. 835.
Com efeito, como reiteradamente tem afirmado a jurisprudência dos tribunais superiores, “o direito social à habitação, não confere um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos mediante a disponibilização de uma habitação, antes rege na garantia de critérios objectivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público” – cfr. Acórdãos do TCAS de 18.6.2020, proferido no proc. n.º 334/20 e do TCAN, de 14.9.2018, proferido no proc. n.º 00598/17.
Também no acórdão do TCAN, datado de 13.05.2022, proferido no âmbito do processo nº 02205/21, que com as necessárias adaptações é transponível para o caso, destaca-se o seguinte: “Não dispondo a Requerente de qualquer direito de permanecer no fogo visado nos autos, mostra-se justificada determinação de despejo operada no ato suspendendo, o que influi inelutavelmente no sentido da inverificação da violação do direito à habitação previsto no artigo 65º da CRP”.
Ainda com relevo e, no mesmo sentido, veja-se o acórdão do TCAS, datado de 06.01.2022, proferido no âmbito do processo nº 1622/21.1, em que se encontra expressamente enunciado:
Não tem razão a requerente ao pretender a atribuição do fogo municipal apenas e só com base no direito à habitação constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 65º da CRP), na medida em que esta norma legal tem uma natureza programática, não sendo de concessão automática, pois o direito à habitação está dependente de concretização legal, só podendo exigir-se o seu cumprimento nas condições e nos termos definidos pela lei, isto é, o direito à habitação constitucionalmente consagrado não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo, não conferindo à requerente um direito imediato a uma prestação efectiva, mediante a disponibilização de uma habitação, antes garantindo o estabelecimento de critérios objectivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público”;
Concordamos inteiramente com a citada jurisprudência que é transponível para o caso em apreço, pois, a alegada (não provada) carência económica do requerente não é apta a, de modo automático, conferir-lhe o direito a usar uma habitação social, além de que a dimensão negativa do direito à habitação decorrente do artigo 65.º da CRP, enquanto direito de defesa, não subsiste uma proibição de desocupação de habitação de modo ilegal, nomeadamente, sem título legitimante, como ocorre no caso.
Assim, do comando constitucional supra citado não decorre que o requerente tenha o direito a ocupar, sem mais, uma habitação pública supostamente devoluta, nem resulta que o mesmo tenha o direito a obstar que a administração possa desenvolver as ações necessárias à efetiva desocupação da habitação, na medida em que se trata de uma ocupação sem título.
Donde se conclui que a ocupação do fogo municipal em causa nos autos foi feita pelo requerente na ausência de título que o legitime, pelo que, não lhe assiste o direito a permanecer no mesmo, porquanto a mesma consubstancia uma ocupação ilícita, violadora do direito de propriedade municipal que incide sobre o referido imóvel, e incompatível com a aplicação decritérios objetivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelas entidades requeridas.
No que tange à questão suscitada no requerimento inicial como fundamento de invalidade e que consiste no vício de violação de lei, porquanto, não foi efetuado qualquer encaminhamento, nos termos do disposto no 28.º, nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de dezembro, bem como, a violação do disposto no artigo 13.º da Lei nº 83/2019, de 3/9 e artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei nº 89/2021, de 3/11, cumpre enunciar o seguinte:
Nos termos do disposto no 28.º, nº 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de dezembro, “os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”.
Assim, quando o ocupante não dê cumprimento, desocupando voluntariamente o imóvel, deve a entidade competente dar início ao procedimento de despejo, de acordo com o disposto no artigo 28.º e, nesse âmbito, assegurar a observância do preceituado no n.º 6 do citado artigo 28.º, ou seja, que o agregado seja previamente encaminhado para soluções legais de acesso à habitação ou prestação de outros apoios.
Sucede que, no caso em apreço nenhuma decisão de desocupação foi ainda executada.
Saliente-se que no caso dos presentes autos, atenta a factualidade enunciada no requerimento inicial, ainda não foi emitida uma decisão administrativa de despejo. Não existe qualquer ato administrativo, nem qualquer notificação no sentido do despejo. O requerente justificou o recurso à presente tutela cautelar apenas e tão só pelo facto de que tem vindo a assistir a inúmeras vagas de despejo entre vizinhos e familiares e de que foi informado por um conhecido das requeridas que a qualquer momento iria ser despejado, temendo pela sua integridade física e psicológica.
