Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:06842/13
Secção:CT
Data do Acordão:03/09/2017
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:USUCAPIÃO/ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL/ESCRITURA DE REVOGAÇÃO DA ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPOSTO DE SELO /DUPLA TRIBUTAÇÃO/DUPLICAÇÃO DA COLECTA
Sumário:I- A aquisição originária justificada na escritura de justificação notarial integra os pressupostos de incidência objectiva da tributação em imposto de selo previstos, conjugadamente, na alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º e na alínea r) do artigo 5.º do Código do Imposto de Selo.

II- Da revogação da escritura de justificação não deriva nenhuma ilegalidade para a liquidação do I.S. efectuada antes dessa revogação.

III– Não há dupla tributação, se a incidência dos tributos não deriva do mesmo facto tributário - no caso, a incidência de IS sobre a aquisição por usucapião e a incidência de IMT sobre a aquisição por sucessão “mortis causa”.

IV- E também não há duplicação da colecta se se está perante dois tributos: um (o IS), exigido num primeiro momento e por causa da aquisição por usucapião; outro (IMT), num segundo momento, por causa da aquisição por sucessão “mortis causa”, ainda que ambos incidam sobre o mesmo imóvel.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I- Relatório

C..., inconformada com a sentença, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o acto de liquidação de imposto de selo, relativa a prédio urbano, no valor de 7.728,00€, dela veio interpor o presente recurso.

Tendo alegado, aí formulou as seguintes conclusões:

«A. A douta decisão do Tribunal de 1ª Instância, de que ora se recorre, considerou julgar improcedente a Impugnação Judicial deduzida pela Recorrente, decisão que mantém a tributação em sede de IS, relativamente a um acto revogado e por isso inexistente.

B. A recorrente discorda profundamente do Tribunal a quo quanto à forma como procedeu à apreciação da matéria de facto bem como da forma como subsumiu o direito aos mesmos factos.

C. Aos factos dados por provados assim não deverão ser entendidos, porquanto houve por parte do tribunal a quo incorrecto julgamento da matéria de facto, enfermando assim a decisão recorrida do vício de erro notório na apreciação da prova.

D. Impondo a prova produzida decisão diversa da recorrida, conforme de seguida se justifica

E. A sentença em análise começa por dar por provado e como reproduzido o conteúdo de fls 4, 5, 24, 25, 29, 14, 21, 34 e fls 3 do apenso.

F. Tal como refere a decisão recorrida, a Recorrente pôs em causa e contestou a legalidade do Imposto de Selo no montante de 7.531,00€ derivado de uma escritura de usucapião que foi revogada.

G. Tratou-se de uma realidade que não ocorreu, referindo a recorrente que não recebeu o referido prédio através de escritura de usucapião, mas sim através de escritura de partilha.

H. Entendeu o meritíssimo juiz que na escritura de usucapião foi mencionado que o prédio tem a área de 953 m2, quando na verba n°3 que foi adjudicada á recorrente na escritura de partilha tem a superfície coberta de 139,20 m2 e logradouro com a área de 813,80 m2.

I. Facto que derivou de uma análise que fez o meritíssimo Juiz erradamente dos documentos dados como provados, uma vez que se trata exactamente da mesma, realidade, ou seja, o terreno (prédio) é exactamente o mesmo.

J. A soma da área da superfície coberta coma área da superfície descoberta (logradouro), (139,20 m2 + 813,80 m2), dá exactamente a área de 953 m2 que não é mais nem menos que a área constante na escritura de usucapião.

L. Foi revogada a escritura de usucapião, por não ser este o tipo de escritura a celebrar para a realidade dos factos que tinham ocorrido.

M. Aquando da revogação em (20/12/2006) foi logo de seguida em (28/12/2006) celebrada a escritura correcta à realidade dos factos, a escritura de partilha.

N. Foi incluído uma casa que se destina a arrecadação (art°14269) em nome da herança, que se encontra implantada no referido terreno (art°15671) que na altura foi objecto erradamente de escritura de usucapião.

O. Pela junção foi atribuído o art°16230, conforme consta do n°7, alínea a) da fundamentação de facto e dada como facto provado pelo meritíssimo juiz que proferiu a decisão recorrida.

P. Na origem na celebração da escritura de usucapião esteve a doc. Mod. 129, a qual consta da mesma Fundamentação de Facto com o n°1, e dada como provada pelo mesmo tribunal.

Q. Foi a alteração de titular pedida conforme consta da mesma Fundamentação de Facto no seu n° 8 e também dado como Facto Provado pelo Tribunal recorrido.

R. Trata-se pois da mesma realidade.

S. Na mesma sentença o meritíssimo Juiz não andou bem, uma vez que pela leitura feita à escritura de revogação, o mesmo não interpretou de forma certa o teor da referida escritura, isto porque refere o meritíssimo Juiz na decisão recorrida que, "... Pelo Contrário, as testemunhas continuam a confirmar o teor das declarações prestadas na escritura anterior, ou seja … "

T. O que refere a referida escritura é o seguinte:

-------------- Os ora e então segundos outorgantes que confirmaram as declarações prestadas pela primeira outorgante por corresponderem à verdade. -----------------

U. O que se diz na escritura de revogação relativamente às testemunhas é que as mesmas confirmaram as declarações prestadas pela primeira outorgante por corresponderem à verdade, MAS AS DECLARAÇÕES PRESTADAS PELA PRIMEIRA NA ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO, e não na escritura revogação.

