Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:273/12.6BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:11/07/2024
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:AAE
RECURSO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
SISTEMA DE CASSAÇÃO MITIGADO
REFORMA DA DECISÃO
Sumário:I - Da interpretação conjugada dos normativos 2.º, 70.º, 71.º e 80-º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, resulta que o objeto do recurso para o Tribunal Constitucional, é sempre a constitucionalidade ou a legalidade de uma norma, não a constitucionalidade de uma decisão judicial.
II - Se na sequência da interposição do recurso referido em I), for dado provimento ao mesmo, ainda que só parcialmente, determina o artigo 80.º, n.º 2, da citada Lei Orgânica que os autos baixam ao tribunal de onde provieram a fim de que este, consoante a concreta situação, reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com o julgamento da questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade.
III - Se o Tribunal Constitucional julgou procedente o recurso da ATA, e considerou que, no caso vertente, a não impugnação do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, e sem que possa traduzir qualquer violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, tal dirimiu, em definitivo e com força de caso julgado, a única questão que importava para o caso dos autos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


I-RELATÓRIO

J…, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou totalmente improcedente a Ação Administrativa Especial (AAE), deduzida contra o despacho proferido pelo Diretor de Serviços (em substituição) da Direção de Serviços de Registo dos Contribuintes integrada da Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), datado de 22 de novembro de 2011, que indeferiu o seu pedido de inscrição como residente não habitual.

O Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“1. A douta sentença recorrida julgou improcedente a ação administrativa especial deduzida pelo ora Recorrente contra o despacho praticado pelo Diretor de Serviços de Registo dos Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira, exarado na Informação n.º 713/2011, pelo Ofício n.º G55997, de 23 de novembro de 2011, que indeferiu o pedido de inscrição como Residente Não Habitual por si apresentado;

2. O Tribunal recorrido julgou a impugnação judicial improcedente, considerando, em suma, que se encontra consolidada no ordenamento jurídico a liquidação de IRS do ano de 2010 do Recorrente, contestada no processo arbitral n.º 514/2015-T, da qual resultaria a tributação como residente naquele ano e, consequentemente, o incumprimento do requisito previsto no artigo 16.º, n.º 1, do CIRS de não tributação como residente não habitual nos cinco anos precedentes;

3. Tendo em consideração o thema decidendum e a fundamentação propalada na sentença recorrida, considera o Recorrente que a factualidade fixada pelo Douto Tribunal a quo constante do seu ponto II. 1 (“FUNDAMENTAÇÃO / DE FACTO”)-padece de incompletude determinante de nulidade por falta de discriminação dos factos provados;

4. Com efeito, atingiu o Douto Tribunal a quo a conclusão de que se consolidou na esfera jurídica do Recorrente a situação tributária relativa ao ano de 2010 – de acordo com a qual o Recorrente foi tributado como residente em território – sem, contudo, ter discriminado qualquer facto provado corroborativo;

5. Cumpre ter presente que em 28 de junho de 2018 o Douto Tribunal a quo proferiu despacho de suspensão da instância até ao momento do trânsito em julgado do processo arbitral n.º 514/28105-T, no qual se encontra em contenda o aludido ato de liquidação de IRS do ano de 2010 à luz do estatuto de residente não habitual do Recorrente (cfr. despacho constante dos autos);

6. Tal como decorre da factualidade provada nos autos, aquele processo arbitral conheceu inicialmente uma decisão arbitral favorável (cfr. facto G. da factualidade provada da sentença recorrida);

7. Daquela decisão arbitral a Fazenda Pública interpôs recurso junto do Tribunal Constitucional, tendo este proferido o acórdão n.º 718/2017 em sentido favorável no que respeita à questão de constitucionalidade que lhe foi acometida (cfr. facto G. da factualidade provada da sentença recorrida);

8. Na sequência daquele acórdão do Tribunal Constitucional proferiu o Douto Tribunal a quo despacho antecipando a cessação da suspensão da instância (cfr. despacho constante dos autos);

9. Em consonância com aquele despacho, expôs o ora Recorrente que, àquela data, o Tribunal Arbitral ainda não havia proferido nova decisão sobre a (i)legalidade da liquidação de IRS de 2010, não se tendo consolidado no ordenamento jurídico a liquidação de IRS de 2010 contestada naqueles autos nem, nessa medida, a tributação como residente naquele ano (cfr. requerimento constante dos autos);

10. Posteriormente, o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 514/2015-T proferiu nova decisão arbitral, nos termos da qual julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal arbitral, absolvendo a Fazenda Pública da instância” (cfr. Doc. n.º 1 que se junta ao abrigo disposto nos artigos 651.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, por remissão do artigo 97.º, n.º 2, do CPPT);

11. Não concordando com a decisão arbitral proferida no processo n.º 514/2015-T o Recorrente interpôs, em 11.02.2019, recurso de oposição de acórdãos da decisão, o qual se encontra presentemente pendente de decisão por parte do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. Doc. n.º 2 que se junta ao abrigo disposto nos artigos 651.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, por remissão do artigo 97.º, n.º 2, do CPPT);

12. Ora, embora o Recorrente tenha informado que ainda não existia, à data, uma decisão arbitral transitada em julgado naquele processo – tal como não existe ainda hoje, uma vez que se encontra pendente um recurso de oposição de acórdãos junto do Supremo Tribunal Administrativo – refere-se na sentença recorrida que “(…) consolidou-se no ordenamento jurídico a situação relativamente ao ano de 2010, quanto à não inscrição do A. no regime de residente não habitual.”;

13. Todavia, não existe qualquer menção a esta putativa consolidação na factualidade provada, não expondo o Douto Tribunal a quo em que possível facto se baseia para atingir tal conclusão nem porque considera tal conclusão como factualmente demonstrada;

14. De onde resulta que a sentença recorrida é omissa quanto ao eventual facto – que sempre se reputaria equivocado – que permitiria ao Douto Tribunal a quo atingir a conclusão de que se consolidou no ordenamento jurídico o ato tributário de IRS do ano de 2010;

15. A falta de discriminação dos factos provados, de onde se o Tribunal haja extraído a conclusão de consolidação da liquidação de IRS concernente ao ano de 2010, inquina a sentença recorrida de nulidade por falta de fundamentação de facto, nos termos do disposto nos artigos 205.º da CRP, 94.º, n.º 3 do CPTA e dos artigos 154.º, 615.º, n.º 1, alínea b) e 607.º do CPC, aplicáveis ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA;

16. A obrigatoriedade de expressa fundamentação da matéria de facto comporta a obrigação de discriminação de todos os factos relevantes para a decisão, bem como a especificação dos fundamentos decisivos para a convicção do Tribunal de que tais factos se encontram provados, sob pena de a sentença recorrida se encontrar ferida de nulidade decorrente da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, como constitucionalmente impõe o artigo 205.º, n.º 1 da CRP, e ordinariamente resulta dos artigos 154.º e 607.º, n.os 2 e 3, do CPC, ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA;

17. Do exposto resulta que a discriminação dos factos provados que influenciem a existência ou conteúdo da relação controvertida é condição essencial para a devida fundamentação de facto da sentença (cfr. acórdãos de 16.11.2011 do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do recurso n.º 0453/11 e de 16.02.2017 do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no processo n.º 10126/13);

18. In casu, no que respeita à alegada consolidação da liquidação de IRS do ano de 2010, o único tipo de referência à atividade probatória constante da sentença recorrida é a de que foi proferido um acórdão do Tribunal Constitucional relativa a uma questão de constitucionalidade suscitada naquele processo;

19. Porém, nada se refere a respeito de qualquer eventual decisão que ponha termo ao processo nem quanto a eventuais recursos da mesma – como sucedeu no caso sub judice, encontrando-se o mesmo pendente de decisão por parte do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. Docs. n.os 1 e 2);

20. Assim, a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação de facto decorrente da omissão de discriminação de factos essenciais à questão dirimida, pelo que entende o Recorrente impor-se o seguinte aditamento à matéria de facto constante do ponto II. 1 (“FUNDAMENTAÇÃO / DE FACTO”): "Na sequência do acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional, o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 514/2015T proferiu, em 4 de janeiro de 2019, nova decisão arbitral, a qual foi objeto de recurso de oposição de acórdãos, encontrando-se este pendente de decisão junto do Supremo Tribunal Administrativo [cf. cópia da decisão do tribunal arbitral e do requerimento de interposição de recurso]”;

21. Porquanto se afigura relevante para a boa decisão da causa – por demonstrar que não transitou em julgado qualquer decisão arbitral proferida no processo n.º 514/2015-T -impõe-se a relevação por esse Douto Tribunal ad quem de tal facto, de onde decorre a retificação da conclusão atingida pela sentença recorrida de que a liquidação de IRS do ano de 2010 se consolidou na esfera jurídica do Recorrente;

22. A factualidade em referência não poderá deixar de ser considerada provada e pertinente para a justa composição do litígio, devendo ser incluída na matéria de facto da sentença recorrida por esse Douto Tribunal ad quem, nos termos do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA;

23. Todavia, caso esse Douto Tribunal ad quem entenda que não beneficia de poderes para, atenta a omissão de factos indispensáveis ao justo julgamento da causa, ampliar a matéria de facto constante da sentença recorrida, o que apenas pode dever de cautela de patrocínio se admite, sem conceder, sempre se impõe que se declare a nulidade da sentença, nos termos e condições acima mencionados, revogando-se a decisão recorrida e baixando os autos à 1.ª instância para a ampliação da matéria de facto nos termos referidos.

