Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1566/22.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/09/2023
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:PROTEÇÃO INTERNACIONAL
RETOMA A CARGO
DEVER DE INSTRUÇÃO
Sumário:I - Assentando, o sistema de asilo comum, no princípio da confiança mútua, deve presumir-se que o tratamento dado aos requerentes de asilo em cada Estado-Membro está em conformidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a Convenção de Genebra de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
II – Porém, a alegação de que, em Espanha, (país para onde será transferido o requerente de proteção internacional) este não tinha tido “direito a nada”, que aí “não lhe foram oferecidos quaisquer apoios que pudessem garantir a sua subsistência” e que “viveu durante todo esse tempo como sem-abrigo” porque suscetível de, ao menos, suscitar a dúvida sobre as condições de acolhimento em Espanha, impunha ao SEF um dever de instrução no sentido de dissipar essa dúvida, confirmando, o que se supõe, ou seja, que a Espanha proporciona aos requerentes de proteção internacional condições básicas de sobrevivência."
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório:

M… intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a presente ação administrativa urgente contra o Ministério da Administração Interna pedindo que seja anulado o ato administrativo que negou a análise do seu pedido de proteção internacional e que determinou a sua transferência para Espanha.

Por sentença de 29 de setembro de 2022 foi a ação julgada procedente e, consequentemente, foi, a decisão impugnada, anulada “por deficit instrutório” e o R. condenado “à (re)instrução do respetivo procedimento de proteção internacional com informação fidedigna atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo espanhol e as condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional em Espanha, de molde a aferir se a sua transferência para esse Estado-Membro pode implicar o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.

O Ministério da Administração Interna recorreu de tal sentença formulando as seguintes conclusões:
1. Resulta evidente que o Tribunal a quo na sua ponderação e julgamento do caso sub judice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual o Estado espanhol está vinculado;
2. Saliente-se, que o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, culminou com o apuramento da Espanha (cf. art. 25º./2 do citado Regulamento Dublin e art. 37.º/1, e bem assim o art. 36.º e seguintes da Lei de asilo), pelo que o recorrente efetuou o competente pedido de retoma a cargo às autoridades congéneres espanholas, que expressamente foi aceite;
3. Consequente e vinculadamente, (cfr. arts. 19.º-A/1 -a) e 37.º/2 da citada lei), foi o pedido considerado inadmissível e determinada a transferência do ora recorrido para Espanha, E.M. responsável pela análise do pedido de Asilo nos termos do citado Regulamento, motivo pelo qual o Estado português se torna apenas responsável pela execução da transferência nos termos dos arts. 29.º e 30.º do Regulamento de Dublin;
4. Ora, no que respeita ao sistema de análise dos pedidos de asilo atualmente existente em Espanha, não é de considerar a existência de quaisquer factos, de que o Estado português conheça ou deva conhecer, que constituam razões sérias e verosímeis, que levem a concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo em Espanha, nomeadamente, provocado pela situação pandémica em solo espanhol. Pois, malogradamente, também Portugal não está inume, pelo que, obviamente, tal argumento deverá aferir-se de manifesta improficuidade.
5. Por outro lado, sendo o Estado espanhol um Estado-Membro da União Europeia e participante do acervo de Schengen, encontra-se sujeito aos princípios jurídicos do quadro axiológico da União Europeia, nomeadamente no que respeita às disposições do Sistema Europeu Comum de Asilo e às obrigações decorrentes do Regulamento de Dublin.
6. Em suma, no tocante ao sistema de análise dos pedidos de asilo em Espanha, afigura-se-nos curial que inexiste qualquer indício que permita concluir pela existência de falhas sistémicas no procedimento de Asilo, único óbice para que Portugal não proferisse a decisão de transferência ora impugnada.
7. Aliás, esta é também a posição emanada da jurisprudência, quer do TJUE, quer dos tribunais nacionais, onde o STA perfila, que não se impõe ao SEF a obrigação de quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas, com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda do art. 3.º, n.º 2 do R .Dublin, porquanto considera estar excluída a possibilidade de existir um risco real e comprovado de um requerente de proteção, poder sofrer tratos desumanos e degradantes, na aceção do art.° 4° da CDFUE, caso seja transferido para outro Estado-membro.
8. Em suma, crê-se destarte inequívoco, que ao Tribunal a quo, conforme precedentemente explanado sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o acto do Recorrente, razão pela qual se pugna pela REVOGAÇÃO da mesma.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento ao recurso.