V. Também quanto a esta parte da decisão o meritíssimo Juiz fez uma interpretação errada destes factos e que reproduziu para a decisão que agora se recorre.

X. Afirma o Tribunal a quo, que estavam e estão preenchidos os requisitos para tributação em sede de IS, por força da alínea r) do art°5°, em articulação com o art.°2° n°3 alínea a) ambos do CIS.

Z. Assim seria, caso a escritura de justificação não tivesse sido revogada,

AA. Uma vez revogada a mesma é inválida.

AB. Mais refere recorrida que a revogação da escritura não tem os efeitos pretendidos pela recorrente, alegando para o efeito o meritíssimo Juiz, que, por um lado, as razões por si invocadas na douta sentença recorrida, razões essas, que como se deixou mostrado, careceram de erro por parte do meritíssimo Juiz na sua interpretação, por outro lado, refere a douta sentença recorrida que a escritura de revogação também não tem os efeitos pretendidos pela recorrente por força do que estatuem os n.°s 2 e 3 do Art.°33 do CIS.

AC. Como refere o próprio art.°33 no seu n° 2 do mesmo diploma legal, " desde que exista acto ou contracto susceptível de operar transmissão, o chefe de finanças só pode abster-se de promover, a respectiva liquidação com os fundamentos na INVALIDADE ou INEFICÁCIA JULGADA PELOS TRIBUNAIS COMPETENTES, sem prejuízo do disposto no artº38 da LGT.

AD. Quanto à parte que refere «sem prejuízo do disposto no artº38º da LGT», esta está completamente fora de questão em ser aplicada uma vez que o referido art°38° é para aplicação apenas ás situações em que se tenham produzidos os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

AE. Na sequência do teor do art°33 n°2, é claro pela leitura do mesmo, que tratando de um acto inválido, o mesmo não é susceptível da respectiva liquidação do IS.

AF. Também acresce o facto e cuja prova se mostra junta com a Impugnação Judicial, QUE JÁ SE ENCONTRA EFECTUADO O PAGAMENTO DO IMT RELATIVAMENTE Á ESCRITURA DE PARTILHA QUE FOI FEITA EM SUBSTITUIÇÃO DA REFERIDA ESCRITURA JUSTIFICAÇÃO.

AG. Assim a Recorrente, seria tributada, duas vezes, pelo mesmo acto.

AH. Tal acto nenhum efeito produziu, tanto mais, que uma vez revogada a escritura de justificação, todos os registos quer matriciais, quer prediais, se mostram efectuados com base em PARTILHA DA HERANÇA,

AI. Os quais só se puderam operar, uma vez que se encontrava liquidado o IMT devido pela aquisição do referido prédio.

PEDIDO:

Deverá conceder-se provimento ao presente Recurso, julgando procedente a Invalidade do acto da escritura de Justificação na sequência da celebração da escritura de Revogação da mesma, e em consequência ser anulada a liquidação do Imposto de Selo no montante de 7.531,00 €, com base na incidência dos factos tributários que estão na sua origem».

Admitido o recurso jurisdicional e notificada a Fazenda Pública, por esta não foram apresentadas contra-alegações.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal Central emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

II - Objecto do recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635°, n°2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n°3 do mesmo art. 635°), razão pela qual todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso, temos por seguro que o seu objecto está circunscrito à questão de saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto de cuja correcção resulta, no entender da recorrente, necessariamente a sua revogação na medida em que, sido realizada revogação da escritura de justificação deixou de haver fundamento para a exigência de imposto de selo, devendo, em conformidade, ser anulada a mesma liquidação.

           

III - Fundamentação de Facto

Em 1ª instância foram considerados como relevantes e provados para a apreciação e decisão da causa os seguintes factos:

1. Em 29-8-2003 a impugnante apresentou no SF de ... a declaração modelo 129 declarando a inscrição de um lote de terreno para construção, com o fim de proceder a escritura de justificação notarial (fls. 4 e 5 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

2. Em 16-6-2005 a impugnante outorgou escritura de justificação notarial nos ter­mos que constam de fls. 24 e segs., cujo conteúdo se dá por reproduzido.

3. Designadamente declarou a impugnante, e os segundos outorgantes (testemunhas) confirmaram, que a impugnante era dona do prédio inscrito sob o artigo 15671, composto por lote de terreno destinado a construção, o qual lhe veio à posse por doação verbal no ano de 1970, data a partir da qual exercer a posse (fls. 25 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

4. Em 20-12-2006 a escritura de justificação foi revogada (fls. 29 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Nesta confirmaram os segundos outorgantes que as declarações prestadas na escritura anterior correspondem à verdade.

5. Por óbito de M..., pai da impugnante, foram inventariados os respectivos bens, incluindo o U-4199/... e 44 da Secção P (fls. 14 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

6. Por óbito, em 18-6-2003, de F..., mãe da impugnante, foram inventariados os respectivos bens, incluindo 1/4 do art°44 da secção P (fls. 21 cujo con­teúdo se dá por reproduzido).