24. Nesse circunspeto, considerando-se que a sentença é omissa quanto aos factos essenciais para a decisão da causa, sempre se impõe ao Tribunal ad quem, por força do disposto no artigo 662.º do CPC, que ordene a baixa dos autos ao Tribunal recorrido para fixação de um novo probatório;

25. Caso o exposto não proceda, no que não se concede e apenas por cautela de patrocínio se equaciona, sempre a sentença recorrida padece de erro de julgamento de Direito, devendo ser retificada em consonância;

26. Com efeito, na sentença recorrida considerou o Douto Tribunal a quo provado, em suma, que (i) foi apresentado pedido de pronúncia arbitral da liquidação de IRS do ano de 2010, com fundamento no reconhecimento do estatuto de residente não habitual, tendo sido proferida decisão arbitral procedente, (ii) da qual foi interposto recurso pela AT para o Tribunal Constitucional, tendo sido proferida decisão improcedente no âmbito deste recurso;

27. Tendo meramente como pano de fundo estes factos provados, decidiu a sentença recorrida que “Atenta a fundamentação supra transcrita [do acórdão n.º 718/2017 proferido pelo Tribunal Constitucional], consolidou-se no ordenamento jurídico a situação relativamente ao ano de 2010, quanto à não inscrição do A. no regime de residente não habitual”;

28. Caso esse Douto Tribunal ad quem entenda que o Douto Tribunal a quo considera que a mera prolação do acórdão n.º 718/2017 pelo Tribunal Constituci0nal consolidou, na esfera jurídica do Recorrente, a liquidação de IRS do ano de 2010 em contenda naquele processo arbitral, sempre padece a decisão recorrida de manifesto erro de julgamento, devendo ser anulada e revista em conformidade;

29. Isto porque aquela decisão do Tribunal Constitucional não dita o caso julgado relativamente à pretensão do Recorrente naquele processo de anulação da liquidação de IRS do ano de 2010 com fundamento no seu enquadramento como residente não habitual;

30. Tal decorre da própria competência atribuída pelo legislador constituinte ao Tribunal Constitucional nos artigos 221.º, 223.º, n.º 1 e 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP, bem como do artigo 71.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional;

31. No que ora releva e em suma, decorre daquelas disposições que os poderes de cognição e pronúncia do Tribunal Constitucional se encontram circunscritos ao controlo jurídico constitucional de normas, encontrando-se vedado o controlo tout court da legalidade de atos administrativos (o qual compete aos tribunais administrativos nos termos do artigo 212.º da CRP);

32. Assim, não compete ao Tribunal Constitucional dirimir litígios na sua completude nem definir posições jurídicas interpartes no que extravase o domínio constitucional;

33. É por esse motivo que nas situações em que o Tribunal Constitucional garante provimento a determinado recurso, o processo em questão baixa ao Tribunal que proferiu a decisão contestada para que seja proferida uma nova decisão sobre a pretensão trazida a juízo;

34. Conclui-se assim – em consonância com o referido pelo Recorrente no requerimento apresentado em 22.11.2018 – que a mera prolação de decisão por parte do Tribunal Constitucional não permite concluir que se consolidou na esfera jurídica do Recorrente a liquidação de IRS do ano de 2010 contestada no processo arbitral n.º 514/2015-T;

35. Tanto assim é que, após aquele acórdão do Tribunal Constitucional, o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 514/2015-T pronunciou-se novamente, tendo a nova decisão arbitral sido contestada pelo Recorrente em sede de recurso de oposição de acórdãos, encontrando-se tal litígio pendente de decisão (cfr. Docs. n.os 1 e 2);

36. Pelo que, não tendo o acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional posto termo ao processo arbitral concernente à liquidação de IRS do ano de 2010 – não se consolidando o ato tributário – reputa-se manifesto o erro de julgamento em que incorre o Douto Tribunal a quo;

37. Em face de todo o exposto, não pode, pois, a sentença recorrida manter-se, impondo-se concluir que não se consolidou – e poderá nunca vir a consolidar-se –a liquidação de IRS do ano de 2010 contestada no processo arbitral n.º514/2015-T ao abrigo do enquadramento no regime de residência não habitual, reconhecendo-se o efeito suspensivo dos autos nos termos dos artigos 272.º, 275.º e 276.º, n.º 1, alínea c), do CPC, ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, requer-se a esse Douto Tribunal ad quem que julgue totalmente procedente o presente recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e as demais consequências legais.

Mais se requer a esse Douto Tribunal ad quem que, na exata medida da procedência do presente recurso, condene a Fazenda Pública no pagamento das custas de parte, nos termos do artigo 26.º do Regulamento das Custas Processuais, tudo com as demais consequências legais.”


***


A Recorrida, devidamente notificada apresentou contra-alegações, tendo concluído como se descreve:

“A. Através da interposição do presente recurso, o Recorrente experimenta transformar, aos olhos desse Tribunal, uma decisão judicial do Tribunal a quo, que está estruturalmente bem fundamentada, numa pretensa decisão que enferma de falta de fundamentação e que, por isso, seria nula, nos termos do disposto no artigo 615.º do CPC.

B. Salvo o devido respeito, labora em erro crasso, dado se não estar perante falta absoluta de fundamentação, mas, quanto muito, o que apenas por mera hipótese se admite, perante fundamentação deficiente da matéria de facto.

C. O Recorrente aduz, em suma, que a sentença em escrutínio padece de vício de nulidade por falta de discriminação dos factos provados que permitissem pela consolidação da sua situação tributária, em sede de IRS, relativa ao ano de 2010.

D. E refere que o processo arbitral n.º 514/2015-T, em que se discutiu a legalidade da liquidação de IRS para o ano de 2010, ainda se encontra pendente de prolação de Acórdão do STA, inserido no âmbito do recurso para uniformização de jurisprudência interposto, a que foi atribuído o n.º 14/19.7BALSB.

E. O Tribunal a quo baseou a sua decisão de que o ora Recorrente, no ano de 2010, era residente em território nacional, a partir e através da concatenação dos pontos C., D. E., F., e N. da decisão da matéria de facto, para cuja leitura nas alegações se remete, bem como motivou a decisão daquela matéria de facto, conforme excertos transcritos nas alegações, para cuja leitura se remete.

F. O Tribunal a quo teve o cuidado não apenas de fundamentar a matéria de facto dada como provada, e bem assim a matéria de direito, como ainda apreciou

criticamente todos os elementos probatórios em que se esteou para proferir decisão no exacto sentido em que o fez.

G. Na apreciação da matéria de direito, o Tribunal a quo, de resto em coerência com a decisão proferida em relação à matéria de facto, agiu com zelo absoluto e em integral sintonia com o CPC, de tal modo que indicou os pontos da matéria de facto em que se baseou para considerar que, «se consolidou no ordenamento jurídico o acto tributário de IRS do ano de 2010.»

H. O Tribunal a quo esclareceu as motivações de direito que justificaram julgar a acção improcedente, conforme acolhido pela jurisprudência, como é disso exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 370/15.6JALRA.C1, de 02-08-2017.

I. O Recorrente imputa, erroneamente, à sentença recorrida o vício de falta de fundamentação de facto por ser omissa quanto ao facto que permitiria ao Tribunal a quo atingir aquela aludida conclusão da estabilidade tributária do acto de liquidação de IRS do ano de 2010.

J. É preciso fazer notar que, de acordo com o encadeamento da factualidade inscrita na sentença, se constata com total clarividência que: - o ora Recorrente apresentou a 08-04-2010 uma declaração junto do Serviços de Finanças Cascais 1, no qual se declarou residente em território português; - a 24-02-2011 apresentou junto do mesmo Serviço de Finanças requerimento solicitando lhe fosse reconhecido o estatuto de residente não habitual; - por despacho de 19-04-2011, os serviços da AT lhe indeferiram o mencionado pedido, com base em extemporaneidade; - o Recorrente apresentou a declaração de rendimentos para o ano de 2010 como residente em território português; - o Recorrente não intentou acção administrativa especial contra o despacho de 19-04-2011;- o Recorrente apresentou impugnação arbitral contra o acto de liquidação de IRS, referente ao ano de 2010, que deu origem ao processo arbitral n.º 514/2015-T.

K. Na matéria dada como assente não consta, por que não tinha que constar, que o Recorrente não reagiu judicialmente ao despacho de indeferimento de 19-04-2011, mas tal facto depreende-se do contexto fáctico dado como provado, nomeadamente do teor dos pontos G e H., onde se se faz referência expressa a um segundo requerimento datado de 08-08-2011, a solicitar a inscrição do Recorrente como residente não habitual para o ano de 2011, bem como se transcreve um excerto da informação n.º 639/2011, onde, entre o mais, se evoca que a inscrição no cadastro se mantém até àquela data, quando o aí requerente não poderia ser residente nos cinco anos anteriores ao ano para o qual pretende (pretendia com aquele novo requerimento), novamente, a aplicação do regime (para o ano de 2011).