Razão pela qual é totalmente inócuo e desprovido de sentido jurídico a invocação do disposto no artigo 28.º, n.º 6 da Lei nº 81/2014, de 19 de dezembro, dado que não existiu decisão de despejo quanto ao imóvel ocupado pelo requerente, logo, não se impõe às entidades requeridas a observância de tal preceito legal.
De facto, a enunciada norma legal apenas tem aplicação quando exista a execução coerciva da prévia decisão de despejo, o que não se vislumbra ter ocorrido in casu.
Ademais, e sem prejuízo do exposto, o prévio encaminhamento para soluções legais de acesso à habitação, não confere o direito a permanecer no imóvel ocupado ilicitamente, constituindo apenas uma garantia no procedimento administrativo que venha a ser instaurado para a prática do ato administrativo.
O requerente não é titular de uma posição jurídica individual oponível à Administração, que lhe permita exigir a sua permanência no local em que se encontra ou noutro imóvel, do parque de habitação social do Município aqui Entidade Requerida - cfr. Acórdão do STA de 18.12.2013, proferido no proc. n.º 01373/13.
Pois, reitere-se, a atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado é feita nos termos da lei, sendo precedida de procedimento em que são apreciadas e classificadas as candidaturas em conformidade com as normas aplicáveis, pelo que o encaminhamento para realojamento, soluções legais de habitação ou prestação de apoios habitacionais há-de ser feito no âmbito dos programas de acesso à habitação e de apoio ao arrendamento existentes.
Não podemos, ainda, olvidar que resulta indiciariamente provado nos presentes autos a existência de alternativa habitacional para o requerente – cfr. alínea D) do probatório. De facto, o requerente é elementos autorizado a residir no fogo municipal sito na Avenida G...., nº 27, 6.ºA, 1...-....A....., Lisboa.
Ora, aludindo a lei a “efetiva carência habitacional” cabia ao requerente provar nos autos que não têm nenhuma outra solução habitacional, o que não logrou fazer.
Pelo que, e sem necessidade de demais indagações, não se mostram violadas as disposições legais invocadas pelo requerente, pois não era exigível às entidades requeridas o seu cumprimento.
Improcede, assim, os alegados vícios invocados pelo requerente, impondo-se, concluir que face à ocupação sem título do fogo municipal, não se afigura provável que a pretensãoformulada no processo principal seja julgada procedente, não se verificando, como tal, o fumus boni iuris essencial ao decretamento da providência cautelar requerida.
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Em conclusão, num juízo meramente indiciário e de probabilidade, nos presentes autos não se verifica o denominado “fumus boni iuris”, pelo que, sendo os requisitos expressos no artigo de 120.º, nº 1, do CPTA de verificação cumulativa, não há que apreciar do requisito do periculum in mora, assim como, a verificação do preenchimento do requisito negativo, a que se refere o n.º 2 do artigo 120.º do CPTA, ou seja, da ponderação de interesses, cujo conhecimento se mostra prejudicado.
Termos em que, improcede, a providência requerida.
Desde já adiantamos que a decisão recorrida é para manter.
De igual modo avançamos que, atenta a similitude das situações, não nos vamos afastar nesta decisão dos fundamentos já plasmados no recente acórdão deste TCAS, de 16/10/2024, proferido sobre o recurso interposto da sentença emitida no processo sob o n.º 433/23.4BELLE, ainda não disponível no sítio da dgsi.pt na internet, mas consultável no SITAF, de que o ora Relator interveio naquele recurso nesta mesma qualidade.
Compulsado o requerimento inicial, constata-se que o ora Recorrente requereu a adopção da providência cautelar de intimação para abstenção de uma conduta, designadamente, para que o Recorrido se iniba de, por qualquer forma, criar obstáculos, impedir o normal uso do locado pelo ora Recorrente da casa sita na Avenida G...., 25 A, r/c A, 1....-....A....., para o fim a que se destina - habitação própria e exclusiva -, até que lhe seja atribuída uma nova habitação ou fixada uma renda para a actual morada de família.