7. Mediante escritura de partilha, outorgada no dia 28-12-2006, foi adjudicado à impugnante a verba n° três, correspondente ao P-16230 composto «(...) por arrecadação, com a superfície coberta de cento e trinta e nove virgula vinte metros quadrados e logradouro com a área de oitocentos e treze virgula oitenta metros quadrados, a confrontar de Norte com Herdeiros de M... Nascente com M... e Herdeiros, de Sul com Herdeiros de M... e de Poente com J......» (fls. 37 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Este artigo P 16230 derivou dos artigos 15671 e 14269 (informação de fls. 75 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

8. Em 22-2-2006 a requerente apresentou no SF de ... requerimento no qual pede a rectificação do titular constante da Declaração modelo 129 apresen­tada em 29/08/2003, o qual por lapso foi incorrectamente mencionado, no sen­tido de se averbar no mesmo o nome de M..., cabeça de casal da herança aberta por óbito de, com a herança indivisa nº... por ser na realidade este o titular do prédio, dado o prédio em questão ter sido originado do prédio rústico inscrito sob o art°44 da Secção P da freguesia de ..., propriedade do falecido M....

9. A declarada aquisição por usucapião foi sujeita a Imposto de Selo no montante de € 7.531,00 (fls. 3 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

10. Contra esta liquidação apresentou a reclamação, em 2-2-2007, nos termos que constam de fls. 3 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido.

11. A qual foi indeferida na totalidade.

3.2 Mais ficou consignado que «Com interesse para a decisão da causa nada mais se provou» e que a convicção do Tribunal se baseou «nos documentos juntos aos autos, referidos nos «factos provados» com remissão para as folhas do processo onde se encontram».

Por se mostrar relevantes para a apreciação do mérito do recurso interposto, acorda-se, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil, em aditar ao probatório a seguinte factualidade:

12. O indeferimento da reclamação supra referida (factos n.ºs 10. e 11.), teve como fundamento a «INFORMAÇÃO» constante de fls. 12 e 13 do processo administrativo apenso, a qual detém, na parte relevante, o seguinte teor:


«INFORMAÇÃO

(…)

Factos invocados pelo impugnante:

Em 29.08.2003 a impugnante apresentou a declaração mod. 129 para inscrição de um lote de terreno para construção, com fim de proceder à escritura de justificação notarial.

O terreno em causa, apesar de observado na declaração mod. 129 que se encontrava omisso, a verdade é que se encontrava inscrito na matriz como fazendo parte do "prédio mãe" a que se refere o art° 44 da secção P da freguesia de ..., sendo que aquela inscrição se justificava uma vez que a natureza do prédio se havia alterado.

Por outro lado a impugnante já havia adquirido o direito à herança dos bens deixados por óbito de M... e F..., onde nela se incluía o terreno em questão,

Tanto mais que por óbito de M... este terreno foi objecto de liquidação de Imposto Sobre Sucessões e Doações.

Posteriormente por óbito de F... foi o referido prédio rústico objecto de nova liquidação do imposto Sobre Sucessões e Doações, do qual resultou o pagamento do referido imposto.

Ou seja a impugnante aquando da inscrição do lote de terreno para construção através da mod. 129, deveria tê-lo feito em nome do cabeça de casal por óbito de M..., e como terreno urbano, por se encontrar actualmente inserido no perímetro urbano, e não como por lapso o fez em seu nome e como lote de terreno para construção, conforme o expendido no ponto 7 da p.i.

Assim a impugnante celebrou erradamente em seu nome uma escritura de justificação, sendo que a forma correcta seria a da partilha, já que constituía o direito à herança dos bens por morte dos seus avós e pai, conjuntamente com os seus primos e tios.

Mais tarde apercebeu-se o impugnante que tinha conduzido um processo de legalização pela via incorrecta, uma vez que a mesma não se ajustava à realidade dos factos, pelo que procedeu à revogação da mencionada escritura de justificação, a fim de legalizar a situação do referido terreno peia forma que espelha a realidade dos factos, e que era a competente escritura de partilhas, tendo de imediato feito as diligências necessárias conforme o descrito de ponto 11 a 13 da p.i.

Assim sendo, dúvidas não subsistem de que a escritura de justificação não produziu quaisquer efeitos, nem registrais nem matriciais, e por ter sido revogada é inexistente, pelo que não é possível liquidar-se imposto com base num título que simplesmente inexiste.

Termos em que deve a presente impugnação ser julgada procedente por provada, e em consequência, a anulada a liquidação de Imposto de Selo.


APRECIAÇÃO

(…)

Dúvidas não subsistem, que o mesmo bem imóvel, desde pelo menos o ano de 1970, está na posse da impugnante ou é usufruído por esta, tal como se pode colher da escritura de justificação, cujos efeitos legais se verificaram até à data da sua revogação ocorrida em 20-12-2006, sendo pois estes os efeitos da anulação da escritura de justificação com a sua revogação.

Diferente seria se a mesma escritura de justificação fosse declarada nula nos termos da lei, caso em que esta não produzia "ab initio", ou seja desde o início, quaisquer efeitos jurídicos, sendo esta a grande diferença entre estes dois institutos jurídicos, tal como se encontra preceituado nos art°s 285° e ss do Código Civil, aplicável por força do art° 2° al. d) da LGT.      