L. A decisão tomada pelo Tribunal a quo louvou-se na factualidade dada como provada e na apreciação jurídica desses mesmos factos, os quais impunham, como efectivamente impuseram, que a sentença fosse no sentido de julgar improcedente o pedido de considerar o Recorrente como residente não habitual com efeitos a partir do ano de 2011, por um período de 10 anos.

M. Não existe qualquer falta de fundamentação da matéria de facto, porquanto a sentença encontra-se povoada de argumentos fácticos e de substância que antecipam a resposta negativa a atribuir à pretensão da Recorrente.

N. Nos termos do disposto no artigo 615.º do CPC, ainda que existisse – que não existe – deficiência na fundamentação da matéria de facto, tal anomalia não passaria de mera deficiência e, conforme é sabido, a fundamentação deficiente consubstancia um erro de julgamento, mas não é motivo para decretar a nulidade, pois preenche o pressuposto da norma do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.

O. O Tribunal a quo explicou as razões pelas quais decidiu dar como não provados os factos acima citados, permitindo ao homem médio percorrer o itinerário cognoscitivo e valorativo que desembocou na sentença proferida, senão leia-se a jurisprudência e doutrina evocada em sede de alegações para cuja leitura se remete.

P. A evocação do vício de nulidade mais não é que uma tentativa (gorada) de, a qualquer custo, obter a revogação da sentença proferida em 1.ª instância, uma vez que - crê-se -, o Recorrente tem plena consciência de que o vício de falta de fundamentação exige a omissão absoluta de factos e dos respectivos motivos que justifiquem a decisão tomada pelo Tribunal, o que, como também muito bem sabe, não acontece na situação em apreço.

Q. Tudo visto e ponderado, deve a sentença que vem contestada permanecer intacta, porquanto é válida e não enferma de quaisquer vícios sob o ponto de vista dos factos e do direito.

R. O ora Recorrente invoca de igual modo erro de julgamento com base no facto de, ao tempo da prolação da sentença contestada, inexistir caso julgado relativamente à pretensão no âmbito do processo n.º 514/2015-T, o que sempre obstaculizaria a que se decidisse no sentido de a situação tributária do ano de 2010 se considerar consolidada em definitivo.

S. O Recorrente parte de um errado pressuposto, o de que a presente acção administrativa especial constitui a causa dependente e não a causa prejudicial, isso quando é exactamente o contrário, ou seja, quando é a presente acção administrativa que consubstancia a causa prejudicial face ao processo arbitral n.º 514/2015-T, uma vez que é nestes autos que se discute o acto destacável, imediato e lesivo, do indeferimento do pedido para gozar do regime de residente não habitual para o ano de 2011.

T. É no presente processo e não no aludido processo arbitral que se discute a bondade dos despachos de indeferimento dos pedidos apresentados para gozar do regime de residente não habitual para os anos de 2010 e de 2011, nunca tendo o Tribunal a quo considerado que o simples facto de existir um processo arbitral pendente, intentado posteriormente à acção administrativa especial, onde se discutia a legalidade da liquidação de IRS do ano de 2010, tal constituísse causa prejudicial, motivadora da suspensão dos autos.

U. Só quando o Tribunal a quo foi alertado (em sede de alegações do artigo 91.º, n.º 4 do CPTA, da ora Recorrida) para o facto de, em sede do processo arbitral n.º 514/2015-T, ter sido interposto recurso junto do TC a 19-12-2016, «invocando a inconstitucionalidade da primeira parte do n.º 1 do artigo 54.º do CPPT, quando interpretado no sentido de que a referência à impugnação de actos imediatamente lesivos tem natureza de faculdade e não de um verdadeiro ónus que, quando não accionado no prazo legalmente estipulado, faz precludir o direito subjectivo dos sujeitos passivos de discutir um acto administrativo-tributário que se sedimentou na ordem jurídica», é que decidiu no sentido de determinar a suspensão da instância.

V. No aludido despacho, o Tribunal a quo condicionou a decisão dos presentes autos à prolação de Acórdão pelo TC, o que fez através da figura da suspensão da instância, dado que, de acordo com as suas palavras, no dito recurso se apreciaria «a questão que sustenta o despacho recorrido relativo á preclusão do direito de reconhecimento do benefício invocado pelo A. e controvertida nos autos.»

W. A causa motivadora da suspensão da instância a que se referia o Tribunal a quo era a da constitucionalidade da interpretação normativa efectuada pelos Serviços da ora Recorrida do artº 54º do CPPT, no sentido da lesividade directa do acto de indeferimento do reconhecimento do estatuto de “RESIDENTE NÃO HABITUAL”, e consequente inimpugnabilidade do acto de liquidação de imposto com fundamento em vícios da referida decisão de indeferimento.

X. O Tribunal a quo pretendeu condicionar a prolação da sentença ao específico tópico da constitucionalidade e, por esse facto, logo que constatou que o dito Acórdão havia transitado em julgado, tratou de considerar imediatamente cessada a causa que justificara a suspensão da instância e assim decretar o prosseguimento dos autos.

Y. É irrelevante, para o que aqui se discute, a natureza dos efeitos do Acórdão do Tribunal Constitucional, nomeadamente se o dito tem (ou não) o mérito de consolidar na ordem jurídica a situação tributária do ora Recorrente no ano de 2010, através da consideração da legalidade da liquidação de IRS para aquele ano.

Z. O acto de liquidação poderia sempre ser declarado ilegal por qualquer outro vício que não aquele que suscitava a impugnação imediata mediante o despacho de indeferimento do pedido de aproveitamento do regime de residentes nãos habituais para o ano de 2010.

AA. A prejudicialidade prendeu-se exclusivamente com a questão de constitucionalidade da interpretação efectuada ao princípio da impugnação unitária, plasmado no artigo 54.º do CPPT, propugnada pela AT.

BB.Nos termos do disposto no artigo 272.º do CPC, apenas podem motivar a suspensão com esse motivo acções que tenham sido instauradas anteriormente à acção em causa, a menos que, como foi o caso, se verifique uma relação de prejudicialidade relativamente a uma questão a decidir por Tribunal superior.

CC. Os Tribunais devem negar a suspensão fundada na prejudicialidade sempre que se demonstre que as acções foram intentadas precisamente para se obter a suspensão da outra ou, independentemente disso, quando o estado da causa tornar gravemente inconveniente a suspensão, pois não pode ignorar-se que a suspensão obsta a que a instância prossiga naturalmente, o que se revela contraditório com o princípio da celeridade e da decisão.

DD. É inegável que o recurso para uniformização de jurisprudência constitui a derradeira (e desesperada) acção reactiva em face do acórdão arbitral, a fim de obter a revogação da decisão que julgou procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção invocada.

EE.O recurso para uniformização de jurisprudência, no seguimento do trânsito em julgado do Acórdão lavrado pelo TC - que decidiu pela não inconstitucionalidade da interpretação veiculada pela AT acerca do princípio da impugnação unitária -, pode sempre ser, a par de outras interpretações, interpretado como o mecanismo processual que teve como propósito único adiar a definitividade da questão jurídica aqui discussão e que, reflexa e presuntivamente, se deveria ter traduzido, tal como reclama a ora Recorrente, na suspensão da presente instância.

FF.O Tribunal a quo não estava obrigado a suspender a instância por conta da interposição do recurso para uniformização de jurisprudência, dado, repita-se, o Acórdão relativamente ao qual havia considerado causa para a decretação da suspensão da instância ter previamente transitado em julgado.

GG. Em bom rigor, era o processo arbitral apresentado junto do Centro de Arbitragem Administrativa que deveria, desde logo, ter sido suspenso assim

que obteve conhecimento da existência da acção administrativa, com base na pré-existência de uma causa prejudicial, discutida no âmbito dos presentes autos, conforme de resto isso confirma o teor da jurisprudência evocada em sede de alegações, para cuja leitura se remete.

HH. Tudo visto e ponderado, a sentença que vem recorrida não merece censura de nenhuma ordem, devendo manter-se intacta no panorama jurídico.

Nestes termos e nos mais de direito, requer-se se julgue o presente recurso totalmente improcedente, só assim se fazendo Justiça!”


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul apôs o seu visto ao abrigo do disposto no artigo 146.º, nº1 do CPTA.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com interesse para a decisão da causa e compulsada a prova documental e testemunhal junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos:

A. Com efeitos a 01.05.2010 foi o impugnante designado membro do conselho de administração, até ao final do mandado em curso, relativamente à sociedade N…Portugal, S.A. [cf. cópia de certidão permanente da sociedade N… Portugal, S.A a fls. 42 e 43 dos autos, e declaração da N… a fls. 28 dos autos].

B. A 08.04.2010 pelo impugnante foi apresentada declaração junto do Serviço de Finanças de Cascais 1, no qual declarou ser residente na Rua Prof. Fleming, n.º 116 Bloco D R/C Direito, em Cascais [cf. cópia de declaração a fls. 3 dos autos].

C. A 24.02.2011 pelo impugnante foi apresentado requerimento junto do Serviço de Finanças de Cascais 1 no qual requer que seja reconhecida a sua inscrição no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos como residente fiscal não habitual, juntando documento comprovativo de residência e tributação no estrangeiro e documento comprovativo de inclusão enquanto quadro superior de empresa sediada em Portugal [cf. cópia do requerimento a fls. 26 a 36 dos autos e a fls. 71 a 73 dos autos].