II – Objeto do recurso:

Em face das conclusões formuladas, cumpre decidir se o Tribunal a quo incorreu em erro ao julgar que se impunha ao SEF a obrigação de efetuar quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas em Espanha.


III - Fundamentação De Facto:

Na sentença recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. Em 11.04.2016, o A. foi identificado pelas autoridades competentes na Hungria, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – Fingerprint Form” com a referência HU1330022657165 junta a fls. 3 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

2. Em 10.05.2016, o A. foi identificado pelas autoridades competentes em Itália, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – Fingerprint Form” com a referência IT1UD01UMO junta a fls. 4 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

3. Em 19.09.2016, o A. foi identificado pelas autoridades competentes na Alemanha, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – Fingerprint Form” com a referência DE1160919NUR01220 junta a fls. 5 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

4. Em 23.01.2020, o A. foi identificado pelas autoridades competentes em Espanha, aí tendo sido recolhidas as suas impressões digitais (cf. cópia do “EURODAC – Fingerprint Form” com a referência ES12008012100700 junta a fls. 6 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

5. Em 25.02.2022, o A. apresentou um pedido de protecção internacional junto do R. (cf. declaração comprovativa de apresentação do pedido de protecção internacional junta a fls. 16 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

6. Em 28.03.2022, o A. prestou declarações junto do SEF, cujo auto se reproduz parcialmente infra:

(…)
















(cf. auto de declarações junto a fls. 43-53 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

7. A final do auto de declarações a que se alude no ponto anterior, consta um quadro com a designação de “Relatório”, segundo o qual:




(…)






(cf. cópia do auto de declarações junta a fls. 43-53 do processo administrativo).

8. Em 01.04.2022, o A. apresentou um requerimento junto do R., cujo teor se reproduz parcialmente infra:


















(cf. cópias da mensagem electrónica e requerimento juntas a fls. 56-60 do processo administrativo, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

9. Em 07.04.2022, o SEF remeteu um pedido de retoma a cargo do A. às autoridades espanholas, ao abrigo do 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (EU) n.º 604/2013 (cf. cópia do processo de determinação da responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional junta a fls. 101-106 do processo administrativo, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

10. Em 12.04.2022, as autoridades espanholas responderam à solicitação a que se alude no ponto anterior, aceitando a retoma a cargo do A. ao abrigo do 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (EU) n.º 604/2013 (cf. cópia do ofício junta a fls. 110-119 do processo administrativo no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

11. Em 19.04.2022, o R. elaborou um novo “Relatório”, segundo o qual:



(…)




(cf. cópia do relatório junta a fls. 113-115 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

12. Em 27.04.2022, o A. apresentou novo requerimento junto do R., cujo teor se reproduz parcialmente infra:










(cf. cópias da mensagem electrónica e requerimento juntas a fls. 119-125 do processo administrativo, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

13. Em 28.04.2022, foi elaborada a informação n.º 1026/GAR/2022, cujo teor se reproduz parcialmente infra:

(…)












































(cf. cópia da informação junta a fls. 130-140 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

14. Em 28.04.2022, foi proferido despacho pelo Senhor Director Nacional do SEF, sancionando o teor da informação a que se alude no ponto anterior, considerando o pedido de protecção internacional apresentado pelo A. como inadmissível, ao abrigo dos artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 37.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 27/2008, de 30.06, e determinando a sua transferência para Espanha (cf. cópia da decisão junta a fls. 141 do processo administrativo, documento que se dá por integralmente reproduzido).