Resulta do probatório fixado na sentença recorrida, em síntese, que o ora Recorrente, em 10/07/2023, ocupou o imóvel sito na Avenida G...., 25 A, r/c A, 1....-....A....., sem consentimento prévio do Recorrido.
Dimana do mesmo probatório que ao Recorrente não lhe foi atribuído pelo Recorrido qualquer fogo habitacional decorrente de candidaturas a programas de habitação, inexistindo candidatura ao Programa do Arrendamento Apoiado e ao programa de acesso à habitação (cf. alíneas A) a C) do probatório inscrito na sentença recorrida).
O ora Recorrente aduz que o pedido a formular na respectiva acção principal comportará os seguintes contornos: condenar o ora Recorrido a declarar a existência do direito do Recorrente a celebrar um contacto de arrendamento de habitação social com o Recorrido, com recurso aos valores da renda que resultam da Lei, condenando-se, consequentemente, o Recorrido a se abster de, por qualquer forma, perturbar o gozo do locado até que tenha lugar a efectiva celebração do contrato de arrendamento.
Ao nível do direito, o Recorrente sustenta o seu pedido cautelar, essencialmente, ao abrigo do direito à habitação preconizado no artigo 65.º da CRP e no disposto no artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, diploma legal que aprovou o regime do arrendamento apoiado para habitação e regula a atribuição de habitações, que preceitua o seguinte: “Os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”.
Tendo presente a instrumentalidade que caracteriza o processo cautelar, no sentido de que a providência requerida tem como finalidade a preservação da utilidade da sentença a proferir na acção principal (cf. artigo 113.º, n.º 1, do CPTA), não perspectivamos outra hipótese que não seja a de enquadrarmos o já identificado pedido da acção principal no objecto definido na alínea f) do n.º 1 do artigo 37.º do CPTA, ou seja, o “Reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo”.
Neste conspecto, no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, Almedina, 2022, na página 269, é explicitado que “…não se encontra preenchido o requisito da alínea f) do n.º 1 quando o direito que se pretende ver reconhecido se não encontre definido na norma administrativa com um mínimo de clareza ou precisão e careça ainda da formulação dum juízo valorativo próprio do exercício da função administrativa ou apenas possa ser efetivado através de um pedido do interessado dirigido à Administração, caso em que o meio processual próprio é, consoante os casos, a ação de impugnação de ato de conteúdo positivo desfavorável ou a ação de condenação à prática de ato devido, no caso de a pretensão do interessado ter sido indeferida ou não ter sido objeto de decisão (cfr. acórdão do TCA Norte de 8 de Abril de 2011, Proc. n.º 1467/08)” – (sublinhado nosso).
Atento o requisito do “fumus boni iuris” tal como prescrito pelo n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, é imperioso que em sede cautelar “seja provável que a pretensão formulada…nesse processo [no processo principal] venha a ser julgada procedente”, o que pressupõe, segundo a doutrina supra citada, que o direito clamado pelo ora Recorrente se encontre já previamente definido no quadro normativo com clareza e precisão a seu favor, sem que se mostre necessário a formulação de juízos valorativos próprios da função administrativa e sem que o direito apenas possa ser efectivado através de um pedido do interessado dirigido à Administração.
Acontece que, no caso vertente, tal como propugnado pela sentença recorrida, não se perspectiva que seja plausível a procedência da pretensão material a formular no processo principal, ou seja, antes pelo contrário, o que se antevê, ainda que perfunctoriamente, é a falta de sustentação legal para julgar procedente a clamada pretensão de manter a actual estadia do Recorrente na habitação municipal (meramente ocupada e sem título válido), ainda que mediante a fixação de uma renda, e a falta de suporte normativo para a atribuição de outro fogo social sem que o mesmo Recorrente se sujeite a procedimento concursal (pedido este que, igualmente, incorporou no requerimento cautelar). E assim o entendemos, porquanto, nem o 65.º da CRP nem o disposto no artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, são de molde a justificar os direitos peticionados pelo Recorrente.