D. O pedido de inscrição como residente fiscal não habitual identificado no ponto anterior foi indeferido por extemporaneidade, em sede do processo n.º 39423/11, por despacho de 19.04.2011 do Chefe de Divisão de Identificação de Contribuintes [acordo – cf. artigo 8.º da petição inicial e artigo 6.º da contestação, e referido na informação impugnada, e cópia do despacho a fls. 61 a 63 dos autos].

E. Através do ofício n.º G21514, de 20.04.2011 da Divisão de Identificação de Contribuintes foi o impugnante notificado do teor da decisão identificada no ponto anterior [cf. cópia do ofício a fls. 66 dos autos].

F. No exercício de 2010 o Autor apresentou a sua declaração de rendimentos como residente em Portugal [cf. cópia da declaração de rendimentos apresentada em 20.04.2011 pelo impugnante relativamente ao ano de 2010, onde preencheu o campo 1 do quadro 5A, a fls. 92 dos autos].

G. A 08.08.2011 em nome do impugnante foi apresentado novo requerimento a solicitar a inscrição no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos como residente fiscal não habitual juntando documento comprovativo da residência e tributação no estrangeiro no ano da inscrição no registo de contribuintes e certificado emitido pelas autoridades tributárias espanholas comprovando a sua tributação naquele Estado de 2007 a 2010, bem como cópia de declaração de imposto sobre os rendimentos referente ao exercício fiscal de 2006 [cf. cópia do requerimento a fls. 29 dos autos].

H. A 20.10.2011 foi elaborada a informação n.º 639/2011, da Divisão de Identificação de Contribuintes, onde consta nomeadamente o seguinte:

“(…) Através de requerimento que deu entrada nestes Serviços, em 2011-08-08, vem o contribuinte J…, NIF 2…, solicitar a sua inscrição no cadastro fiscal como residente não habitual, para o ano de 2011, nos termos do n.º 7 do art.º 16.º CIRS (aditado pelo art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro).

Da análise ao pedido e tendo por base os elementos existentes no processo, constata-se que:

1. No requerimento o contribuinte não refere qualquer actividade que esteja incluída na lista das actividades de elevado valor acrescentado de acordo com o previsto na Portaria n.º 12/2010, de 7 de Janeiro;

2. A inscrição em cadastro foi efectuada em 2010-04-08 no Serviço de Finanças de Cascais 1, como residente, situação que mantém até à presente data, quando para o efeito, o requerente não poderia ser residente nos 5 anos anteriores ao ano para o qual pretende a aplicação do regime (cf. Circular n.º 2/2010, de 6 de Maio, da DSIRS);

3. O requerente apresenta um certificado de residência fiscal em Espanha para os anos de 2007 a 2010 declaração de rendimentos desse país para o ano de 2006, confirmados pela DSRI - Direcção de Serviços de Relações Internacionais, através do ofício n° 19033, de 2011-09-29;

4. Estão por tal em falta, os certificados de tributação referentes aos anos de 2007 a 2010 e o certificado de residência referente ao ano de 2006;

5. O contribuinte entregou a declaração dos rendimentos relativos ao ano de 2010, como residente; o que contraria o requisito disposto na alínea c) do n° 3 da circular 2/2010 de 6 de Maio, da DSIRS;

6. Apesar de no requerimento apresentado não ser referida a data da opção pelo início deste regime, em função da documentação apresentada, afigura-se que o interessado pretende que o mesmo tenha efeitos ao ano de 2011;

7. De notar, que o requerente já tinha solicitado a aplicação deste regime ao ano de 2010, através de requerimento entregue em 2011-02-24, pelo P° 39423/11, o qual foi liminarmente indeferido, por extemporaneidade;

Pelo exposto, afigura-se ser de indeferir o pedido apresentado pelo contribuinte J…, para o ano de 2011, tendo, em conta que o interessado não reúne os requisitos legalmente estabelecidos, a que se referem os pontos 2, 4 e 5 da presente informação. (…)” [cf. cópia da informação a fls. 36 a 38 dos autos e a fls. 81 a 83 dos autos].

I. Através do ofício n.º G50020, de 24.10.2011, da Divisão de Identificação de Contribuintes, foi o impugnante notificado do despacho de 21.10.2011 do Director de Serviços de Registo de Contribuintes, para o exercício do direito de audição prévia face ao projecto de indeferimento do pedido de inscrição como residente não habitual, assente na informação identificada no ponto anterior [cf. cópia do ofício, do despacho de 21.10.2011 e informação conexa a fls. 35 a 38 dos autos e a fls. 80 a 83 dos autos].

J. Por despacho de 22.11.2011 do Director de Serviços de Registo de Contribuintes, com base na informação identificada no ponto anterior foi indeferido o pedido de inscrição como residente não habitual, assente na informação identificada em H) supra, mantido em sede da informação n.º 713/2011 [cf. cópia do despacho a fls. 35 a 38 dos autos e a fls. 77 a 78 dos autos].

K. Através do ofício n.º G55997, de 23.11.2011, da Divisão de Identificação de Contribuintes, foi o impugnante notificado do teor do despacho e informação conexa identificadas nos pontos anteriores [cf. cópia do ofício a fls. 39 dos autos e fls. 76 dos autos].

L. O ofício identificado no ponto anterior foi recebido a 28.11.2011 [cf. informação dos CTT referente ao registo n.º RC647771326PT a fls. 23 dos autos].

M. A 08.03.2012 foi apresentada a petição inicial que deu origem à presente acção [cf. vinheta dos CTT aposta a fls. 3 dos autos].

N. Pelo Autor foi apresentado pedido de pronúncia arbitral da liquidação de IRS referente ao ano de 2010, com fundamento no reconhecimento do estatuto de residente não habitual para 2010, que foi objecto de decisão em sede do processo n.º 514/2015T, sobre o qual foi proferido acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional, em sede do processo n.º 718/2017, no sentido de julgar procedente o recurso interposto pela AT [cf. cópia do pedido de pronúncia arbitral a fls. 117 a 124 dos autos, cópia da decisão do tribunal arbitral a fls. 125 a 137 dos autos, e cópia do acórdão do Tribunal Constitucional a fls. 158 a 175 dos autos].


***


Consta ainda na decisão recorrida a seguinte menção:

“Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir.

Assenta a convicção deste Tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e no processo instrutor, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório.”


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III) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


In casu, o Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou improcedente a AAE, deduzida contra o despacho proferido pelo Diretor de Serviços da Direção de Serviços de Registo dos Contribuintes integrada da ATA, datado de 22 de novembro de 2011, que indeferiu o seu pedido de inscrição como residente não habitual.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir:

ü Previamente da admissibilidade dos documentos juntos em sede de recurso;

ü Se a decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação;

ü Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto, na medida em que não valorou factualidade relevante suportada em prova documental;

ü Cometeu erro de julgamento, porquanto a decisão prolatada pelo Tribunal Constitucional não permite concluir pela consolidação da liquidação de IRS do ano de 2010, contestada no processo arbitral n.º 514/2015-T, atento o âmbito de cognição e concretos poderes desse Tribunal, constantes na CRP e bem assim na sua Lei Orgânica.

Vejamos, então.

Previamente à alteração da matéria de facto e eventual aditamento, e por a mesma contender com a documentação junta com as alegações de recurso cumpre aferir da admissibilidade dos visados documentos.

A lei processual civil, aqui aplicável ex vi artigos 90.º, n.º 2 e 140.º, n.º 3, do CPTA, concretamente o artigo 425.º e bem assim o normativo 651.º do CPC, possibilita a junção de documentos ao processo em fase de recurso apenas quando não tenha sido possível a respetiva apresentação em momento anterior (artigo 425.º, nº1, do CPC) ou quando a junção de documentos se torne necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª Instância (artigo 651.º, nº.1, do CPC).

Sendo certo que, a verificação das circunstâncias supra identificadas têm, necessariamente, como pressuposto basilar que os factos documentados sejam pertinentes à decisão a proferir, o que decorre, desde logo, da circunstância dos documentos cuja junção se pretende visarem a prova dos fundamentos da ação e/ou da defesa e, bem assim da circunstância de o juiz se encontrar vinculado a ordenar o desentranhamento do processo dos que sejam impertinentes ou desnecessários (1-Vide José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.96 e seg.; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª. Edição, 2017, pág.229 e seg.).

Mais importa ter presente, neste particular, que o advérbio “apenas”, utilizado no artigo 651.º, nº 1, do CPC significa, tão-só, que a junção só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª Instância, isto é, se a decisão da 1ª Instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento. É entendimento unânime jurisprudencial que deve ser recusada a junção de documentos que visem a prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a demonstração, sendo certo que não pode servir de pretexto da junção a mera surpresa quanto ao resultado (2-Cfr. Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 312/17.4 BEBJA, de 25 de janeiro de 2018; Vide Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.533 e 534; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª. Edição, 2017, pág.230.)

In casu, o Recorrente procedeu à junção de dois documentos com as suas alegações de recurso, os quais consubstanciam, por um lado, a prolação de decisão arbitral na sequência da reforma do Tribunal Constitucional, e por outro lado, o seu requerimento de interposição de recurso para o STA, os quais têm data posterior à da propositura da presente ação, logo documentos que consubstanciam superveniência objetiva.