15. Em 04.05.2021, as autoridades administrativas espanholas indeferiram o pedido de protecção internacional apresentado pelo A. naquele país (cf. cópia da decisão junta a fls. 81-84 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

16. Em 10.05.2021, os tribunais espanhóis julgaram procedente o pedido de extradição do A. para o Paquistão, tendo em vista a execução de uma ordem de detenção internacional para o mesmo ser presente a julgamento neste país pela prática do alegado crime de “homicídio com arma de fogo”, condicionadamente à observância dos seguintes pressupostos: não aplicação de pena de morte; que a pena de prisão perpétua não signifique pena privativa de liberdade incondicional e invariável por toda a vida; possibilidade de defesa, incluindo assistência por advogado, e não submissão a tortura ou penas desumanas ou degradantes; e, em caso de pena de prisão, que a mesma seja cumprida em estabelecimento em conformidade com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (facto alegado e não impugnado pelo R. e tal como, de resto, decorre da cópia da decisão junta a fls. 801-816 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

Mais foi julgado que “nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa”.


IV – Fundamentação De Direito:

Entende o Recorrente que não se impõe ao SEF a obrigação de quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas, com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda prevista no art. 3.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, porquanto considera estar excluída a possibilidade de existir um risco real e comprovado de um requerente de proteção internacional poder sofrer tratos desumanos e degradantes, na aceção do art.° 4° da CDFUE, caso seja transferido para outro Estado-membro.
Decidiu, o Tribunal a quo, o seguinte:
(…)
De acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei de Asilo que é expressamente convocada pelo R. na decisão impugnada, o pedido de protecção internacional “é considerado inadmissível, quando se verifique que (…) Está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, previsto no capítulo IV” – caso em que, nos termos do n.º 2 desse mesmo artigo 19.º-A, “prescinde-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional”.

Ora, deste capítulo IV a que a disposição legal transcrita se refere, com o título “Procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional”, consta o artigo 37.º da Lei de Asilo, com a epígrafe “Pedido de proteção internacional apresentado em Portugal”, cujos n.os 1 e 2 estatuem que “Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo” e que “Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o diretor nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que atue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente” – o que, como se infere dos autos e decorre ainda expressamente do teor da decisão referida no facto 14. firmado supra, foi o que sucedeu in casu.

Efectivamente, resultou demonstrado que o R. remeteu, em 07.04.2022, um pedido de retoma a cargo do A. às autoridades espanholas e que estas, em 12.04.2022, aceitaram essa mesma retoma, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, ou “Regulamento” (cf. factos 9. e 10. firmados supra).

Como é sabido, o referido Regulamento “estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida” (cf. artigo 1.º), aí se estabelecendo, no n.º 1 do seu artigo 3.º, que “Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro” (sublinhado nosso).

Em complemento do que antecede, a alínea d) do n.º 1 do artigo 18.º do Regulamento que é expressamente convocada pelo R. no processo de determinação da responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional estabelece que “O Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a (…) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 29.º, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência” – sendo que “Se o Estado-Membro ao qual foi apresentado um novo pedido de proteção internacional pela pessoa referida no artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), considerar que o responsável é outro Estado-Membro, nos termos do artigo 20.º, n.º 5, e do artigo 18.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d), pode solicitar a esse outro Estado-Membro que retome essa pessoa a seu cargo”, caso em que “O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias e toma uma decisão sobre o pedido de retomar a pessoa em causa a cargo o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, dentro do prazo de um mês a contar da data em que o pedido foi recebido. Quando o pedido se baseie em dados obtidos através do sistema Eurodac, o prazo é reduzido para duas semanas” (cf. artigos 23.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, ambos do Regulamento).