Para a decisão do presente recurso e da questão que ora nos prende (a falta de verificação do requisito do “fumus boni iuris”), não nos desviaremos da fundamentação já aduzida no acórdão do STA, de 13/04/2023, proferido no processo sob o n.º 47/22.6BELLE, consultável no SITAF, uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, mas cujos argumentos, atenta a sua transversalidade e a similitude fáctica da situação ali analisada, são plenamente aplicáveis no caso em apreço, enfatizando-se os seguintes excertos:
(…) Dito isto, importa delimitar o direito à habitação, enquanto direito constitucionalmente consagrado — art° 65° da CRP.
E este normativo, tal como o artigo 67° mostram-se inseridos na Parte 1 (Direitos e deveres fundamentais), do título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), do capítulo II (Direitos e deveres sociais) da Constituição e consagrando o primeiro o direito à habitação.
E ali se reconhece a todos os cidadãos o direito a uma habitação dimensionada ao número de membros da respectiva família, onde possa ser preservada a intimidade individual e a privacidade familiar, que ofereça condições de vida condigna e minimamente integrada na vida da comunidade.
(…)
Traduz-se, pois, este direito à habitação, na sua vertente positiva, na exigência de medidas e prestações do Estado com vista à sua realização, não conferindo, porém, a qualquer cidadão, um direito imediato a uma prestação efectiva, porquanto não é directamente aplicável ou exequível; ou seja, é necessária uma actuação do legislador para concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei.
(…)
Resulta do exposto, que o art° 65° da CRP, não se pode considerar violado, nem quando o legislador ordinário estabelece regras e critérios para o acesso à habitação pública que pretendem salvaguardar a igualdade de tratamento de todos os cidadãos atendendo às suas circunstâncias e carências, nem tão pouco, quando a ora recorrida dá cumprimento à legislação ordinária vigente e aplicável ao caso sub judice, sendo certo que, caso se julgasse procedente a pretensão do recorrente, aí sim, se estaria a violar o disposto no direito à habitação, dado que o mesmo ocupa a referida casa sem qualquer título válido; ou seja, pelo facto de a carência económica do agregado familiar do recorrente ser notória, tal circunstância não é apta a, de modo automático, conferir-lhe o direito a usar uma habitação social.
Improcede, pois, este segmento recursivo.
(…)
Ora, o arrendamento apoiado para habitação, regulado pela Lei n° 81/2014 de 19.12, na redacção dada pela Lei n° 32/2016 de 24.08, contém norma de salvaguarda nas situações de carência económica e habitacional do agregado familiar conforme consta do art° 28°, n° 6 onde se prevê que, em caso de despejo, os agregados «com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais».
Este procedimento previsto no n° 6, do art° 28°, da citada Lei mantem-se mesmo que esteja em causa uma desocupação coerciva da habitação, pelo facto de os ocupantes não deterem autorização ou qualquer título válido que legitime a utilização daquele concreto fogo habitacional.
*
Porém, o encaminhamento prévio legalmente previsto, não é impeditivo a que se dê início ao procedimento administrativo de execução do despejo, ao contrário do defendido pelo recorrente, sendo que esse procedimento de execução coerciva apenas pode iniciar-se depois de se verificar que o ocupante sem título não desocupou voluntariamente a habitação, apesar de ter sido devidamente notificado para tal.
Daí que, só no decurso de tal procedimento a entidade gestora da habitação municipal poderá proceder ao encaminhamento legalmente imposto, procedimento este que de acordo com o disposto no art° 4°, n°s 1 a 6 do DL no 8912021, não se resume a um mero fornecimento de informações, mas sim a uma actividade perseverante que permita “assegurar a implementação de uma solução de alojamento temporário, em articulação com o Instituto da Segurança Social, LP:, e o IHRU, I.P. no âmbito das respectivas competências “.
Naturalmente que só depois de realizada tal actividade de encaminhamento, poderá ser proferida decisão final no procedimento em causa, determinando-se de seguida o despejo da casa ilegalmente ocupada.