Note-se que, quanto ao conhecimento superveniente, o mesmo pode resultar de uma circunstância objetiva, decorrente da produção do documento em data posterior ao encerramento da discussão, como in casu. Acresce que, a necessidade de junção de tais documentos adveio da própria decisão recorrida.

É, pois, de admitir a junção dos dois documentos juntos com o recurso, porquanto a necessidade da sua junção resulta da decisão da 1.ª instância e releva para a decisão da causa (vide, designadamente, Acórdão do STA, proferido no âmbito do processo nº 0570/14, de 27 de maio de 2015).


***


Atentemos, ora, na nulidade da decisão por falta de fundamentação de facto.

Alega a Recorrente que a decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, na medida em que ocorre ausência de discriminação dos factos provados, de onde o Tribunal extraiu a conclusão de consolidação na ordem jurídica da liquidação de IRS, concernente ao ano de 2010.

Mais advoga que, a obrigatoriedade de expressa fundamentação da matéria de facto comporta a obrigação de discriminação de todos os factos relevantes para a decisão, bem como a especificação dos fundamentos decisivos para a convicção do Tribunal de que tais factos se encontram provados, sob pena de a sentença recorrida se encontrar ferida de nulidade decorrente da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, como constitucionalmente impõe o artigo 205.º, n.º 1 da CRP, e ordinariamente resulta dos artigos 154.º e 607.º, n.os 2 e 3, do CPC, ex vi artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA.

Dissente a Recorrida, propugnando que as aludidas alegações para além de não serem passíveis de qualquer configuração enquanto nulidade, quando muito erro de julgamento, a verdade é que são irrelevantes para dirimir o litígio, não tendo, portanto, de integrar o probatório.

Vejamos, então.

Dispõe o artigo 123.º, nº2, do CPPT que: “O juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.”

Mais preceitua o artigo 94.º, nº3 do CPTA, sob a epígrafe de “conteúdos da sentença” que:

“Na exposição dos fundamentos, a sentença deve discriminar os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas, e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.”

Dir-se-á, neste âmbito, que esta norma corresponde ao regulamentado no normativo 615.º, nº1, alínea b), do CPC, segundo o qual “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e direito que justifiquem a decisão”.

De convocar, ainda neste particular, o comando constitucional contemplado no artigo 205.º da CRP o qual prevê que: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Quanto à falta de fundamentação de facto, a Doutrina (3-Neste sentido Alberto dos Reis “Código de Processo Civil Anotado”: Coimbra Editora 1984, reimpressão, Volume V, página 140.) tem entendido que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito, o mesmo sucedendo com a Jurisprudência dos Tribunais Superiores a qual aduz que “[P]ara que a sentença padeça do vício que consubstancia esta nulidade é necessário que a falta de fundamentação seja absoluta, não bastando que a justificação da decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente. Por outras palavras, o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, tanto de facto, como de direito. Já a mera insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, podendo afectar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada em recurso, mas não produz nulidade. Igualmente não sendo a eventual falta de exame crítico da prova produzida (cfr.artº.607, nº.4, do C.P.Civil) que preenche a nulidade sob apreciação. No processo judicial tributário o vício de não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artº.125, nº.1, do C.P.P.Tributário (4-Vide, designadamente, Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo nº 09420/16, de 29 de junho de 2016.)”.

No caso em apreço, compulsado o teor da decisão recorrida verifica-se que vêm discriminados os fundamentos de facto. Com efeito, no item II denominado de fundamentação”, subponto “ii.1. de facto”, estão elencados os factos provados deles constando, expressa e individualmente, o meio probatório que permitiu a fixação da aludida factualidade, e existindo um item inerente à própria motivação da matéria de facto no qual, expressamente, se evidencia que a mesma se fundou “[n]o exame dos documentos constantes dos presentes autos e no processo instrutor, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório.”

Logo, quanto à enumeração dos factos provados, e à concreta motivação da decisão da matéria de facto, ocorreu a correspondente fixação e ponderação, permitindo percecionar a factualidade reputada relevante para a lide e o respetivo meio probatório atinente ao efeito.

Mais importa relevar que, o juiz não está vinculado à fixação de toda a factualidade alegada na sua petição inicial, mas, tão-só, a valorar e ponderar aquela que tenha relevo para a presente lide. Noutra formulação, dir-se-á que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.

Competindo, assim, ao julgador formular livremente a sua convicção, sopesando as provas apresentadas pelas partes, dando a cada uma o relevo que entender que lhe cabe, que pode ser total ou nenhum, assim como às razões e argumentos formulados pelas partes.

Como doutrinado no Aresto do TCAN, no âmbito do processo nº 00820/06, de 12 de janeiro de 2012: “[a] lei só manda fundamentar na decisão da matéria de facto os factos provados e dos factos não provados, omitindo qualquer referência aos factos irrelevantes (isto é, os factos que o tribunal se absteve de enquadrar numa categoria ou noutra). De outro lado, porque a obrigação de fundamentar a irrelevância de determinados factos frustraria os desígnios do legislador ao reconduzir o juízo de facto aos factos relevantes, manifestamente norteados pelos princípios da economia processual e da boa (e célere) administração da justiça. Finalmente, porque a falta de especificação das razões porque se desconsideraram outros factos não tolhe o direito de defesa da parte, que se reconduzirá então à demonstração da sua relevância para o sentido da sua decisão.”

Note-se que, a admitir-se que há outros factos relevantes para a decisão, mormente, a concreta interposição de Recurso para o STA, o que haverá, então, é um erro de julgamento sobre a irrelevância desses factos, ou seja, se a factualidade constante no acervo probatório, se afigura insuficiente para dirimir o litígio tal a suceder, redunda, quando muito, em erro de julgamento e não em nulidade da decisão por falta de fundamentação.

Por outro lado, a circunstância de inexistir um facto que ateste o trânsito em julgado do despacho prolatado a 19 de abril de 2011, para além de, como visto, não comportar qualquer nulidade, não carece de qualquer autonomização nesse e para esse efeito, dimanando a aludida assunção do cotejo dos factos vertidos em C) a F) e G), H) e I), sendo, ademais, realidade não controvertida.

Acresce que o Recorrente impugnou a matéria de facto o que poderá acarretar a inerente modificação e consequente aferição e ponderação do erro de julgamento.

Como já evidenciado anteriormente, é jurisprudência unânime e pacífica, que só a absoluta falta de fundamentação gera nulidade, dado que a fundamentação obscura, incongruente, deficiente ou escassa não integra tal vício, constituindo apenas uma mera irregularidade, que pode dar lugar à sua revogação ou mesmo anulação, sendo caso disso.

Em face de todo o exposto, conclui-se que inexiste a arguida nulidade por falta de fundamentação de facto.

Atentemos, ora, na impugnação da matéria de facto.

Neste âmbito, ainda que intitulando e qualificando juridicamente enquanto nulidade da decisão –e sem que, naturalmente, obste à correta qualificação jurídica por parte deste Tribunal ad quem -sufraga um aditamento por complementação atinente à interposição de recurso para o STA, mediante prova documental que identifica, evidenciando que tal aditamento é essencial porquanto permite demonstrar que não transitou em julgado qualquer decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 514/2015-T, sendo, portanto, incorreta a assunção de consolidação na ordem jurídica da liquidação de IRS, do ano de 2010.

Ora, se o que está em causa é o Tribunal a quo ter errado o seu julgamento de facto, cumpre ter em conta a tramitação processual atinente à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Para o efeito, importa começar por aferir se a Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC, ex vi artigo 140.º, nº3 do CPTA.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida (5-António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.).

Neste concreto particular, o Recorrente peticiona o aditamento à matéria de facto do seguinte facto:

"Na sequência do acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional, o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 514/2015T proferiu, em 4 de janeiro de 2019, nova decisão arbitral, a qual foi objeto de recurso de oposição de acórdãos, encontrando-se este pendente de decisão junto do Supremo Tribunal Administrativo (cf. cópia da decisão do tribunal arbitral e do requerimento de interposição de recurso)”;

Ainda que se reputem de relevo as asserções de facto atinentes à prolação de nova decisão arbitral na sequência da reforma do Tribunal Constitucional, e ulterior menção à interposição de recurso para o STA, a verdade é que a factualidade supra expendida se encontra igualmente incompleta, mormente, quanto ao desfecho do visado recurso, carecendo, outrossim, de concreta densificação do objeto da decisão arbitral. Assim, admite-se um aditamento à matéria de facto que congregue essas realidades de facto, ajuizando-se, no entanto, outra roupagem e o desdobramento em dois factos.