Por outro lado, quanto ao direito de propriedade e consequentemente a sua usufruição, já faz parte da esfera jurídico patrimonial desde a data do falecimento de F... (08-06-2003) e de uma forma contínua até ao presente, pelo que conjugando o disposto nos art°s 1314° al. b) e 2031° ambos do Código Civil, quer pelo acto de justificação, quer pelo acto de partilha, o bem imóvel desde essa data já estava na posse e fruição da ora Impugnante, estando a presente situação enquadramento na previsão do art° 33° n° 3 do Código do Imposto de Selo, que terá que ser conjugado com o art° 44° n° 2 do CIMT por remissão do mesmo. Em consequência os efeitos da liquidação ora impugnada devem subsistir.  

No que concerne ao fundamento da dupla tributação do imóvel em causa, é uma falsa questão, não só pelo que foi acima exposto, mas mesmo a verificar-se não é um facto alheio ao nosso sistema fiscal, porquanto já no âmbito do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre as Sucessões e Doações, o mesmo bem era tributado, tantas quantas as vezes que o mesmo fosse transmitido, quer "inter vivos" quer " mortis causa", com a nuance prevista no art° 44 do referido diploma legal, no que às transmissões "mortis causa" diz respeito para as situações em que o lapso de tempo que mediava as transmissões era inferior a 5 anos, a taxa era reduzida a metade, como exemplo veja-se o prédio rústico inscrita na respectiva matriz cadastral da freguesia de ... sob o art° 44 da Secção P, que tanto consta da relação de bens por óbito de M..., como de F..., sendo que ambas as transmissões são tributadas pela parte que efectivamente é transmitida.

Assim sendo sou de parecer, e tendo em consideração a informação supra, que o acto tributário deverá ser mantido e em consequência o pedido indeferido.».

13. Os registos matriciais e prediais relativos aos bens descritos na escritura de partilhas tiveram na sua base aquela mesma escritura, encontrando-se já liquidado o Imposto decorrente da aquisição pela impugnante do prédio descrito em 7. e pela forma aí descrita (cfr. documentos de fls. 8-22, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

Por se mostrar desconforme com o teor da escritura pública de “HABILITAÇÃO, PARTILHA E DOAÇÕES” procede-se, nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil, à alteração da redacção dos factos n.ºs 5. e 6., dos quais passará a constar o seguinte:

«5. Por óbito de M..., avô da impugnante, foram inventariados os respectivos bens, incluindo o U-4199/... e 44 da Secção P (fls. 14 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

6. Por óbito, em 18-6-2003, de F..., avó da impugnante, foram inventariados os respectivos bens, incluindo 1/4 do art°44 da secção P (fls. 21 cujo con­teúdo se dá por reproduzido).

            IV – Fundamentação de Direito

Como se vê dos pontos I e II deste acórdão, vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação do imposto de selo relativo à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre um imóvel.

Como fundamento do recurso invoca a Recorrente, se bem se interpretam as suas alegações, o erro de julgamento por não ter sido anulada a liquidação com base em inexistência do facto tributário que deu origem a liquidação (conclusão “A”), em erro sobre os pressupostos da tributação (conclusão “X”) e em dupla tributação (conclusão “AG”).

Não foi este, como evidenciam os autos, o entendimento da Fazenda Pública que - sem negar no essencial a factualidade alegada no que respeita à existência da escritura de partilha ou aos registos que com base nela foram efectuados ou mesmo quanto à tributação operada na sequência da escritura de partilhas - acolheu a tese de que o preceituado nos artigos 1314.º, al. b) e 2013.º, ambos do Código Civil e 33.º, n.º 3 do Código de Imposto de Selo se opõem aos efeitos fiscais que a recorrente pretende extrair de tais factos e, quanto à alegada “dupla tributação” a mesma é uma “falsa questão” já que a lei impõe que o bem seja tributado todas as vezes que seja objecto de transmissão.

Em sede de fundamentação jurídica expendeu-se na sentença recorrida o seguinte:

«(…) A impugnante contesta a legalidade da liquidação de IS no montante de €7.531,00, por se referir a uma realidade que não ocorreu: não recebeu o prédio por usu­capião, mas sim por partilha.

Mas é duvidoso que a «realidade matricial» que a oponente recebeu por partilha seja a mesma cuja aquisição por usucapião pretendeu formalizar.

Com efeito, na aquisição por usucapião é mencionado que o prédio tem a área de 953m2. Porém, a verba n°3 que lhe foi adjudicada tem uma superfície coberta com 139,20m2 e logradouro com a área de 813,80m2.

Portanto, não se trata da mesma realidade.

A impugnante revogou a escritura de justificação notarial na qual se declarou proprietária do prédio por lhe ter vindo à posse em 1970.

Na escritura de revogação não se alude à falsidade das declarações prestadas. Pelo contrário, as testemunhas continuam a confirmar o teor das declarações prestadas na escritura anterior, ou seja, que a impugnante tinha a posse do prédio desde 1970.

Deste modo, estavam, e estão, reunidos os requisitos para tributação em sede de IS, por força da alínea r) do artº 5°, em articulação com o art.°2° n°3 alínea a) ambos do CIS.