Só que, contrariamente ao defendido pelo recorrente, no caso dos presentes autos, é manifesto que o procedimento de despejo coercivo previsto nos art°s 28°, no 1 e 350, no 3 da Lei n° 81/2014 ainda não se iniciou, pelo que a omissão desta fase de encaminhamento por parte da recorrida, não constitui fundamento para ordenar à mesma que se abstenha de dar início a esse procedimento, dado que o mesmo lhe é imposto pelas referidas normas.
Daí que se concorde com o consignado no Ac. recorrido, quando concluiu que: (...) por ora, não está demonstrada a consumação de violação das garantias de que o recorrente beneficia caso venha a demonstrar encontrar-se em situação de efectiva carência habitacional.
E seja como for, mesmo que lhe venha a ser reconhecido esse estatuto, a verdade é que tal não implica o reconhecimento automático do direito a permanecer na habitação social que ocupa actualmente e a que a mesma lhe seja atribuída, bem podendo ser encaminhado para outra solução temporária e transitória de alojamento.
Destarte, considerando que não subsiste nos autos evidência de que se tenha iniciado o procedimento coercivo de despejo do recorrente e do seu agregado familiar, nem que o recorrente e o seu agregado familiar reúnam os requisitos para que a sua situação seja qualificada como de ‘efectiva carência habitacional”, não pode proceder a presente pretensão intimatória.
Em concomitância, realce-se que, mesmo que porventura ocorresse uma situação de efetiva carência habitacional, a verdade é que tal não poderia determinar a abstenção da Recorrida a tomar posse da habitação n°317, ocupada atualmente pelo Recorrente e sua família, pois que a situação de efetiva carência habitacional não cristaliza na esfera jurídica do Recorrente nenhum direito a uma concreta habitação social, mas apenas a um encaminhamento garantidor da existência de uma alternativa habitacional, e que pode passar por um alojamento temporário, por forma a solucionar uma situação emergente de risco.
E, ademais, não pode este Tribunal determinar, em regra, a atribuição de uma concreta habitação social a título definitivo, pois que tal decisão, para além de se encontrar submetida a um procedimento prévio estabelecido na Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, configura um ato que participa da esfera de competências da Administração Pública, não podendo o Tribunal substituir a entidade pública competente, sob pena de afronta ao princípio da separação de poderes».
Pois bem, tal como foi entendido no acórdão acabado de citar, também aqui o invocado direito à habitação com base no artigo 65.º da CRP não serve para fundamentar o pedido cautelar, nem, de igual maneira, a pretensão material a expressar na acção principal, porquanto, o referido comando constitucional tem a natureza de norma programática, carecendo a sua execução da intermediação que é conferida pela lei ordinária (infraconstitucional), designadamente, no que toca à definição de critérios e regras de acesso à habitação pública em condições de igualdade e em concurso com outros cidadãos igualmente carecidos de um fogo social.
Aliás, a talhe de foice, diga-se que, segundo decorre do artigo 7.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, “A atribuição de uma habitação em regime de arrendamento apoiado efetua-se mediante um dos seguintes procedimentos:
a) Concurso por classificação;
b) Concurso por sorteio;
c) Concurso por inscrição.” (sublinhados nossos)
Tal como afirmou o indicado acórdão do STA, o artigo 65.º da CRP “não é directamente aplicável ou exequível; ou seja, é necessária uma actuação do legislador para concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei”.
Do mesmo modo, do artigo 65.º da CRP não se extrai a interpretação que o mesmo consinta aos cidadãos carecidos de habitação a prática de actos de ocupação abusiva de casas municipais, ainda que momentaneamente devolutas, sem que exista para tal apropriação um qualquer título válido (um contrato ou um acto administrativo autorizador ou atributivo da habitação), mesmo que a tal panorama tenha conduzido a carência económica dos ocupantes, pois, nas palavras do mencionado acórdão, “pelo facto de a carência económica do agregado familiar do recorrente ser notória, tal circunstância não é apta a, de modo automático, conferir-lhe o direito a usar uma habitação social.”.