Face ao exposto, aditam-se os factos que infra se indicam:

M) Na sequência da prolação do Acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional, referido em N), o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 514/2015T procedeu, a 4 de janeiro de 2019, à reforma da decisão prolatada, em 17 de agosto de 2016, da qual se extrata, designadamente, o seguinte:

“Apesar do acórdão do Tribunal Constitucional nada referir sob a necessidade de reforma da decisão arbitral, vai-se proceder a esta, atendendo à interpretação normativa extraída do artigo 54.º do CPPT de que a não impugnação autónoma do acto de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele e, por conseguinte, compatível com os princípios da tutela judicial efectiva e da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP. (…)
Com efeito, podemos extrair com segurança que o acto de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como acto preparatório o procedimento de liquidação do correspondente imposto – isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro acto tributário autónomo, “cuja ligação aos actos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso carácter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constituir um acto pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objectos do benefício fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente acto beneficiados positivo, negativo ou extintivo.” (cfr. José Casalta Nabais. A impugnação unitária do acto tributário”, in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 11, Janeiro-Março, 2016, pp. 18 e 19, ainda que a propósito dos procedimentos de reconhecimento e extinção dos benefícios fiscais).
23. Daqui resulta a interpretação no sentido apontado pela Requerida, de que o indeferimento do pedido de inscrição do Requerente como residente não habitual em Portugal, no ano de 2010, é um acto lesivo susceptível de impugnação autónoma, consubstanciando-se uma excepção ao princípio da impugnação unitária previsto no artigo 54.º do CPPT. Pelo que, tal decisão deveria ter sido necessariamente impugnada, para que a liquidação objecto do pedido de pronúncia pudesse ser apreciada por este Tribunal Arbitral. Assim, não tendo sido efectuada tal impugnação necessária, não caberia no âmbito da competência deste Tribunal apreciar da legalidade da decisão de indeferimento da inclusão do Requerente no regime dos residentes não habituais, que se materializou na liquidação do IRS do ano de 2010, objecto do presente pedido de pronúncia arbitral.
24. Nesta cadência, acompanhamos, salvo o devido respeito, a posição da Requerida, de que o Requerente ao não impugnar autonomamente o acto que determinou a sua não inscrição no regime fiscal dos residentes não habituais, deixa de poder impugnar a consequente liquidação do IRS de 2010, com fundamento em vícios daquele acto.” (cfr. doc. a fls. 214 a 222 dos autos)

O) Em resultado da reforma referida na alínea antecedente, o Recorrente interpôs recurso de Oposição de Acórdãos, o qual correu termos no STA, com o nº de processo 014/19, tendo sido prolatado Acórdão a 4 de novembro de 2020, o qual não admitiu o aludido recurso (cfr. doc. fls. 235 a 248 dos autos; facto que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções e mediante consulta na plataforma SITAF, ao processo nº 14/19, e, igualmente, disponível em www.dgsi.pt/jsta.nsf);


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Aqui chegados, uma vez estabilizada a matéria de facto, importa, então, aferir se a decisão recorrida padece de erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito.

Vejamos, então.

O Recorrente aduz que a sentença recorrida considerou, erroneamente, que existia consolidação da situação atinente ao ano de 2010, em ordem ao juízo de não inconstitucionalidade constante no Acórdão n.º 718/2017 proferido pelo Tribunal Constitucional, na medida em que os poderes de cognição e pronúncia desse Tribunal se encontram circunscritos ao controlo jurídico constitucional de normas, encontrando-se vedado o controlo tout court da legalidade de atos administrativos, o qual compete aos tribunais administrativos, nos termos do artigo 212.º da CRP.

Adensa, para o efeito, que não compete ao Tribunal Constitucional dirimir litígios na sua completude, nem definir posições jurídicas inter partes no que extravase o domínio constitucional, daí que exista a vinculação de reforma.

Conclui, assim, que a mera prolação de decisão por parte do Tribunal Constitucional não permite concluir que se consolidou na esfera jurídica do Recorrente a liquidação de IRS do ano de 2010, contestada no processo arbitral n.º 514/2015-T, quando, ademais, foi prolatada nova decisão pelo Tribunal Arbitral e a mesma foi objeto de Recurso de Oposição de Acórdãos.

Desfecha, assim, que não tendo o Acórdão proferido pelo Tribunal Constitucional posto termo ao processo arbitral concernente à liquidação de IRS do ano de 2010 – não se consolidando o ato tributário – reputa-se manifesto o erro de julgamento em que incorre o Tribunal a quo.

Em sentido dissonante e a propugnar a manutenção da decisão recorrida, convoca a Recorrida a conformidade e legalidade do entendimento ajuizado na decisão recorrida, na medida em que existe, desde logo, um erro de interpretação da premissa base. E isto porque, é no presente processo e não no aludido processo arbitral que se discute a bondade dos despachos de indeferimento dos pedidos apresentados para gozar do regime de residente não habitual para os anos de 2010 e de 2011, nunca tendo o Tribunal a quo considerado que o simples facto de existir um processo arbitral pendente, intentado posteriormente à AAE, onde se discutia a legalidade da liquidação de IRS do ano de 2010, constituísse causa prejudicial, motivadora da suspensão dos autos.

Sufraga, adicionalmente, que a causa motivadora da suspensão da instância a que se referia o Tribunal a quo era a da constitucionalidade da interpretação normativa efetuada pelos Serviços da ora Recorrida ao artigo 54.º do CPPT, no sentido da lesividade direta do ato de indeferimento do reconhecimento do estatuto de “residente não habitual”, e consequente inimpugnabilidade do ato de liquidação de imposto, com fundamento em vícios da referida decisão de indeferimento.

Daí que, nenhuma censura possa ser assacada à decisão recorrida quando condicionou a prolação da sentença ao específico tópico da constitucionalidade e, por esse facto, logo que constatado o trânsito em julgado, tratou de considerar imediatamente cessada a causa que justificara a suspensão da instância e assim decretar o prosseguimento dos autos, e decidir, e bem, pela improcedência.

Apreciando.

Comecemos por ter presente a fundamentação jurídica em que se esteou a decisão recorrida.

O Tribunal a quo após convocar o quadro normativo, aludir à decisão arbitral prolatada evidenciando, nesse âmbito, que “a mesma recusou a aplicação do artigo 54.º do CPPT, no segmento em que considerou dele resultar que «o requerente que não impugnou autonomamente o acto de indeferimento de inscrição como não residente habitual em Portugal (…) deixa de poder impugnar a liquidação do IRS com fundamento em vícios daquele ato” e do Acórdão do Tribunal Constitucional, seu impacto e âmbito, transcrevendo excertos do mesmo que convocou de relevo, concluiu que:

“Atenta a fundamentação supra transcrita, consolidou-se no ordenamento jurídico a situação relativamente ao ano de 2010, quanto à não inscrição do A. no regime de residente não habitual.

Assim, verificamos que nesse mesmo ano o A. apresentou a sua declaração de rendimentos em sede IRS, em Portugal, como residente em território nacional [cf. al. F) dos factos assentes], deixando desta forma de reunir os pressupostos para usufruir do referido regime para o ano de 2011, uma vez que no ano anterior foi tributado como residente em Portugal. Consequentemente, impõe-se concluir que nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 16.º, n.º 6 do CIRS, não cumpre os requisitos necessários para usufruir do regime de residente não habitual a partir de 2011, em virtude de não ano anterior ter sido residente em território nacional”.

Ora, do supra expendido não se vislumbra que a decisão recorrida padeça do erro de julgamento que lhe é assacado.

Senão vejamos. Por forma a ter uma cabal apreensão da realidade fática em contenda, façamos uma resenha da mesma, mormente, dos requerimentos apresentados e ulteriores decisões prolatadas, seu concreto âmbito e extensão.

Atentemos, então.

A 24 de fevereiro de 2011, o Recorrente apresentou um requerimento junto do Serviço de Finanças de Cascais 1, no qual requer que seja reconhecida a sua inscrição no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos como residente fiscal não habitual, o qual foi indeferido por extemporaneidade, mediante despacho de 19 de abril de 2011, do Chefe de Divisão de Identificação de Contribuintes.

O aludido despacho foi devidamente notificado mediante ofício n.º G21514, de 20 de abril de 2011 da Divisão de Identificação de Contribuintes, sem que, no entanto, tenha sido interposta qualquer AAE a contestar a sua legalidade, tendo, inclusive, sido apresentado relativamente ao ano de 2010, declaração de rendimentos, enquanto residente em Portugal.

Não obstante o exposto, a 08 de agosto de 2011, o Recorrente apresenta novo requerimento a solicitar a inscrição no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos como residente fiscal não habitual o qual foi, igualmente, indeferido, tendo sido deduzida a presente AAE.

Dimanando, outrossim, provado que o Recorrente apresentou um pedido de pronúncia arbitral tendo por objeto a liquidação de IRS, referente ao ano de 2010, com fundamento no reconhecimento do estatuto de residente não habitual, para o ano de 2010.

No âmbito desse processo Arbitral, foi prolatada uma primeira decisão, datada de 17 de agosto de 2016, na qual se ajuizou que o artigo 54.º do CPPT, teria de ser interpretado no sentido de que o sujeito passivo que não impugnou judicialmente o ato administrativo de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual não está impedido de posteriormente impugnar a liquidação com fundamento em ilegalidades daqueles despachos, porquanto incompatível com os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça consagrados nos artigos 20.º e 268.º, nº 4 da CRP, e nessa conformidade, apreciado o mérito da pretensão e julgado integralmente procedente a ação.