Acresce que a revogação da escritura não tem os efeitos pretendidos pela impugnante, não só pelas razões invocadas supra, mas também por força do que estatuem os n.°s 2 e 3 do Art.°33 do CIS, nos termos do qual

2 - Desde que exista acto ou contrato susceptível de operar transmissão, o che­fe de finanças só pode abster-se de promover a respectiva liquidação com fundamento em invalidade ou ineficácia julgada pelos tribunais competentes, sem prejuízo do dis­posto no artigo 38° da LGT.

3 - Não obstante o disposto na parte final do número anterior, os efeitos da tributação subsistem em relação aos bens em que ocorreu a tradição ou se verificou a usufruição...

Termos em que julgo improcedente a impugnação (…)».

É contra os três fundamentos aduzidos como fundamento na sentença e que suportam a decisão de improcedência final da impugnação que a impugnante se insurge agora em recurso.

4.1. Comecemos pelos factos cujo erro de valoração a recorrente procura evidenciar.

Assim, e quanto à questão de não ser a mesma realidade que esteve na base da liquidação impugnada e a que consta da escritura de partilha, importa salientar, desde já, que discordarmos quer da ilação extraída pelo Tribunal a quo, quer das consequências que lhe imputou.

Na verdade, como se vê da sentença, perante os factos vertidos no probatório sob os n.ºs 2. e 7., o Meritíssimo Juiz afirma que é «duvidoso que a «realidade matricial» que a oponente recebeu por partilha seja a mesma cuja aquisição por usucapião pretendeu formalizar.».

Ora, se o Tribunal não estava seguro quanto a ser a mesma (ou não) a realidade matricial em causa, não lhe restava outra alternativa senão instruir os autos, isto é, realizar acrescida prova tendo em vista apurar esse facto (se o julgava essencial). O que, de todo, não podia era, perante essa confessada dúvida, extrair a conclusão, de que não estava em presença da mesma realidade.

Perante esta situação impor-se-ia, à partida, que este Tribunal Central anulasse a sentença tendo em vista o apuramento seguro desse facto. Não é, porém, forçosamente o que exige o caso concreto, uma vez que os próprios factos seleccionados e os elementos documentais para que nesta parte somos remetidos permitem concluir que está errada a valoração que dos mesmos foi feita, uma vez que, do confronto das escrituras de justificação notarial e de partilha de bens resulta inequivocamente que estamos perante a mesma realidade material, a qual veio a traduzir-se numa mesma realidade jurídica por força da junção, no artigo P 16230, dos anteriores artigos 15671 e 14269.

Ou seja, o prédio objecto da escritura de justificação notarial - artigo provisório n.º 15671 – área de 953m2 - foi objecto da escritura de partilha sob o n.º P16230, neste se autonomizando a área coberta (artigo 14269 – 139,20 m2) e a área de logradouro (813 m2), num total de, precisamente, de 953 m2.

No que respeita às ilações extraídas das declarações prestadas pelas testemunhas nas referidas escrituras de justificação notarial e de revogação da escritura de justificação notarial, importa frisar o seguinte: na primeira escritura (“JUSTIFICAÇÃO”) as testemunhas declararam que confirmam as declarações prestadas pela primeira outorgante por corresponderem à verdade”; na segunda escritura (“REVOGAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO”) as “testemunhas/outorgantes” apenas declararam, conjuntamente com a primeira outorgante (ora impugnante) «Que no dia dezasseis de Junho de dois mil e cinco, outorgaram uma escritura de Justificação, exarada (…….), pela qual (….) “confirmaram as declarações prestadas pela primeira outorgante por corresponderem à verdade», ou seja, que então (na primeira escritura – de “Justificação”) tinham confirmado as impugnante e que nesta escritura (de “REVOGAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO”), “revogam a referida escritura de Justificação”.

Em suma: das declarações prestadas na primeira escritura pelas testemunhas (segundos outorgantes) e do contexto escrito em que foram produzidas resulta inequivocamente que aquelas confirmam (ram) as declarações prestadas nessa mesma primeira escritura pela impugnante; das declarações efectuadas na segunda escritura apenas se pode extrair a conclusão de que todos os intervenientes querem “revogar” a escritura de justificação.

Uma leitura menos atenta da segunda das escrituras conduziu a que o Tribunal a quo não se tivesse apercebido que quando aí se fez exarar “confirmaram as declarações prestadas pela primeira outorgante por corresponderem à verdade” se estava a descrever ou a reproduzir o que tinha ocorrido na primeira escritura e não a confirmar ou infirmar o que aí haviam declarado.

Aliás, e salvo o devido respeito, a ilação extraída pelo Tribunal a quo carece de sentido porque pressupõe que na segunda escritura (escritura de revogação) as testemunhas pretendiam confirmar a veracidade do que anteriormente elas mesmas haviam declarado ou a falsidade das declarações prestadas pela impugnante na primeira das referidas escrituras. Hipóteses, uma e outra, que carecem, a nosso ver, de qualquer lógica ou sentido.

Note-se que o que vimos dizendo não significa que não possa haver matéria bastante a que seja averiguada a eventual prática de um crime de falsas declarações, cometido por qualquer um dos intervenientes das referidas escrituras - a escritura de justificação revela que o notário cumpriu escrupulosamente o seu dever legal, advertindo todos os intervenientes de que incorriam no crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestassem ou confirmassem declarações falsas e fazendo constar da escritura essa mesma advertência (artigo 97.º do Código de Notariado) - mas, sim, que a interpretação realizada pelo Tribunal quanto a essas declarações não tem fundamento.