Por outro lado, as soluções de encaminhamento impostas pelo n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, enquanto garantias de uma efectiva e consistente alternativa de acesso a habitação (alternativa à casa indevidamente ocupada) ou de outro apoio habitacional, não têm aptidão, porém, para bloquear, indefinidamente, a actuação administrativa tendente à concretização do despejo, mormente, em situações de ocupação abusiva ou sem título válido. Isto é, não se consente que tal comando legal seja propenso a deixar perpetuar ilimitadamente uma ocupação irregular de um fogo social.
Tendo em conta a semelhança da situação retratada no acórdão atrás convocado, no caso vertente também não se iniciou sequer o procedimento com vista ao despejo do Recorrente, razão pela qual, tal como plasmou o mesmo acórdão, o “encaminhamento prévio legalmente previsto, não é impeditivo a que se dê início ao procedimento administrativo de execução do despejo”, aduzindo o mesmo acórdão, mais adiante, que “a omissão desta fase de encaminhamento por parte da recorrida, não constitui fundamento para ordenar à mesma que se abstenha de dar início a esse procedimento, dado que o mesmo lhe é imposto pelas referidas normas.”.
Na senda do atrás focado acórdão do STA, que secundou inteiramente o decidido pelo acórdão recorrido, de 17/11/2022, prolatado por este mesmo TCAS (igualmente consultável no SITAF), retenha-se, de novo, o entendimento esgrimido no seguinte excerto, igualmente aplicável no caso dos autos: “não está demonstrada a consumação de violação das garantias de que o recorrente beneficia caso venha a demonstrar encontrar-se em situação de efectiva carência habitacional.
E seja como for, mesmo que lhe venha a ser reconhecido esse estatuto, a verdade é que tal não implica o reconhecimento automático do direito a permanecer na habitação social que ocupa actualmente e a que a mesma lhe seja atribuída, bem podendo ser encaminhado para outra solução temporária e transitória de alojamento.
(…)
Em concomitância, realce-se que, mesmo que porventura ocorresse uma situação de efetiva carência habitacional, a verdade é que tal não poderia determinar a abstenção da Recorrida a tomar posse da habitação n°317, ocupada atualmente pelo Recorrente e sua família, pois que a situação de efetiva carência habitacional não cristaliza na esfera jurídica do Recorrente nenhum direito a uma concreta habitação social, mas apenas a um encaminhamento garantidor da existência de uma alternativa habitacional, e que pode passar por um alojamento temporário, por forma a solucionar uma situação emergente de risco.
E, ademais, não pode este Tribunal determinar, em regra, a atribuição de uma concreta habitação social a título definitivo, pois que tal decisão, para além de se encontrar submetida a um procedimento prévio estabelecido na Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, configura um ato que participa da esfera de competências da Administração Pública, não podendo o Tribunal substituir a entidade pública competente, sob pena de afronta ao princípio da separação de poderes.
Em suma, tendo por pano de fundo o objecto da acção principal que o Recorrente projecta, assente na alínea f) do n.º 1 do artigo 37.º do CPTA, nem o artigo 65.º da CRP, nem o artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, alegados em sede do requerimento inicial e em conclusões recursivas, são de molde a justificar a pretensão material a formular no processo principal, ou seja, não resulta com clareza e precisão que o clamado direito a habitar o actual fogo social logo emerja do quadro normativo em vigor, ainda que com a fixação de renda, ou que do mesmo cenário legal seja já possível, de imediato, atribuir outra habitação social ao Recorrente (sem concurso), porquanto, quer num caso como noutro, a atribuição de uma casa municipal ao Recorrente estará sempre dependente dum juízo valorativo próprio da função administrativa, que ao Tribunal não cabe emitir.
Resta dizer, ainda, que ao invés do sustentado pelo Recorrente em conclusões de recurso, nem a medida cautelar requerida nem a pretensão material a deduzir em sede do processo principal se podem fundar no instituto civilista do estado de necessidade (cf. artigo 339.º do Código Civil - CC - subtítulo IV - “Do exercício e tutela dos direitos”), que erroneamente trouxe à colação para o presente caso.