Da referida decisão, -entenda-se primeira decisão- foi interposto, pela ATA recurso para o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 718/2017, processo n.º 723/17), no âmbito do qual a mesma requeria “[d]eve a norma do 54.º, nº1, 1ª parte do CPPT ser julgada inconstitucional, por violação dos princípios da tutela efectiva e da justiça (artigos 20.º e 268.º, nº4 da CRP), quando interpretada no sentido de que a referência à impugnação de actos imediatamente lesivos tem natureza de faculdade e não de um verdadeiro ónus que, quando não accionado no prazo legalmente estipulado, faz precludir o direito subjectivo dos sujeitos passivos de discutir um acto administrativo tributário que se sedimentou na ordem jurídica.”

O Tribunal Constitucional, dilucidou, meticulosamente, sobre a interpretação do artigo 54.º do CPPT e sobre o âmbito de aplicação deste normativo, tendo depois decidido: “Não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de actos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles” e “Julgar procedente o recurso interposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira”.

Após a prolação do aludido Acórdão, o Tribunal Arbitral, e em estrita vinculação com o dirimido, procedeu à reforma da decisão tendo revelado, ab initio, “Apesar do acórdão do Tribunal Constitucional nada referir sob a necessidade de reforma da decisão arbitral, vai-se proceder a esta, atendendo à interpretação normativa extraída do artigo 54º do CPPT de que a não impugnação autónoma do acto de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios próprios daquele e, por conseguinte, compatível com os princípios da tutela judicial efectiva e da justiça consagrados nos artigos 20º e 268º, nº 4 da CRP” proferindo, então, uma nova decisão (decisão reformada).

Nesta segunda decisão arbitral, o Tribunal Arbitral, após eleger a competência material como primeira questão a apreciar e decidir “a) A incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do pedido de aplicação ao Requerente do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais, decorrente do acto de indeferimento tácito do pedido de reconhecimento daquele estatuto para o ano de 2010, uma vez que tal pretensão teria de ser efectuada através de acção administrativa especial, nos termos do nº 2 do artigo 97º do CPPT, e a competência jurisdicional arbitral não contempla a apreciação da legalidade daquele acto de indeferimento tácito;” deu-lhe resposta negativa, isto é, decidiu “Julgar procedente a invocada excepção de incompetência absoluta do tribunal arbitral e, consequentemente, absolver-se a Requerida da instância (arts. 494º, al. a), e 493º nº 1 do CPC, aplicáveis ex vi do art. 2º al. e), do CPPT).”

Ulteriormente, o Recorrente não se conformando com a aludida decisão interpôs recurso jurisdicional de oposição de julgados para o STA, o qual não foi admitido.

Ora, tendo presente as asserções de facto supra expendidas nenhuma censura merece a decisão recorrida na medida em que o decidido pelo Tribunal Constitucional constitui caso julgado e vincula, efetivamente, o Tribunal a reformar a decisão em função do juízo de inconstitucionalidade, inexistindo qualquer violação da CRP, e bem assim da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e da ratio que lhe subjaz.

Mas, explicitemos porque assim o entendemos.

Dispõe, desde logo, o artigo 204.º da CRP, a propósito da apreciação da inconstitucionalidade que:

“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”

Preceituando, por seu turno, o artigo 280.º da CRP, sob a epígrafe de “fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade” o seguinte:

“1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais:
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
2. Cabe igualmente recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais:
a) Que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação da lei com valor reforçado;
b) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma;
c) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma emanado de um órgão de soberania com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma;
d) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas a), b) e c).
3. Quando a norma cuja aplicação tiver sido recusada constar de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto regulamentar, os recursos previstos na alínea a) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 são obrigatórios para o Ministério Público.
4. Os recursos previstos na alínea b) do n.º 1 e na alínea d) do n.º 2 só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, devendo a lei regular o regime de admissão desses recursos.
5. Cabe ainda recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatório para o Ministério Público, das decisões dos tribunais que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional.
6. Os recursos para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, conforme os casos.”

Mais importando convocar, neste âmbito, o teor do artigo 2.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, o qual sob a epígrafe de “decisões” preceitua:

“As decisões do Tribunal Constitucional são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades.”

Estatuindo, neste âmbito, o artigo 70.º quais as decisões das quais se pode recorrer e, o artigo 71.º o âmbito desses mesmos recursos do qual resulta do seu nº1 que “os recursos de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada.”

Importando, in fine, convocar o teor do artigo 80.º dessa mesma Lei Orgânica, o qual consagra a propósito dos efeitos da decisão que:

“1 - A decisão do recurso faz caso julgado no processo quanto à questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade suscitada.
2 - Se o Tribunal Constitucional der provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixam ao tribunal de onde provieram, a fim de que este, consoante for o caso, reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade.
3 - No caso de o juízo de constitucionalidade ou de legalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa.
4 - Transitada em julgado a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários, ou começam a correr os prazos para estes recursos, no caso contrário.
5 - O disposto nos números anteriores é aplicável, com as necessárias adaptações, à decisão do recurso previsto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º”

Ora, da interpretação conjugada destes normativos resulta, desde logo, que o objeto do recurso é sempre a constitucionalidade ou a legalidade de uma norma, não a constitucionalidade de uma decisão judicial.

Como doutrina Jorge Miranda (6-In O REGIME DE FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE EM PORTUGAL, Instituto de Ciências Jurídico Políticas, Centro de Investigação de Direito Público, disponível em www.icjp.pt, página 10.), “[o] recurso é restrito à questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, conforme os casos (art. 280.º, n.º 6, da Constituição) ou, tratando-se de contrariedade de ato legislativo com convenção internacional, às questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico-internacional implicadas na decisão recorrida (art. 71.º, n.º 2, da lei orgânica). E reporta-se apenas à norma aplicada ou não-aplicada no processo. O Tribunal Constitucional não está, contudo, vinculado à qualificação feita por esse tribunal: aí, pelo contrário, a sua faculdade de apreciação é plena.”

Esclarecendo, depois, que: “[c]omo escreve Miguel Galvão Teles, o Tribunal Constitucional, tal como foi configurado pela nossa ordem jurídica, é não só um tribunal supremo -no sentido de que das suas decisões não cabe recurso – mas, de igual modo, e até mais do que o Tribunal de Conflitos, um tribunal supremo dos supremos, ainda que de competência especializada, e situado fora das várias ordens de tribunais (7-In Ob. Cit. Página 17.).”

E quanto à concreta extensão e vinculação normativa elucida, de forma clara, que: “Se for dado provimento ao recurso, ainda que só parcialmente, os autos baixarão ao tribunal de onde provieram a fim de que este, consoante o caso, reforme a decisão ou a mande reformar em conformidade com o julgamento da questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade (art. 80.º, n.º 2, da lei orgânica). O Tribunal Constitucional não substitui, portanto, a decisão recorrida por aquela que deveria ser emitida, e tão-pouco a anula. É um sistema intermédio de recurso o adotado, um sistema em que o Tribunal Constitucional ordena ao tribunal recorrido que profira nova decisão com o conteúdo por ele prefixado; um sistema de cassação mitigado (8-In Ob. Cit. pp 19 e 20.).”

Elucidando, in fine, “Que sucede, entretanto, se o tribunal a quo não respeita o decidido em acórdão de provimento do Tribunal Constitucional? A verificar-se tal hipótese, ela corresponde a violação de caso julgado e deve admitir-se a possibilidade de uma reação da parte afetada por esse incumprimento para o Tribunal Constitucional – ainda uma forma de recurso atípico, paralela (e, ao fim e ao resto, com fundamento idêntico) ao recurso em caso de aplicação de norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral. Só assim se garante o princípio da prevalência das decisões do Tribunal Constitucional sobre as dos demais tribunais (art. 2.º da lei orgânica) (9-In Ob. Cit. Página 20.).”

Ora, do supra expendido e transpondo para o caso vertente nenhuma censura pode ser apontada à decisão recorrida, na medida em que tendo o Tribunal Constitucional julgado procedente o recurso da ATA, e considerado que, no caso vertente, a não impugnação do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, e sem que possa traduzir qualquer violação dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, tal dirimiu, em definitivo e com força de caso julgado, a única questão que importava para o caso dos autos.