Ora, tendo resultado provado que:

(i) O A. pediu asilo em Espanha em 23.01.2020 (conforme decorre dos factos 4. e 6. firmados supra);

(ii) O R. remeteu, em 07.04.2022, um pedido de retoma a cargo do A. às autoridades espanholas, em conformidade com o artigo 23.º, n.º 1, do Regulamento (cf. facto 9. firmado supra); e

(iii) As autoridades espanholas aceitaram essa mesma retoma, em 12.04.2022 (cf. facto 10. firmado supra), resulta evidente que os pressupostos a que a lei adstringe a inadmissibilidade do pedido de protecção internacional se encontram, em tese, observados, atenta a moldura legal que acima se expendeu, maxime, os artigos 19.º-A, n.º 1, alínea a), e 37.º, n.º 2, ambos da Lei de Asilo, em conjugação com os artigos 3.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, alínea d), 23.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, todos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, de 26.06.

No entanto, e como é sabido, o artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento, estabelece que “Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável. // Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável”.

Ora, tal como vem sendo entendido pela jurisprudência do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (“TJUE”), “no caso de um Estado-Membro ter aceitado a tomada a cargo de um requerente de asilo, (…) este só pode pôr em causa a escolha desse critério se invocar a existência de deficiências sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de asilo nesse Estado-Membro que constituam razões sérias e verosímeis de que o referido requerente corre um risco real de ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia” – neste sentido, vide, inter alia, o Acórdão Abdullahi, prolatado em 10.12.2013, no âmbito do processo C-394/12.

Em complemento do que antecede, mais considera o TJUE que “O artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que: – mesmo não havendo razões sérias para crer na existência de falhas sistémicas no Estado-Membro responsável pela análise do pedido de asilo, a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento n.º 604/2013 só pode ser feita em condições que excluam que essa transferência implique um risco real e comprovado de o interessado sofrer tratos desumanos ou degradantes, na aceção desse artigo” (cf. Acórdão C.K. e outros, prolatado no âmbito do processo n.º 578/16 PPU, em 16.02.2017).

Significa isto, então, nas palavras do TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL, “no que se refere ao art.º 3.º, n.º 1, do citado Regulamento, que a discricionariedade ali contemplada acaba por ser afastada pela obrigação constante do n.º 2 daquele preceito legal, que determina um verdadeiro dever legal dos Estados-Membros apreciarem acerca da eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capítulo III do Regulamento” – neste sentido, vide, inter alia, o acórdão de 26.09.2019, prolatado no âmbito do processo n.º 751/19.6BELSB.

Pese embora tal entendimento tenha vindo a ser aligeirado pelo SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, no aresto proferido em 16.01.2020, no âmbito do processo n.º 02240/18.7BELSB, aí se tendo firmado posição no sentido de que “Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos” (sublinhado nosso), há que entender, no caso concreto, que o R. se demitiu ilicitamente do dever de instruir adequadamente o procedimento de asilo sub judice, não tendo procedido às diligências que se lhe impunham com vista a aquilatar a veracidade das declarações prestadas pela parte logo em sede de entrevista inicial e, depois, por ocasião do exercício do seu direito de audiência prévia, no sentido de que, em Espanha, não teria tido “direito a nada” (“não teve acesso a qualquer tipo de apoio social”, “não lhe foram oferecidos quaisquer apoios que pudessem garantir a sua subsistência” e “viveu durante todo esse tempo como sem-abrigo”) (…)– circunstância que, a verificar-se, pode traduzir uma inequívoca situação de “falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento e, de resto, uma violação da Directiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013.

Ao fazê-lo – id est, ao não proceder à adequada instrução do procedimento com vista a ajuizar da credibilidade de tais alegações, limitando-se, nesse desiderato, a afirmar que o A. “não apresenta matéria de facto relevante para pôr em causa a aplicação no caso em apreço dos critérios enunciados no Capítulo III do Regulamento” (cf. facto 13. firmado supra) –, há que concluir que o R. incorreu num vício de deficit instrutório, causa de anulabilidade da decisão de inadmissibilidade do pedido de protecção internacional do A., o que se determina de seguida, com a sua consequente condenação à reinstrução do procedimento com vista ao apuramento de tal circunstancialismo.»