É que, no pleito em apreço, não estamos em presença de uma qualquer causa de justificação excludente da ilicitude de uma eventual actuação destruidora ou danificadora do ora Recorrente em “coisa alheia com o fim de remover o perigo actual” (cf. n.º 1 do artigo 339.º do CC), ou de “evitar a consumação ou a ampliação de um dano” (cf. anotação ao artigo 339.º do CC, de Pires de Lima e Antunes Varela, “in” Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, página 303) na habitação municipal, nomeadamente, numa situação de incêndio ou de inundação.
Em rigor, o exercício e a tutela do direito de acesso a uma habitação pública decorre primacialmente de um quadro legal bem específico, composto por regras de direito público ou assente em normas de direito administrativo (e não do citado instituto de direito civil), de que são os melhores exemplos a já citada Lei n.º 81/2014, de 19/12, diploma legal que aprovou o regime do arrendamento apoiado para habitação e regula a atribuição de habitações, bem como, o Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal, este último, que vigora no Município de Lisboa, conforme nota que deu a sentença recorrida. Era, pois, no âmago destes diplomas que o Recorrente podia encontrar a salvaguarda para o exercício e tutela do pretendido direito habitacional, coisa que, como vimos, ainda que perfunctoriamente, não logrou alcançar no caso dos autos.
É de antever, assim, que a pretensão do Recorrente carece de base legal, sendo provável que não irá obter decisão que lhe seja favorável na acção principal, pelo que, não se encontra preenchido o requisito cautelar do “fumus boni iuris”, conforme bem apreciou o Tribunal a quo.
Sendo de verificação cumulativa os critérios de decretamento das providências, previstos no artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, o não preenchimento do “fumus boni iuris” é o que basta para concluirmos pela não adopção da providência cautelar requerida.
Nestes termos, é, pois, manifesta a falta de fundamento da pretensão enunciada pelo ora Recorrente, não cometendo o Tribunal a quo qualquer erro de julgamento.
Impõe-se, por conseguinte, que ao presente recurso jurisdicional deva ser negado provimento, mantendo-se a decisão recorrida.
***
Custas a cargo do Recorrente – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º, n.º 2, do CPTA, 7.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, do RCP, sem prejuízo, todavia, do apoio judiciário.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - No caso em que o requerente da providência cautelar ocupa abusivamente uma habitação municipal, sem título válido para tal (sem contrato ou sem acto administrativo autorizador ou atributivo da habitação social), nomeadamente, porque não se apresentou previamente a concurso em condições de igualdade com outros cidadãos igualmente carecidos de habitação, e ainda que esse requerente viva numa situação concreta de carência económica, nem o artigo 65.º da CRP, nem o artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, justificam que seja pedida a providência cautelar de abstenção ou inibição do Município proprietário do fogo social na prática de actos ou condutas que impeçam o Recorrente de ocupar o fogo social para a sua habitação própria e permanente, sobretudo, quando o procedimento administrativo tendente ao despejo ainda nem sequer se iniciou.
II - Dos comandos legais supra citados não decorre a sustentação legal da pretensão material que o requerente cautelar tenciona formular, depois, no processo principal, mormente, porque dos mesmos não resulta com clareza e precisão o clamado direito a habitar o fogo social do Município ora Recorrido nos termos em que o Recorrente actualmente o ocupa (em ocupação abusiva/sem título válido), nem se vê que a atribuição de uma casa municipal ao Recorrente esteja isenta dum juízo valorativo próprio da função administrativa, não competindo ao Tribunal substituir-se à Administração na formulação desse juízo.
III - O acima exposto significa, pois, que não se pode dar por verificado o requisito do “fumus boni iuris”, exigido pelo n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, requisito esse que, a par do “periculum in mora”, é de verificação cumulativa. Não se demonstrando o primeiro dos requisitos atrás aludido, não pode a providência cautelar requerida ser adoptada, soçobrando, com efeito, o processo, que deve ser julgado improcedente.
***
V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente, nos termos acima enunciados.
Registe e notifique.
Lisboa, 31 de Outubro de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Mara de Magalhães Silveira – (1.ª Adjunta)
Lina Costa – (2.ª Adjunta)