Por forma a ter a completa amplitude do decidido pelo Tribunal Constitucional, extrate-se, designadamente, o seguinte:

“Tendo por certo que os atos administrativos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual consubstanciam um ato meramente pressuposto dos atos de liquidação do imposto inscrevendo-se cada um deles no âmbito de um procedimento administrativo-tributário próprio e autónomo , o que importa determinar, do ponto de vista do direito de ação, é se ao contribuinte ora recorrido foi conferida efetiva possibilidade de reação contenciosa contra o ato que indeferiu o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual em Portugal isto é, se, relativamente àquele ato, lhe foi assegurada uma tutela jurisdicional efetiva.
Considerados os meios através dos quais o ordenamento jurídico faculta ao destinatário a possibilidade de reagir judicialmente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, a resposta é indubitavelmente afirmativa.
Uma vez que a decisão que incidiu sobre o pedido de reconhecimento consubstancia um ato administrativo com repercussões na esfera jurídica do interessado, a mesma é passível de impugnação contenciosa imediata, nos termos do disposto no artigo 95.º, n.º 1, da LGT.
Na ausência de uma regra específica, a impugnação judicial dos atos relativos ao reconhecimento do estatuto de residente não habitual encontra-se sujeita aos prazos previstos para a impugnação de atos administrativos em geral isto é, aqueles que constam do artigo 58.º do CPTA. Assim, se estiverem em causa atos nulos, a impugnação pode ter lugar a todo o tempo (cf. 1ª parte do n.º 1); se estiverem em causa atos anuláveis, a impugnação tem lugar no prazo de um ano, se promovida pelo Ministério Público, e de três meses, nos restantes casos (cf. alíneas a) e b) do n.º 1).
De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 58.º do CPTA, a impugnação poderá ser ainda excecionalmente admitida, para além do prazo geral de três meses imposto para os particulares, nos seguintes casos: nas situações em que ocorra justo impedimento, nos termos previstos na lei processual civil; no prazo de três meses, contado da data da cessação do erro, quando se demonstre, com respeito pelo contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro; ou quando, não tendo ainda decorrido um ano sobre a data da prática do ato ou da sua publicação, se obrigatória, o atraso deva ser considerado desculpável, atendendo à ambiguidade do quadro normativo aplicável ou às dificuldades que, no caso concreto, se colocavam quanto à identificação do ato impugnável, ou à sua qualificação como ato administrativo ou como norma (cf. alíneas a) a c) do n.º 3 do mesmo artigo) (neste sentido, cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de, cit., p. 597; José Casalta Nabais, A impugnação, cit., p. 21).
Ora, tendo tido o contribuinte ora recorrido plena possibilidade de reagir contenciosamente, nos termos que ficaram expostos, contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do benefício fiscal que apresentou, não se vê como a exclusão da possibilidade de invocação dos vícios deste em momento ulterior isto é, no âmbito da impugnação da legalidade do ato de liquidação do imposto possa violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva.
Do ponto de vista da tutela jurisdicional efetiva, tal conclusão só poderia ser diferente se estivéssemos perante uma situação em que, por força do regime globalmente aplicável, o contribuinte não tivesse tido oportunidade processual de reagir contenciosamente contra o ato administrativo-tributário através do qual é definido o estatuto a considerar para efeitos de liquidação do imposto. Como sucederia, por exemplo, em caso de desconsideração, no âmbito da liquidação do imposto, de uma situação de deficiência fiscalmente relevante, atempadamente comunicada à Autoridade Tributária e Aduaneira: se, por alguma razão, aquela situação não fosse tida em conta pela Administração para efeitos de deduções em sede de IRS, tal facto apenas poderia ser invocado no âmbito da impugnação da própria liquidação do imposto, não sendo consequentemente legítima, à luz do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, a exclusão dessa possibilidade.
Não é essa, conforme se viu, a situação em causa nos presentes autos.
Nestes, trata-se tão-só da impossibilidade de o contribuinte que não impugne diretamente o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto fiscal pretendido o poder vir a fazer ainda a posteriori, em sede de impugnação do ato de liquidação do respetivo imposto, apesar de expirado o prazo legal para a invocação do vício relativo ao primeiro ato. Ou, dito de outro modo, apenas de (mais) uma concretização do princípio, comum a tantas outras soluções processuais, segundo o qual a não impugnação de um determinado ato dentro do prazo para o efeito fixado implica a respetiva consolidação na ordem jurídica, com consequente preclusão da faculdade de invocação dos vícios que lhe correspondam no âmbito da impugnação de um ato ulterior.
Contendo-se tal efeito dentro dos limites a cuja imposição se encontra indissociavelmente ligada a função inerentemente disciplinadora de qualquer ordenamento jurídico-processual, não se vê que ocorra qualquer violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º da Constituição.
15. De acordo com o juízo formulado pelo Tribunal a quo, a norma extraída do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, é incompatível ainda com o princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.
É sabido que a norma constante do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição de acordo com a qual [é] garantido aos administrados tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos e a adoção de medidas cautelares adequadas constitui uma mera concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva, agora com referência aos direitos e interesses dos particulares na específica relação destes com Administração.
Da tutela jurisdicional efetiva especialmente contemplada no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição que assume, conforme se viu, particular relevância no quadro da jurisdição administrativa , decorre uma exigência de contencioso pleno, que inclui o reconhecimento e proteção dos direitos e interesses dos particulares, a impugnação de quaisquer atos administrativos lesivos desses direitos e interesses, a existência de meios de condenação à prática de atos devidos, bem como a consagração de medidas cautelares adequadas (cf., por exemplo, J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 828 ss.).
No que toca ao processo tributário, impõem-se exatamente as mesmas quatro exigências.
Lato sensu, a imposição constitucional de um contencioso em sede tributária traduz-se no reconhecimento aos contribuintes da faculdade processual de, em geral, defender em as suas posições jurídicas em todas as situações em que a sua esfera jurídica se encontre afetada, seja nas situações em que existe uma atuação administrativa (), seja nas situações em que essa atuação, devendo existir, não existe () (cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de, cit., p. 248).
O que acaba de dizer-se encontra plena concretização no plano infraconstitucional.
Em consonância com a exigência de contencioso pleno no plano tributário, consagrada no 9.º da LGT, o n.º 1 do respetivo artigo 95.º reconhece a qualquer interessado o direito de impugnar ou recorrer de qualquer ato lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, por potencialmente lesivos para esse efeito tomando, entre outros, os atos de liquidação de tributos (cf. alínea a), do n.º 2) ou o indeferimento de pedidos de isenção ou de benefícios fiscais sempre que a sua concessão esteja dependente de procedimento autónomo (cf. alínea f) do n.º 2 ).
Ora, em face dos meios de reação facultados pelo ordenamento, as considerações que se deixaram feitas acerca da eventual violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva têm aqui inteira aplicação: na medida em que o particular ora recorrido dispôs de uma possibilidade efetiva de reagir contenciosamente contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, o comando cuja aplicação foi recusada não restringe intoleravelmente a garantia de defesa, perante os tribunais, dos seus direitos e interesses legítimos.
Uma última palavra se deixe para o princípio da justiça, enquanto diretiva dirigida ao intérprete/aplicador no sentido de, na resolução das questões que lhe são colocadas, privilegiar a justiça material em detrimento de soluções excessivamente formais.
Por força da imposição que decorre de outros princípios igualmente aplicáveis como seja o princípio da segurança jurídica ou o próprio princípio da separação de poderes , qualquer ponderação com o intuito de verificar se a justiça material deverá orientar uma dada solução terá de ser feita em concreto, à luz de todas as propriedades relevantes do caso, sem fazer tábua rasa das exigências que decorram do regime processual aplicável (neste sentido, cf. Joaquim Freitas da Rocha, Lições de, cit., p. 255).
A questão a que, também deste ponto de vista, importa responder não é, por isso, diferente daquela que acima ficou já enunciada: sob incidência da norma que constitui o objeto do presente recurso, de acordo com a qual a não impugnação judicial do ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial da decisão final de liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele, aos contribuintes é negada a faculdade de impugnar contenciosamente os atos da Administração Tributária e Aduaneira que possam violar os seus direitos ou interesses legalmente protegidos?
Tendo em conta as várias possibilidades impugnatórias de que o contribuinte poderia ter lançado mão no caso sub judice embora o não tenha feito , a resposta é, conforme se viu já, negativa.
Por isso, a solução recusada pelo Tribunal a quo, ainda que possa não ser, de entre as abstratamente configuráveis, aquela que maior nível de proteção assegura aos particulares, não é censurável à luz do princípio da justiça, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição.” (destaques e sublinhados nossos).

Ora, face ao exposto, dúvidas não subsistem de que o que interessava para os presentes autos era, efetivamente, atentar no juízo de constitucionalidade sobre o aludido normativo, porquanto a concreta abordagem da inimpugnabilidade do ato administrativo de indeferimento quanto ao ano de 2010, à luz tutela jurídica efetiva, era a única situação impactava para os presentes autos.

Logo, em nada relevava a nova decisão do Tribunal Arbitral. De resto, como visto, o mesmo estava juridicamente vinculado a reformar a decisão no sentido do juízo de não inconstitucionalidade constante do Acórdão visado.

Sem embargo do exposto, sempre se dirá que o Acórdão do STA no visado Recurso por Oposição de Julgados não foi, de todo, admitido, redundando em total inocuidade o por si expendido.

Face ao exposto, nenhuma censura merece a decisão recorrida mediante convocação e vinculação do dirimido pelo Tribunal Constitucional.

E isto porque, atenta a consolidação no ordenamento jurídico da situação relativamente ao ano de 2010, quanto à não inscrição do A. no regime de residente não habitual, e face, outrossim, à factualidade constante nos autos, mormente, a alínea F) da qual resulta que o A. apresentou a sua declaração de rendimentos em sede IRS, em Portugal, como residente em território nacional tal implica que deixou “desta forma de reunir os pressupostos para usufruir do referido regime para o ano de 2011, uma vez que no ano anterior foi tributado como residente em Portugal. Consequentemente, impõe-se concluir que nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 16.º, n.º 6 do CIRS, não cumpre os requisitos necessários para usufruir do regime de residente não habitual a partir de 2011, em virtude de não ano anterior ter sido residente em território nacional.”

Face a todo o exposto, improcede na íntegra o presente recurso.


***


IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM deste Tribunal Central Administrativo Sul em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.



Lisboa, 07 de novembro de 2024

(Patrícia Manuel Pires)

(Maria da Luz Cardoso)

(Ana Cristina carvalho)