Tal como, de resto, também carece de sentido a afirmação na sentença de que na escritura “se não alude à falsidade das declarações prestadas”, matéria que, constituindo ou não uma realidade, não tinha que ficar a constar da escritura, como não ficou, tanto mais que, como é sabido, a escritura de justificação notarial apenas faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público (no caso, o notário), assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, mas não prova nem se destina a provar que sejam verdadeiras ou não as afirmações do justificante perante o notário (artigo 371.º do Código Civil – doravante apenas designado por CC).[1]

4.2. Vejamos, então, agora, de que forma o afastamento dessas ilações afecta o julgamento de direito, definindo, antes de mais, o quadro jurídico em que esse julgamento se deve realizar.

Nesse sentido, cumpre realçar que, nos termos do preceituado no artigo 116.º, n.º 1, do Código de Registo Predial (doravante CRP) «O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação (…)».

Como resulta da conjugação dos artigos 89.º e 96.º do Código de Notariado, a justificação notarial consiste na declaração, feita pelo interessado, confirmada por três declarantes, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.

Ou seja, e como vem sendo afirmado pela jurisprudência[2], na escritura de justificação notarial dá-se testemunho de factos passados, integradores da aquisição fundada da usucapião tendo em vista a obtenção de um título capaz de suportar o registo que se pretende realizar. O direito é justificado por usucapião, incumbindo ao notário dar a devida forma jurídica aos factos declarados e advertir os outorgantes da responsabilidade criminal em que incorrem se prestarem falsas declarações, e os direitos e legítimos interesses de terceiros são protegidos através da imposição legal de publicidade do acto justificante e pela proibição do mesmo oficial público de, antes de decorridos 30 dias, emitir certidão daquele acto/escritura ou a emitir (independentemente do prazo) se tiver entretanto conhecimento de que o seu teor foi impugnado.

Em síntese: a escritura de justificação notarial dá testemunho (solene) da verdade de um facto passado - exercício de actos de posse do próprio direito pelo justificante em condições e termos em que o tornam usucapível -, envolvendo, pois, uma declaração mais de ciência de que de vontade.

Foi precisamente o que sucedeu no caso concreto, isto é, a impugnante, na presença de um notário, declarou, a 16-6-2005, ser legítima possuidora de um prédio, desde data que não podia precisar mas, pelo menos, desde 1970, do qual fruiu ininterruptamente e à vista de toda a gente, como se sua dona fosse, pagando, inclusive, as contribuições por ele devidas, sendo essas declarações no acto confirmadas por três testemunhas.

E foi também com base nessa escritura de justificação notarial que a Administração Tributária veio, a 30-10-2006, a liquidar o Imposto de Selo que julgou devido (o valor da liquidação não é elemento questionado nos autos).

Do que vem dito fica, pois, claro, que a Recorrente não tem razão quando invoca a inexistência do facto tributário, porque não é infirmado em lado nenhum, nem por ela, nem por outrem, nem da prova produzida, que foi efectivamente celebrada a escritura notarial relativa àquele imóvel, que nela foram prestadas as declarações que daquela escritura constam nem que destas deriva a aquisição do mesmo imóvel por usucapião.

Fica igualmente evidente que a Recorrente também não tem razão quando invoca o erro sobre os pressupostos da tributação, porque não está em causa que a aquisição originária justificada na escritura integra os pressupostos de incidência objectiva da tributação em imposto de selo previstos no artigo 1.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto de Selo, conjugado com o artigo 5.º, alínea r), do mesmo Código.

E, por fim, que a Recorrente também não tem razão quando invoca a dupla tributação, seja porque a incidência de tributos invocada - no caso, a incidência de IS sobre a aquisição por usucapião, e a incidência de IMT sobre a aquisição com base em partilha - não deriva do mesmo facto tributário, seja porque da opção legislativa pela incidência de dois impostos sobre o mesmo facto tributário também não deriva, em si mesma, nenhuma ilegalidade tributária (só tal acontecerá, em princípio, quando se alegue e demonstre a violação do princípio da capacidade contributiva).

Podia ainda pensar-se que ao alegar a dupla tributação - que ocorre quando o mesmo facto tributário é base de incidência de mais do que um tributo - o que a Recorrente efectivamente pretendia era invocar a duplicação da colecta - que ocorre quando o mesmo tributo, que foi pago por inteiro e relativamente ao mesmo facto tributário, está a ser duplamente exigido (cfr. artigo 205.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário). Mas, mesmo que assim fosse, nunca lhe poderia ser reconhecida razão, porque o que temos são dois tributos, um (o IS) exigido por causa da aquisição por usucapião, num primeiro momento, e outro (o IMT) por causa da aquisição com base em partilha, num segundo momento, do mesmo imóvel.

Está bem de ver, de qualquer modo, que o que aqui esteve em causa nunca foi a legalidade da liquidação impugnada (a primeira, relativa a IS), mas o facto de não ter sido levado em conta um facto superveniente à própria liquidaçãoa revogação da escritura de justificação notarial.