A decisão, na parte transcrita, deve manter-se, nos seus exatos termos.
Ao contrário do que o Recorrente sustenta, a mesma não contraria a jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores e bem assim a jurisprudência do TJUE, nesta matéria.
Como se refere em acórdão do TJUE de 19.03.2019 (processo C-163/17) as falhas sistémicas “devem ter um limiar de gravidade particularmente elevado”, o qual “é alcançado quando a indiferença das autoridades de um Estado-Membro tiver por consequência que uma pessoa completamente dependente do apoio público se encontre, independentemente da sua vontade e das suas escolhas pessoais, numa situação de privação material extrema, que não lhe permita fazer face às suas necessidades mais básicas como, nomeadamente, alimentar-se, lavar-se e ter alojamento, e que atente contra a sua saúde física ou mental ou a coloque num estado de degradação incompatível com a dignidade humana”. (sublinhado nosso).
É certo, como lega o Recorrente, que o TJUE também tem entendido que, assentando, o sistema de asilo comum, no princípio da confiança mútua, deve presumir-se que o tratamento dado aos requerentes de asilo em cada Estado-Membro está em conformidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a Convenção de Genebra de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Assim sendo “a transferência de um requerente de asilo no âmbito do Regulamento Dublin III só pode ser feita em condições que excluam o risco de ele sofrer tratos desumanos ou degradantes na acepção do art.º 4.º, da Carta, incumbe às autoridades do Estado-Membro (e, se for caso disso, aos seus órgãos jurisdicionais) que deva proceder à transferência “dissipar quaisquer dúvidas sérias” que possam existir” (cf. Ac. do TJUE de 1672/2017 – Proc. C-578/17)” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24.11.2022, processo 0177/22.4BELSB, publicado em www.dgsi.pt).
O A., ora Recorrido, referiu expressamente que, em Espanha, não tinha tido “direito a nada” e que aí “não lhe foram oferecidos quaisquer apoios que pudessem garantir a sua subsistência” e que “viveu durante todo esse tempo como sem-abrigo” o que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, que este Tribunal acolhe, consubstancia uma “situação de privação material extrema”.
E tal alegação, porque suscetível de, ao menos, suscitar a dúvida sobre as condições de acolhimento em Espanha, impunha ao SEF um dever de instrução no sentido de dissipar essa dúvida, confirmando, o que se supõe, ou seja, que a Espanha proporciona aos requerentes de proteção internacional condições básicas de sobrevivência.
Os direitos e interesses em questão não se compadecem com probabilidades, riscos ou incertezas.
E não é verdade o que o Recorrente alega no sentido de que o Recorrido jamais teria concretizado em que medida foi sujeito a uma situação de falha sistémica ou tratamento desumano durante a sua permanência em Espanha porquanto a alegação de que se se viveu na rua, sem abrigo, sem qualquer ajuda não pode deixar de se considerar suficientemente concretizada.
Se não é lícito transferir um cidadão estrangeiro para um país onde não lhe são asseguradas condições mínimas de sobrevivência digna (e não é), é imperioso que, em face de tal alegação, e apesar da presunção resultante do princípio da confiança mútua, se averiguem minimamente, as condições de acolhimento do país em questão.
Assim sendo, ao ter decidido transferir o A., sem mais, o SEF, como bem julgou o Tribunal a quo, incorreu em vício decorrente de deficit instrutório pelo que bem se andou ao anular a decisão impugnada e condenar o R. à (re)instrução do respetivo procedimento de proteção internacional.
Não merecendo, portanto, o recurso, provimento.

As custas serão suportadas pelo Recorrente, nos termos dos art.ºs 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC


V – Decisão:

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 9 de março de 2023



Catarina Vasconcelos
Rui Belfo Pereira
Paula Ferreirinha Loureiro (em substituição da Sr.ª Juíza Desembargadora Dora Lucas Neto, ausente do serviço)