Só que da revogação da escritura de justificação não deriva nenhuma ilegalidade da liquidação anterior. Derivará, quando muito (e se for o caso), a ilegalidade da actuação posterior da administração (ou a falta dela) ao não extrair eventuais implicações dessa revogação na manutenção daquela liquidação, o que poderá, no limite, ser considerado no meio processual adequado, previsto no artigo 79.º da Lei Geral Tributária.

Para que se compreenda o que vimos afirmando, importa, por um lado, que tenhamos presente que são irrelevantes, aqui e para esse efeito, eventuais desconformidades do que tenha sido declarado com a realidade ou a bondade ou veracidade dessas declarações ou dos motivos justificadores das mesmas - como já deixámos firmado, tal constitui matéria a dissecar em eventual processo-crime por falsas declarações, se e quando o mesmo for instaurado, tanto mais que mesmo que “venham a ser confirmadas, “as falsas declarações não conduzem nem à falsidade da escritura de justificação, nem à sua nulidade»[3]. E, por outro, que a escritura de justificação é, pelo menos é esse o entendimento maioritário da nossa doutrina e jurisprudência, um acto jurídico (facto voluntário “cujos efeitos se produzem, mesmo que não tenham sido previstos ou queridos pelos seus autores, embora por vezes haja concordância entre a vontade destes e os referidos efeitos. (…) Os efeitos produzem-se – diz-se comummente – ex lege e não ex-voluntat).[4], que se integra, dentro das duas categorias em que a doutrina subdivide aquele (actos jurídicos quase negociais e operações jurídicas), na categoria dos actos jurídicos quase negociais ou quase negócio jurídico: o agente quer e entende o acto que produz (não bastando, pois, como sucede nas operações jurídicas - também designadas por actos reais, materiais ou exteriores - uma simples vontade natural de agir ou, se preferirmos, não se esgotando na produção de um resultado material a que a lei atribuiu determinados efeitos jurídicos.[5]).

Relativamente à susceptibilidade de este específico acto (escritura de justificação) ser passível de revogação, a jurisprudência, ainda que se denote não ser tema que venha sendo muito analisado – tende a aceitar essa faculdade, atenta a aplicabilidade a esse concreto acto jurídico quase negocial do regime dos negócios jurídicos (por força do determinado no artigo 295.º do CC) e pela relevância que nesta sede assume a vontade enquanto elemento provocador do acto jurídico.

Destes pressupostos a jurisprudência tem vindo a concluir que, vigorando em matéria de resolução ou revogação dos negócios jurídicos a regra de que a mesma vontade que constitui o negócio jurídico pode livremente destruí-lo, se só dos seus interesses se tratar, não há qualquer fundamento que obste a que o acto de justificação notarial seja revogado pelo próprio declarante, por estar em causa um direito por natureza disponível, traduzindo essa declaração de revogação “uma retratação da declaração de ciência em que ela assenta e exarada na escritura” (salvo situações em que haja prejuízo para terceiros).

É neste contexto que a mesma jurisprudência, embora ciente que na escritura de justificação intervém, para além do declarante e de duas testemunhas, um oficial público – notário – que “empresta ao documento uma força e solenidade próprias que têm que ser respeitadas”, insiste na distinção que deve ser realizada entre os efeitos criminais e os efeitos civis de uma eventual retractação. Ou seja, o que a jurisprudência vem entendendo é que, ainda que seja possível concluir da retractação ou declaração de revogação, que houve a prestação de falsas declarações, a única consequência que daí se pode extrair é a de uma eventual responsabilidade criminal (e daí a advertência que a lei impõe que seja feita aos intervenientes da escritura de justificação e que dela fique a constar a que supra já aludimos) e não qualquer obstáculo ou impedimento legal à produção dos efeitos civis correspondentes à revogação ou retractação em si mesma considerada, isto é, aos efeitos que decorrem da “declaração revogatória expressa” desde que esteja corporizada, em termos de forma, no mesmo tipo do acto revogando, no caso, estar formalizada em escritura pública.

Tudo, pois, razões que levam a que a jurisprudência conclua, e nós subscrevemos, pela possibilidade de aplicação do instituto da revogação à escritura de justificação notarial e, consequentemente, nas condições ou observados os limites supra descritos, no sentido da validade e eficácia da escritura de “Revogação de Justificação”.

Porém, e salvo o devido respeito, do facto de ser jurisprudência mais ou menos pacifica que é possível revogar um acto de justificação notarial, vulgo, escritura de justificação não resulta, como deixámos adiantado, que dessa revogação possam ser extraídos efeitos sobre uma liquidação, em especial, tendo em consideração o nosso caso, sobre uma liquidação emitida antes da escritura de “Revogação da Justificação ter sido celebrada.

Na verdade, a revogação, enquanto forma de extinção de um negócio jurídico por manifestação da vontade do seu autor, ou por acordo entre as partes, produz, em regra, efeitos extintivos para o futuro e que não pode, também em regra, lesar direitos ou legítimos interesses de terceiros. Ou seja, a revogação consiste na livre destruição dos efeitos de um acto jurídico pelo seu próprio autor ou autores.[6] É, no fundo uma «expressão do poder de retractação de um acto jurídico (privado) efectuada ou provocada pelo seu próprio autor (…) com o efeito de impedir o surgimento de uma situação jurídica ou de repristinar a situação existente.»[7]

Ora, e regressando aos factos apurados, está provado que a liquidação foi emitida pela Administração Tributária após a celebração da escritura de justificação e da impugnante ter comunicado esse facto à autoridade tributária e antes de ter sido realizada a escritura de revogação da justificação, da celebração da escritura de partilha e do pagamento do correspondente imposto.

No caso concreto, a “revogação” só pode ter tido em vista repristinar a situação existente e fundou-se, claramente, em questões de mera oportunidade ou conveniência da impugnante (e eventualmente dos demais outorgantes), pelo que apenas é susceptível de fazer cessar para o futuro os efeitos produzidos entre o início da eficácia do acto revogado e o início da eficácia do acto revogatório, ou seja, respeita os efeitos já produzidos pelo acto ulteriormente considerado inconveniente e apenas faz cessar, para o futuro, os efeitos que tal acto ainda estivesse em condições de produzir, operando, assim, com efeitos "ex nunc".

Mas, sendo assim, não existindo dúvidas quanto a ter existido uma aquisição por usucapião, titulada por escritura de justificação notarial celebrada a 16 de Junho de 2005 que produziu efeitos até 20 de Dezembro de 2006 - data em que foi celebrada a escritura pública de “Revogação da Justificação”), não vemos como possa sustentar-se que esta liquidação padece de erro sobre os pressupostos de facto ou direito a determinarem a sua anulação.

Em suma, do que vimos expondo resulta, qualquer que seja o seu significado – isto é, mesmo para quem não acolha o entendimento que escolhemos professar acerca do significado de revogação de uma escritura de justificação, sendo certo que muito haveria a dizer sobre o significado a atribuir à revogação de declarações que não exprimem nenhuma vontade negocial nem podem ser tratadas como se de uma pura revogação de negócio jurídico se tratasse -, que da revogação, ulterior à liquidação, de uma escritura de justificação nunca pode derivar a ilegalidade da liquidação que a antecedeu mas, quando muito, derivar a omissão ilegal da consequente revogação dessa liquidação ou a ilegalidade da decisão que não deferisse essa revogação, uma vez que:

- o facto tributário não é aqui constituído pela formalização da escritura de justificação, mas pela aquisição originária do imóvel, ficcionando o legislador, para efeitos de tributação, que esta se consumou na data em que foi celebrada a escritura (e quaisquer que sejam as vicissitudes subsequentes). Não deixa de se consumar a aquisição originária apenas porque a escritura foi revogada, até porque a escritura de justificação não se destina a viabilizar a aquisição, mas o registo;

- da figura da revogação (mesmo quando tenha por objecto negócios jurídicos) não resulta necessariamente a extinção dos seus efeitos retroactivamente. Só assim será quando essa seja a vontade declarada das partes e, naturalmente, a produção desse efeito extintivo esteja na sua disponibilidade jurídica;

- mesmo quando a revogação opera retroactivamente para efeitos civis, isso não significa que possa operar do mesmo modo para efeitos tributários. Não será assim quando se tenham produzido os efeitos económicos decorrentes dessa aquisição, traduzidos no exercício dos poderes de fruição e de disposição de que beneficiaria o proprietário (cfr. artigo 33.º, n.º 3, do Código do Imposto de Selo) ou quando a revogação tenha sido praticada apenas com vista a obstar à tributação (artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária). Situações que, de todo o modo, sempre teriam que ser aferidas, em primeira mão, pela Administração Tributária.

Pelo que, por todo o exposto, na ilegalidade da liquidação não se concede. E a sentença que assim decidiu deve ser confirmada, com a presente fundamentação.

V- Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que integram a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso jurisdicional, em confirmar integralmente a sentença recorrida e, em conformidade, manter vigente na ordem jurídica o acto impugnado com a fundamentação constante do presente acórdão.

Custas pela Fazenda Pública.

Registe e notifique
Lisboa, 9 de Março de 2017

-------------------------------------------------------------------                     [Anabela Russo]

                                                                                                         
--------------------------------------------------------------------------------
                                                                                                                        [Lurdes Toscano]


_________________________________________________
 [Ana Pinhol]


[1] Cfr., neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-2-2013, proferido no processo n.º 367/2002P1.S, integralmente disponível em www.dgsi.pt

[2] Cfr., entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14-4-1993, CJ, XVIII, Tomo II, páginas 34 e 35
[3] MÓNICA JARDIM, “A Evolução Histórica da Justificação de Direitos de Particulares para Fins de Registo Predial e a Figura da Justificação na Actualidade”, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, Vol. 85, p. 447 e seguintes (também integralmente disponível em www.fd.uc.pt/cenor.)

[4] CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3ª edição, páginas 354-357.

[5] Neste sentido, para além do autor em último citado, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, I volume, 4ª edição, pág. 270; CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, 1999, II Vol., pág. 18 e HEINRICH EWALD HÔRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 1992, págs. 207 e 208.

[6] Neste sentido, entre outros, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em Geral, Almedina, 2010, página 348 e MANUEL JANUÁRIO GOMES, “Em Tema da Revogação do Mandato Civil”, Almedina, 1989, página 45.
[7] SALVATORE ROMANO, Revoca, (Diritto Privado),  Novíssimo Digesto Italiano, vol. XI, pág. 809.